O PRECURSOR IGNORADO: VON SCHUBERT, O PRIMEIRO E ÚLTIMO PSICANALISTA HONESTO

Von Schubert, o homem que na década 1810 já havia dito tudo que precisávamos saber sobre interpretação de sonhos. Sigmund Fraud, o descarado, e por conseguinte também Carl Jung, não lhe deram nenhum crédito, mas sem dúvida o estudaram e aproveitaram plenamente suas descobertas, como é inegável a partir das constatações seguintes.

 

O sistema trinitário de V.S. sobre a constituição do homem em corpo vivente-alma-espírito foi simetricamente “atualizado” (eufemismo para plagiado) pelas duas tópicas do sistema consciência/inconsciente freudiano. Por abominar o termo “pré-consciente”, usarei os nomes da segunda tópica e não da primeira, mas creio que isso não tem importância nesta breve discussão: fato é que a dado ponto Fr. passou a escrever isso-eu-supereu em simetria, sendo o espírito vonschubertiano o equivalente à instância moral repressora em F., o supereu. A alma era o mesmo que o ego (eu), a mediadora entre o espírito e o corpo vivente, aquele que responde pelos instintos primitivos antes de sua repressão social: o exato isso fraudiano, que (tripla) coincidência!

 

Não só isso, mas Von Schubert tinha o conceito Ich-Sucht (amor-a-si-próprio ou amor-de-si-mesmo), “traduzido” pelos pseudanalistas do séc. XX como narcisismo, talvez o seu mais vago e indolente conceito (pelo menos antes dos discípulos dissidentes de F. buscarem aprofundá-lo). As origens dessa “tradução” foram apagadas da história oficial da psicanálise (organismo pessoal de gestão da carreira de Freud).

 

Até aí, Jung não se mostra tributário de Von Schubert, pelo menos no que diz respeito a qualquer nomenclatura fundamental de sua doutrina. Mas as contribuições de V.S. começam a se fazer sentir na individualização/individuação junguiana (as metamorfoses sucessivas no curso da vida descritas por V.S.) e no conceito de Selbst ou Self (o ‘si mesmo’, diferente do eu ou ego do ex-colega Fraud por consistir na versão idealmente buscada pelo eu em vida, uma espécie de ideal-do-eu, porém mais bem-fundamentada – particularmente, nunca vi qualquer espaço para o ideal-do-eu nos trabalhos de F., mesmo o sistema não primando pela coerência, e nunca me interessei por buscar qual teria sido a utilidade de sua formulação para a psicanálise ortodoxa). Pois bem: o Self junguiano é claramente aparentado à descrição de Von Schubert de um segundo centro da alma humana (lembrando que a alma neste autor é o ‘eu’ psicanalítico).

 

Não é dizer que Von Schubert, obviamente, não incorria em idéias ou hipóteses que hoje os melhores de nós consideram disparates: a Todessehnsucht (anelo-de-morte) seria o melhor exemplo. Para quem imagina que o “brilhante” conceito nasceu da cabeça genial de Freud lá por 1920 sob a alcunha de instinto ou pulsão de morte está bastante equivocado. Talvez o pai-da-psicanálise estivesse em crise de meia-idade e precisasse mesmo era de um instinto de norte! Jung, prudentemente, não forjou nenhum conceito análogo a esta inaceitável contradição em termos.

 

Von Schubert sabia todos os elementos psicanalíticos dos sonhos, décadas antes do próprio Fraud nascer e quase um século inteiro antes da fundação da Psicanálise. F. copiou toda sua descrição da natureza do sonho como uma mescla de linguagem verbal e imagética (simbólica). O que em V.S. chama-se “hieróglifos” apareceu desavergonhadamente na Interpretação dos Sonhos de 1900 como o mecanismo da condensação, um <conceito completamente original meu>, segundo Freud. O que ele se esquece de dizer é que tudo que compõe a condensação, incluindo as observações sobre um extenso conteúdo onírico só codificável em vigília poder estar contido em uma mesma imagem ou porção reduzidíssima do material manifesto do sonho, por exemplo, já estava contido nos hieróglifos de Von Schubert.

 

Ou seja: o conteúdo hoje tão disseminado e vulgar da Interpretação dos Sonhos de Fraud, seu livro mais famoso, incluindo noções basilares e tidas como evidentes por qualquer leigo, como: a) que algo percebido no sonho como uma imagem podia ser a fusão de inúmeras outras imagens (distinguíveis após o acordar); ou b) que  significados importantes e sumamente racionais se escondiam detrás de trocadilhos e associações, material que continuaria obscuro e absurdo para o próprio sonhador, caso ele não tentasse analisá-los em vigília depois –– todo esse conteúdo, eu dizia, era já disseminado e vulgar na própria época de Fraud e Jung, e, o mais grave, já o era, igualmente, muitas décadas do séc. XIX adentro, entre os eruditos que passavam a vida a investigar aspectos como os sonhos e a vida inconsciente dos sujeitos! Numa Alemanha/Áustria/Suíça (todos países com o Alemão como primeira ou segunda língua, com indiscutíveis fortes laços ideológicos e culturais entre si, sobretudo entre as camadas nacionais ditas científicas ou educadas, que se correspondiam e liam mutuamente) ainda romântica ou pós-romântica, aficionados por esses temas esotéricos era o que não faltava.

 

A Psicanálise pode ter sido a maior das modas, mas nunca fôra uma revolução: no máximo um revival de outras revoluções do pensamento, ocorridas muito antes, num contínuo que atravessa inúmeros autores. Hoje a historiografia o reconhece; o estranho é que quase ninguém se dá conta. Normalmente levantam-se questões morais do tipo mais carola ou então epistemológicas do tipo mais superficial a fim de refutar a psicanálise ou questionar seu tratamento. Há terapias melhores e a psicanálise pouco se atualizou, preferindo inclusive manter-se afastada do mundo acadêmico, etc., seria exemplo da segunda conduta. Dizer que é um absurdo que um bebê deseje carnalmente sua mãe é obviamente a reação dos imbecis, que sequer entenderam a formulação do complexo de Édipo em tempo algum, e por isso também não entendem por que ela está errada, mirando em outros motivos sem qualquer relação com o problema da falta de fundamento do modelo fraudiano. O que raramente se questiona ainda hoje, após tanto tempo, é a ética dos fundadores da psicanálise e do movimento psicanalítico (para além dos altos ordenados que cobram e de um vago sentimento anti-semita), bem como a origem dos principais conceitos da escola. Ela não se tornou ultrapassada ou se constitui de modo que não se pode aferir sua validade (naqueles paradigmas idiotizantes e liberais de um Popper ou um Kuhn): ela já nasceu ultrapassada, sua validade fôra testada e reprovada ao longo do séc. XIX, durante a gradual evolução da psiquiatria dinâmica, mas o movimento psicanalítico abafou sua própria história com sucesso ímpar, além do quê muitas teorias, umas mais respeitáveis, outras mais contestáveis, como em qualquer outro campo do conhecimento, foram pouco a pouco caindo no olvido para voltar a ser apresentadas sob nova roupagem por um médico vienense astuto e um grupo de discípulos ardorosos, numa guerra de guerrilha que envolveu, como vítimas, até grandes nomes da psiquiatria do século XX, a incluir uma verdadeira campanha de difamação de reputações (principalmente de ex-simpatizantes), intrigas políticas, falsificação de biografias de pacientes e bastante oportunismo literário (no caso de Freud foi, por anos, escrever o que o público queria ler – basta ver como sua psicanálise se moveu de obra em obra à psicologia do consciente, do ego ou do eu, que foi criada por autores de fora da psicanálise e vinha roubando adeptos, aspecto inexistente no princípio de seus trabalhos; e como sua escrita foi se tornando cada vez mais ensaística e menos técnica, aventando hipóteses culturais cada vez mais mirabolantes no lugar de demonstrar qualquer interesse empírico, médico ou psiquiátrico em si, como se esperaria de um terapeuta em qualquer época e lugar). E apenas na segunda metade do século XX é que a historiografia conseguiu aclarar diversos pontos tão obscuros da pré-história e da história do movimento psicanalítico. Um deles foi redescobrir os escritos de Von Schubert.

 

Retomando, portanto, as considerações sobre Von Schubert, ele já havia observado a característica insólita do humor e da ironia peculiar aos sonhos, em que ocasionalmente um símbolo poderia ser uma referência velada ao seu contrário (caixões conotando uma vida feliz e saudável, p.ex.). É desnecessário relatar como Fraud, muito desonestamente, repetiu todas estas “descobertas de próprio punho” em seu livro muito posterior, com toda a desfaçatez de que era capaz, tática que principiou a torná-lo uma pessoa famosa. Para soar mais convincente e prometéico, F. até inventou aquele que viria a se tornar o maior mito da pseudociência moderna: o de que descobriu todas essas coisas autoanalisando seus próprios sonhos, e com isso curou até uma suposta neurose em si mesmo! Não é que alguém não possa analisar seus próprios sonhos sem ajuda. Muitos o fazem. Ou pelo menos uma primeira pessoa teve de fazê-lo; agora, além de esses precursores terem sido muito corrigidos e retificados pelas gerações seguintes, cada um que desejar fazê-lo poderá executar a tarefa com competência, após estudar preliminarmente todo o conhecimento acumulado sobre o tema. Mas não! — o problema não está, como muitos insinuam, na figura de “Freud, o autodidata”, mas na grande mentira de que F. descobriu coisas inéditas ao fazer essa autoanálise e na mentira ainda maior de que através da interpretação dos sonhos era possível fazer psicoterapia, i.e., curar distúrbios mentais. Ele tinha um diário de sonhos, sim. Mas ele havia lido Von Schubert, Marie-Jean-Léon Lecoq e muitos outros “oniristas”. Anotou, então, os sonhos que tinha todas as noites (se pudermos aceitar seus sonhos como produtos de uma pena sincera, crendo em sua boa-fé) e, ao longo de alguns anos, descobriu que muitas observações de Von Schubert estavam corretas e também se aplicavam a seu caso – ou seja, os mecanismos do sonho eram provavelmente um processo universal e sobre eles podia-se erigir uma ciência dos sonhos. Porém os discípulos de Freud não foram tímidos em propagar a lorota de que ele pôde descobrir o que ninguém havia tido a capacidade de descobrir em milênios, inaugurando uma nova era da humanidade. Ora, o não-lembrado Von Schubert nunca deve ter pensado que seu conhecimento não era replicável – ele só não o batizou de uma ciência nem achou que fazia algo diferente do que continuar os progressos na neurologia e da psicologia da sua época.

 

Portanto, nunca ninguém ouviu ou leu de Von Schubert que ele se arrogava poderes exclusivos de autoanálise do próprio inconsciente, e provavelmente descobriu essas características já descritas acima via observações paulatinas e insights limitados, porém extremamente vanguardistas. É por isso que pôde enunciar o instinto de morte “fraudiano” com mais de século de antecedência, antes da Ego Psychology se tornar forte tendência nos anos 20 e 30 do século XX, obrigando F. a ressuscitar esse polêmico conceito e chamar a atenção. Funcionou. Mesmo que estivesse completamente errada – afinal, homens e cientistas erram –, esta concepção de Von Schubert serviu como uma luva em Freud, que tomou a precaução de dizer que se tratava apenas de uma certa conjetura inocente e impossível de provar, em que pese passar a vida inteira dizendo que odiava fazer metafísica. Era fácil, no entanto, já muito estabelecido no meio e contando com uma instituição cheia de sequazes, ver seu trabalho promovido como se se tratasse de algo sério e respeitável de nascença. Pelo menos as ingênuas e precoces postulações de Von Schubert não são como as postulações do homem Fraud, que só as copia (em segredo) e, mascarando suas deficiências, empresta-lhes a impressão de que nunca erram, como todo chefe de seita sabe fazer excepcionalmente.

 

Ainda no terreno dos sonhos, Von Schubert acreditava que certos dos simbolismos decifráveis de nossa vida interna noturna, além dos que dependiam apenas do contexto do sonhador em questão, eram muito simples e possuíam um cunho universal e imemorial, i.e., eram válidos e idênticos para todos os sonhadores (entre os exemplos que foram mais vulgarizados – incluindo distorções, não apenas a pura e simples transmissão da informação –, temos por exemplo o significado unilateral e inequívoco atribuído a umbrais de portas ou cobras e escadarias dentro dos sonhos, do qual desde então se aproveita todo tipo de charlatão, de astrólogos e místicos profissionais a simples pessoas querendo ajudar amigos em dificuldade de significar seus sonhos e blogueiros que repetem a mesma ladainha sem filtro: sonhar com excrementos significa isso; já se alguém muito importante para você morrer no seu sonho, é sem dúvida aquilo; e se acontecer tal outra coisa, sempre quer dizer que você vai ficar rico! Sem contexto, preâmbulo ou ressalvas, os símbolos oníricos passaram a ser veiculados dessa forma inocente. Houve uma intensificação desse tipo de conhecimento folclórico, é claro, mas dicionários de sonhos ou pelo menos passagens literárias que atribuem significados fixos a aparições oníricas existem desde a Antiguidade.

 

Veja que essa banalidade do parágrafo anterior se chama, no livro de F., símbolos universais. Ora, é exatamente o mesmo nome que Von Schubert a havia dado! Ele nem sequer se deu ao trabalho de maquiar um pouco o velho conceito, inventando um novo jargão. Já Jung atribui a essa suposta característica universalista do reino onírico (que particularmente não me convence) o epíteto de arquétipos. E assim poderíamos seguir elencando velharias de que a psicanálise foi se apropriando e reforjando como se fosse um saber sistemático inédito, derivado do tratamento clínico esmerado de pacientes!

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