EVOLUTION OF THE CULT – PARTE II – Immortal

DEPOIS DA CALMARIA, VEM A IMORTALIDADE…

ÚLTIMA PRETENSÃO (DISCLAIMER): Quero “continuar” este livro, já que o autor ignorou algumas bandas e fez um sobrevôo por várias delas quando saíam do movimento black metal ou simplesmente chegava-se mais perto da contemporaneidade, supostamente por falta de espaço (afinal, um bom livro investigativo tem mesmo de ser mais profundo e delimitado, é o preço que se paga). Já que é assim, que tal se eu mesmo, com minhas fontes, puder descrever os álbuns 1990-atualidade do Venom, do Mercyful Fate, as bandas principais que ficaram de fora dos 50 capítulos, etc.? Não é um projeto de fácil nem rápida execução, mas fica aqui registrado o intuito, para que, se não se realizar, a culpa não possa ser atribuída a um “esquecimento casual”! Obs.: A idéia não é necessariamente escrever resenhas dos discos, mas tampouco me satisfaria apenas uma cronologia muito “individualizada” de cada banda, formato que este autor elegeu. Há um meio-caminho entre essas duas coisas passível de explorarmos! Esse approach eu deixo para a PARTE III, em que pretendo ir contando duma tacada só as principais evoluções do gênero nos anos 90, falando mais de Venom e Mercyful Fate. Neste segundo capítulo, ou segundo volume do “livro que não comecei mas que irei complementar”, dedico-me, por meio de várias seções incluindo entrevistas, overviews do impacto da banda na cultura cult extrema e, claro, notas pessoais pormenorizadas de cada álbum, o que fez muita falta no Evolution of The Cult que muitos passaram a conhecer lendo os trechos que publiquei no Seclusão. Outra sugestão, ainda não confirmada, para a parte IV, seria um artigo especial sobre o Black Metal finlandês, um dos meus prediletos. O sueco também não está fora de cogitação para uma possível parte V… Podem aguardar meses ou anos, mas sejam otimistas: dificilmente desisto dos meus projetos!

O Immortal foi formado quando uma nova banda na praça, o Amputation, começou a recrutar membros do Old Funeral em decomposição (e realmente amputações e funerais costumam desencadear com certa rapidez a ocorrência biológica ou literal desse fenômeno, decomposição). Ambos eram grupos noruegueses de death metal. Em 1988, Demonaz forma o Amputation com 2 ex-membros do Old Funeral. Abbath, um terceiro ex-integrante do Old Funeral, se juntaria ao trio logo em seguida para completar o então ainda ativo e ambicioso Amputation.

1. OVERVIEW

Uma característica de relevo quando se fala em Immortal e a cena incipiente norueguesa é que os membros deste grupo nunca se envolveram nas atividades controversas de muitos dos partícipes da segunda onda do black metal, constituída principalmente pelos jovens que freqüentavam a Helvete, loja de discos de Euronymous.

Tampouco os temas do Immortal giraram de alguma forma em torno de satanismo ou de apologias pagãs, muito menos posicionamentos políticos de qualquer natureza. Seu foco lírico é nas forças da escuridão, no mal como uma essência capturável e num gélido mundo fantástico cheio de nomes próprios e neologismos.

A primeira mudança realmente impactante na formação (embora os primeiros álbuns sejam recheados delas) foi a saída do membro fundador Demonaz do posto de guitarrista, em 1997, devido a um quadro severo de tendinite nos dois pulsos ao mesmo tempo. Ele seguiu na banda contribuindo com letras e ocasionalmente como empresário e agenciador. Conforme veremos, em 2013, surpreendendo a muitos, Demonaz, após uma ou mais cirurgias braçais e muita dedicação na recuperação total, voltou a empunhar o instrumento e a tocar no seu velho estilo ágil.

O primeiro hiato da banda se deu em 2003: Abbath, Demonaz e Horgh, o trio que então constituía o Immortal, decidiu parar temporariamente por certas divergências artísticas. Abbath começou a tocar numa banda cover de Motörhead pela mesma época, a Bömbers, na companhia de Tore Bratseth (antigo companheiro de Old Funeral, e também ex-Desekrator) e Pez; também data desta época o projeto-solo de Abbath que adotava uma linha mais comercial, de composição de heavy metal, intitulado minimalisticamente I (Eu).

O Immortal voltou de seu 1º hiato em junho de 2006 com a mesma formação e lançou mais um álbum de estúdio em 2009; em março de 2015, porém, as diferenças entre os membros se mostraram inconciliáveis, quando o grupo novamente se dissolveu. Abbath fundou uma banda com seu próprio nome para seguir a carreira.

A banda foi inusitadamente reativada poucos meses depois, em agosto, apenas com Demonaz e Horgh. Dizem que Abbath não licenciou o nome, dando a brecha para que seus ex-companheiros seguissem trabalhando sob a mesma alcunha. Apollyon seria posteriormente convidado para reestabelecer o power trio que configurou o Immortal na maioria de seu tempo inativo. Em 2018 esta formação lançou um álbum, até a data deste texto o último do Immortal.

Atualmente (já há mais de um ano), Demonaz e Horgh travam uma batalha judicial entre si pela propriedade exclusiva ou dividida do nome da banda, sem contar que Abbath nunca desistiu do assunto. Curioso que Demonaz insista no tema, haja vista considerar-se mais “qualificado” para sustentar o nome Immortal, sendo membro fundador. Horgh, que pulou no barco consideravelmente depois, considera que, embora Demonaz deva ser justamente reconhecido como associado à marca, também trabalhou o suficiente no projeto para compartilhar deste direito.

2. AMPUTATION: OS PRIMÓRDIOS

Sob a alcunha Amputation existem duas demos. É impossível determinar a residência norueguesa da banda pela sonoridade, já que ela se diferencia inclusive do som do Old Funeral, considerado bem genérico. Tampouco podem-se distinguir influências puras ou inspiração muito clara das verves sueca ou floridiana que então grassavam no death metal. Trata-se mais de um híbrido enfurecido de deathrash – na 1ª demo – similar ao que se produziu por aqui, no Brasil, em anos pretéritos, pelo Sarcófago e principalmente durante a fase Schizophrenia do Sepultura, não só nas composições mas até na atmosfera e na qualidade análoga da produção (como se não bastasse, Abbath consegue lembrar bastante o gutural do Max Cavaleira neste material!).

Na 2ª demo os elementos de death se sobrepujaram, diminuindo-se a velocidade e aumentando a ambientação, o que sinaliza claramente uma transição entre o death, ou pelo menos o BM de 1ª onda (característico dos anos 80), e o BM em si (de 2ª onda), se cotejamos com a primeira demo do já assim cognominado Immortal (i.e., com a 3ª demo desde a montagem do grupo, caso ele continuasse se chamando Amputation).

O que mais chama a atenção na primeiríssima demo são os vocais de Abbath, com balbuceios semi-gritados, cheios de interjeições à guisa de Tom G. Warrior – ewww!!!, ahhhhh!!, etc. –, risadas maníacas e uma série de esguichos primitivos. O inglês é entrecortado, nem todas as sílabas são pronunciadas, e o sotaque de Abbath é visivelmente estrangeiro, o que só aumenta o charme da exibição. Seria mais ou menos como fundir os estilos vocais do cantor do Incubus da primeira gravação do Serpent Temptation¹ e do Angel da brasileiríssima Vulcano.

¹ Lembrando que esta banda de deathrash gringa regravou este álbum com outro vocalista logo depois. Então, se você ouviu o disco, não necessariamente ouviu na voz em comento!

Na primeira demo o Amputation não economiza em velocidade e intensidade, com raros interlúdios mid-tempo com palm-mute na guitarra. Os solos estão bem-espalhados pelas composições e tornam o som ainda mais abrasivo. A bateria parece um cavalo de batalha. O blast beating é mandatório já nesta fase do death, ainda que estejamos falando de uma banda com um pé no thrash, sem se fechar num só subgênero. Portanto, podemos dizer que é um dos materiais mais extremos do death metal norueguês ainda em desenvolvimento naquele 1989.

Slaughtered in the Arms of God, o título da segunda demonstração, é o Amputation em continua mutação. Quem fizesse o download em duas ocasiões separadas poderia nem notar qualquer vínculo entre ambas as demos e julgar que a homonímia na autoria fosse só uma coincidência! A qualidade do material nos faz perguntar como raios o Old Funeral é hoje bem mais conhecido que o próprio Amputation… Talvez a razão não tenha qualquer fundamentação estética ou musical: lembremos que o OF contou com a breve presença de Varg Vikernes no baixo (já depois da saída de Abbath).

Se a primeira demo era um incontestável deathrash, a 2ª puxa mais para um dark death, resvalando inclusive no gótico, bem soturno e maligno. Embora o thrash não tenha sido completamente olvidado por contarmos com linhas de guitarra derivadas de Possessed e Autopsy, deu-se mais um passo para fugir do template amarradão do “metal mainstream”, se assim podemos dizer, numa cena que estava mudando tão rápido que de vanguarda em poucos anos o thrash estava se tornando a cada novo dia mais sinônimo de clichê. Os blast beats continuam, mas o ritmo não é tão frenético quanto o da primeira demo. O vocal segue na mesma linha, senão mais grave e cavernoso – é quase admirável que se trate do mesmo dono dos guinchos roucos e ásperos dos dois primeiros álbuns do Immortal (não que Abbath não tenha continuado por muitos e muitos discos como vocal, mas mudou, reconhecidamente, o estilo ainda mais, posteriormente, para algo um pouco mais parecido com um vocal death, o que ainda não é deixar seu terceiro estilo de canto condizente com o primeiro!). Não é exagero dizer que nesses registros Abbath pode ter mandado vocais mais baixos e graves que os do próprio Chris Barnes no começo do Cannibal Corpse – para que o leitor entenda o nível quase inumano de gutural aqui alcançado! Nessa “reformatada a meias” que a banda deu no seu estilo de uma demo para a outra, podemos dizer que desincorporou-se um pouco do Deathcrush (Mayhem) que estava injetado no grupo e injetou-se, em troca, mais de Morbid Angel.

Nesse som mais devagar, intenso e controlado, a banda quis transmitir, quiçá, uma maior coordenação sobre seus movimentos, maior domínio conceitual sobre cada instrumento, alterando a feição do som num lapso de poucos meses – com o fito de duas, uma: ou queriam divulgar inteligentemente e com esforços mínimos (6 canções) duas faces de seu versátil talento a fim de atrair o maior número possível de gravadoras; ou a evolução foi autêntica e sincera das unhas à raiz dos cabelos e os músicos treinaram e compuseram muito nessa época, buscando realmente deixar a sonoridade da 1ª demo completamente enterrada. A segunda demo é mais limitada que a irmã mais velha no quesito dimensão, pois apresenta somente 2 faixas. O mais engraçado é que a próxima demo, já como Immortal, será mais diferente da segunda do que a segunda era em relação à primeira: adentraremos no completo raw black metal sem meios-termos!

3. DESAMPUTADO E IMORTAL, MAS RESSAQUEADO?

Hervé Herbaut, dono da Osmose Productions, foi o primeiro representante de gravadora fisgado pelo som do Amputation e se lembra muito bem da transição do som da banda, que observou detidamente. Seria uma história de sucesso com 2 lados felizes: Immortal e Osmose estariam juntos por 6 full-lengths. “O que me atraiu em direção a eles foi esse deslocamento do death metal ao black metal em tão pouco tempo. Falava muito ao telefone com o Demonaz, que sempre nos prometia algo diferente do que ouvimos nas demos do Amputation, e isso foi cumprido quando saiu o primeiro disco do Immortal. Mudando de assunto, a primeira vez que eles vieram fazer entrevistas por telefone à imprensa especializada, no nosso antigo escritório, lembro que o Abbath não parava de vomitar de tão bêbado.”

4. A ERA TRVEANTI-TRVE: STORYLINE DA BANDA

A primeira demo do Immortal veio um ano depois da banda abraçar por completo o death metal sob a alcunha Amputation. Incrivelmente, o som estava mais primitivo do que nunca. Mais primitivo e, aliás, menos brutal – como mandava a estética do novo movimento. Não literalmente falando: a estética estava sendo criada, não era imposta, não existam ainda cânones, e o Immortal fez parte dessa forja que se tornaria legendária. O timbre da guitarra e o ritmo inclemente passam uma atmosfera de aspereza gelada, de som frio e setentrional. Esse sentimento inefável ao ouvir a técnica musical do grupo seria depois elevado a trademark do novo gênero, o True Black Metal (o True, em letra maiúscula, servindo para identificar o trio como norueguês, berço territorial da estética que seria exportada mundialmente).

Adeus definitivo aos vocais guturais e estupidamente abissais de Abbath: seu novo estilo era um silvo, ainda gutural, é lógico, agudo, que não vinha mais das entranhas mas da própria garganta, como se o ar não tivesse mais tempo de se elevar dos pulmões e tivesse de ser expelido imediatamente na cara do ouvinte, deparado com o sistema fonador de um ente alienígena alvinegro (referência a sua icônica maquiagem minimalista e monocromática inspirada no K.I.S.S., da qual ainda falaremos bastante). A produção não pode ser considerada perfeita para o mainstream listener, mas é exatamente o som que muitas bandas do reduto black procurariam ano após ano: muito reverb (eco), as notas das cordas e o bumbo tribal da bateria saindo abafados, como duma caverna mefítica. Das duas exíguas faixas dessa demo reinstauradora, Cold Winds Of Funeral Frost (rebatizada …Funeral Dust para o “álbum cheio” na seqüência) seria o destaque máximo.

O que pouca gente comenta é que o Immortal é cronologicamente a primeira banda de black metal norueguesa da second wave. Que me desculpem o maior relevo na cena do Mayhem e o óbvio primor de execuções primordiais (com as desculpas pelo trocadilho cacofônico) do próprio Mayhem (no template BM em si, no De Mysteriis, 1994) e de outros virtuoses como Emperor e Burzum – mas este patinho feio Diabolical Fullmoon Mysticism é quem merece os louros do pioneirismo mais bruto, tosco, cru daquele distante 1992. O som de catacumba das inúmeras demos do BM de garagem do Ildjarn já está todo aqui, em germe; parece que os membros da banda estão tocando a 20 metros do ouvinte, e cada um a pelo menos 5 ou 7m um do outro! A aura é inacreditável.

Dizem que a melhor aclimatação com este álbum (ou este tipo de álbum) só pode ser obtida ouvindo-se-o no meio de uma nevasca noturna. Infelizmente, nós habitantes de terras tropicais jamais saberemos o que é isso. Podemos, todavia, elogiar a sensação de sermos transportados para longe enquanto ouvimos suas faixas em pleno verão ou estação das secas em Brasília, como é o meu caso, e até à luz do sol de meio-dia.

Não que musicalmente seja algo tão inédito. Blood, Fire, Death e The Sign of the Black Mark, para citar só 2 obras do Bathory, têm certamente sua cota de influência nas composições de Fullmoon. Ainda assim, se é que há grande quantidade de imitadores por aí, é raro até os dias de hoje ouvir uma obra de BM que replique exatamente essa atmosfera.

Blashyrkh, uma espécie de nirvana macabro e horrendo, refúgio dos horrores da raça humana, onde se encontra a serenidade em face da imponência da natureza, com suas montanhas de gelo eterno e desertos de neve, espécie de dimensão não-euclidiana “acessada” pelos membros do Immortal e descrita esparsamente nas letras de quase todos os seus álbuns, surge modestamente em Fullmoon, num par de versos perto do final do disco. É na penúltima faixa, Blacker Then Darkness, talvez o ataque mais intenso (a segunda canção mais rápida, e certamente aquela com mais wall of sound e atmosfera mais ominosa) desferido no disco. Depois o conceito seria revelado mais integralmente aos fãs em canções como A Sign for the Norse Hordes to Ride (Pure Holocaust) e o tema-título de At The Heart of Winter, e ganharia seu próprio hino, Blashyrkh (Mighty Ravendark), epílogo do 3º disco, Battles in the North.

A explicação lógica para essa criação do imaginário vem de Demonaz: “Quando começamos nisso, nos sentíamos realmente sozinhos; era uma comunidade muito reduzida de pessoas no extreme black metal aqui em Bergen. Talvez 4 ou 5 pessoas, contando comigo e o Abbath. Nos sentíamos em antagonismo para com todos os outros. Já que quando nos reuníamos entrávamos no nosso próprio mundo, formamos o reino de Blashyrkh. Ele evoluiu ao longo dos anos, e de cada novo álbum, mas essencialmente ainda é o mesmo, se baseia no mesmo espírito. É um lugar que só nós temos a chave para abrir. Não é uma mitologia, uma criação literária, por exemplo. É uma forma de sentir o poder. Uma mística, uma experiência. São nossos lados negros, propriamente falando, que atravessam. O Immortal compõe dentro do Blashhyrkh. É nossa maneira sui generis de descrever nossos entornos e imediações.”

Até as efêmeras partes com guitarra acústica compõem maravilhosamente bem os interstícios de Fullmoon. Ao contrário de outros raw black metal, este disco possui até solos. Nada perto de Van Halen ou do thrash; mas nada tão repudiável como um risco de giz no quadro negro feito de sacanagem pelo professor que requer a atenção da turma, nem nada tão baixo ou encorpado como um solo de Pantera, que faria um fã de Immortal torcer o nariz. São mais melódicos e longos do que uma banda primitiva costuma acoplar a suas composições; entretanto, pode-se dizer que não são estranhos ao contexto.

Pesando todos os fatores, talvez seja este o canal mais acessível do forasteiro ao movimento True Norwegian Black Metal, pois há mais elementos do protoblack metal (anos 80) que nas demais bandas da cena (Gorgoroth, Enslaved, Darkthrone), o que não significa falta de inovação, já que teclados não eram solução comum em 92 para esse gênero tão iconoclasta, e o Outro (desfecho) do disco utiliza-o magistralmente para dar aquele toque de minimalismo e melancolia, não muito distante do timbre de guitarra mais depressivo e esquizofrênico de um Burzum, em termos de efeito ocasionado no ouvinte.

Aquele que se aventurar, eu diria, pelos 3 primeiros alguns do Immortal, deverá ser avisado: a ênfase está menos na memória individual das composições e mais no efeito hipnótico que a reprodução de todas as faixas em conjunto produz no ouvinte. Ia dizer no efeito hipnótico que desperta – mas seria uma contradição em termos. Ao ouvido destreinado ou intolerante, soará repetitivo, sem dúvida. Ninguém será visto assoviando riffs de Fullmoon Mysticism ou Pure Holocaust no meio da rua ou na fila do caixa…

Vale lembrar que Armagedda, baterista seminal da banda, gravou o Fullmoon mas já não estava no Pure Holocaust, de 93, cuja bateria foi gravada pelo próprio hiperativo Abbath, guitarras/vocais/batera da banda nestes tempos. Abbath não largaria a percussão até o 4º disco. Para apresentações ao vivo no período, foi recrutado Erick “Grim” Brødreskift, que se suicidaria em 1999 (ele também passou por outros grandes do gênero como o Gorgoroth). Em tributo, o Nargaroth compor-lhe-ia Erick, May Thou Rape The Angels (Erick, Que tu estupres os anjos). Singelo!

O Pure Holocaust foi marcante pra mim”, diz Peter Tägtgren, frontman do Hypocrisy e produtor dos 4 álbuns do Immortal entre At The Heart of Winter e All Shall Fall (1999-2009), além de empunhador do baixo em algumas exibições ao vivo da banda no século XXI. “Sempre estive na cola da Osmose para tentar trazer os caras para minha gravadora. Por uma ou outra razão, nunca ‘captaram minha mensagem’, isso até que se passasse meia década.” Essa entrevista foi concedida em 2009. Do Pure Holocaust aos 5 anos citados, migramos, assim, de 93 a 98, ano em que Tägtgren finalmente firmou contrato com o Immortal.

Com sua capa branca cor da neve – faceta sem precedentes no black metal – Battles in The North (1995) cimentou a lenda Immortal – imortalizou os membros no hall da fama? Mais ou menos. Não é que o Immortal não tenha produzido e não produza sempre barulho, clamor e algazarra em discussões exaltadas sobre o BM. O que não está nunca garantido de antemão é se se trata de louvor do mais enaltecedor ou de puro repúdio e ojeriza. Numa palavra, o Immortal ingressou no hall da (in)fâm(i)a do black metal, por colidir com vários cânones do gênero (que eles ajudaram a fundar, veja a ironia). Sinceramente, a “capa branca de neve” foi só um pretexto para os fundamentalistas empilharem outras razões de “por que não vamos com a cara do Immortal”. Começaram a pipocar questões como: “Por que Euronymous (do Mayhem) ajudou esses caras? Eles não são satanistas de verdade, nem pagãos, nem fascistas, nem queimam igrejas! Não são homofóbicos, não ameaçam outros membros certinhos da cena, não brigam, não matam – eles só tocam música mesmo?! O que eles fazem usando a label black metal – e, pior, True Norwegian?! Quem o Abbath pensa que é pra inventar um novo estilo vocal no subgênero, esse coachar de sapo irritante? E que poses ridículas são essas nos clipes e apresentações? Eles são uma auto-sátira? Qual é a desse corpse paint mainstream e fanfarrão? Por que eles melhoraram a produção depois do 1º CD e agora incorporam elementos do ‘inimigo’ thrash?” Todas questões, como se vê, irrelevantíssimas ou boçais, se é que não meramente retóricas, posto que de respostas muito óbvias. Mas é justamente por isso que tais questões são de importância para o fã xiita da “cena underground”, o imbecil médio das legiões de adoradores (e odiadores, na maioria do tempo).

O videoclipe da música Grim and Frostbitten Kingdoms, icônico até mesmo para comentaristas de Youtube deste 2022, não ajudou a diminuir a “polêmica” em torno do trio à época, ousando usar a paleta de cores “inversa” à preconizada pelos “metaleiros extremos”. Dizem que os ouvintes mais contumazes da banda podiam morrer de overdose de vocábulos como frostbitten (quando tecidos orgânicos ficam inutilizados ou gangrenados devido ao frio intenso) ou grim (vários adjetivos em português, todos eles ominosos – eis um deles!). Ou seja: bandas com personalidade e uma estética definida, se não fosse uma estética ou outra (de uma das outras três bandas trve do movimento, todas de Oslo ou Bergen), estavam terminantemente proibidas – “FORA IMMORTAL!!!”

A despeito do exagero [não era tão preto-no-branco (pun) assim, a banda sempre dividiu opiniões, mesmo nesses setores mais subterrâneos cheios de “opiniões instintivas”, i.e. acéfalas, nunca sendo consensualmente idolatrada ou execrada, para dizer a verdade e ser mais fiel aos fatos] que eu promovi nos 2 parágrafos anteriores, ele é simétrico ao exagero caricato dos críticos linha-dura, por isso o estilo histriônico veio bem a calhar para falar da singularidade chamada Immortal dentro desta outra singularidade chamada cena black-norueguesa. Seja como for, um elemento discreto que chama muito a atenção neste clipe minimalista acima citado é Jan Axel “Hellhammer” Blomberg, o baterista mais rodado da galáxia. Aparentemente ele não quis usar corpse paint para gravar – o que significa que ele achava coisa de poser o tipo de maquiagem adotado por Abbath e Demonaz… ou que isso fazia parte de alguma piada ou sarro do trio perante o público preconceituoso, ou nenhuma dessas duas coisas… Só estou aqui especulando para alimentar mais debates xiitas, cof cof… Fato é que o baterista em questão parece um Jesus Cristo deslocado no clipe! O que deve ter aumentado a raiva de alguns não-simpatizantes é que Hellhammer é tido por muitos (pelo menos na década de 90) como o baterista de técnica mais abençoada no gênero. Impossível ter alguém mais trve no kit, em outros termos. Quem acha que o Immortal não é trve, perdeu uma grande batalha ou recaiu em contradição quando meteu o pau no clipe…

O Battles In The North vem a ser o disco do Immortal favorito de Herbaut, chefão do estúdio que o lançou: “Foi arriscado lançar essa arte branca, fomos e ainda somos muito insultados por causa disso. Mas, musicalmente falando, eu estava totalmente boquiaberto com a direção que a banda adotou, e muito confiante nos resultados!”

Blizzard Beasts (1997) é a quarta obra de estúdio. A partir do processo de elaboração de BB e da turnê subseqüente, Horgh passou a ocupar o posto de baterista, onde se sedimentaria. Porém, não é segredo de ninguém que em muitas das gravações, tanto na deste quanto na de 2 dos discos pretéritos, Abbath é que “sujou as mãos” no kit. Este álbum é bastante criticado, e autocriticado, diríamos, pois assim se expressou Abbath sobre BB (em 2007): “Tentamos tocar rápido além da conta”. Até o fã de longa data e futuro produtor Tägtgren tende a concordar. Blizzard Beasts foi um álbum caótico. Eu não conseguia acreditar nos meus ouvidos quando pus o disco para tocar a 1ª vez. Puta merda! Que porra é essa?! Era tudo muito intenso, muita coisa rolando, e o som estava uma merda! Eu fiquei sem entender!” Adianto que discordo ao extremo: Blizzard Beasts é meu favorito do Immortal. Mas chegaremos num espaço em que eu tenha mais espaço para emitir esses juízos pessoais, se é que me entendem…

Segundo a perspectiva da própria banda e do novo encarregado dos últimos retoques de estúdio, a obra seguinte, At The Heart of Winter (1999), foi a redenção, uma gélida e polar vingança do jeito que o Immortal gosta de promover. Foi neste ínterim que a grave tendinite de Demonaz arrancou-lhe a guitarra. Abbath tocaria, portanto, os dois instrumentos de cordas em estúdio. A crítica especializada gostou da injeção criativa que esta mudança não-planejada trouxe ao som: a conceituada Terrorizer deu nota 9/10 ao trabalho. At The Heart of Winter não deixa de ser um ponto de transição para todos nós. O Peter nos ajudou a achar o som correto para a banda.”

Antes de gravar Damned in Black no ano seguinte, Abbath passou o baixo para Stian “Iscariah” Smørholm para se concentrar na guitarra e na voz. O pessoal também não curtiu muito este álbum “preto” (na estética de capa e no título) e “death”, i.e., conceitualmente oposto ao black como a água ao óleo ou o yin ao yang. Foi o capítulo de encerramento com a produtora Osmose. Herbaut diz que isso não teve nada a ver com qualquer discórdia, já que a decisão de sair foi da própria banda. “E a verdade é que nós não tínhamos a grana que eles pediram para renovar, o que eu acredito que fossem uns 280 mil euros, se não me engano.”

Como se já não abundassem os motivos para serem repelidos por facções ortodoxas do underground, o Immortal fechou com o selo main Nuclear Blast. Sua nova “casa” seriam os estúdios e as pastagens bem verdes de Donzdorf, Alemanha. Até hoje o contrato é confidencial, então ninguém sabe o vulto da grana envolvida. No começo de 2002 saiu o primeiro filho desta parceria, Sons of Northern Darkness, título que saiu de um verso da canção Storming Through Red Clouds and Holocaustwinds (Pure Holocaust, 1993). Considerou-se um “retorno ao acme” para os artistas. Mas seria a última gravação da banda por pelo menos 7 anos e meio.

No quesito “exaltar a magnitude das paisagens naturais”, talvez o Immortal seja a legítima primeira eco-black metal band, antecedendo-se em muito à hoje popular Wolves in The Throne Room e suas tantas loas à região setentrional da Cascádia (abrangendo o ecossistema de vários estados dos EUA e do Canadá), zona de proteção ambiental que seguirá tanto melhor quanto menos for tocada pelas oleosas mãos do homem capitalista. Ao todo, o Immortal compôs cânticos ecológicos e macabros (no sentido blackmetaliano) 15 anos mais cedo; mas por alguma razão insistem em se lembrar mais dos passinhos de caranguejo do Abbath…

Eu não me envolvo com política ou religião, e o Immortal não é um palco ideológico ou um culto – isso é para bandas punk”, esclarece Demonaz. Nisso, Wolves in The Throne Room são realmente outros quinhentos: eles são notórios anti-trumpistas, “esquerdopatas”. Os europeus são infinitamente mais comedidos nesse tocante. “O que nos mobiliza ou concerne são o épico, o apocalíptico, o sentido sombrio das coisas, que leve uma assinatura escandinava – sempre do ponto de vista da Escandinávia. Sou indiferente à religião; não tenho o que dizer sobre pessoas que pregam ou profetizam; nem contra ou a favor, porque esses fenômenos não me tocam, eu desconheço qualquer relação com esta esfera. Claro que eu posso dizer que me associo a humores diabólicos, a uma atmosfera nebulosa e densa, coisas que existem de verdade. Posso considerar como nosso tema a escuridão de um modo geral.”

Sobre a Mãe-natureza e seu lado imprevisível e decerto retaliador, Demonaz considera que não teremos tempo para testemunhar as piores hecatombes conscientemente: “Penso que as pessoas subestimam a natureza. Acho que a maioria esmagadora não tem qualquer conexão com ela, não a freqüenta nem a busca, portanto não a sente. A natureza não julga moralmente; não teria qualquer problema ou hesitação em destruir a humanidade de uma vez; pode acontecer de repente, a qualquer dia. Eu acho que de alguma forma nossa era é a era desse final, que se aproxima. É meu sentimento profundo. Quando penso nas coisas que o homem promoveu em larga escala, creio que, se pudesse encarnar emoções humanas, ter algum propósito, a natureza gostaria de executar uma vingança sobre nós. Esse aliás é o principal mote do nosso All Shall Fall (2009).”

Oitavo full-length desta incansável horda de guerreiros monocromáticos, construído sobre um pântano de riffagens monstruosas, degelos, abominações e as promo photos intencionalmente ridículas de sempre, ASF, dentre nós há mais de uma década, ainda pela Nuclear Blast, é um daqueles retornos comemorados ou contemplados com assombro. Não é só a mãe-natureza que parece ter uma agenda maligna por meio deste disco: o trio, saído de um exílio auto-imposto, parece querer congelar e brutalizar todo o público musical a seu alcance em mais uma empreitada.

Por que a banda jogou a toalha por tanto tempo? Abbath Doom Occulta (primeira vez que cito o nome artístico completo de Olve Eikemo, que também quase nunca é conhecido pelo seu nome de batismo!), guitarra e vocais, Reidar “Horgh” Horghagen, o baterista que acaba de entrar no seu radar, e Stian “Iscariah” Smørholm (ex-baixista, que não voltou com a formação do All Shall Fall) haviam decidido fechar as portas por tempo indeterminado, embora seguissem bastante ativos musicalmente. Cada um deles se dedicou a projetos paralelos de menor ou maior porte. Iscariah se incorporou ao Dead to This World, grupo de blackthrash. Horgh pulou no barco do Grimfist, um grupo de thrashers mais puristas (além de ter participado do Virus, álbum de 2005 dos compadres do Hypocrisy), e Abbath, por fim, fundou um supergrupo chamado I, como já antecipáramos. Só tinha faltado dizer que Armagedda, o primeiro baterista do próprio Immortal, voltou a trabalhar com Abbath. Demonaz que nunca abandonou o Immortal de verdade, estando sempre nas composições e nos bastidores após a séria lesão em seus braços, também empreendeu sua jornada individual-conquanto-em-equipe, i.e., decidiu colaborar novamente com seu grande amigo Abbath, que por sinal é também seu ex-cunhado (podendo-se dizer que o filho de Abbath sempre o chamará de tio, ou seja, que os dois, além de um vínculo artístico de décadas, são praticamente parentes de sangue). As letras do material gravado pelo I, portanto, são da pena de Demonaz. O único full até hoje, Between Two Worlds (2006), é elogiadíssimo.

A verdade é que precisávamos dar um tempo. Há muitos porquês, mas não quero entrar em detalhes sobre isso. Não éramos inimigos internamente, mas lidávamos com um nível considerável de problemas, vindos sobretudo de fora, e isso repercutia em nossa relação, evidentemente. Nós 3 sabíamos, do fundo de nossos corações, que era só um hiato, não um fim, mas também não queríamos sair e divulgar isso para a imprensa, falar em datas, deixar pessoas na expectativa. Trabalhei no I e quando me apercebi já estávamos reunidos em estúdio gravando material novo, isto é, o Immortal estava ressuscitado. Eu sempre soube que esse dia chegaria, e não tive nenhuma ânsia, para que acontecesse de forma natural.”

Abbath

É fácil cair numa armadilha deixada por uma de dezenas de companhias e grandes gravadoras, e ver vários pedaços seus sendo abocanhados por manchetes insidiosas, uma pessoa aqui, outra ali. Os interesseiros. Não quisemos que o Immortal afundasse nesse ciclo. Antes que saísse do controle, preservaríamos a instituição.”

Demonaz

A propósito, já que essa entrevista da qual peguei a maioria das declarações dos membros do Immortal que traduzi foi realizada em 2009, ano do penúltimo álbum do artista, e já que todo blackmetaleiro gosta duma fofoca ordinária, Abbath foi perguntado sobre seu ex-colega Varg Vikernes, solto da prisão em maio de 2009. Depois de 16 anos de reclusão pelo assassinato do guitarrista Øystein “Euronymous” Aarseth, queriam saber do músico se ele já havia trocado uma idéia com o antigo companheiro de banda, o que ele gostaria de dizer a respeito disso tudo, etc.: “Não tenho nada contra o Varg; ele não fez nada comigo ou contra mim. O que ele fez, o que aconteceu, foi trágico; e não gostaria de tocar nesse assunto. Ele serviu seu tempo e está livre, e desejo que tome decisões melhores no restante de sua vida.” Inteligentemente, e sem ser grosseiro, Abbath mostrou que não tem nada a ver com os ‘feitos’ do outro, e a entrevista seguiu rumos mais objetivos!

A capa do novo álbum (All Shall Fall) retrata os portões de Blashyrkh”, elucida Demonaz. É apenas o 2º disco da banda sem uma foto do grupo, com algo simbólico no lugar dos rostos dos músicos em maquiagem pesadíssima. O formato do portão é o de um corvo bicéfalo – portanto, temos a paleta de cores mais escura dessa vez, se alguém se importar. “Não foi demorado conversar com o Abbath sobre a arte e chegar à conclusão de que era hora de deixar o público conhecer um pouco mais de Blashyrkh, ainda que apenas o umbral, a entrada. Sempre gostei do conceito por trás de Beyond The Gates do Possessed. Acho que o espírito aqui é o mesmo.”

Para mim a era da internet é a idade das trevas. As pessoas podem ver tudo sem se conectar com mais ninguém. Acho que isso esconde uma espécie de desespero generalizado. Muitos grupos musicais estão neste mesmo desespero. Farão qualquer coisa para ser notados. Não pensam duas vezes em se inscrever para programas como o American Idol, se expor numa variedade de reality shows… O limite da vida privada que eles expõem no MySpace ou Facebook quase não existe! Tudo, absolutamente tudo hoje, é na base da autoexposição. As pessoas são inseguras, estão lá, sentadas em casa, tirando centenas de fotos delas mesmas e publicando na internet. Acho que uma quantidade relevante de pessoas sente uma crise de identidade por tocar a vida dessa maneira.”

Demonaz

Depois de conseguir derrubar uma série de perfis do Facebook que se faziam passar por ele, Abbath concorda com a perspectiva de Demonaz sobre a Era da Interfossa, como chamam. “Não tenho redes sociais, só uso a internet para trocar e-mails. Fiz nosso agente postar no nosso site oficial sobre impostores: qualquer um que aparecer se dizendo o Abbath, que os fãs saibam que não sou eu, não dêem ibope. Não tenho problemas com o pessoal dos memes, do humor, que tira sarro da estética do grupo e tal. Mas somando iniciativas particulares tudo isso pode virar um oceano caótico. Tudo bem parar um pouco e se divertir, mas dedicar a vida a emular um determinado outro, ou a opinar sobre o outro? Essa é sua vida? Que porra é essa que o mundo virou?”

Demonaz é ligeiramente mais conciliador que seu parceiro: tem um MySpace (lembre-se de que a entrevista é de 2009) e, claro, um endereço eletrônico de caixa postal. Mas ele diz que o negócio é “não moscar” nesses espaços. “Lido com as novas tecnologias a minha maneira. Todos se deixam afetar demais por essa coisa toda; respiram a world wide web, não podem viver sem ou fora. Olha, me sinto muito feliz de ter crescido antes de tudo isso. Meu público, meu trabalho já estavam sedimentados quando começou essa era. Bom, diria que ter um equilíbrio na vida pessoal só ficou mais difícil nesse novo milênio – eu até diria que o Blashyrkh faz parte da nossa resposta para esse dilema, a busca de um equilíbrio pessoal, de uma integridade apesar da sociedade da informação lá fora.”

Pode-se dizer que a maquiagem do Immortal é a mais característica e marcante desde o K.I.S.S. Muitas vezes a “arte facial” de Abbath é sinônima de black metal em si, goste-se ou não. “É simples e direta. No comecinho da banda, usávamos só a parte branca da maquiagem. Um dia fiquei de frente para o espelho e comecei a experimentar uns lances. Fiz isso que você está vendo aí, uma coisa meio Gene Simmons mesmo, com a maquiagem preta, e encaixei no restante da maquiagem branca que já usava. Imediatamente senti que era isso! Mostrei pro Demonaz e ele foi tão rápido quanto eu em concordar. Muita gente acha graça, acha burlesco. A gente se fode pra isso. Nós damos a última risada sempre!”

Para Abbath, a “pintura de guerra” (corpse paint pode ser chamada também de war paint no estilo) é o que facilita sua transformação de Olve Eikemo para uma besta da tormenta parecendo um urso bípede de armadura ou um emissário do deus-trovão, uma espécie de Hermes que deve comungar com as massas: “A maquiagem me torna Abbath; eu sempre sonhei com isso, desde moleque. Como Alice Cooper diz que foi o caso dele no documentário Don’t Blame Me, sou do clube dos dupla-personalidade!”

Para Demonaz o ritual não é menos importante, embora no momento desta entrevista ele não subisse mais ao palco. “Mesmo assim eu ainda me maquio, como nos velhos tempos. A última vez foi para a sessão de fotos do All Shall Fall.” Talvez de um modo ainda mais crucial, a maquiagem demarca a separação dessas entidades, Demonaz e Abbath: Com o I e sua banda particular cover de Motörhead, Abbath não usa corpse paint. Demonaz, da mesma forma, está usando o rosto limpo nas promo photos do seu próximo projeto, dessa vez individual mesmo (sem Abbath), epônimo. (O álbum, March of The Norse, é de 2011, mas como eu-lírico de quem realizou recentemente uma entrevista, ficaria meio esquisito jogar a obra para um passado remoto!¹ Por razões que ficarão evidentes ao longo desta matéria, MoTN foi o único álbum do copyright Demonaz.) “Neste caso, o cosmético representa muita coisa: sem maquiagem, sem Immortal!”, ambos são concordes.

¹ Juízo pessoal acerca da obra: muita espuma para pouca qualidade. Um disco de power metal “sujo” e lento aparentemente apreciado pela crítica; para mim, riffs sem-graça repetidos ao longo de arrastados 40min. Dispensável. Veja este parágrafo de uma resenha: “É fato que escutar um mesmo padrão simplificado de novo e de novo pode causar ou induzir um estado de transe. Simples como são, as composições geram esse efeito. Após muitas ouvidas, cheguei à conclusão de que o efeito foi pensado antes da composição, este álbum foi planejado milimetricamente. É como se cada música fosse um riff e MotN se reduzisse a uma única canção com 9 riffs.” É exatamente isso: chatice – se planejada ou não, deixo a critério do ouvinte! Para encerrar, mais um fragmento, de outra resenha, para o pessoal técnico que entende de notação musical: “Eu posso jurar que, tirando a intro acústica e o interlúdio, TODA FAIXA DO DISCO TEM O MESMO 6/8 COM GALLOPS!”

Nunca vou esquecer uma certa noite de 1991. Eu e o Abbath estávamos remando num barco da vó dele, do lugar que a gente morava até uma ilha. Usávamos maquiagem completa e caminhamos em terra a noite toda bebendo uísque quando chegamos. Nos separamos e trilhamos por uma hora até nos reencontrarmos. Queríamos sentir a atmosfera, aquele silêncio. Havia uns turistas lá e acho que nós demos um puta susto neles. O pânico deles era ver, na calada da noite, dois elementos que eles não compreendiam, que eles não esperavam em absoluto encontrar. Lá pelas 5 ou 6 da manhã, voltando para a casa do Abbath, vimos que as ruas estavam estranhamente desertas, ninguém por perto. Um ônibus escolar estava parado na estrada de terra, o motorista sozinho. Acho que se ele pudesse esconder o veículo no mato ele o teria feito, quando nos viu. Tudo isso foi porque aqueles turistas nos viram e logo espalharam a notícia que dois malucos, selvagens talvez, demônios, estavam andando por aí. Realmente é de se pensar: o que eles achavam que nós queríamos com eles ou o que nós estávamos fazendo de verdade?” Demonaz

Essas sessões de varar a noite com corpse paint se tornariam a base para a comunidade místico-xamanística que foi criada entre Abbath e Demonaz, sempre com um terceiro membro alternativo, em meio à atmosfera enclausurada do Immortal. No ano de 2009 os dois foram em setembro para uma espécie de “acampamento” ou “jornada” por Lofoten, nas regiões setentrionais mais remotas da Noruega. Esse é o conceito de férias (e nunca diga “férias de verão” quando o assunto for Immortal!) desta dupla! “É um lugar sensacional de onde se pesca praticamente todo o bacalhau norueguês”, Abbath esclarece. “Nós vamos a essas montanhas e sempre encontramos novas inspirações boreais para novas composições!”

Já divorciado, Abbath no entanto revela que mantém uma relação muito amistosa e próxima com a ex-mulher, irmã de Demonaz, conforme já situamos. Hoje (2022) o filho desse casamento tem 27 ou 28 anos. Para eles, parentesco genealógico é um de seus vínculos secundários ou casuais, em que quase nunca meditam. “Eu e o Demonaz compartilhamos da mesma cosmovisão, ele é minha outra metade; cruzamos a mesma encruzilhada – sempre foi, sempre será. Raramente nos desentendemos.” Mais adiante vamos ver que sinuosas curvas essa relação umbilical apresentou ao longo do tempo!

O Abbath pode me ligar no meio da madrugada e sem esperar nenhuma frase eu vou interrompê-lo para dizer: ‘Caralho, eu tava pensando nuns riffs!’… E ele: ‘Pois é, foi por isso que eu te liguei!’. Estamos em diálogo sem estar, é assim continuamente. É quase telepático.”

Como dito, Demonaz teve uma séria lesão nos braços que o impossibilitou de continuar tocando em alto nível (ainda mais riffs de metal extremo) em 1999, mas ele nunca deixou de estar em todo show, no camarim, trabalhando com a banda, estabelecendo contatos, fazendo o social e participando da parte criativa em si: “E se eu não estiver lá na hora, o Abbath não vai tocar do mesmo jeito. Temos essa conexão espiritual. Trabalhamos juntos há pelo menos 20 anos, não é como se fosse uma coisa de ontem!”

Não seria o Immortal sem o Demonaz e suas letras, então é bom tê-lo ao lado para os shows”, Abbath endossa. “Ele está sentado ao meu lado no hotel enquanto faço a maquiagem. Temos um papo, eu ponho Motörhead nos fones – eu sempre coloco Motörhead quando estou fazendo esse ritual pré-show. Durante o show ele fica entre o cara da mesa de som e o cara das luzes e vai controlando e gerenciando tudo de um ponto de vista privilegiado: ‘Mais fumaça! mais gelo seco, porra!’.”

Para Demonaz, esse ritual tão consagrado do amigo é “parte da magia”: “Um dos melhores momentos para mim sempre vai ser essa meia hora antes de uma apresentação, antes de subir no palco, quando o Abbath está retocando o rosto e estou por perto. Sentimos evidentemente aquele frio na barriga de mostrar ao mundo e aos interessados o nosso trabalho, as nossas entranhas. Adoro essa parte: eu gosto quando antes da batalha soam as trombetas!”

Em 2007, por exemplo, a banda, quase sempre em trio sem contar o “quarto elemento” Demonaz, isto é, a dupla fixa do Immortal mais 2 músicos de estúdio e de palco, preparava-se para expandir a irmandade dando as boas vindas a O.J. “Apollyon” Moe, numa das constantes mudanças de membros seja no baixo ou na bateria, os instrumentos não-originariamente manipulados por Abbath a não ser em caso de necessidade. Apollyon é mais conhecido por seu desempenho no posto de baixista com a banda de black-thrash de Oslo Aura Noir. “Foi um convite bem direto e informal do Abbath para me juntar à banda, e meu sim foi imediato. Immortal é uma das poucas bandas que me fariam dar esse aceite instantâneo, sem reflexão. Gosto de todas as fases do Immortal. Sobretudo nos shows – o Abbath é um rei do entretenimento, e o Horgh tem uma presença de palco inigualável. E em vez de recear a responsabilidade só me veio à mente: com tudo isso, eu não posso arruinar nada, vai dar certo com certeza!”

Como Apollyon mora a 10 horas de carro da sede dos ensaios do Immortal, eles não se reuniam tanto assim nessa formação. “Não, não fazemos tanto, no quesito quantidade, mas compensamos em intensidade quando por fim nos reunimos. Antes de um show específico ou uma turnê, faço uma viagem para ficar uma semana ‘enterrado’ no estúdio e ensaiamos todo santo dia. Mas é aquela coisa: somos veteranos, não precisamos mais ensaiar tanto como antigamente, tudo que cada um de nós faz já fez muito na vida! É até perigoso ensaiar demais porque você acaba cansando do seu material, e você pode identificar um músico enjoado de suas performances assistindo-o. É fácil notar a diferença do artista estimulado para aquele que não está. Então creio que esse é o melhor arranjo de todos.”

No momento dessa entrevista que transcrevo, a banda, curiosamente, antes mesmo da turnê do All Shall Fall, vislumbrava um rápido próximo disco, já contando com 4 canções inéditas. Não sei se saberemos um dia exatamente quais eram, nesse ponto. Abbath declarou àquela época que não levariam outros 8 anos para lançar mais uma obra. Ironias da vida… Abbath atribuía à mãe-natureza, de qualquer maneira, a última palavra, misturando, mais ou menos, o destino da banda, as letras do Immortal e o papo anterior sobre Juízo Final: “A humanidade nunca mudou tanto em tão pouco tempo. Não sei se veremos o fim do mundo, mas será definitivamente o fim do que costumava ser. Prepare-se para o caos com um belo sorriso no rosto – encare a coisa sem medo. Ouça Immortal.” O carrasco ou Anjo marqueteiro? Talvez. Carismático? Com toda a certeza!

Depois de ler tantas menções a uma relação transcendental de amizade e trabalho entre Abbath e Demonaz, aspecto que eu desconhecia antes de entrar nessa “terceira ou quarta” jornada de “Immortal da manhã à noite”, me propondo a pesquisar mais sobre a banda para completar a história do EVOLUTION OF THE CULT, fiquei ainda mais pasmo com o desenrolar dos últimos acontecimentos, i.e., o que aconteceu com o Immortal de 6, 7 anos pra cá. Vamos por partes!

Sobre o Northern, se escutá-lo bem você entenderá por que não aposentamos a banda. Tivemos complicações e desentendimentos no passado, com o Abbath, em 2003, então o melhor foi parar por um tempo. Quando aconteceu uma segunda vez (2015), para mim ficou claro que tínhamos de seguir cada qual seu caminho. E confesso que esse álbum não estava nos planos [lembra que eles já estavam com este novo álbum semi-gravado?]. Quer dizer, na verdade, sempre que eu sento para criar e compor, com quem quer que eu esteja trabalhando, sempre sento para criar o álbum definitivo do Immortal. Com cada álbum foi assim. Estamos bem sem o Abbath, podemos lidar com isso. Aconteceu, e ele está em outra e nós estamos aqui, simples assim.”

Não acho que seja simples assim!…

Não trabalhamos conceitualmente. Fomos gravando canção por canção. Tudo foi inspiração natural. Quando se fala em tocar guitarra, todo mundo tem um estilo que se desenvolve de acordo com os anos e se torna sua assinatura, de certa forma. Em nosso inconsciente, certamente queríamos trazer à tona algo que fosse 110% Immortal. Começamos do zero em 2015 com a faixa de abertura do novo álbum. Queríamos algo bem veloz. Daí nós seguimos o flow, criando o álbum composição por composição. Não havia planos prévios de forjar o material numa unidade de estilo assim ou assado, e acho que nunca estivemos tão focados no songwriting (na composição) como agora. Quando você faz parte duma banda, seu maior desejo é fazer uma gravação melhor ainda que a última em que trabalhou. Com este, não acho que deixamos o último (agora penúltimo) do Immortal para trás, acho que simplesmente nos deslocamos da estética de muitos deles. (Risos)¹ Tem muito de um feeling old school neste disco. Claro que, ao meu ver, este feeling brilha junto com nossas influências thrash de sempre.”²

¹ O que queria dizer Demonaz? Que ele não gostava das opções criativas de Abbath? Não ouvi essa entrevista, mas pelo texto sinto uma espécie de sarcasmo amargurado!

² Notou o paradoxo?! O Immortal já foi uma unidade, uma dualidade ou trindade, metamorfoseando-se muito no passado. (Abbath+Demonaz+alguém nos atribulados 1990, ou ainda Abbath+Horgh+Iscariah de 1999 a 2002 ou Abbath+Horgh+Apollyon de 2006 a 2015, a formação mais estável até hoje – Demonaz, desde 1997, por sinal, era apenas o “quarto elemento” nessa conjugação trinitária, atuando nos bastidores ou “das sombras”, com o beneplácito de Abbath, é claro; não uso “das sombras” aqui em qualquer sentido pejorativo, mas o fato é que devido a sua lesão ele não era membro oficial – ou pelo menos instrumentista – da banda, ele não subia aos palcos, exercia relativamente pouca influência e controle artisticamente falando; podemos dizer que um engenheiro de som possuía o mesmo peso que ele na banda, descontando as contribuições de lyrics, que, aí sim, são algo mais mensurável em termos de criação compositiva – parece-me que ele não criou hora alguma riffs ou solos de guitarra, p.ex.! A formação atual é tão descaracterizada que o Immortal, que quase sempre foi um trio – configuração já considerada exceção em bandas com guitarra e baixo –, atualmente – ou oficialmente até 2020, já que por ora o nome encontra-se impugnado, e não temos acesso a muito mais informação que isso – é constituído somente de Horgh e Demonaz, e Apollyon, o baixista das gravações de Northern Chaos Gods, saiu da banda antes do lançamento do álbum, ainda em 2017…) Agora que o matrimônio se esgotara, Demonaz tenta abstrair todo o passado, e, sobre aquela coisa de irmãos criativos, que trabalhavam por telepatia, nada mais resta – mas não engana ninguém, sabemos que ele compartilha muito do estilo estético do próprio Abbath. Criticá-lo seria fazer uma autocrítica. Elogiar o novo som da banda é a mesma coisa que elogiar as origens e os trabalhos com o Abbath – que sinuca de bico, hein, meu velho?! Para músicos que já passaram dos 50, é praticamente impossível, ainda mais mantendo-se no subgênero, reinventar-se, a essa altura do campeonato. Ele mesmo o sabe, pelo que declarou sobre como um guitarrista compõe e toca, mas não o admite abertamente – o marketing sempre fez e sempre fará parte do black metal, por mais autêntico que ele seja face a outros estilos “modinha”. Nós, a crítica, só estamos aqui para apontar essa contradição, que os fanáticos do gênero querem chutar para debaixo do tapete, mal disfarçando o volume de poeira! É claro que quando um décimo segundo jogador de um time entra em campo, ele vai ser vaiado ou aplaudido de acordo com o desempenho de toda a equipe, e o mérito ou a culpa nunca é todo(a) dele – é essa analogia que eu faço aqui.

Abbath o grupo, segunda formação. A quarta da esquerda para a direita é a brasileira Mia Wallace, do Nervosa.

A banda aluga um espaço para ensaios, e os custos vinham sendo divididos entre os últimos três membros da banda, Abbath, Demonaz (Harald Naevdal) e Horgh (Horghagen Reidar). Harald e Reidar não queriam mais pagar sua parte do aluguel, já que a banda, na opinião deles, estava inativa. Olve (Abbath), como songwriter hegemônico da banda, dependia pessoalmente desse espaço, e manifestou interesse em continuar arcando com o aluguel sozinho. Os outros dois simplesmente abandonaram o arranjo e deixaram por isso. Olve entendeu esse gesto como uma dissolução da banda.”

Advogado de Abbath, via comunicado à imprensa.

Esta carta divulgada à imprensa ainda argumenta que Nævdal (Demonaz), por ter estado 18 anos sem tocar guitarra, e Horgh(agen), por ter-se limitado a tocar a bateria, não sendo compositor majoritário de canções, não poderiam responder em nome do Immortal. Além do mais, Abbath alega, e de forma muito convincente, aliás, que ele e seu pseudônimo se tornaram praticamente sinônimos da marca IMMORTAL™, sendo compositor principal e frontman, i.e., aquele que fala – além de cantar – pela banda – todos sabem que o vocalista é o mais filmado e visualizado, aquele que sai centralizado nas fotos de divulgação, etc., etc.! Co-fundou a banda e nunca esteve de fora de nenhum trabalho da mesma. Como musicista profissional, desta forma, Abbath, diz, não poderia viver, ou seria injusto e complicado viver, sem os dividendos resultantes do vínculo empregatício com o Immortal. Ou seja, para Abbath, quando os dois colegas saíram da jogada, a banda se dissolvera, mas ele ainda era a banda, e para ele estava fora de cogitação enterrá-la definitivamente.

A mesma carta, em outro trecho não-transcrito, ainda revelou que o Immortal estava obrigado por força de contrato a lançar mais um disco, mesmo após o lançamento de Northern Chaos Gods, pelo selo Nuclear Blast. Não só isso, mas que Abbath já teria quase completado um CD de canções inéditas, em parceria com outros músicos.

Mais um trecho:

[A objeção de Nævdal e de Horghagen ao pleito de Eikemo de usar o nome da banda] soa como uma tentativa de vedar a prática da própria profissão a Olve Eikemo. Ele passou 25 anos incorporando o personagem Abbath e atrelando sua imagem e sua música à marca IMMORTAL. Não me parece razoável que ex-membros de uma banda possam prevenir Eikemo de registrar a marca IMMORTAL para si, especialmente uma vez que ele atende mais pré-requisitos para esta operação do que eles próprios, que presumivelmente, após o lançamento clandestino de um novo álbum, não têm planos para o futuro do nome da banda.”

Nævdal teria respondido o seguinte à divulgação da carta: “Eu li, e nosso advogado leu. Viremos com uma resposta. A carta [deles] contém informações equivocadas.”

Em 2008, em entrevista à revista Guitar World, Abbath comentou sobre a (primeira) ruptura da banda, a de 2003: “Claro que foi por razões pessoais. A banda é pessoal. Somos família. Somos irmãos. É como um casamento. Quando você se casa com alguém, você acredita no casamento. E quer continuar, mas às vezes precisa de um tempo. Muitas bandas só mamam os úberes (fazem dinheiro fácil). Podíamos ter continuado e feito muita grana. Mas nunca o fizemos. Foda-se o $$ e a fama. Nada disso significa alguma coisa se você não tem alma. E estávamos começando a perder aquela chama interior. Não somos estúpidos. Somos muito inteligentes quando se trata do nosso negócio, do que sabemos fazer melhor. Pensamos a longo prazo. Para citar Paul Stanley: ‘O K.I.S.S. não é a última moda, é um estilo de vida.’ O mesmo vale para o IMMORTAL. É da nossa vida que se trata.”

Aguardando ansiosamente pelas cenas dos próximos capítulos de “Immortal Inc. – o processo judicial”…

5. UM GOSTINHO DE CADA DISCO: PRÓS E CONTRAS, OU SÓ PRÓS E SÓ CONTRAS DE CADA ÁLBUM DOS IMORTAIS.

Primeiro, um reiteramento do que meio-mundo já sabe: comunidades, ainda mais no metal, para mim sempre tem um sentido pejorativo. Principalmente do lado crítico: tudo aquilo de que eles reclamam só tem interesse histórico para mim; normalmente ignoro ou sou veementemente contrário ao ponto de vista da dita “maioria”, ou de vozes barulhentas embora isoladas que acabo lendo ou escutando por aí. Quanto aos prós, podemos dar um desconto, e amiúde nos identificamos com as virtudes que os próprios xiitas apontam na banda, então serve como um bom norte, bússola ou termômetro (para ficarmos nas metáforas de temperatura, tão pertinentes à banda). Então como o tal do underground listener aprecia cada álbum da banda, cabendo uma pincelada minha no processo? É ao que se dedicam os próximos parágrafos. Como já falamos mais dos três primeiros álbuns na seção anterior, as informações novas mesmo surgirão a partir do 4º grupo de resenhas.

DIABOLICAL FULLMOON MYSTICISM

Em várias dimensões, escolhas estilísticas deste álbum foram usadas por outras bandas da cena (mais notadamente o Satyricon, cujo debute é bem similar – e não podemos negar a semelhança da técnica vocal entre Abbath e Satyr): as ternas e atmosféricas passagens acústicas, que não são longas, mas deixam sua marca nos exíguos ~35min desta obra-prima; a estética fantástica e ‘amadeirada’ (não, isso não é uma resenha de enólogo – em vez de sentir, como nos outros álbuns do Immortal, um frio congelante e a aspereza de uma localidade nefasta e remota, sente-se a estada num bosque ou em grutas mais cálidos, jamais pisados pelo homem), os teclados ‘barrocos’, pelo menos no sentido de evocar catedrais góticas. Diabolical Fullmoon Mysticism nem parece um primeiro álbum de banda (finjamos por um momento que o Immortal não nasceu das cinzas de outras bandas do espectro extremo), possuindo certa maturidade composicional. As músicas fluem como se fossem suites de uma mesma canção, sem conotação alguma com a “monotonia dinâmica” do gênero progressivo, onde o termo suíte é muito usado. Diria que os próximos discos são mais focados na pureza do conceito e da expressão, enquanto esta é uma obra mais total, se é que me faço entender. Um belo cartão de apresentação.

Voltando ao tema das guitarras acústicas, me parece que o Ulver leva excessivo crédito pela sua implementação, quando cronológica e até qualitativamente vemos o Immortal antecedê-los e superá-los palpavelmente. O melhor é o contraste dessas passagens escolhidas a dedo com o tom mais “crunchy” (não gosto da tradução ao português “crocante”, que faz parecer que estamos analisando um cardápio de sorveteria e descrevendo pistaches) e sujo, confuso, embaralhado… A melodia acústica, portanto, torna-se o complemento perfeito, porque estranho, a cereja sobre as bolas deste sorvete artesanal. Além disso, esse tom mais “intimista” também contrasta com os secos blast beats da bateria, intensificando a sensação de prazer doloroso constante nos clássicos do BM. Os “whoa!” de Abbath também são uma peculiaridade que favorece a obra – a intervenção vocálica como puro instrumento, quando não comunica uma mensagem verbal, mas apenas um som esquisito e, por que não?, sinistro. Não é uma sessão de música comum, senão que ao mesmo tempo se configura como um ritual.

Armagedda, aliás, não é um baterista excepcional e brilhante; não que Abbath, o baterista improvisado das próximas gravações, tenha talento nesta posição, ou uma técnica comparável a um baterista nato, mas justamente pelo amadorismo de Abbath é que a bateria dos próximos discos é algo único e inimitável, superior às batidas de Fullmoon, um pouco presas e acanhadas, com medo de fazer mais que o básico. Terá sido apenas coincidência a saída precoce de Armagedda da banda? Obviamente temos que dar um desconto, pois a qualidade da gravação e mixagem é a mais pobre de toda a discografia do Immortal, tornando a comparação algo injusta. O reverb pode beneficiar a guitarra, o baixo, o eventual teclado e os vocais, mas tem um efeito deletério para a bateria, que parece obstruída por um tapume em relação aos outros músicos. É quase possível ter uma idéia geográfica dos artistas num estúdio bastante amplo e visualizar suas posições – embora tudo possa ser falso, e ao fim e ao cabo o estúdio pudesse se resumir a uma saleta com os três músicos bastante espremidos (vale lembrar que Abbath também gravou o baixo).

A Perfect Vision of the Rising Northland, o ambicioso outro de 9min, talvez seja o destaque maior. Reminiscente dos experimentos minimalistas e envolventes de Quorthon no Bathory, é aqui que a brutalidade e o trecho acústico ao final, sem que se contradigam, mais brilham. Os riffs desta canção apresentam um caráter hipnótico (mais do que nas 5 canções anteriores, já hipnóticas em si), e há um solo de guitarra dos melhores da carreira de Demonaz. Em 1992 não era comum o uso de solos melódicos no BM, e esta pode ser considerada outra nuance em que o Immortal foi pioneiro.

Por fim, mesmo que soe repetitivo, tenho de exaltar aquele que rouba as atenções no disco: Abbath. Muito criticado pelo metaleiro médio por seus frog croacking vocals, vemos pela primeira vez (já que ele mudou seu estilo em relação ao grave do Amputation) como o estilo gutural seco pode se juntar aos instrumentos em vez de se chocar com eles, e pode retratar complexas emoções com a ajuda das letras, ao passo que outras bandas tentam copiar o estilo mas falham na parte da expressão de emoções via vocais. Abbath pode ter um alcance limitado em termos de freqüências ou notas, mas sem dúvida é convincente como ator. Não digo de forma pejorativa: o BM é o estilo de metal mais calcado na performance de palco, na incorporação de outras personas em suas apresentações, como no palco do teatro. Não só no gestual, mas nas cordas vocais, Abbath cumpre o requisito do “showman das trevas”. Tem alma, enquanto muitos outros vocalistas do gênero parecem zumbis desencarnados e unidimensionais.

PURE HOLOCAUST

Quase todas as capas do Immortal têm os rostos dos músicos estampados, mas Pure Holocaust se sobressai a todos no quesito “carisma”. É uma capa instantaneamente icônica. O mais irônico é que, apesar do amor da banda pelas paisagens nevoentas, justo nesta foto não há nada que evoque neve, e os fundamentalistas sem dúvida apreciam o fato de a cor predominante ser o preto.

Para compreender a proposta do novo álbum e o amadurecimento natural da banda é preciso voltar ao epílogo do primogênito, Diabolical Fullmoon Mysticism, no formato da já enaltecida faixa A Perfect Vision of the Rising Northland, cujo título inclusive trai todo o simbolismo que carrega como “portal” ou “marco” para a banda – uma passagem para algo muito mais insólito, que o grupo denominou Blashyrkh. A letra termina com a descrição do firmamento se abrindo para engolir o eu-lírico, transportando-o a outra dimensão, uma espécie de cemitério de almas não-euclidiano de gelo eterno.

Pure Holocaust é já esta dimensão não-euclidiana, espécie de alternativa igualmente assombrosa e carregada de inversões estéticas aos contos de terror de Lovecraft e a mitologia Cthullhu, com um matiz norueguês que lhe é todo original em relação ao escritor estadunidense. Temos a primeira versão do Immortal que se consagraria: o de um caos controlado em estúdio, diferente do approach atmosférico do primeiro álbum. Não que PH não seja atmosférico, em absoluto. Mas seria estereotipá-lo dizer que só se trata disso, uma vez que a violência musical cai como uma bigorna na cabeça dos ouvintes. Onde Fullmoon era uma meditação quase estóica e indiferente sobre a lúgubre condição humana, PH mais parece uma luta de machados em punho contra a única coisa que não se pode vencer: a própria natureza.

O tremolo das guitarras é quase incessante. A bateria é uma descarga de blast beats, com o jeito sui generis de um estranho à função de tocar o instrumento. É uma nevasca na tundra em formato sonoro. Talvez a única reminiscência dos experimentos semi-acústicos do primeiro álbum esteja na breve utilização de sintetizadores em As The Eternity Opens, sétima e penúltima faixa deste assalto de quase 34min.

Se DFM ajudou a moldar o gênero BM, PH é já uma exploração de seus limites possíveis, tão cedo quanto o ano de 1993 permitia. Simplificação é força e definição, neste caso: velocidade, aspereza vocal crescente, esta aura de “incômodo” voluntário ao ouvinte que tenta não lhe deixar qualquer zona de respiro. Até por isso é muito importante que este álbum não tenha excedido a quantia dos 40 minutos, ou seria declarado explicitamente como tortura pelos tribunais noruegueses!

Não tem-se muito o que falar de PH, na verdade: a fórmula foi repetida com cada vez mais intensidade nos dois próximos álbuns, por isso todo o template foi lançado aqui, e o que se disser sobre os 2 próximos trabalhos do Immortal no fundo também se aplica ao sophomore release.

BATTLES IN THE NORTH

Não escute Batalhas no Norte casualmente: não vai descer bem. Sente-se à noitinha num canto frio da sua sala em plena estação invernal – ou, ok, se for atrapalhar demais e produzir sensações desagradáveis em seu corpo, sente-se numa poltrona perto da lareira, desde que num dia realmente gelado – e deixe que essa música mágica chegue até você.”

gradymayhem, Metallum Encyclopaedia

Muitos vêem essa obra como um passo atrás depois do elogiado porém pouco melódico e marcante, talvez homogêneo demais, Pure Holocaust, na minha opinião pessoal o pior (menos melhor!) da banda. Aqui temos 33 minutos em 10 canções que reviram os conceitos dos dois primeiros discos do avesso, muito embora hoje todas as características de BiTN sejam consideradas canônicas do black metal. Ou seja, quer dizer que o grupo evoluiu girando 180 graus, e todavia permaneceu nos moldes do subgênero de origem norueguesa. O tempo das músicas é extremamente acelerado e, se havia alguma referência ou alusão ocultista a Satanás e Belzebu antes, ela foi completamente abolida das letras deste álbum branco, cujo tema obsessivo é só e tão-só a neve, as tempestades e nevascas e a desolação abaixo de zero!

Uma solidez branca, sempiterna e polar, sem começo nem fim. Apenas um eterno estado de auto-realização no campo de batalha mais inóspito. Assim eu descreveria o sugestivo Batalhas no Norte. Propositalmente as músicas foram editadas para não terem “começo” ou “fim” lógicos. O ouvinte já está imerso no pântano absoluto de agressividade musical desde o primeiro segundo e não é possível prever quando será feito o arbitrário corte na composição, dando uma sensação de boxeador caluniado pelo árbitro: ele queria descansar entre 2 rounds, mas sem sequer ouvir o gongo descobriu que já tinha voltado a apanhar do adversário e ser empurrado às cordas, sem a menor transição. Uma bela duma ousadia aniquiladora de cânones da música!

Eu também achava este álbum quase impenetrável, de começo. Hoje suas melodias cravam fundo, vejo-o como “mais comercial” (se é possível dizer isso no BM ortodoxo ou que ainda estava sendo definido em sua ortodoxia!) que as empreitadas anteriores: as canções são instantaneamente memoráveis, pelo menos comparadas ao Pure Holocaust. O som é seco, muito seco. Parece com calotas polares que jamais derreterão. Sem dúvida uma das marcas registradas dos trabalhos do engenheiro de som e produtor Eirik Hundvin, mais conhecido apenas como Pytten. Abbath parece mais impessoal e inumano. Ao contrário do que muitos pensam, isso nada tem a ver com uma suposta deterioração vocal, muito menos com uma péssima escolha estilística (pelo menos na minha opinião) ou, o que é pior, e muitos alardeiam no BM, incompetência técnica. Este é o único tipo de vocal que parece poder habitar no Blashyrkh criado pela banda. Qualquer outro tipo de rendição de voz “humana” teria de ser criticada. Abbath, o abbathismo (seus croaking vocals únicos) e o Immortal “clássico” (diria que deste, o 3º, até o 6º disco, de onde tiro o quinto, não obstante – embora muitos creiam que o 5º é que é justamente a magnum opus da banda, juízo do qual sou obrigado a diferir) são uma Trindade indissociável. Um álbum sem Abbath (como o último da banda no momento em que escrevo) deveria ser crime…

Onde PH, numa espécie de transição, ainda usava algum reverb atmosférico, BiTN elimina qualquer indício de “atmosfera artificial” e aposta tudo no timbre espaçoso e hiper-crocante de guitarra-baixo para engolfar de vez o ouvinte. O que 2 anos não fazem na indústria musical – em 1993, Pure Holocaust parecia já ter chegado ao limite do estilo! Não seria crível que a banda optasse por um estilo ainda mais brutal que aquele – e dessa vez é mais pegajoso e marcante, quase um milagre Coisas que devem acontecer em temperaturas extremas e negativas, tipo de “mágica” cujos bastidores o brasileiro se resigna a admirar, desconhecendo seus fundamentos.

Em contraste com as novas obras, portanto, é que finalmente DFM parece até caloroso e muito disciplinado – mas a percepção de quem ouvia a banda estreando, em 92, deve ter sido bem diferente. Só posso cogitar sobre isso, já que do prisma do século XXI é impossível ir além em especulações sócio-históricas deste tipo. Já conheci o Immortal completamente ultimado dos discos posteriores e incorporei esse som mais cedo do que o ritualístico Fullmoon em minhas funções cognitivas… Você que ouviu a discografia do Immortal na ordem linear e não tinha muito contato com o estilo –– quais são as suas próprias impressões a respeito da evolução da banda?

Respeitando as aspas que abrem a “resenha” deste disco, a primeira coisa a praticar antes de mergulhar em Battles in The North é: assista ao clipe de Grim and Frostbitten Kingdoms, linkado mais acima! Um dos audiovisuais mais originais já produzidos… Curiosamente, a bateria que se escuta não é tocada pelo convidado do clipe. O notável Jan Axel “Hellhammer” Blomberg faz apenas uma representação cenográfica (e que representação, sem pedais, em meio a uma montanha desolada, vestindo roupas inapropriadas para o frio!). O áudio foi tirado dos esforços de Abbath na batera, e assim temos o segundo e último CD em que o cara acumula nada menos do que três funções: vocais – é claro! –, percussão e também o baixo.

É simbólico que o outro (décima canção – cada álbum vai se apresentando, na história inicial do Immortal, com cada vez mais faixas ou composições individualizadas, movimento que parece inteiramente orgânico e lógico) seja batizado Blashyrkh (Mighty Ravendark) (pronuncia-se BLAQUÍRK, aliás). É como se a banda finalmente dissesse: É, chegou a hora de intitular uma música com o nome de nosso recanto extra-dimensional; finalmente chegamos ao som que queríamos desde o início; os dois primeiros álbuns ainda não mereciam que este título figurasse diretamente no caput de nenhuma música, só na letra, discretamente… O tempo da música é o mais lento de todo o BiTN e a atmosfera torna-se mais épica do que nunca, a ponto de até os detratores do 3º disco, todos que conheço, confessarem: Blashyrkh (…) é uma das melhores canções da banda!

É muito comum para quem ainda está conhecendo o catálogo do Immortal pensar que acabou de pôr as mãos numa demo dos caras, tamanho é o caos deste trabalho. A wall of sound só vai ceder com o auxílio da disposição e interesse do ouvinte, e algumas necessárias repetições do bolachudo na vitrola. Ao contrário das primeiras impressões de inacessibilidade e desorganização, para gente como eu logo BiTN passará a ser considerado frio (no pun intended) e calculado em cada passo, criação de artistas entrando em seu apogeu e maturidade.

Embora as guitarras não sejam tão cheias quanto em PH, sem usar tantas tracks na gravação nem padrões intrincados no mesmo nível, Demonaz sabe para onde ruma com um verniz mais thrash infundido no black metal ortodoxo do Immortal (E por que thrash e não death? Porque a produção é menos pesada que no metal sueco old school e o jeito de tocar é um pouco mais dinâmico e solto que no 2º estilo). Power chords são a exceção, havendo tempestades de tremolo nos riffs, em perfeito contraste com a agressividade aparentemente irrefletida e incontível da batera semi-amadora sem constrangimento de meter blast beat atrás de blast beat (ideal para o contexto!) e a rispidez vocálica do mesmo homem (já o baixo, o terceiro instrumento de Abbath, é confessá-lo-ei, é humanamente inaudível!… claro, entretanto, que faz diferença como ‘eco’ da guitarra do parceiro Demonaz). Abbath, na realidade, parece gravar tão perto do microfone que o segredo de seu chiado raspado característico é praticamente revelado: um bom técnico vocal poderia dizer quais os movimentos que sua glote está fazendo, como ele está puxando o ar e quanto ele usa o nariz em cada estrofe, imagino, sem ter de recorrer a imagens! Porém, nem todos nós somos técnicos vocais: lembram que eu pedi para verem o clipe Grim and Frostbitten (…) antes? É muito importante para “pegar” o espírito dos vocais, já que no próprio clipe Abbath é mostrado em zoom facial, com seus dentes brancos, e mostraria as próprias cordas vocais se a pele do pescoço fosse transparente – a lente da câmera está no olho do furacão, salpicada de pingos de chuva, enquanto o rosto do frontman (nada menos que o rosto da entidade Immortal) é o foco indelével desta miniprodução.

Eu amo o fato de que nenhuma faixa se estenda por muito mais que 4 minutos. Também era essencial, como nos lançamentos anteriores, que essa “barragem” não chegasse a durar 40 minutos, ou o valor do álbum certamente diminuiria alguns pontos, pois nosso nível de concentração começaria a baixar. Um belo contraponto aos lançamentos de digipack com conteúdos bônus de hoje – BiTN envelheceu excepcionalmente bem para quem odeia as convenções da indústria fonográfica, i.e., qualquer black metaller sério!

Com a chegada de Dimmu Borgir e Cradle of Filth ao grande público em 1995, o vagão do black metal inteiro se aproximava perigosamente de um território kitsch e extravagante. Eu pessoalmente adoro Cradle of Filth. E o Immortal é considerado como visualmente ridículo por muitos fundamentalistas, então tem esse ponto em comum com is ingleses… Mas essa característica não deixa de merecer menção: Dimmu Borgir, preenchendo suas composições com teclados (ou, diria, afogando-as em teclados!), e Cradle of Filth, na Ilha da Rainha, alcançando imensa popularidade ao fundir elementos primitivos do BM ao gothic, ameaçavam, mesmo que involuntariamente, o futuro do BM sem polidez e destinado ao consumo underground, esse de que falamos aqui.

BiTN adquire ainda mais importância histórica tendo aparecido nesse estranho umbral que marca a metade dos anos 90… Diria que para o período foi o cume do cume do death black metal (standards de brutalidade auditiva aparentemente ainda não-superados), já que o pouco de thrash destilado na obra é tão furioso que acaba resvalando para o gênero extremo primo ou irmão mais velho do BM, ironicamente o território em que o Immortal começara sua carreira. Hoje, obviamente, temos marcos muito mais extremos desse mesmo deathened black metal, como Panzer Division Marduk do Marduk. Só que álbuns desse patamar só foram possíveis graças a Battles in The North, que ensinou-lhes o caminho. Por outro lado, a extensão atmosférica dessa exaltação da natureza (ainda que em seu pior, i.e., algo que oprime qualquer ser humano!) faz deste álbum uma perfeita contraparte para qualquer trabalho do Nargaroth, os reis da “ambiência” (rios correndo calmos, pássaros gorjeando). Obs: não escute faixas desse disco avulsas em “playlists” por aí – ouça-o inteiro e organicamente, como produto da natureza que é!

BLIZZARD BEASTS

Esse petardo de 1997 vem a ser, no frigir dos ovos, ou no congelamento perpétuo das montanhas, como seria mais adequado em se falando de Immortal, meu favorito da banda. É o Immortal em seu auge criativo e igualmente na apoteose de sua fúria instrumental. Oito músicas precedidas por uma instrumental aclimatadora (intro) em escassos 29 minutos, o que significa que aqui as notas se conjugam de forma densa, cada segundo trazendo muita arte nas “costas”. Maioria das canções vai de 2 a 3 minutos e meio.

Horgh é o novo baterista, posição que ocupa até hoje. Demonaz começou a desenvolver sua tendinite mais ou menos nessa época, supomos que devido à incrível ferocidade dos riffs deste trabalho de estúdio. Segundo consta, para finalizarem o álbum, o Abbath já teria suprido algumas das partes de guitarra, com Demonaz levando como podia e, num ponto crítico, se aposentando da função após reiteradas consultas médicas, e após averiguar a gravidade de suas lesões, intratáveis para os recursos da época (embora já tenhamos visto que nada é tão irreversível assim quando se trata de lesões esportivas ou de artistas cuja performance tende a se nivelar com a dos melhores atletas de alta performance!).

Fato é que as guitarras do Immortal nunca foram tão técnicas e velozes como em BB. As influências de death metal começam a se fazer sentir, embora fossem totalmente relegadas para o próximo trabalho, voltando só no Damned in Black. As mais insanas e complexas melodias de Battles in The North são levadas ao extremo. A bateria está ainda mais alta na produção, embora comprimida em qualidade, o que acho que foi intencional. Novamente, para não fugir à regra, os vocais foram bem-masterizados na produção final.

Embora eu possa entender por que as pessoas costumam preferir álbuns mais tardios, com Abbath 100% cuidando das guitarras (e, nessa toada, possa até ver como conseqüência lógica por que At The Heart of Winter, o sucessor imediato, e Sons of Northern Darkness, tendem a ser tão populares na fan base), quando a banda se dirigiu a proporções mais épicas, dignas de tocar em festivais como o Wacken Open Air e atrair multidões de fora do movimento BM, se não existisse essa tetralogia de álbuns da era Demonaz como executor (e não só compositor e letrista) estou certo de que nada do futuro seria possível ou atingiria um tão alto nível, visto que constituem a base de todas as evoluções subseqüentes, e acho que nem pessoas como Peter Tägtgren entendem a dimensão dessa minha afirmação, pois denigrem o BB o quanto podem, como nas entrevistas acima.

Blizzard Beasts traz, embora com alguma maquiagem, influências dos riffs de Morbid Angel à tona. Trey Azagthot, em decorrência, deve ser visto como um dos maiores influenciadores deste trabalho magnânimo da banda. Só ouvindo após algumas vezes é que o verdadeiro apreciador poderá demarcar esses elementos death metal, que estão normalmente escondidos debaixo das camadas permanentes de neve das letras e dos furiosos ataques instrumentais! É realmente algo bem sutil, ou eu estou completamente equivocado e imaginando coisas…

A atmosfera congelada sempre foi um must para o Immortal, e desde o despontar dos 90 cada novo trabalho sempre conseguiu ser mais do que a soma de cada parte. Embora o debute, Diabolical Fullmoon Mysticism, comparativamente falando, seja hoje sentido como um álbum mais ‘quente’, digamos que nada nele é verão: no máximo, é a transição outonal em que a secura do frio e o desaparecimento progressivo do sol ao longo dos dias da estação vai tomando perceptivelmente o lugar da umidade abafada e mormacenta mais ligada ao outono, i.e., não estamos, nem ali, subjetiva e cronologicamente distantes do inverno arquetípico.

Se o desenvolvimento da banda continuar sendo comparado ao ir e vir cíclico das estações, podemos dizer que Blizzard Beasts é o momento culminante e mais característico do inverno total. Não coincidentemente, depois dessa blitzkrieg na neve que não dava espaço para muitos outros matizes e emoções, a banda mudou para um conjunto mais focado no bom acabamento de composições individuais, começando a abandonar aos poucos a atmosfera opressiva e abraçar tecnicismos. Não significa mudar do vinho para a água ou entrar em decadência, apenas uma mudança de foco em que troca-se a percepção imersiva do disco como um todo por outras maravilhas com mais personalidade e impacto individual. São duas formas de uma banda extrema cativar seus consumidores. Muitas bandas nascem e morrem em um desses departamentos, sem saber desempenhar essa “transição outonal” que, em verdade, é um revigoramento, afinal as estações nunca cessam de passar e nenhum declínio deve ser entendido como outra coisa senão uma metáfora.

As faixas de BB consistem em uma série de barragens sonoras que acertam rapidamente no rosto, e comparando-se uma com a outra não se vêem muitas fissuras no gelo: tudo é muito consistente, internamente. Com um tempo de menos de meia hora para tudo se desenrolar isso se torna mais exeqüível. Mas quem disser que falta qualquer momento memorável que impregna na cabeça está se esquecendo de Mountains of Might, o grande hit de BB. Suas proporções épicas, prefigurando At The Heart (…), aliadas a um refrão monolítico, insistente e pegajoso, contrastam levemente com as demais faixas.

Ao passo que as canções são centradas em riffs de frente crocantes, o Immortal integra como ninguém as diversas instâncias que fazem uma composição, isto é, tornam o todo exuberante e melhor que as partes (ou movimentos ou ainda temas, se falássemos de música clássica – e cá entre nós, não é este o Immortal clássico no palco-estúdio?). Tremolos gelados representam algumas dessas ligações, afora solos épicos que só esta banda sabe fazer no BM inteiro, sem com isso escapolir do próprio gênero BM (não é uma banda híbrida com outros estilos, i.e., apesar de mesclar muito death e thrash, ninguém se refere ao Immortal como uma banda de death/black metal, porque todas as influências “estranhas” servem a um propósito uno: a grandiosidade e singularidade de seu black metal), e tudo isso em composições compactas, sem a duração esperada de behemoths do metal progressivo! Afinal, o ritmo da bateria e dos instrumentos de corda é lancinante demais para imaginarmos uma música de 12 minutos. Longas composições até existem na discogradia do Immortal, mas sempre que isso acontecem eles alternam a velocidade, chegando às fronteiras do doom – enquanto que em BB composições “golias” não têm vez.

As mais longas do CD, que não são longas, mas apenas relativamente maiores, cotejadas com suas irmãs efêmeras do disco, dão uma pista do que viria na seqüência. Falo de Nebular Ravens Winter (aperfeiçoada em 2016) e Battlefields, ainda mais coesas que a média do álbum, com nuances de um epic thrash a ser desenvolvido propriamente apenas na era …Winter, cuja descrição ocorre poucas linhas abaixo. Para dar uma imagem do que se pode estar ouvindo sem ter um conhecimento profundo de muitas bandas do estilo metal (extremo ou não) ou sem ter chegado a ouvir Blizzard Beasts antes de ler a resenha, o leitor e futuro ouvinte deverá primeiro ouvir Pleasure to Kill do Kreator e pensar como esta música ficaria se transportada para a cena norueguesa 10 anos depois. Mas ainda tem um toque mainstream, uma certa reminiscência do tom cheio, abrasivo, melodioso mas linearmente bronco, i.e., uma sensação de resistência do mesmo som apesar da necessidade da dinâmica interna, o que o Metallica realizou bastante bem em …And Justice for All (que tem 10 minutos de duração e, assim como a faixa do Kreator, batiza o próprio álbum em que apareceu). Alemanha mais Califórnia desemboca na Noruega. Tudo isso, claro, apenas subliminarmente, mais obscuro e glacial quando assimilado pelos músicos aqui em questão. Nos vocais, Abbath está mais para o Bathory mais precoce.

Simplesmente incompreensível o discurso hegemônico de que Blizzard Beasts é o patinho feio (corvo lindo e branco?) da discografia do grupo. Finalmente estabilizados na formação há algum tempo (o que, desafortunadamente não duraria demasiado), esta magnum opus é o resultado de dedicação, inspiração e um ataque frontal sem tergiversações, utilizando tudo que de mais demente e demolidor já tinha sido manifestado por bandas vinculadas de perto ou de longe ao movimento do metal negro.

AT THE HEART OF WINTER

Muitos consideram este trabalho o casamento (não o primeiro, mas um arquetípico) entre o (progressive) thrash e o black metal. Porém, onde muitos vêem o epítome da criatividade da banda e o capítulo mais proeminente dessa fusão, eu vejo sinais de estafa, como se sair do subgênero fosse a única maneira de gravar um álbum de inéditas àquela altura, ou como se, para não criar clones de trabalhos passados, mesclar um “thrash melancólico” à fórmula tivesse sido a única maneira encontrada de prestar dinamismo ao material. Explicando como posso, embora o thrash não seja um elemento estranho para o Immortal nem mesmo a essa altura, é sim a primeira vez que a metade thrash parece obliterar por completo a atmosfera ominosa do black metal norueguês – isso tem uma nomenclatura mais fácil do que a explicação, sem ouvir o disco: trata-se de thrash metal melódico, e não sua vertente mais negra, viril, de first wave BM e com aquela sujidade digna de um Bathory. Tem lá seus momentos. Confesso que devo ter tendências metafísicas a torcer o nariz para obras relativamente unânimes, ou de clamor exacerbado e imerecido.

Também não gosto tanto da divisão das músicas: apenas 6, com tempos que variam de 6:03 a 8:56, ou seja, uma ruptura completa com o que se via até BB. O tom da guitarra parece sempre o mesmo, uma espécie de cripto-acústico, evidentemente com a propriedade estética de nos transmitir uma sensação de degelo soturno. Falta espessura, faltam as estalactites da caverna. Acho que Blashyrkh acabou derretendo um pouco, ficando menos majestosa e mais pantanosa. Incidentalmente, chamam Sons of Northern Darkness, o clássico mais moderno da banda, de At The Heart of Winter mal-produzido, e com “mal-produzido”, entender: BEM-produzido! Como no black metal os valores se invertem, acham a produção muito… moderna, limpa, polida, e em detrimento dos valores do old school… Mas a verdade é que o estilo de ambos se parece, e entendo por que não estejam entre meus momentos favoritos do grupo.

O que eu mais detesto sobre At The Heart of Winter, a música-título, é que o riff central me parece uma antiga abertura de programa da Globo cagada e cuspida, um programa que por mais que me esforce não consigo me lembrar, nem encontrar qualquer comprovação na internet! Globo Comunidade ou qualquer coisa bem cult dos anos 90. Às vezes essas coincidências acontecem, qual é o problema? É que essa má impressão de ver o Immortal associado a algo de segunda classe nunca me abandona… Um comentário de resenha que me chamou muito a atenção, por conter o juízo exatamente oposto ao meu é: “Isso não é um epic black metal estéril e redundante repetindo as mesmas uma ou duas seções de novo e de novo por oito longos minutos; a música é dinâmica e nunca se demora demais no mesmo tema.” Mas o pior é que <as mesmas uma ou duas seções de novo e de novo por xxx longos minutos> são a melhor descrição que encontrei para ATHOW! Ao mesmo tempo em que os entusiastas tentam defender o álbum da acusação de esnobismo, comum quando uma banda produz algo muito mais “progressivo” e “dinâmico” para os próprios padrões, deixam escapar que na verdade estamos diante de uma peça de wankerismo puro e simples, pois “Abbath [guitarrista no disco pela 1ª vez] usa todo o espectro das notas musicais”. Tudo bem, mas essa não é necessariamente uma virtude nem mesmo num disco do Pink Floyd!

Como de praxe, nada a contestar sobre os vocais abbathianos. Numa nota alta, a segunda metade da faixa de encerramento, a otimamente batizada Years of Silent Sorrow, é meu destaque pessoal.

DAMNED IN BLACK

Um álbum “odiado” e que eu exalto com a ajuda de todas as minhas entranhas, só para variar! Adeus sacarina do mar de resenhas do álbum anterior (a internet está aí para se ver que eu sou realmente um estranho no ninho em relação ao Heart of Winter, uma lasca de gelo descolada do continente) – bem-vindos, de novo, os detratores de um suposto simplismo compositivo! E de volta com as capas icônicas e ainda mais absolutamente massacradas e ridicularizadas – ô, o Immortal voltou! Só faltava mesmo xingarem a capa por ser quase toda preta (Blackshyrk?), e destoar das picturizações invernais da banda, já que com Battles in The North o chilique foi o contrário!

Onde a proeminência cabia ao melodic thrash no trabalho anterior, vejo o mesmo destaque sendo dado à virulência de um bem-forjado death metal, achatando e comprimindo o rolo atmosférico com que a banda passa por cima dos deuses e do mundo, como um disco do Immortal tem de fazer (com faixas individuais num espectro de duração mais estreito de 3-7min). Uma das razões para uma paleta escura na capa já pode ser detectada nos títulos das faixas: nem tudo, dessa vez, gira cicloneamente em torno de neve e de borrascas e precipitações do céu carregado! Tudo soa como a continuação lógica de Blizzard Beasts, talvez do outro lado do espectro, já que yin-yang precisam do branco e do preto para funcionar – é como se Heart of Winter nunca tivesse acontecido, mais ou menos o cumprimento retroativo de um desejo meu, que em 2000 ainda estava longe de conhecer o Immortal e, aliás, de começar a gostar de música, e música boa!

É interessante observar a hipocrisia do resenhista-médio de DiB: critica os blast beats unilaterais do álbum, mas há quantos deles o Immortal não apresenta a mesma bateria? Inclusive no mimado Heart of Winter – só que lá a produção tíbia jogava todo o ímpeto das viradas e pezadas incessantes para o fundo, sonicamente falando!

SONS OF NORTHERN DARKNESS

Entramos na era da internet – o que possibilitou a intensa popularidade do Immortal, mesmo entre a nova safra de metaleiros, mediante um trenzinho de memes nunca enjoativos! – e os já veteraníssimos noruegueses continuam empilhando bíblias (!) de composições do gênero que ajudaram a forjar. Seria impossível usar um medidor para situá-los entre o orthodox e o modern BM porque eles conseguem encastelar todo tipo de referência retrô com novos takes, experimentalismos e produção moderna sem que o jogo dos caras soe forçado ou deslocado em relação ao espírito da banda, sempre mutante – seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo, um amigo me dizia…

No comando dos riffs de guitarra mais uma vez, Abbath continua a roubar a cena e monopolizar os holofotes. Seu estilo no Sons of Northern Darkness em particular remete muito ao de Dave Mustaine no Rust in Peace, pelo menos em momentos definidos. Por mais estranha que essa observação pareça, ela é verdadeira: One by One possui gallops de guitarra idênticos a Take No Prisoners ou Polaris!

Além disso, para manter a tradição de álbuns realmente inéditos da banda, ao contrário de tantos grupos que se limitam a relançar o mesmo trabalho com letras diferentes e replicar a mesma e velha fórmula com micro-randomizações, as guitarras foram afinadas um tom inteiro abaixo (na linguagem técnica, D standard): isso mais os riffs reminiscentes do thrash dão ao álbum um quê de peso que o distingue de quase tudo do black metal gravado àquele tempo. É diferente até da secura dos adoráveis e repelentes ao mesmo tempo, se é que o fã entende, Blizzard Beasts e Battles in The North. A faixa Demonium parece mesmo uma revistada em BB com uma produção muito mais avantajada e classuda. A esse ponto na carreira, aliás, não é só a produção que adquiriu um “outro patamar”: ouso dizer que o Immortal chegou ao auge da maturidade em termos de intercalar momentos abrasivos e lentos com porradas inclementes nas composições. Destaque para o efeito de reverb nos vocais de Abbath em In My Kingdom Cold que fazem parecer que ele canta no meio da tempestade, decrescendo ainda mais a “temperatura do Himalaia”.

Era inegável que a simbiose do grupo com o produtor Peter Tägtgren crescia a cada trabalho. Dá para perceber, com menos rodadas do disco, cada nota e inovação. Sons of Northern Darkness agrada, portanto, aquela ala mais tolerante do BM que preza a técnica e uma guitarra bem-tocada e com boas possibilidades de ser ouvida em cada evolução. Para uma comprovação da afirmação, ouvir à antiteticamente batizada (porque a Antártida fica no sul!) Antarctica. Ou eu deveria dizer que ela não é o polar oposto de todas as letras sobre Blashyrkh? Uma grande curiosidade sobre este álbum para disfarçar o constrangimento pela piada inopo(lar)tuna: é o primeiro da banda na Nuclear Blast, i.e., Immortal praticamente “goes pop”! Dizem que a Nuclear Blast quase mudou de nome para Nuclear Blast Beats em 2002… Parece irônico que no começo mesmo dessa nova história a banda iria se dissolver pela primeira vez, ainda mais levando em conta a sincronia de estúdio – os músicos começam a se desentender justamente em meio ao processo criativo. Para se ver a que custo algumas obras de arte são paridas…

ALL SHALL FALL

Dizem que neste disco o Immortal se tornou menos metal, e nisso menos black metal, o que fãs dificilmente perdoam, e mais rock ‘n’ roll. Ou pelo menos black ‘n’ roll, para não acharmos que foi algo tão drástico ou mesmo facilmente detectável para ouvintes de primeira viagem. Os mais fanáticos dirão que foi o último prego no caixão da segunda onda do black metal, capitaneado pela Noruega. Quanto drama! O hiato forçoso da banda teria feito os músicos perderem a intimidade com os instrumentos e o entrosamento com os colegas, sem volta?! Ah, claro! Nenhuma narrativa de banda de black metal que desagrada os fãs após álbuns bombásticos está completa sem o capítulo de quando eles se venderam (ou quando compraram de volta a alma a um desapontado Lúcifer) ou efetuaram seu sold-out. E, francamente falando, isso acontece com – quase – todas as BM bands que eu tive o imenso prazer de conhecer, então se tornou um tropo ou clichê da relação destes músicos com estes seu exigente público. Público extremamente exigente, justificando o gênero a que dizem pertencer…

All Shall Fall já diz essa verdade íntima no próprio nome: tudo deve cair, desabar… Mas quer saber? Quem disse que não há quedas de pé e grandiosas? Essa expertise da banda para bons riffs e toda a sabedoria no songwriting não desaparece do dia para a noite, nem por causa de alguns anos em hibernação. Afirmemos e reafirmemos: All Shall Fall está longe de ser o melhor momento da instituição Immortal mas, se pensarmos no destino geral das bandas de 2nd wave, seja por demérito próprio ou apenas por difamação de ex-entusiastas, o Immortal parece ser o que leva a melhor. Não falemos daquele ex-ser humano que virou o Gandalf e renegou completamente o estilo. O Mayhem, de quem eu tanto gosto em sua fase contemporânea, incansável na arte de surpreender, é detonado pelos puritanos, que os consideram menos do que cinzas do que já foram. Na verdade não importa o que o Mayhem fizesse desde a morte do Euronymous, a recepção seria fatalmente a mesma. Quem sabe desde a morte ainda anterior do Dead! Bandas norueguesas da segunda onda que seguem quase todas ativas e inovando, mas, para os “autoproclamados especialistas”, que traíram ou saíram por completo do movimento. Chame-se-o de segunda onda ou não, eles não traíram nada, eles estão carregando a tocha e revitalizando o movimento em seu núcleo, independentemente da qualidade que surge na terceira onda, onde onde quer que nos encontremos neste momento (quarta onda? não faço idéia!). Mas esse é um papo para outro texto…

Sete anos. Número cabalístico. O que terão representado na vida dos músicos e na manutenção ou queda de qualidade de suas performances? Na verdade há certa contigüidade entre estes trabalhos tão distantes no tempo, assim mesmo: Sons of Northern Darkness já demonstrava certa tendência a incorporar cada vez mais interlúdios (que não são interlúdios reais, presentes na enumerção das faixas, i.e., estão dentro das músicas e não constituem produções independentes) limpos e outsiders. Isso só foi mais intensificado. Os maledicentes dirão que o supergrupo de Abbath montado no meio do caminho, que o fez curtir um “retorno ao rock” durante a paralisação da banda principal, a banda I, foi mais um degrau, antes de chegarmos a esse, nessa transição. Between Two Worlds (que não será resenhado aqui) parecia mais heavy metal, mas do tipo black ‘n’ roll, que uma dessas cartadas extremas que os membros do Immortal, como bons jogadores de pôquer, viviam dando. Antes de criticar a mudança, devemos pensar primeiro na pressão sobre os caras para “manter o nível”, surpreender ainda outra vez, et.. Conservadores ou não, Abbath & cia. resolveram apostar nas suas forças mais consolidadas e que não os trairiam nesse comeback: os riffs em profusão e sua concatenação meticulosa. É um trabalho de guitarra, principalmente. Saudosos da atmosfera reinante nos primeiros álbuns têm todos os motivos para se chatear! Quem liga pra eles? O novo Immortal, mais corpulento na produção e no volume sonoro, não podia fazer milagres e nada sacrificar aos deuses de Blashyrkh a fim de obter um novo trabalho nível “A”.

Enfim, vamos ser curtos e grossos: All Shall Fall é o mais hard rock dos álbuns do Immortal. Viva-se com isso. Mesmo assim, é raro ver hard rock com croak vocals! O croachar do sapo nunca morre… Confiram só o solo de Norden on Fire. Nada a ver com Diabolical Fullmoon, não é verdade? Não esqueçamos que essas coisas acontecem debaixo de nossas vistas e, quando não desejamos reconhecê-las, inconscientemente passam batidas. Pure Holocaust, a segunda obra, já parecia uma estreitada no som, para torná-lo mais mainstream, se comparada com o 1º trabalho de estúdio. Ninguém reclamou na época – e por quê? Porque ainda era demasiadamente black metal (mas quem afirma o que é ou não é black metal são os revisionistas, a cada ano!). Como se houvesse só um black metal! Talvez se reconhecesse isso. Mas quando a mudança se dirige a algo como o acessível hard rock e não a experimentalismos bárbaros e obscuros, sai de baixo! Menos pode não ser sempre mais, mas sem dúvida é uma tentativa válida, e cria novos discos inéditos. All Shall Fall é exatamente isso. E sem dúvida a Nuclear Blast gastou uma porção de dindim para manter o áudio perfeito para os caras. E não deve ter economizado no marketing, idem. Esse é o epítome do profissionalismo da banda, e isso alguns por aí não podem ignorar… Escutam, para depois apenas maldizer.

Claro que não é isso que explica a recepção do álbum. Houve problemas. Problemas de verdade, os não-intencionais. O processo de composição foi indubitavelmente acelerado porque os integrantes voltaram a se bicar. Romperam em 2003, ficaram oficialmente desativados como banda por 3 anos até se reunirem, e o álbum durou um bom ciclo de “Copa do Mundo” para sair (4 anos). Significa que o trabalho em equipe se mostrou mais árduo do que eles mesmos, conhecendo o passado, esperavam. Nesses casos, muito do que acontece é chegarem ao seguinte plano de carreira: Olha, vamos nos concentrar em turnês, tocar nossos velhos hits, não precisamos matar uns aos outros agora enquanto criamos novas músicas, já que cada um tem um conceito sobre música, e sem dúvida o conceito de cada um mudou com o tempo, de forma diferente do conceito dos outros membros. Vamos aproveitar a fama e essa reunion da banda! Black metal nem sempre se resume a lançar novos trabalhos e superar-se a si mesmo sem a menor tolerância para deslizes… Façamos as coisas com calma, não somos iniciantes! Imagino que, se esse não rolou como papo, deve ter ficado ao menos subentendido entre eles…

E sobre a composição de material novo, lembrando que eles estavam sob contrato para fazê-lo, teve de acontecer em algum momento. Suspeito que um pouco “em cima demais” do deadline estabelecido pela gravadora, para azar deles e o nosso. Suponho que eles passaram no máximo 2 anos escrevendo estas 7 canções, porque tem ainda todas as semanas que envolvem gravá-las, mixá-las, masterizá-las e promover o álbum antes do lançamento, o dia designado pelos chefões da parte comercial! Dois anos não é um bom tempo de preparação para uma banda já veterana, que não precisa compor com tanta velocidade para se exibir ao mundo. Ainda mais com um álbum com poucas músicas. Cada uma tem de ser muito boa, ou as pontuações nas resenhas já sofrem consideravelmente. Além disso, nenhuma delas se tornou um novo clássico da banda, o que também não ajudou a estabelecer concessões ou contemporizações. Acabaram julgando o pacote de forma homogênea. Mas sem dúvida sempre há canções melhores, as que chamamos de canções para singles, para clipes, para abrir ou fechar o álbum, e outras consideradas mais medíocres ou menos chamativas. Normal.

Muitos fãs de longa data entram em negação e quase não consideram All Shall Fall como um episódio legítimo da trajetória da banda. Mas sem dúvida o público que compra lançamentos da Nuclear Blast não se resume a uma rodinha de cricris, então o Immortal foi à mídia e mostrou do que são capazes no estado pré-nova ruptura em que se encontravam (nunca diga “ruptura definitiva”!), como que dizendo nas entrelinhas: Se querem conhecer nosso catálogo, cheio de coisas ainda melhores, comece por aqui, e depois cave mais!

NORTHERN CHAOS GODS

O fim? Sem dúvida não há consenso nem para isso, não importa a perspectiva de quem resenhe ou acompanhe uma banda. Mas, na minha opinião, sem Abbath, este é “o álbum que não deveria existir”. Não se trata de qualidade vocálica nem qualquer detalhe mais específico, mas uma espécie de “conceito da banda”, que neste caso não pode funcionar sem uma figura multi-talentosa e longeva como Abbath. Demonaz não canta mal. É até mais energético que Abbath na função, e mais “black metal”, mas isso não significa que combine com o legado do Immortal. Em alguns momentos parece mesmo que Demonaz tenta imitar o estilo do ex-parceiro (cf. Into Battle Ride). Este com certeza é um álbum mais veloz que os dois últimos, mas falta algo. Where Mountains Rise chega inclusive a repetir o riff de At The Heart of Winter (a música), o que pra mim é bem revelador: nenhuma idéia nova, apenas saudosismo barato. Nesse ponto, a necessidade de fechar um álbum com uma track de maior duração já se tornou um clichê vergonhoso, veja só a duração da última canção!

Não deixe o papo simplista e bipolar dos fãs enganá-lo, contudo: não é o álbum para quem considerou o comeback de All Shall Fall fraco, nem muito menos o inverso. Podemos dizer com a segurança de quem não irá gerar polêmica que nem o último de Abbath nem o único sem Abbath têm o que os demais discos da discografia do Immortal oferecem. E é por isso que, para não encerrar a matéria numa nota baixa, recorro a mais uma curta resenha…

ABBATH, BY ABBATH, BANDA DO ABBATH

…Se um Immortal sem Abbath ainda pode ser considerado Immortal, é mais do que justo cobrir o outro terço do “núcleo da banda” (sem esquecer Tägtgren, Apollyon e outros que colaboraram nos registros mais recentes). Abbath continua produzindo um som derivativo do gélido black metal do Immortal e certamente ouviríamos essas canções sob esse moniker não fossem, por enquanto, os desdobramentos de uma batalha judicial que ora se mostra desfavorável ao músico, porém cujo desfecho é imprevisível. Por razões de “coerência” e “extensão”, não irei resenhar o segundo álbum do projeto-solo do Abbath, nem acrescentar o terceiro, que já está às vésperas de sair no momento em que redijo. Fica como um contraponto único ao Northern Chaos Gods, até por ser o meu favorito desta nova banda, pelo menos no momento atual, e, acessoriamente, por vir com a cara do Abbath estampada em close na capa – nada mais direto podia ligar essa maquiagem icônica ao legado do Immortal!

Álbuns de black metal super bem-produzidos: polêmicos, dividem a fanbase. No caso de Abbath, Abbath (2016), tirando os fanáticos, a crítica é positiva. Dag Erik Nygaard e Danial Bergstrand, os engenheiros de som, criaram uma wall of sound com muita distorção, preservando o senso melódico das guitarras, que poucos álbuns no estilo old school poderiam replicar. Esse tipo de produção mais clean permite que a sempre subestimada performance de Abbath como guitarrista brilhe em meio à escuridão temática e atmosférica de sua nova banda. Ao que consta, ele não é o lead guitar da formação, só cuida da guitarra-base, mas isso não o impede de soltar um ou outro solo mais trad metal que não vêm, esteja certo, em detrimento do resultado final. Outro instrumento sobressalente é a bateria muito bem-coordenada de Creature, que sabe revezar os blast beats com batidas estilo hard rock enriquecendo o trabalho – que podemos classificar como black ‘n’ roll mais uma vez, sem medo das vaias dos ouvintes ortodoxos. Acontece que em produções top-notch como essa na verdade perde o sentido falar de “instrumentos sobressalentes”, porque até o baixo de King ov Hell faz a diferença e é audível em inúmeros segmentos. Enfim, tudo que os músicos performam realmente aparece na gravação final. E é quase um alívio poder ouvir o baixo num álbum de metal em pleno 2016, já às portas da aposentadoria do Matusalém Black Sabbath (que parou em 2017), reconhecido até hoje como um dos únicos do gênero em que o baixo cumpre uma função de primeiro plano!

Sair – ou ser expulso – da marca Immortal parece não ter reduzido a auto-estima de Abbath Doom Oculta; antes, pelo contrário. Além da performance dual digna de crédito, não é justo que ele não recolha o mérito de, em pouco tempo, ter juntado músicos capazes e comprometidos com o projeto composicional em que, obviamente, ele é a força criadora principal, para que tudo fluísse em ordem (uma caótica ordem, em se tratando de um subgênero de black metal que bebe da fonte do Immortal).

A produção clean não deve nunca soar pejorativa mesmo num estilo tão subversivo, porque até as linhas de guitarra mais imundas ficam mais distinguíveis ao ouvido humano, ainda que percam alguns pontinhos insignificantes em termos de atmosfera. Significa que os riffs mais ortodoxos ganham certa aura de destaque em meio aos demais, mais próximos do heavy metal clássico. Os vocais de Abbath, embora muita gente diga que são estacionários, sempre evoluem de gravação para gravação. Mantêm o inconfundível tom raspado e contam com um minimal reverb para resultar diabólico e ameaçador.

Embora o Immortal desde sempre tenha prestado ênfase ao riff work, esse talvez seja o primeiro CD em muito tempo em que podemos dizer que o riff work conduz as composições acima de todo o resto e o resultado é tão superior (volto a me referir ao indelével Blizzard Beasts). Dessa forma, podemos detectar influências de death-thrash mais do que em qualquer outro trabalho-solo do homem (isto é, contando as seqüências a esse disco e o disco único do I), parecendo-se, em alguns momentos, com um Blizzard Beasts Vol. II.

Para os mais “classicistas”, Root of the Mountain fará um sorriso aparecer no rosto, com suas linhas de baixo indiscutivelmente derivadas do Deep Purple no seu auge (a referência clara é o petardo Black Night).

Winter Bane, por outro lado, tem os vocais mais versáteis de Abbath num longo período e um videoclipe de alto nível. São quase 7 minutos de peso e conservação de fôlego em meio a toda uma algazarra que não deixa a peteca cair. Ao contrário da iniciativa de Horgh e Demonaz, temos um trabalho com originalidade, não uma compostagem do que o Immortal já foi só para atender aos fãs menos críticos (e com menos críticos queremos dizer, paradoxalmente, aqueles que mais reclamam, mas de ninharias, evidente).

O estar-egg essencial dos ursos-coelhos em preto-e-branco é um cover de Nebular Ravens Winter, do inimitável – 3ª citação! – Blizzard Beasts (e é notável que no 4º verso dessa canção encontremos a expressão “Winters bane”, explicando a referência no contexto do álbum). Ainda tem um outro, menor: um cover de uma lado B do Judas Priest.

Para arrematar, o álbum é literalmente, em conteúdo, embora não formalmente, uma continuação do que a banda Immortal deveria seguir sendo.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Descubra mais sobre Seclusão Anagógica

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue lendo