Monica em

EM NOME DA HONRA”

Originalmente publicado em 8 de janeiro de 2010.

Inspirado na fábula da Chapeuzinho Vermelho

Cabelos loiros, lisos e que mal chegavam aos ombros. Nariz afilado e empinado. Lábios finos e rosas. Uma flor delicada. Monica tinha dezesseis anos e começava a ser uma preocupação para os pais. Filha de um poderoso industrial da Wolfstation – pequena vila inglesa – do século XIX, sua beleza aliada a sua riqueza a tornavam um objeto de intensa cobiça por parte dos homens da cidade. Galanteios de meninotes, rapazolas e mesmo dos amigos do pai nunca foram surpresa na vida da colegial. Porém a atenta Sra. Williams percebeu que a filha não mais recusava as investidas de imediato com um firme: “Não desejo um faz-de-conta burguês e ambas as nossas infelicidades”. Na sala de visitas, dava a entender que não cederia, mas já não era tão resoluta como antes. Se não se tratasse de uma moça rica, poder-se-ia pensar que Monica gostaria de prolongar os casos, quem sabe forjar um noivado, unicamente em busca de dinheiro. A Sra. Williams, como qualquer mulher madura, conhecia muito bem aquelas transformações no corpo e mente da adolescente, da menina-adulta. No entanto, sentia-se constrangida diante dos arroubos de sensualidade da criatura fervilhante que se exibia pela primeira vez debaixo de seu teto e diante dos seus olhos. Cantarolava ao espelho, perfumava-se toda. Nunca havia visto sua filha assim. Resolvera esperar até o dia do baile escolar para dar um passo além da simples observação: chamou Monica a um canto, na cozinha, enquanto assava alguns bolinhos, e pediu que não comprometesse a posição da família na alta sociedade com burlas namoradeiras. Monica sabia o que a palavra burla queria dizer.

Manteve-se afastada de bons partidos na escola; reprimiu seus sentimentos até aquela idade, em que já não era possível ocultar os batimentos acelerados e a maçã rubra das faces quando o assunto das garotas adentrava o sexo oposto. Julgava usufruir de uma vida muito mais confinada do que a das amigas, e mais recatada do que o necessário. Mas não ousava afrontar o pai. Não se sabe ao certo se planejava algo, se nutria rancor pela educação severa que recebia, porém tudo indica que o respeito que demonstrava pelo Sr. Williams não devia ser dissimulação. Acontece que toda santa alma um dia se cansa…

Há meses Monica observava, de longe e sem ser notada por nenhum dos colegas, um bando de alunos da série superior. Populares entre a juventude e malvistos pelos professores, constituíam seis ou sete bolsistas da região pobre da cidade. Não provinham de família abastada, mas freqüentavam a mesma escola da filha de Henry Williams. Este, dono de tecelagens por todo o país e bem-informado pelas amizades e pelos jornais, sabia da política acolhedora da instituição de ensino, e espumava de raiva a cada lembrete do tipo de gente que podia sentar-se às carteiras adjacentes à de seu tesourinho.

Talvez se inclinasse a lutar no parlamento por mudanças na aceitação de estudantes pobres, mas adiava a iniciativa, combinando com o advogado os argumentos perfeitos para a sessão plenária (onde pisava quando bem entendesse), além de aguardar que um célebre comerciante, conhecido seu, assumisse a cátedra de diretor, no rodízio previsto pelo regimento da escola, em apenas dois meses. Poder-se-ia dizer que o inconveniente de misturar a rebenta com uns pobretões da zona operária de Wolfstation não era de trato urgente. Enquanto isso, fazia vistas grossas até mesmo às filhotas dos outros industriais, a inculcar em Monica a idéia de comprar novos vestidinhos, tomara-que-caias, que deixavam as rapariguinhas de ombros escandalosamente desnudos, ou saiões com cortes indecentes.¹ Considerava as filhas dos outros capitalistas putas de luxo, sem exceção.

¹ A tomara-que-caia é “invenção” do século XX, mas esse conto se dispensa da obrigatoriedade de fugir de anacronismos.

Monica decidiu que se aproximaria dos bolsistas na festa do baile. Sabia que, quando muito, um ou dois valeriam a pena; os outros seriam grosseiros por saberem quem ela era – se tem uma coisa por que os sem-dinheiro zelam é o velho orgulho de classe. Não disfarçar antipatias. Não alimentar falsas esperanças de “subir na vida se casando com uma princesa ao invés de uma plebéia”. Não quando seria de cortar o coração de tão humilhante, e aquele Sr. Henry não era o tipo de pai que deixaria barato em uma entrevista eliminatória. Quando se estuda em escolas assim, além do mais, seria muito mais gratificante descontar essa frustração de berço cuspindo no chão e apontando o dedo para ricaças insinuantes.

A princesa penetra da história já desconfiava do gênio desses rapazes. Mas é provável que a cólera direcionada aos burgueses não fosse uniforme. Um ou dois poderiam pensar diferente, no íntimo. E estava cada vez mais complicado para uma loira vistosa e enfeitada de jóias hipnotizantes ao longo do pescoço, dos pulsos, das orelhas e dos dedos, quando não incrustadas nos vestidos, enfim, para uma baronesa com corpo de sereia, lidar com esses novos impulsos: a necessidade de amigos descolados das tradições, o instinto de buscar o diferente, o exótico, o rebelde. Todos têm a idade desse despertar. Ao mesmo tempo, continuar fiel às amigas. E, para isso, deveria ter alguma proeza para contar. Era a mais inexperiente do grupo, e já gerava risitos incontidos nos falatórios no departamento “homens”. Não tinha opinião formada sobre casamento, sobre o melhor estágio da vida para descobrir o marido ou o grau de liberdade que deve ser tolerado entre casais não-reconhecidos pela Igreja. Tudo veio rápido demais para essa moça. Monica quis apenas se auto-afirmar em seu grupo de amigas, não que isso implicasse em ser uma Williams maculada.

Foi no baile que, surpreendentemente, Monica, sem tomar nenhuma iniciativa, foi cortejada pelos famosos bolsistas da Wolfstation Noble School. Do mesmo jeito que costumava ser, debaixo das vistas da própria mãe, só que agora num amplo salão sem obrigações de sangue a interferir. Sorriu muito com o mais alto, aparentemente o “líder”. Respondeu todas as perguntas com inocência e temeu fazer alguma. Confirmou que era filha de Henry Williams, o famoso cidadão freqüentador número 1 do único banco da cidadezinha. Sabe-se lá o que vai fazer duas vezes por dia, religiosamente, às catorze e às dezoito horas, sempre demorando quinze minutos do lado de dentro. Assentiu também às suspeitas de que o pai era dono inclusive de termelétricas e exploradoras de carvão em Northsville, a cidade mais próxima de Wolfstation. E que aqui ele ainda era dono de uma companhia de bondes, mas adorava seus passeios de charrete. Possuía um cocheiro, três cavalos de elite e um carro pintado de ouro. Se era a tinta ou se era ouro de verdade, sobre isso não especulou. Dúvidas tão tolas as daqueles rapazes. E eles aparentavam segurança e auto-domínio quando conversavam longe de seus ouvidos, no gramado. Pessoalmente, não passavam de molecotes. Havia entre eles uma mulher, que Monica não tardou em julgar ser uma prostituta literal. Tinha aquela pinta perto dos lábios que rapidamente se associa à profissional mais antiga do mundo. E aquele sorriso de canto de boca, naquela noite de gala com um decote que fazia os gorilas do sexo oposto arfarem.

* * *

Dois dias depois de ter trajado aquele vestido vermelho de brilhantes e aquela tiara da mesma cor, com sapatos pontiagudos e de salto, além de uma pesada maquiagem, Monica e Edward, o rapaz alto do bando, já trocavam juras intensas de amor. Um amor infantil, diga-se. Nem mesmo se beijavam, só davam-se as mãos, cruzavam os braços ao caminhar, mal se tocavam. Ela já se sentia à vontade entre os bolsistas, no horário das classes. Ou melhor, nos intervalos, uma vez que as regras da distinta instituição eram rígidas e Monica tinha medo de que as fofocas viajassem alguns quilômetros até o escritório do pai.

A Sra. Williams, dotada daquele clássico sexto sentido feminino e materno, esperava a melhor ocasião para abordar a filha. Não perguntaria: “Está se encontrando com um homem às escondidas?”, mas “Qual o nome dele?”. Justo numa tardinha, quando ambas silenciavam na sala e a mãe tricotava ensaiando o discurso na cabeça, uma carruagem deu sinal à janela. Segundo consta, era o criado de Henry, dizendo que Monica devia seguir com ele até onde estava o pai. “Uma conversa no meio do expediente?”, pensou a madame. Mas se tranqüilizou ao se dar conta de que o pai também notava os pormenores da agitada vida da filha: “Vá, vá conversar com ele!”.

Era de fato o criado, mas no banco de trás estava Edward. Ele havia pagado duas libras para que o condutor enganasse a dona da mansão. Capataz muito confiável, sucumbiu à pomposa gorjeta. É um valor que um bolsista duvidosamente poderia desperdiçar pelos cantos. Monica se sentiu divina com este regalo apaixonado. Ambos foram deixados a sós em um parque, o mais espesso da região. Brincaram, rolaram pelo gramado, se enroscaram pelos troncos. E aí Monica percebeu que toda a sua etiqueta não seria suficiente contra pulsões tão selvagens. Pediu, quase tremendo, de excitação, não de pavor, que só continuasse enquanto ela consentisse. O rapaz balançou a cabeça verticalmente. Ambos se embrenharam nas matas mais altas e no canto mais afastado daquele passeio verde, e Monica tentou fazer silêncio. Quando a afoiteza de Edward já era evidente, aliás, o único que se podia notar nele, ela pediu para seu namorado parar. O garotão não podia se conter diante daquela beleza loira tão frágil e agora corrompida. O sangue, o suor, a água da garoa que caía, tudo se juntou com outro fluido. Como nas garras de alguém com quem não se pode comunicar, Monica apenas rangia os dentes, paralisada pela dor do arrependimento e da genitália azarada. Tudo estava turvo demais para reações precisas como aquelas da polida sala-de-estar de antigamente, e ela sequer soube em qual segundo as coisas tinham passado de uma brincadeira entre dois inconseqüentes para uma outra coisa, uma violação; em que momento ela própria se converteu de aventureira intrépida em vítima de estupro.

Edward a largou de bruços, esgotada, e se retirou, como se nada tivesse acontecido. Depois daquele encontro voraz, Monica regressou a pé para casa, de saltos quebrados nas mãos, trancou-se no quarto durante três dias e só aceitou duas visitas: a mãe e a criada que trazia a comida, ainda que quase não a tocasse. A par do que talvez tivesse ocorrido, desconhecendo contudo os detalhes mais ásperos, a Sra. Williams apenas consolava a filha: “Há homens que não revelam sua natureza lupina logo ao segundo encontro”. O senhor e a senhora da casa julgavam ser uma fatalidade natural, o primeiro desengano amoroso de uma garotinha, e se aliviaram por saber que a preocupação com os desordeiros do colégio e as precipitações de Monica não iriam se repetir, resolvidas ambas de uma cajadada.

O que os amigos de papai iriam dizer?”, foi a frase fixa, o fluxo neurótico que latejava na má-consciência daquela adolescente em prantos e frangalhos. Mas a experiência não fôra tão traumática, a ponto de no quarto dia o bom humor ter instantaneamente se restabelecido. Na escola, pôs as conversas com as antigas amigas, com quem rompera brevemente, em dia, chegando a uma concordata. Não contou nada a ninguém sobre “o bosque”. Na saída, Edward apareceu. Monica se limitou a fitá-lo com uma extraordinária repulsa, curvando-se em meia-circunferência, ainda abalada. Foi agarrada pelo braço esquerdo. Mas quando virou o oleoso pescoço, banhado em suor frio, não era o rosto do rapagote canalha, aquele arquétipo de Don Juan com requintes de maníaco, aquele que enxergou. Era um de seus comparsas, que defendeu o parceiro Eward: “Olha, ele achava que você era um tipo mais arrojado de garota. Ele chorou no meu ombro, disse que confundiu tudo, pensou que sua aflição fazia parte daquele momento de quebra de regras, da nova vida aflorando, de não ser mais uma menininha do papai…”. Uma bofetada na cara seria a reação mais natural, mas Monica apenas baixou ainda mais o rosto, constrangida.

* * *

Passaram-se mais duas semanas sem que ela dirigisse palavra àquela turma. Um dia antes do recesso de fim de ano, decidiu finalmente endereçar uma mensagem a Edward, ao vê-lo desacompanhado. Entregou-lhe um bilhete: “Encaminhe-se ao mesmo local do nosso primeiro encontro. Eu, Monica Williams, por ter sido manchada em meu sangue azul, dou-lhe uma segunda chance, com o ônus de que seja meu pelo resto da eternidade. Contei a meu pai sobre você.” As extremidades do corpo de Edward gelaram. Pensava vertiginosamente em todo o conteúdo do bilhete. Queria saber o que era contar ao pai sobre si, a que nível de profundidade o relato chegara. E conjeturava – se aquilo era mesmo uma proposta de casamento, quão rude não havia sido! Porém, como se esperasse por um acontecimento não muito diferente desse, pôs-se mais uma vez sereno, ajeitou a gola da camisa, pigarreou, socou uma mão na outra, suspirou, relaxou as costas e começou a andar em velocidade até uma casa, de propriedade anônima. Telefonou para a mansão Williams e disse: “Banco Wolfstation. Por favor, transmita o recado. O Sr. Williams precisa falar com o gerente de saldos, ele estará presente apenas às dezoito horas”. Era meio-dia e ele teria tempo para agir.

No reencontro, nenhum movimento suspeito, ainda que num certo breu das árvores. Pelo contrário, rumaram para a casa de Edward, onde a mãe os recebeu com pães de queijo e tagarelices amistosas. No correr da modesta reunião, mudança de planos: “Vamos nos reunir todos, os bolsistas do décimo ano, na casa de Mike”. Lá, um sobrado cinzento, a campainha tocou três vezes até que um risonho Mike desse as caras. Um teto a quatro metros de altura dos convivas, escadas em espiral, sofás fedendo a mofo. Um sítio suntuoso, embora semi-abandonado.

Onde estão os outros? – perguntou Monica.

Não haverá outros. Você está em cativeiro.

Alguém veio por trás e abafou-lhe o grito agudo com um saco grosso de algodão, que agora encobria toda sua cabeça. Monica foi levada para o sótão.

Enquanto isso, a garota soube que seu pai seria conduzido a uma cilada. O mais velho do grupo, ainda um rapaz, entretanto mais robusto e barbudo o suficiente para se passar por um respeitável representante bancário, interceptou o Sr. Williams antes que ele pisasse no banco, pelo fim da tarde. Passeavam pela cidade a quatro rodas enquanto conversavam, mas Henry percebia o tom abstrato do “sermão matemático”.

Conte-me de uma vez, furtaram o meu cofre? E onde está o Sr. Phillips?

Não, mas iremos… – respondeu o adolescente parrudo, ignorando por completo a segunda pergunta, sobre o real gerente do banco.

Henry Williams nunca havia levado um tiro. Ao ler romances e estórias de detetive sempre se indagava como seria a dor da bala perfurando a pele e a carne após disparo à queima-roupa. Era um ardor ou trauma semelhante a uma mordida brutal. A mordida de um urso, por exemplo. Foi na tíbia direita, pouco acima do osso do tornozelo. A perna inteira parecia ter sido tragada por uma fogueira. Mas fogueiras não fazem sangrar. O vermelho que grassava e se espalhava agora pelo chão da carroça mudou também o tom da dor, agora um repuxar insuportável dos músculos. O atirador puxou o homem pela camisa, imperativo: “Estamos com sua filha; se quiser que os jornais de amanhã contem o que está acontecendo na casa onde ela está, senhor industrial, não faça nada, e nos mande pra cadeia, inclusive. Não vai nos matar porque somos muitos”. “Tu…do bem.” E prosseguiu: “Nós queremos que na sua próxima visita ao banco peça ao gerente, o gerente de verdade, que aumente seu limite de transferências e deposite o lucro do ano anterior da sua tecelagem Wearing Co., que eu conheço pelas notas da imprensa, nestas quinze contas. Vai dizer que essa bala partiu de um ex-cliente furioso que não pôde identificar e que está fazendo isso para sua segurança legítima, pela integridade de seus bens e de seus familiares”. Depositou então um papelote no bolso do sobretudo daquele grisalho outrora imponente. “Não vai perguntar sobre sua filhinha, não é mesmo?… O que importa é… Bem, ela lhe será entregue assim que confirmarmos as transferências; esteja neste mesmo lugar.” Chutou-o para fora da charrete de ouro: “Esteja aqui, não chame a polícia! Nós temos tudo que a força da guarda desta cidade não tem!”. E não era mero blefe. O Sr. Williams mal se mexeu por duas horas, reclinado sobre um tronco, recusando até mesmo a assistência vespertina de uns andrajosos que passavam por perto. Até que percebeu que, pelos dizeres do malfeitor, deveria caminhar de contínuo até o banco, não longe dali, ferido como estava, para realizar o protocolo. Estava atrasado, atrasaria ao todo em mais de meia hora em relação ao combinado. Os cuidados médicos poderiam esperar.

Em torno de oito e meia da noite, com a conta da Wearing esvaziada e o referendo da matriz do banco em Londres (a soma era vultosa), chegava àquela clareira do parque público o reluzente carro do próprio Henry Williams em que um tiro havia soado, dessa vez com três capangas e Monica, toda encolhida. A filha parecia feliz e aliviada ao ver seu progenitor. Abraçaram-se, e ele perguntou:

Aconteceu alguma coisa?

Nada, papai… Claro que não houve nada!…

PALAVRINHAS SOBRE CONHECER DOSTOIEVSKI

Algumas pessoas, cientes de meus vícios, me dirigem perguntas como: Por onde devo começar a ler Nietzsche? São perguntas honestas e que eu mesmo faria, e aliás fiz, antes de “ter algum conhecimento” em alguma matéria que muito me interessava… Do tipo: quais marxistas do século XX devo ler primeiro?, uma questão para a qual nunca recebi respostas repetidas. E no entanto as respostas são mais difíceis, quão mais “especialista” na matéria me julgo, uma espécie de dilema socrático. Quanto ao próprio Nietzsche, podemos deixá-lo de lado até uma próxima oportunidade.

Hoje gostaria de responder à pergunta de um amigo: Por onde devo iniciar a apreciação de Fiodor Dostoievski (nunca censurem alguém por escrever um nome russo errado – só escrevemos certo quando usamos a língua e os caracteres russos – tudo o mais é convenção, até mesmo se Tolstoi leva acento ou nãoo, sem falar na grafia Tolstoy, preferida pelos anglos – sem falar, também, que não se pronuncia Tolstoi, mas tem uns “a”s e “r”s invisíveis na prosódia, o que muita gente se admira de saber, inclusive eu!)?

Dostoievski escreveu clássicos atrás de clássicos. Poderíamos nos aventurar a ranqueá-los em grupos (o que não faremos), mas seus livros “A-” talvez em nada devam aos “SS”. Vamos citar suas principais obras, e defender, no fim, por que eu pessoalmente não recomendo que o primeiro livro a se ler de Dostoievski sejam os seus mais icônicos, Crimes e Castigo e Irmãos Karamazovi, em primeiro lugar. Livros que eu já considerei perfeitos – mas todos os livros têm falhas, e até esses podem ser criticados com fundamento. Ainda que fossem perfeitos, poderia haver razões muito mundanas (e nem por isso incorretas) de recomendar que sejam leituras apenas posteriores… Enfrentemos o caso em vista!

Gente Pobre, A Vila de Spatchikovo, Humilhados e Ofendidos, O Jogador e O Eterno Marido eu classificaria como novelas menos densas, monotemáticas, por assim dizer: geralmente o foco é a pobreza ou comportamentos obsessivos (como o vício no jogo ou ciúmes patológicos). Embora sejam “simples e diretos” comparados a outros trabalhos de D., são por si só ricos e obras-primas em seu gênero. Talvez não dêem a impressão de estarmos lidando potencialmente com o maior escriba russo, no caso de ser a primeira leitura de alguém.

Dos escritos precoces de D., sem dúvida os mais interessante são O Duplo, Memórias do Subsolo e Memórias da Casa dos Mortos. Sempre achei O Duplo e Subsolo contos (são maiores que contos, embora não tenham nem de perto a espessura de Irmãos Karamazovi ou O Adolescente) que se misturavam, a ponto de, ao passar alguns anos que os havia lido, confundir cenas de um como se fossem do outro. Achava que isso podia se dar pelo fato de eu os ter comprado juntos, tendo o livro físico de ambos, da mesma editora e da mesma coleção (a 34). Tendo-os relido recentemente, confirmei minha impressão ancestral, porém: apesar dos anos que separam ambas as composições, tanto um livro como o outro tratam de um protagonista espiritualmente miserável que descreve aos leitores anódinos como acabou por se apartar dos homens, ao que tudo indica sem possibilidade de retorno. Não as recomendo como primeiras leituras, no entanto, especialmente O Duplo, por serem narrativas muito pesadas, capazes de assustar e voltar a assombrar, tamanha a perspicácia do pensamento dos protagonistas e seu descaro em resumir as hipocrisias da vida social, mesmo leitores veteranos do querido autor. No caso d’O Duplo o agravo é ainda maior, por tratar ao mesmo tempo da degeneração mental, da subserviência de um funcionário público sem perspectivas e do abismo infinito que separa a aristocracia russa dessa gente “classe média”, que tem renda para possuir seu próprio servo mas que precisa pegar empréstimos ou empenhar bens a fim de comprar roupas que a faria aceitável ou pelo menos tolerada em círculos mais refinados. Portanto, se fosse escolher uma primeira leitura dentre a trinca do “D. jovem”, optaria pela Casa dos Mortos, um relato semi-autobiográfico sobre os anos de Dostoievski no degredo siberiano, por razões políticas. Por ser um material menos fictício e mais historiográfico, e em primeira pessoa, vai interessar sobretudo os que buscam conhecer quem foi o homem D., e não só o que ele escrevia. Muitas reflexões sobre a culpa contidas neste tratado já antecipam os tormentos de Raskolnikov, de Crime e Castigo, um dos protagonistas mais conhecidos da literatura universal.

Talvez o próprio Crime e Castigo seja incensado demais. Fiquei com essa impressão à segunda leitura. Não acontece muita coisa, materialmente falando, na estória; o aspecto grotesco, entrecortado e febril dos capítulos se deve sobretudo à crise interior do personagem principal. Aos 20 anos eu podia me identificar muito mais com Raskolnikov. Talvez agora, e vendo o tema do crime e suas consequências mais bem-apresentado em outras obras de D., eu seja reticente em recomendar C&C – entre as novelas mais indispensáveis, pelo menos.

Irmãos Karamazovi é a obra mais ambiciosa de D., e sua última, enquanto novela. Consumiu 3 anos de sua velhice; foi publicada em vida. Mas era prometido um segundo volume. Como nunca ocorreu, tratamos o (já bojudo) tomo inicial como uma narrativa completa e autônoma. E com efeito a vida dos três irmãos não prescinde de três epílogos muito bem-elaborados. Alguém só pode pensar que tipo de desenvolvimentos D. planejava para essa trinca de personagens tão distintos uns dos outros. Há fortes indicações de que Aliocha, o “irmão santo”, desempenharia o papel principal. São feitas alusões proféticas a seu futuro, carregado de martírio, mas simultaneamente auspicioso, se ele se mantivesse na senda reta. Sem revelar detalhes minuciosos ou muito relevantes da trama, Aliocha teria de lidar com os pecados de outrem, se tornar um mártir; e como cristão ortodoxo sua relação amorosa, proto-desenvolvida no livro que D. pôde nos legar, provavelmente nunca se consumaria. O que temos do “projeto Karamazov” ainda contém passagens que representam, em minha opinião, o acme da literatura ocidental, mas acho que o leitor de D. pode conhecê-lo abrindo outras portas, e deixar este umbral maciço para depois!

Restam os clássicos que ainda não citei: O Idiota, Os Demônios (ou Os Possuídos) e O Adolescente. D. foi, ao que parece, diminuindo gradativamente a idade de seus protagonistas. O Adolescente era mais um degrau em sua escada como autor, que ele pretendia percorrer até o final, com uma novela focada na importância das crianças russas – projeto impossibilitado por sua morte. O Adolescente é sobre a relação de um jovem que não tem posição no mundo público petersburguês e após muito tempo recebe a notícia de que reencontrará seu pai, figura ambígua, da qual ele não sabe o que esperar. Ou talvez o protagonista seja muito impressionável, e não consiga definir seu pai a não ser recaindo em extremos ao longo das páginas da história. Está claro que sua irmã, uma pessoa bem mais simples, já amadureceu emocionalmente muito mais depressa nesta compreensão de laços de parentesco. Tudo em que o adolescente se baseia são em memórias longínquas da meninice, antes do pai abandonar a família. As razões não são claras. A mãe ainda ama o marido e nunca permitiu que o protagonista masculino e sua irmã falassem ou pensassem mal de seu progenitor ausente. Como é uma figura que, ainda quando presente, se mostra misteriosa e lacônica, o jovem terá de ser um detetive da alma até sacar uma conclusão final, em meio a relações com figuras nobres que se iniciam relações com sua família, tudo aparentemente por causa do retorno de seu pai, ou seria tudo uma grande coincidência – e o jovem começa a sentir que tanto se sua irmã for a noiva quanto se sua irmã for rejeitada como a noiva de um certo magnata imoral, o nome da família ficará manchado e na lama, o que fere seu orgulho e suas ambições como uma adaga afiada. É uma novela que li em tempo recorde, durante férias, e não vejo qualquer ressalva a estabelecê-lo como uma porta de entrada convidativa em todos os sentidos.

Os Demônios pode ser considerado o livro mais sombrio de D., se excluirmos o mal-estar que O Duplo e o tal “Homem do Subterrâneo”, apócrifo, podem causar a naturezas como a minha, pelo menos. Um grupo de niilistas terroristas quer estabelecer o caos numa cidade russa, com vários personagens se reencontrando após longas ausências. Suas relações interrompidas e recém-retomadas estão carregadas de antigos ressentimentos, mas também de muita empatia escondida e difícil de comunicar. E o protagonista é um mistério para o leitor e todos a sua volta até o grande final. Uma passagem desta obra que lida com um crime de pedofilia foi censurada no século XIX, mas reintroduzida em algumas traduções mais modernas, ainda que como anexo. Creio que o personagem principal deste longo conto foi o protótipo depois fendido ao meio para dois dos três irmãos Karamazovi. As reflexões dostoievskianas sobre a religião só são maiores n’O Idiota que n’Os Demônios.

O Idiota também supõe como um epiléptico retraído, “santo e ingênuo” subitamente tornado milionário se comportaria, jogado diante de uma das situações mais problemáticas ao iniciar sua vida na mais alta sociedade: se apaixona por uma mulher de má-fama, tem dó de seu destino, e por isso acha paradoxalmente que não tem o direito de possuí-la, não por egoísmo, mas porque não a merece, é-lhe inferior; pois só a piedade não é o suficiente para o amor autêntico. Natasha, a mulher co-protagonista, também é apaixonada pelo Príncipe Michkin, o “idiota” do caso, mas a sua maneira. Estabelece-se um esboço de triângulo amoroso. Eu ainda acho as duas novelas descritas mais acima mais apropriadas para um “primeiro passo”, se bem que O Idiota não está mal; o caso é que acho que só adquire o efeito desejado quando a relemos, para entender melhor o intrigante protagonista…

A estória curta mais fenomenal de D., muitos concordam, é O Sonho de um Homem Ridículo, e pode ser lida em algumas coletâneas de seus contos e ensaios.

ESPERTEZA, INTELIGÊNCIA E SABEDORIA: DO SABER QUE NADA SABE

Muito se fala sobre esperteza, inteligência e sabedoria. O povo é bom em apreender imediatamente qualidades, mas ruim em definir conceitos.

A esperteza está associada à imediatidade da memória e ao egoísmo. Seu contrário é a lerdeza.

A inteligência, ao acúmulo da memória, tendente à paralisia se o uso da memória se aproxima do máximo, como com uma caixa de e-mail e seu espaço de armazenamento cada vez mais curto sem a manutenção do usuário. Tendem também a inteligência e seu constante cultivo a uma espécie de desinteresse, embora existam outras (espécies de desinteresse). Seu oposto é a burrice clássica.

Esperteza e inteligência são termos relativamente intercambiáveis no uso do dia a dia, e esse fato não é acidental. Há um pressentimento de que alguém é “um dos dois”, mas não ambos em conjunto. É até quase impossível ser inteligente sendo esperto. Ou ser esperto sendo inteligente, graças à natureza de “depósito da memória” da faculdade da inteligência. Do ângulo da mundanidade, o esperto e o inteligente são como água e óleo. A sabedoria é transcendental e ainda não entrou na conversa.

É que do sábio e da sabedoria nada se pode afirmar. A sabedoria é tão instável e flutuante quanto o humor e, para todos os efeitos, todo homem é instável de humor, caso essa simples analogia não tenha bastado para estabelecê-lo diante do leitor. Estamos em uma aporia. Precisaremos da ajuda de um filósofo consagrado neste momento:

SÓ SEI QUE NADA SEI” (Sócrates) nunca foi uma afirmação irônica ou falsa modéstia. Sempre significou no seu mais profundo aquilo que diz literalmente (em modo alongado, para melhor compreensão), quer seja, “Cheguei a saber o que vem a ser a sabedoria, mas me é impossível determinar se sou ou não sábio, exatamente em virtude da própria descoberta, visto que nenhum homem neste mundo pode dizê-lo e ter esperança de atingir a verdade da questão. Pode ter a mais plena convicção de ser sábio e no entanto estar errado. Normalmente está, quando tem certeza. Somente o que se pode afirmar é: sou ‘mais sábio’ do que era outrora; e quem haveria de afirmar que é ‘menos sábio’? É bem possível (a situação de se tornar menos sábio ao longo do tempo), mas o ego não admitiria, seria uma chaga profunda. Talvez possamos dizer que nosso ego nunca é sábio. Enfim, sou mais sábio do que já fui antes, mas quão mais sábio me torno mais vejo o quanto sou ignorante, e posso prever uma situação em que sou dez vezes mais sábio que agora, e teria dez vezes mais dúvidas sobre minha própria sabedoria, pois me sentirei, neste caso, o possuidor do décuplo da ignorância. Portanto, como posso dizer, se as coisas são assim, que isto – meu eu atual – é a detenção da sabedoria? Decerto que ANTES não era sábio, se é que agora o sou; aí termina todo meu conhecimento.”

É isso que significa a transcendentalidade da sabedoria. Ela é indeterminável por discursos mundanos. Pela nossa capacidade de observação empírica. Não só nunca poderemos avaliar se somos sábios como nenhum homem poderá emitir este juízo sobre qualquer de seus semelhantes.

Também salta aos olhos que a ética é matéria transcendental, assunto para a metafísica. É por isso que seguirá para sempre indeterminada, porque o ser-ético depende sempre do contexto. O “SOU BOM?” e o “SOU SÁBIO?” caminham de mãos dadas.

Há uma imensidão de espertos, mas pode-se, sem dúvida, ser lerdo, burro e ignorante (este último o contrário de sábio), tudo ao mesmo tempo. Nem água, nem óleo. O esperto costuma ser arrogante e depreciar a esperteza alheia. Uma conduta demasiado inesperta.

Ao sábio, figura intangível, tanto se lhe dá: se é lerdo ou atento, precavido ou desprotegido, se tem a cabeça ‘cheia’ ou ‘vazia’, se é o cume do egoísmo ou o cume do heroísmo altruísta. Isso são valores humanos, inúteis no reino da sabedoria, e é por isso que, se um sábio houver, ele ainda assim não passa de um homem, porque chega o instante em que estes valores lhe são muito caros; todo desprezo é afetação ou estratégia conscientemente temporária. Sempre voltamos ao mesmo lugar. Talvez essa seja a tragédia do sábio, que sendo cotidiana e se repetindo ad nauseam se torna por fim uma comédia: ele deve ser o mais esperto e inteligente que jamais vimos, mesmo sem querer sê-lo! Está sempre correndo de e atrás de si mesmo. E o homem – qualquer homem – pode ele ficar parado?

O próprio Sócrates, na opinião de muitos homens, tinha a pior das mulheres. Mas talvez fosse a melhor, a que mais lhe convinha. Dela mesmo, podemos dizer que não fosse sábia? Assumindo que tudo que a historiografia machista nos deixou seja fidedigno, ainda assim ela foi casada com o homem que em seu tempo era considerado pelos outros homens (ou pelo menos pelos cidadãos atenienses) o mais sábio. Quem mais podia se jactar de tamanha sorte? A isto aceito a objeção de que com família é como com dinheiro: nem esperteza, nem inteligência, nem sabedoria atuam, é questão de sorte. Mas o que resta saber é se no caso de Xantipa o único móvel, a única causa, em sua biografia, para ter se tornado a esposa de Sócrates foi mesmo a sorte.

No entanto, Sócrates, além de cunhar a frase definidora da sabedoria (ou melhor: definidora da indefinibilidade prática da sabedoria, no limiar mais mestiço entre ignorância e saber jamais registrado), e de ter tido uma “esposa interessante” (porque gera muito debate entre os estudiosos até hoje) conforme a historiografia (e devemos suspeitar do fato de que Platão, o maior biógrafo ou romancista de Sócrates, jamais se preocupara com esta personagem), completou sua vida do modo lendário que mais depõe a favor da hipótese de que Sócrates era um sábio (como mártir ou inaugurador de religiões ou doutrinas): se não podemos afirmar quem foi sábio e ter certeza de acertar, podemos dizer que quem tem medo da morte¹ não pode ser um sábio (e veja: para complicar, até para isso, para o morrer, existe a capacidade do simulacro; que homem de aspecto valente diante do cadafalso podemos dizer com certeza que não está no fundo apenas representando um papel? que covarde não nos poderia estar secretamente pregando uma peça, talvez pregando uma peça até a si mesmo?).

¹ Afirmação arbitrária? Se a morte é justamente incompreensível para nós, inevitável e uma incógnita que define nosso modo ético de ser, como capítulo importante da vida! Como o sábio teria medo da morte, este acontecimento sem testemunhos, se forçosamente ignora este fenômeno como todos os ainda vivos, e se a sabedoria é justamente ter consciência perfeita de sua imensa ignorância? Se ‘tanto se lhe dá’ isso como aquilo, como dito acima?

Nenhuma flecha mergulha com mais ímpeto rumo a seu alvo do que o sábio rumo à morte, esta é a única certeza. Que ele será bem-sucedido no mergulho, disso tampouco podemos falar, não podemos cravar nada! Sócrates foi soldado na guerra e viveu por sete décadas. Não morreu uma morte precoce de Alexandre Magno, como não morreu uma morte tísica de poeta romântico.

HISTÓRIA DAS IDÉIAS 4: HINDUÍSMO & FILOSOFIA OCIDENTAL: Um esboço

Esse artigo (contendo também anotações fragmentárias) visa a integrar os conhecimentos transmitidos pelos Vedas-Upanishads (livros sagrados hindus) com o conhecimento em Primeira filosofia (Metafísica no sentido estrito ou Filosofia Continental, abarcando autores de Platão (séc. IV a.C.) ao pós-estruturalismo francês dos anos 1960). O post poderá ser lido em conjunto com outros da categoria Religião e da subcategoria Hinduísmo já presentes no Seclusão e indexados no menu. Usarei The Roots of Vedanta, de Sudhakshina Rangaswami, como bibliografia principal para as citações dos textos védicos (traduzidos por mim do inglês quando necessário).

Os Upanishads (revelações comentadas) são a cabeça e os Vedas em si são o tronco da visão e conhecimento hindus; a correta leitura dos Upanishads, portanto, pode ser considerada a aquisição da consumação da sabedoria transmitida pelos textos sagrados antigos da Índia. Mal comparando, os Upanishads seriam como os textos dos Escolásticos sobre o Antigo e o Novo Testamentos (Santo Agostinho e São Tomás de Aquino como os principais); mas o paralelo cessa quando se entende que, para o praticante da religião hindu, os Upanishads são de quase tão remota origem quanto os Vedas e, apesar de reconhecidamente escritos por mãos humanas, de indivíduos considerados “gurus”, são tratados como texto sagrado, indispensável para compreender a elaborada natureza dos Vedas. Isso faz com que os Upanishads gozem de uma autoridade que a Cidade de Deus ou a Suma Teológica jamais gozaram no Ocidente, mesmo em face da Igreja Romana.

O fato fundamental dos escritos Upanishads é que eles reconhecem a característica de arbitrariedade e às vezes insuficiência da língua para transmitir idéias, compreensão básica da Lingüística moderna e o esteio principal de toda a bibliografia, por exemplo, de Ludwig Wittgenstein. Como a linguagem, a partir de determinado ponto, se torna inadequada para articular a experiência em sua essência, os sábios antigos do Oriente utilizaram o recurso da exposição de mitos e símbolos como alegorias de seus ensinamentos (paralelo com Platão), chegando mesmo à utilização de conceitos puramente negativos (Hegel), necessários para abordar as intuições que levam ao Absoluto.

Os Upanishads são a primeira fonte direta (śruti prasthāna) do oriental para a cognição da Realidade Absoluta. Há mais de cem Upanishads, de forma que o que se realiza aqui é apenas um esboço de introdução ao tema. Os dez Upanishads comentados pelo sábio Sankara são considerados os Upanishads clássicos ou mais importantes, aqueles que se deve tentar ler, caso não haja tempo para a leitura de todo o catálogo dos Upanishads. Os Upanishads, desde o início, não pretendem ser uma descrição literal ou hiper-concentrada de saberes, dogmas ou revelações, como a Bíblia. Dessa forma, não está organizado em versículos, mas em capítulos de prosa como os livros técnicos ou de ficção ocidental modernos em sua quase totalidade, aproximando-nos do olhar védico. O importante será a compreensão holística de todo o conteúdo ali apresentado, e não debruçar-se sobre uma sentença, procurando o significado de um vocábulo como aforismo ou sentença para a vida. O que interessa é a compreensão global pelo adepto. Fenômeno similar se dá com o estudante de filosofia, que adquire conhecimento aos poucos consultando os vários autores de primeira grandeza, para só então partir para os de segunda ou terceira grandeza, buscando conhecimentos mais específicos. Tampouco há uma ordem preestabelecida para a leitura: pode-se começar por qualquer Veda ou Upanishad. O aprendizado é cumulativo, cíclico e recursivo.

Afora o próprio binômio Vedas-Upanishads, o texto da literatura mais importante para Sankara, a maior autoridade sobre o assunto, é o épico Bhagavad Gita. É como se na Ilíada e Odisséia homéricas estivessem comprimidos toda a doutrina de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Kierkegaard, Leibniz, Spinosa, Pascal, dentre outros. O Bhagavad consegue resumir os principais preceitos dos Upanishads e podem ser uma primeira leitura iniciática, ou uma leitura posterior, de reforço dos ensinamentos védicos.

A forma de trabalho da linha dos Upanishads é diametralmente oposta à do Bhagavad Gita, mas ambos atingem a mesma meta: os primeiros enfatizam a renúncia e meditação em Brahma como a disciplina espiritual que conduz à liberação; o segundo, poema-diálogo, ensina a trilha da ação desinteressada neste mundo, a prática do karma-yoga, evoluindo gradativamente ao mais espiritualizado inana-yoga, que pode incluir ou não a devoção a um deus antropomorfizado (objetivo do bhakti-yoga), abrindo, tanto quanto os Upanishads, o caminho para a liberação sem a prática da renúncia ascética. Alguns dos temas deste parágrafo são complexos e foram utilizadas expressões diretamente retiradas dos próprios textos sagrados. Por isso, entraremos em explicações mais detalhadas adiante, “quebrando” os vários temas em seções:

A trilha da ação desinteressada

Em última instância, a prática do karma-yoga equivale a princípios ocidentais como o enunciado de Friedrich Nietzsche “como filosofar com o martelo”. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche, escritor alemão do séc. XIX, expõe seu “método destrutivo do pensamento”. Destrutivo não deve ser entendido de forma pejorativa. Como na frase acima “chegando mesmo à utilização de conceitos puramente negativos, o “pensar destrutivo” nada mais é do que lutar contra preconcepções potencialmente nocivas adquiridas involuntariamente durante o processo normal de educação do ser humano. Através da aplicação do pensamento crítico sobre os valores herdados pelo homem ocidental, Nietzsche pretende pôr em questão algumas afirmações tidas como verdade que não passam, no sentido da filosofia, de “puras aparências”. Filosofar a marteladas nada tem de violento, ou mesmo de atividade corporal voltada ao mundo material em si: é, traduzidas em outras palavras, a função do filósofo. Porém, Nietzsche escreve em um tempo que já carrega uma grande herança da Filosofia, diferente de quando Platão escreveu. Por isso, para ele, é fundamental desconfiar e reler os filósofos do passado, analisando-os filosoficamente, a fim de não acabar criando castelos de areia, isto é: a desvinculação do pensador a noções antigas e erradas deve ser priorizada em relação a “criar novos conteúdos deônticos (princípios éticos para a convivência humana)”. Ele estava aplicando o karma-yoga sem o saber. O karma-yoga é a meditação oriental que ensina a iniciar o caminho da renúncia das ilusões materiais.

Através dos fenômenos, experiências e aparências chegamos enfim àquilo que não é passível de ser pronunciado com suficiência de sentido (a Idéia de Platão conforme exposta n’A República). Quer dizer, o ioga é visto por grande parte dos ocidentais como um mero exercício de relaxamento, equivalente à passividade e inação. Esta é a “aparência enganosa” do ioga e do iogue (praticante). O próprio termo “praticante” levaria à conclusão imediatamente contrária, no entanto: ele pratica, ele age, o ioga é ação – contradição de sentido com a visão exotérica ocidental (vulgar, depreciativa) sobre o ioga. Ação que sufoca a ação através do controle da respiração.

Depois de compreender o ioga como ação, entretanto, é hora de compreender o ioga num nível ainda mais esotérico (de disciplina verdadeira): não como ação comum, mas como ações das ações. Esta assim num sentido novo é tanto oposta à inação ou renúncia conhecidas do público em geral como à ação comum do cotidiano. O que se faz aqui é exatamente o proceder dinâmico da filosofia de Georg Hegel, se tivermos que pensar não mais em Platão, mas no primeiro filósofo moderno de importância que podemos usar para nos auxiliar na compreensão do hinduísmo. Não é que o hinduísmo deva ser necessariamente analisado filosoficamente, nem a filosofia moderna “superada” ou sentida religiosamente pelo guru capacitado por Brahma, mas há essa constatação intermédia: as duas vias são o Um e o Mesmo. Tese (popular, concepções mundanas) – antítese (começo crítico do aprendizado de “filosofar com o martelo” ou do karma-yoga) – síntese (consumação, sabedoria efetiva, inana-yoga ou o conceito da Idéia de Platão em seu sentido mais elaborado).

A trajetória da compreensão pelo sujeito aspirante ao saber de que o mundo das experiências é nosso meio (nossa técnica) para alcançar o Absoluto: assim também pode ser resumido o karma-yoga. E alcançar o Absoluto no sentido carma-iogue é: compreender que participo de um destino em perfeita harmonia com todo o universo, me fundo com ele. A expressão karma, muito mal-utilizada no Ocidente, deve ser interpretada pelo estudante dos Vedas como destino, mas não na concepção clássica e fatídica de destino. Trata-se do destino sentido não como um peso ou castigo infligido ao indivíduo (compreensão popular de c”arma”), mas como a leveza de espírito para a prática da ação responsável. O eterno retorno de Nietzsche buscava a mesma conclusão ética. O saber é sempre recursivo. Estou explicando estas mesmas equivalências pela terceira ou quarta vez no Seclusão Anagógica. Mas isso é uma virtude, não um defeito: a sabedoria é esse ir e vir pelos mesmos pensamentos, até solidificar o conhecimento adquirido. Eu aprendo enquanto ensino; não importa de onde parti, nem onde chego; percorro círculos; não importa se o leitor me lê pela primeira vez agora ou acessa esse texto depois de ler outras explicações anteriores (ou futuras). Ele se junta ao círculo seleto, aprende e também ensina.

A devoção a um deus antropomorfizado (bhakti-yoga)

“O caminho da devoção a uma forma pessoal de Deus abre as portas da liberação mesmo para aqueles incapazes de renunciar ao mundo (inquilinos do mundo).” Esta é uma citação de Sankara nos Upanishads. Ter fé numa entidade divina (religião significa re-ligare, entrar em fusão com) é uma das formas disponíveis para atingir a liberação védica, mesmo sem a disciplina espiritual mais rogorosa dos Upanishads, como ensina o Bhagavad Gita. Ao que se renuncia quando se diz “aqueles incapazes de renunciar”? Ao mundo? Sim e não. Sim no sentido das aparência enganosas, não no sentido de que não se renuncia à vida neste mundo, contanto que a vida neste mundo esteja ligada à busca da verdade mais profunda (o Absoluto). Há que prestar atenção na palavra inquilino. Nossa casa é o mundo, mas não somos os proprietários: estamos de passagem, utilizando uma vida cedida por empréstimo num todo maior.

Apesar da semelhança à primeira vista entre o bakthi-yoga e as religiões ou monoteísmos ocidentais, que são baseadas no culto a um Deus pessoal, a primeira vantagem do hinduísmo sobre o credo cristão (sempre citarei o Cristianismo pela sua maior popularidade e aderência no Ocidente, mas a rigor me refiro a todas as religiões de massa por metonímia) é que o hinduísmo não é um ateísmo, não é um monoteísmo e não é um politeísmo, apesar de ser todos os três ao mesmo tempo (aparências divergem das idéias). O caminho da devoção seria interpretado como “oração” ou “reza” no Ocidente. Está no limiar do que seria a passividade – ajoelhar-se, entregar-se, pedir socorro, etc. – e do que seria a atividade – executar um rito por volição própria, aliar-se ao seu deus, ser ativo na transformação do mundo ao se encontrar apto a transformá-lo, encarnando, representando ou se manifestando como, sendo carne e estando presente no mundo material, a vontade divina neste mundo –.

Em outros termos: ajoelhar-se (símbolo da submissão) e performar são sinônimos. Entregar-se, desistir, dar por encerrado, transferir a responsabilidade, ser o forjador de uma aliança, puxar para si a responsabilidade, iniciar a resolução de um problema concreto são também sinônimos. Pedir socorro e socorrer, ser o agente de alguém, representar algo maior do que a si mesmo são sinônimos. É natural vulgarmente separar todo fenômeno em “ação” ou “renúncia”, inação, como se viu na explicação introdutória sobre o ioga. Porém, as fronteiras entre essas categorizações arbitrárias são enganosas.

Indo além: renunciar ao mundo, seria uma ação ou uma desistência? O discípulo de Cristo, que no ato de se tornar discípulo distribui todas as suas riquezas para peregrinar com Cristo, não age? Aquele que renuncia ao mundo, não desiste da vida, se entrega, se anula? Ambas as perspectivas estão corretas. Covardia ou coragem? O debate ou simpósio entre ambas as alternativas seria eterno e inconclusivo. Há aqueles formatados para o que o mundo chama de ação; há aqueles formatados para o que o mundo chama de inação. Todos são, não obstante, homens, e muito mais parecidos em essência do que revelam as simples aparências. Assim como o ioga pode ser ação, inação, o que é ação e inação e o que não é ação nem inação ao mesmo tempo, o mesmo se aplica à intervenção militante no mundo. Cristo é reconhecido por qualquer cristão, do papa ao mais tímido e “ignorante” dos fiéis, tanto como aquele que disse: “Dai a César o que é de César, meu reino não está neste mundo”; como aquele que militou fervorosamente (veja o advérbio), com bastante ênfase e barulho, no seio do judaísmo: curar os doentes, ensinar a verdade, acusar os fariseus, destruir ídolos, arregimentar um exército de apóstolos. Portanto, tanto o reacionário político quanto o comunista clássico da guerra de guerrilha poderão dizer, com acerto, tanto que:

a) Cristo era, mesmo que de carne, Deus ou o Espírito Santo (mistério triplo, imagens que não correspondem às idéias), a manifestação ativo-passiva (tanto faz) de Deus, o Único, na Terra, com “destino selado”, ao mesmo tempo que dirigente autônomo das próprias ações, para o cumprimento final da Palavra e do Evento. Em última instância, a apologia mais completa de tudo que aconteceu, acontece e acontecerá. O pregador da doutrina de que “não importa o Estado, nos preparemos para o outro, o verdadeiro Reino”.

b) Cristo foi o comunista consumado. Revolucionário, transformador, ativista-modelo para a humanidade póstuma. Mártir, lutou por um futuro melhor para seus camaradas, derramando sangue para que seus filhos pudessem sorrir, viver a vida, sem carregar nenhuma cruz. Um libertador das condições materiais opressoras, desafiador de César e do templo dos hipócritas, instaurador de boas-novas, de uma nova verdade, de novos valores. O mundo se divide em dois, afinal – como negá-lo? Antes de Cristo e depois de Cristo; pelo menos pode-se generalizar dessa forma contanto que não levemos em conta a Ásia. (Curiosamente, de onde vêm os três reis magos? Do Oriente. Folclore popular que se integra com o que existe no Novo Testamento.)

Renunciar ao mundo não é nem uma ação nem uma renúncia, no sentido vulgar. Cristo não foi nem um corajoso herói nem um herege tumultuador e covarde. Ecce homo: Eis o homem. Cristo foi um homem. A única unidade entre esses pólos fictícios que traçamos é nossa própria condição e convivência no mesmo planeta.

A esse ponto, já ficou muito claro, após uma exposição tão numerosa em exemplos, que não importa a estrada, a esotérica (erudita) ou a exotérica (popular), a crença num panteão, num Deus único e supremo, o panteísmo ou o ceticismo extremos, o acolhimento do budismo ou do ateísmo clássico no seio da modernidade pós-Revolução Francesa (a negação do Deus cristão, que após Jesus Cristo, para os fiéis, nada quer dizer para o indivíduo senão “condenar-se ao inferno”)… Todos os caminhos levam ao mesmo caminho, ao mesmo ponto de chegada. É claro – no hinduísmo, a religião mais antiga e perfeita, completada, este caminho é explicado, e desde o Bhagavad Gita foi ensinado o método mais econômico para percorrê-lo.

Seja pela compreensão e estudo aplicado dos Vedas em alto nível de abstração, seja pela crença popular nos avatares de Brahman, o hinduísmo permite o ecumenismo: quem desejar segui-lo poderá atingir o mesmo efeito (em última instância, a fusão com Brahman, a renúncia ao mundo ou a completa inserção no mundo, no real, conforme o próprio indivíduo interprete e descreva o próprio credo). A velha polêmica (tão recente, se comparada com todo o sistema hindu!) entre Calvino e Lutero sobre a salvação via fé ou via obras é uma bobagem, uma dialética de boteco entre os dois mais importantes cristãos da Europa do período reformista.

Para voltarmos ao hinduísmo: As portas da liberação são abertas, sem olhar a quem. O ser humano é um inquilino no mundo. Ou antes: o corpo é o inquilino da alma, que é Brahman. As aparências estão de passagem no seio do Absoluto, que as contém e retém e é o dono do espaço que elas ocupam. Toda morada é temporária, por isso a expressão inquilino: nosso corpo não é o dono do imóvel. O homem é, apesar de tudo, nômade, no sentido espiritual, mesmo o mais sedentário: ele chegou e irá partir. Enquanto mero indivíduo, é um ser provisório.

Pensando na expressão inglesa usada no Upanishad traduzido naquela língua, o house-holder, o chefe de família ou dono do seu lar, no sentido empregado na frase, é o meu inquilino, é o corpo e não a alma. Como posso estar tão certo, pois, de traduzir desta maneira? No próprio inglês haveria um termo muito mais inequívoco para descrever um house-holder que não é apenas um sujeito de ocasião (um inquilino, que mora no mundo apenas de aluguel, no sentido cotidiano). Este termo é o landlord, “aquele que aluga para os outros”. O único landlord num sentido metafísico (e quem é Senhor da terra é Senhor do tempo e de tudo que ambos contêm) é Brahma. Mesmo Vishnu e os outros deuses-avatares da hierarquia hindu, e abaixo deles os sábios inspirados que escreveram, sistematizaram e interpretaram os Vedas numa linha sucessória, são apenas manifestações de aluguel, procuradores (no sentido jurídico daquele que representa) do Um. A explicação, pelo menos para mim, é muito mais intelectiva, simples, que o mistério da Santíssima Trindade, e nem por isso o hinduísmo deixa de ser uma religião, isto é, vira apenas um sistema de regras e saberes secular (por não conter mistérios que não podem ser revelados). Toda religião tem seus mistérios, é um sine qua non (condição de existência de uma religião). Os do Cristianismo, entretanto, podem e devem no mais longo prazo levar à vertigem, à estupefação e a uma incompreensão completa e duradoura.

O hinduísmo, pelo contrário, é explícito e honesto: enquanto alguém que não crê em Cristo é sempre alguém que não crê no Deus-Pai (e vice-versa) conforme o cânone cristão, um hindu poderá dizer: eu só acredito neste mundo, no meu lar e em minha família; isso não “interessa” a Brahman (trilha da ação desinteressada). Caso siga sua crença aparentemente simplória da maneira correta, este hindu (consciente ou inconsciente de sê-lo) entenderá eventualmente que tudo (sua casa, sua família, seu mundo) é real, e que, no entanto e apesar disso, tudo isso é Brahman, oriundo de Brahman. Não crer no ‘divino’ ou crer demasiado no ‘divino’ são uma e a mesma coisa para o hinduísmo: seja um indivíduo como Platão, seja um venerador público de Vishnu, seja um venerador secreto de Indra, seja um ‘venerador’ ou venerador de Brahma… (Quem põe as aspas? Responde-se à pergunta mais adiante.) Se ele sabe quem é Brahma, as portas estão abertas para ele. Brahma é apenas uma palavra.

A evolução transcendental ao inana-yoga: estar-com-Brahman

Quem acredita em Brahma como um colega-acima-dos-outros, que vive em relação com eles, sendo um outro para eles, diferente, como por exemplo Zeus para os outros deuses gregos ou o general para seu exército, é um herege, herege no sentido absoluto do bramanismo (hinduísmo), pois não é isto que Brahma é (malversação das escrituras). E no entanto, Platão, que viveu sob a religião ateniense, e não hindu, onde Zeus presidia, onde Zeus como primeiro-acima-dos-outros-deuses era a única norma sancionada, e pré-requisito da conservação da cidadania na polis (cidade-Estado de Atenas), sem nunca negar explicitamente a mitologia grega, chegou à Verdade, “apenas” trocando as palavras.

Aquele que jejua hipocritamente, ritualiza apenas teatralmente e diviniza ou amaldiçoa erradamente (não chega a Brahman embora pareça ser do credo de Brahman; amaldiçoa em verdade o mundo, que é Brahman, enquanto alega que o faz por Brahman, não entendendo o vínculo entre aparência e Verdade), esse alguém não compreendeu Brahman, então não importa que seja um devoto no sentido clássico ou popular (um asceta que se conduz de modo perfeito no exterior). Pois este que desrespeita tanto a casa em que mora de aluguel quanto as portas da libertação da frase traduzida acima, a única verdade é que se encontra fora da doutrina hindu, condenado à eterna imanência. E este que respeita sua moradia passageira e conduz-se às portas de Brahman, é Um com Brahman. E é impossível desrespeitar a casa (alegoria para o mundo material) respeitando o que é mais importante que o material ao mesmo tempo (pois a “casa” é a via de acesso ao que é invisível, a senda espiritual), como é uma situação impossível desprezar as portas da liberação, a Idéia, ao passo que respeita concomitantemente as aparências. (Respeitar as aparências não é ser materialista – é tratar aparências como aparências! Respeitar é entender.) Não! Não existe distinção final ou factual entre corpo e alma, entre casa e portas supremas, do ângulo hindu: ou se está com Brahman, ou não se está com Brahman, de corpo e de alma.

Estar-com-Brahman é um conceito, portanto não pode ser determinado por um observador externo, o mais zeloso: não é uma opinião, não é aparência. O conceito é Idéia. Que segundo os outros homens alguém esteja ou não com Brahman, e pratique ou não o bramanismo, isto é indiferente no tocante à vida deste homem determinado (e à resposta para a pergunta: ele está com Brahman?). Pois as aparências enganam, e enganam todos os observadores do sensível sem exceção. Enganam até quando enganam ou “não enganam”: o asceta hipócrita, o asceta legítimo, o homem conhecido por seus pares como mau, o homem conhecido por seus pares como bom, todos estes são aparência, mas quem haverá de dizer se correspondem ou não em essência? Quem determina com infalibilidade a hipocrisia? Quem está acima do conceito de legitimidade, de bem e de mal? Quem no mundo das aparências não é apenas joguete dessas noções humanas, demasiado humanas? Quem será o juiz temporal da transcendentalidade de um ser?

O cristianismo cavou a própria cova quando erigiu a Igreja, matéria-carne que proclama o monopólio do espírito. É a infância do ser humano em forma institucional: comete os erros mais fundamentais a respeito das aparências e do caminho ao mundo-verdade. E quando a religião definhava e foi reformada, os juízes saíram das igrejas e se instalaram por todo o mundo debaixo do céu, como câmeras de vigilância de um panóptico da Torre de Babel, tão onipotentes quanto inúteis, pois os reformadores, tanto quanto os iniciadores, não reconheceram o mesmo princípio universal exposto pelos Vedas: não há juízo temporal da transcendentalidade alheia. Não se julga do sagrado (verdadeiro) com opinião (aparência). Ninguém nega boas intenções onde há. Ninguém nega má-fé onde há. Mas no caso do Ocidente as boas intenções dos tradutores, disseminadores e pastores, “democratas do espírito”, geraram o mesmo mal-entendido que a má-fé pura: povoou-se o mundo de sacerdotes, em vez de eliminá-los, tal qual o bramanismo, que já nasceu onisciente e infalível por um simples motivo: é uma religião sem sacerdotes, que proíbe o sacerdócio sobre os outros. É por isso que a origem dos Vedas é tão remota que só pode ser falada em termos de fábulas, mitos e lendas, pois o que já não fosse transcendental a partir de sua estada-no-mundo não poderia gerar transcendência. Indivíduos não autorizam (no sentido tanto de autorização quanto de serem os autores) religiões.

A impossibilidade da divinização do indivíduo e de provar o sagrado: Por que o Ocidente precisa do Oriente

O mundano só existe “em-transcendência”, não é possível tratar uma Revelação como aparência, experiência derivada dos cinco sentidos – mesmo os eventos geradores ou supostamente geradores de transcendência que se localizem após a pré-história (i.e., numa cronologia humana consciente) são fabulosos: Cristo existiu? Onde ele foi crucificado? Qual era sua aparência (ironia tríplice)? Quem hoje tem parentesco mais próximo com ele? Ele ressuscitou? Por que ele ressuscitou em segredo diante de seus mais próximos e de Maria Madalena, e não diante de toda a cidade, de toda a colônia, de toda a civilização romana (a mesma pergunta da crônica esportiva: por que ele não calou os críticos?)? Por que milagres não são fatos científicos (ambos são conceitos mutuamente contraditórios)? Por que cada apóstolo conta um evento de forma diferente, tendo Cristo no mesmo instante pronunciado algo distinto conforme a testemunha?

Porque não seria fato gerador de uma religião de massa nada que não suscitasse tantas perguntas sem resposta! Somente havendo tantas dúvidas sobre a identidade ou mesmo a existência de Cristo é que foi possível tornar fascículos sabidamente escritos pelos homens chamados X., Y., Z. e K., depois reunidos necessariamente em uma outra geração por outro homem que jamais conheceu Cristo a não ser por relatos, Paulo, ele mesmo santificado (num tempo em que santificavam pessoas apenas após a morte; é constrangedor ter de incluir essas ressalvas entre parênteses!), somente por toda essa via errática é que o Cristianismo pôde nascer como uma fé (fora da História, embora ‘na’ cronologia histórica). Tudo isso apenas gerará pano para manga enquanto coserem-se hábitos, surgirem panos com manchas misteriosas para movimentar discussões vãs e enquanto átomos não puderem ser fotografados.

Um exemplo de por que não há novas religiões a partir da modernidade, nem pode haver: Napoleão Bonaparte gerou partidários, admiradores e fanáticos, mas não uma religião. Quem sabe em outro milênio uma figura tornada finalmente mitológica chamada Napoleão, de quem pouco se sabe de concreto, venha a inspirar um novo credo transcendental, o Napoleonismo! Não, porém, enquanto houver uma foto de Napoleão ou o sentido de fotografia não recair novamente no mitológico (esquecimento da técnica fotográfica, tratamento da evidência da imagem como produção sobrenatural). Insisto sobre o sentido de ‘fotografia’ como ícone moderno da palavra chamada ‘prova’ e do método científico, consistente em ‘provar uma série de fenômenos’, visto que pretendo voltar ao assunto no próximo subtítulo.

Mas isso – a divinização no sentido autêntico de Napoleão – seria impossível para a França que tanto sabe sobre ele, para o Ocidente inteiro agora, historiograficamente informado sobre o indivíduo Napoleão Bonaparte, objeto de inúmeros tratados políticos e biografias científicas. O pior tirano imaginável sobre a Terra não poderia fundar uma religião à força e ser bem-sucedido; mas uma miríade infinita de tiranos de esquina poderia se perpetuar no poder firmemente falando em nome do deus estabelecido – o que evidencia a diferença infinita entre a esfera do transcendente (Brahman) e o poder terrenal (mundo de César). De fato, o Ocidente se tornou tão desconfiado que a própria noção de Deus em sua cultura vive no fio da navalha, e seguirá se complicando cada vez mais, enquanto o Ocidente for Ocidente, e não uma cultura nova e reoxigenada, alimentada pelo intercâmbio cultural com o Oriente, o único lugar do universo que hoje pode ressuscitar o sagrado da outra metade do globo mortificada e anestesiada, mundanizada.

Aplicação do anteriormente estabelecido às contradições da ciência pós-moderna (reino da não-filosofia)

…enquanto átomos não puderem ser fotogrados”: retomaremos este trecho como um exemplo prosaico da transcendentalidade de todo o mundano fora do próprio tema religioso: é fisicamente impossível, e isto foi declarado pela própria Física, que o principal objeto de estudo da ciência chamada Física seja fotografado, ou, de forma ainda mais astuciosa podemos dizer, no lugar de fotografado: comprovado (requisito mínimo da cientificização de um conhecimento, qualquer que seja ele). Este fracasso é a razão precípua de dizermos que “as ciências exatas estão em crise”, e de essa crise ser administrada – e sem dúvida ao longo de muitos séculos ainda por vir continuará sendo administrada, o que significa “adiada”, ou “não-resolvida” – desde há não muito tempo pelo inteligente expediente da troca da denominação “exatas” por “naturais”, o que certamente dissipa ao menos parcialmente o constrangimento, o escândalo e a sangria mais explícitos que ocorreriam, tendo em vista a denominação antiga (o que é exato pode ser totalmente definido, sem lacunas), caso contrastassem diariamente o termo exato ou hard com a patente inexatidão atual do conhecimento técnico Esta inexatidão não decorre de erro ou incompetência. Este “fracasso” não é, do ângulo científico, um fracasso: ele é conseqüência natural e direta do grande sucesso da aplicação do método científico por um par de séculos. A inexatidão das ciências naturais é conseqüência inevitável de seu enorme e vertiginoso progresso.

Nos tempos áureos da ciência moderna a “tradutibilidade” dos conhecimentos tecnológicos era ampla. Todo o conteúdo das ciências clássicas está bem-explicado em livros-textos escolares atuais. Porém, os novos conhecimentos derivados do método científico em crise, no que chamo de decadência da ciência moderna ou sua fase pós-moderna, não são comunicáveis ao grande público com a mesma facilidade, pois os dados não são mais o que costumavam ser, e é preciso refundar o conceito de lógica (hoje tributário de Aristóteles, i.e., lógica formal, mas não a única lógica passível de existir) para acomodar resultados de observações e experimentos, vd. física quântica. E é exatamente por isso que as pessoas leigas ficam cada vez mais insatisfeitas com os resultados divulgados como conquistas das ciências, e que cientistas não dão entrevistas em grandes jornais, porque há uma longa cadeia de pessoas que precisa processar e filtrar a informação emanada pelas maiores autoridades em determinado assunto, reformatando a informação para que ela seja recebida pelo grande público em palavras – finalmente para ele – compreensíveis. Talvez os últimos eventos a capitalizarem grande parte da atenção mundial (sem necessidade de conhecimento técnico sobre fabricação de foguetes ou as propriedades dos átomos instáveis usados em bombas nucleares, seja por parte dos jornalistas e comunicadores ou do cidadão comum) tenham sido a criação da bomba atômica e a aterrissagem do homem na Lua.

A quem se pergunta, “compreensíveis” acima significa, no sentido mais sincero possível, que, na verdade, nada de significativo está sendo dito ou veiculado, e talvez devêssemos agradecer por isso, se pensarmos exclusivamente na preservação de nossa saúde mental em uma sociedade tão complexa, e se desprezarmos o outro lado da questão e que é a pior parte de tudo isso, ou seja, que evidências socialmente verificáveis não cessam de indicar que um público necessariamente cada dia mais ignorante passará a exibir comportamentos negacionistas de manada mais e mais aleatórios, ridículos e perigosos – sem que se conheça por ora o limite macabro desta “torção cognitivo-coletiva” –, recusando-se um grande número de indivíduos, por exemplo, para nos restringirmos à época atual e não sucumbirmos à tristeza tentando prever o que virá a seguir, a tomar vacinas que facilmente previnem doenças graves e que são muito transmissíveis, a ponto de que os próprios cientistas de “médio escalão” poderão estar mais e mais sujeitos a esta mesma lei (da involução cognitiva pari passu à evolução do compartimento das ciências em múltiplos e pequeníssimos nichos mais e mais “intraduzíveis” ao cidadão comum), havendo alguns que, não por charlatanismo nem qualquer intenção de ganho pessoal, repercutem os mesmos discursos de manada, genuinamente convencidos por ele, até que num dia não muito distante os físicos, biomédicos e bacteriologistas mais especializados em seus sub-sub-sub-ramos (previsão:) venham a se encontrar mais isolados de qualquer contato humano que K., o agrimensor do livro O Castelo, ponto em que já não haverá possibilidade de retorno (fratura do campo científico como jamais se viu, mesmo durante a sofrida transição da opulenta Idade Antiga para a fervilhante Idade Moderna). Corre-se o risco do turismo espacial se tornar realidade simultaneamente a quebras de recordes para a resposta ‘sim’ em enquetes como “você acredita que vive num mundo que tem o formato de um tabuleiro?” (obviamente que até lá a palavra usada não será tabuleiro, pois esse termo tão complicado terá caído em desuso), e o risco conseqüente de que esse contraste absurdo nada cause em termos de convívio social, pois cidadãos dos espectros mais afastados coexistirão harmoniosamente dentro de suas culturas e subculturas (cada qual enterrado e cem por cento esterilizado em sua própria bolha inexpugnável, chamando tudo o mais de falso e conspiratório, já incapaz, porém, de se incomodar de verdade com isso, apenas reproduzindo comportamentos automáticos como dizer no elevador que “parece que vai chover” ao negar a eficácia de vacinas). Essa situação não mudará caso estejamos falando de colegas de trabalho, roommates ou parentes próximos ou ainda marido e mulher situados em campos extremos e opostos (imagine o casal: um é funcionário de agência espacial e outra uma atleta que vem se preparando para a expedição de exploração das cachoeiras infinitas das bordas do tabuleiro terrestre).

Recuando um pouco, tudo isso é a razão precípua, ainda, da filosofia ser a mãe de todas as ciências mas de forma nenhuma nem sequer uma meia-ciência (ou seja, um título honorífico), porque ela fala do transcendental, que o mundo moderno aprendeu a considerar não só inecessário como até mesmo inexistente ou indesejável caso existisse, em vez de vital. Dada a própria natureza indeterminável do objeto teórico ‘átomo’, vulgar “menor partícula da matéria”, que na verdade nem é matéria, podemos dizer que toda a decadência do saber transcendental no Ocidente é, ironicamente, uma questão de lógica da mais rapace ou degradada.

Por outro lado, que se pense na implicação do átomo como partícula dual é já um sintoma de que mundo das aparências (a matéria, o real, o perceptível) e a verdade invisível que rege sobre ele (ser duas coisas ao mesmo tempo, cientificamente validado) estão se aproximando, e não se afastando inequivocamente. Somos matéria; somos átomos, sem dúvida. O átomo é um (excelente) modelo, não pode ser provado, significando que nós mesmos, que sabemos que existimos enquanto aparência, átomos que somos, pressentimos que somos, embora também átomo e matéria, algo mais, que não conseguimos definir com palavras, i.e., opera-se uma crescente necessidade de revitalização do transcendental, muito lenta e imperceptível para os desatentos, mas cujo mecanismo é similar ao desenvolvimento da Filosofia Continental e à doutrina contida nos Vedas-Upanishads.

Trocando em miúdos, em uma sociedade em que todos andam com uma câmera no bolso, capaz de registrar “coisas” instantaneamente, a fim de convencer os ausentes de coisas improváveis (via sentidos), desconfiamos da própria realidade dos entes, da própria acepção das palavras prova, coisa e fotografia. Duvidamos do que está aí, presente, e por uma questão até de sobrevivência cada indivíduo-coisa se vê, embora não veja (a realidade imaterial), obrigado a perguntar por sua própria essência e considerar o que não está aí para nenhum dos cinco sentidos, procurando um sentido metafísico para sua existência e presença, um caminho que seja, diferente do caminho das coisas (método científico, experimental ou positivista, o caminho não-filosófico ou irreligioso e o modo completamente mundano da existência).

Conclusão da tese: hinduísmo e filosofia continental como duas versões da Verdade revelada

E no entanto, a despeito da superioridade metafísica do hinduísmo, percebida tautologicamente apenas pelos próprios adeptos do hinduísmo, o mundo segue seu curso histórico sem nenhuma modificação fundamental até agora quanto à dimensão de alcance e prevalência das grandes religiões. A despeito da fraude autodemonstrada da religião cristã, a humanidade está e é livre para ter sacerdotes. Se no Oriente, por hipótese, o povo viesse a desejar de forma inédita o sacerdócio em nossos moldes, haveria o sacerdócio! Haveria a hipocrisia, e, aliás, há a hipocrisia entre “hindus” como há dentro de qualquer outro credo (e como os outros credos apresentam seus Platões, brâmanes inconscientes, i.,e., os praticantes honestos).

O que se pode afirmar, percorrendo a História, entretanto, é que o hinduísmo prevalece internamente imutável – sem necessidade de um movimento ou clamor popular por uma reforma nas práticas e nos escritos das Vedas –, uma vez que como ele é e como ele está, ele conduz à Idéia, à Verdade, a Brahman. Já os pressupostos das religiões monoteístas que conhecemos não resistem a uma análise bramânica ou filosófica pós-moderna, i.e., o próprio Ocidente veio a negar sua religião (suas religiões) em tempos relativamente recentes. No Oriente, semelhante acontecimento ‘mundano’ não teve lugar. Nele, filosofia e religião são Um só. Entre nós verificamos dolorosamente o contrário, e a dor é mútua e equivalente: a dos Escolásticos (quando a religião se dizia a própria filosofia, hoje extintos) e a dos sábios laicos, em voga, momento definidor em que a filosofia emancipou-se e após caminhar certo tempo com as próprias pernas descobriu sobre a calamidade da morte de Deus – Nietzsche em Gaia-Ciência – e sobre a inevitabilidade do transcendental da condição humanaO Mundo como Vontade & Representação, Assim Falou Zaratustra, o Ser e Tempo de Heidegger, etc. –, logo, tragicamente, no momento em que via essa mesma transcendentalidade escorrer pelo ralo – cenário este que, a filosofia pós-moderna o sabe, inviabiliza a própria continuidade da filosofia e, destarte, da vida.

Esse texto foi um re-trabalho das anotações feitas durante a leitura do livro indicado no primeiro parágrafo, Rangaswami, The Roots of Vedantha, e a síntese e principais aspas desta obra serão publicados posteriormente no Seclusão.

“Odeia-se mais aquele que nos seduz de volta a percepções sobre as quais nos tornamos vitoriosos com extrema dificuldade” Nietzsche. A seguir, um pouco sobre mim.

Eu já fui um liberal de tipo PSDBista. Odeio liberais. Odeio os ‘social-democratas’ (falsa esquerda, quinta-coluna). Eu já fui um ateu militante (na pré-adolescência, é verdade). Odeio esses ateus mais cristãos que os cristãos (leia-se: mais anticristãos que os anticristãos!). Odeio quem ama a sociologia. Odeio os hedonistas. Odeio metaleiros. Odeio são-paulinos. Odeio otakus. Odeio “gamers”. Odeio os que levam o trabalho a sério demais e adoecem por isso. Adoro aqueles que sabem ser anti-monoteístas, stalinistas, maoístas, fidelistas, chavistas, putinistas, aqueles que sabem usar a sociologia como anti-sociologia, para o verdadeiro progresso da sociedade (no sentido oposto a Comte-Durkheim), aqueles que sabem ouvir heavy metal, assistir e falar de futebol, apreciar jogos de videogame e desenhos japoneses sem parecerem completos imbecis infantilizados e extremistas desnorteados. Com efeito, odeio hoje todo e qualquer colega dos tempos de escola (avatares de todas estas categorias reunidas). Eles não acompanham o ritmo da dança. A classe média insossa do DF, minha grande nêmese. Já fui o mais insosso dos sem-sal, hoje sou um tempero exótico da Índia.

O PARADOXO DA PEDRA NO RIO DE HERÁCLITO (mais um aforismo de Nietzsche)

“Não precisais temer o fluxo das coisas: esse rio flui de volta para dentro de si: ele não foge de si apenas duas vezes.

Todo ‘era’ há de ser novamente um ‘é’. Todo vindouro morde o pretérito no rabo.”

ANÁLISE

Ambigüidade na tradução: em duas ocasiões o rio cessa de fugir de si mesmo ou ele foge bem mais vezes (e por que dizer duas vezes neste caso?)? A fluência do rio é a angústia humana (encarado como aspecto negativo do Ser: ‘temer’). Fluir de volta para dentro de si é harmonizar-se, ainda que temporariamente no tempo (linguajar voluntariamente heideggeriano). É atingir a essência (o Ser) no próprio devir. Ora, que o rio sempre está a fugir é um lugar-comum. Ele foge infinitamente de si mesmo. O que Nietzsche é celebrado por haver ensinado pela primeira vez na modernidade (canção já antiga)? Que o rio retorna. O rio deságua todo em seu próprio olho d’água ou manancial depois de as águas terem submergido por um tempo no subterrâneo, até voltar ao transcurso habitual do leito (metáfora para vida, pois é na cama, lugar de repouso e paz, também do sono, vizinho da morte, que a vida é gerada). E retorna infinitas vezes; é só modo de dizer, é verdade. Mas para o indivíduo, para o filósofo, para o ser vivo: quantas vezes? Minha opção é pela primeira semântica da tradução. Se o rio pára de fluir e se reencontra Uno consigo duas vezes, só pode ser em dois momentos: no nascimento e na morte. Porém para nós não faz diferença: é uma vez, na interseção dos dois. Há angústia pelo fluir do rio, não pela morte (um rio não morre, o rio da eternidade nunca seca, a existência nunca deixa de existir, este é seu modo, o da insistência do ser). Tanto quanto não pode haver angústia por haver nascido (a não ser para psicanalistas, que deviam todos estar em manicômios), se esse é o total do ser, e ele nunca foi (um não-ser), por exemplo, pedra. E, supondo que tivesse sido, (não pode) ainda carregar a sabedoria de ser pedra (novo absurdo, meramente expressável porém inconcebível) dentro de si. Nem a pedra no leito do rio nem o homem, o rio, com efeito, têm por que angustiar-se, jamais. Ainda assim, o homem se angustia. É só uma constatação. A pedra mais desesperada do universo não sentiria o menor átimo de ansiedade. O homem no mais remoto dos Shangri-Las e nirvanas ainda sofreria, se angustiaria, bastante. É nosso modo de existir. Por que se angustiar “ao quadrado” com o fato de que a angústia é inevitável? Ainda poder-se-ia dizer que este é o modo de existir do homem, ou ao menos do filósofo! Mesmo que existisse a cura, não obstante, o homem a preteriria, pois preferiria continuar sendo homem.

DO MISTERIOSO AFORISMO TRAGICÔMICO PÓSTUMO DE NIETZSCHE: O MACACO DE SI MESMO

“Em torno do herói tudo se torna tragédia; em torno do semi-deus – tudo sátira”

Por muito tempo meditei sobre esse aforismo, que não tinha entendido quando li a primeira vez, em 2009. Podemos evocar a famosa frase de Marx para nos ajudar a explicar seu significado. Mas eu ainda diria mais:

a) nosso mundo não tem mais heróis, não tem mais o caráter heróico; tem, sim, a necessidade, antropológica mesmo, do homem superar o homem; antes que substituir o deus morto seja uma realidade, o grau máximo que pode ser descrito é uma figura, a do semi-deus. Ele é um Zaratustra que aprendeu a rir de si mesmo. Tragédias são coisa do passado. Não há lugar para Édipos na atualidade;

b) pode ser apenas um comentário psicológico, despido de qualquer historicidade, e por isso nem Marx pode ajudar: depende da seriedade do próprio personagem (leitor), e com que gravidade ele enxerga a própria biografia. Mas por que “semi-deus”? Num mundo em que deus está morto, ter sido herói, ser um sábio, já é estar semi-morto. Não vale muita coisa. Quem deixou de ser herói e com isso não se tornou um vilão (recorro a mais uma frase famosa, provavelmente apenas uma re-citação de autor antigo, mas que, ao contrário da sentença marxiana, é apenas uma falácia), não degenerou completamente… ainda tem o aspecto exterior de um bufão. E onde já se viu palhaço triste? Menos Pierrots, mais respeito ao nosso passado que nos trouxe aqui, mas nunca em excesso… Nunca se tornar prisioneiro dos nossos (bons) feitos… Nem temos saúde para bancar de novo os Dons Quixotes, ainda que isso fosse possível! Resta reconhecer que hoje somos diferentes, menos rijos, mas que não podemos e nem queremos apagar nosso passado, mais ou menos distante… Ele ainda mora em nós.

Exemplo pessoal: antes, que eu tivesse um pai tirano era questão de vida ou morte. Hoje, sobrevivente, independente, ainda psicologicamente afetado pela experiência, e com o tirano ainda vivo, tudo é muito cômico e risível. Como pode e pôde uma pedra tão enxuta num sapato tão largo (ou o sapato era firme e apertado, o que impedia o seixo de rolar e atrapalhar? Sim, bufões usam sapatões maiores que os próprios pés!) me causar tantos problemas num nível tão fundamental? Como pôde a mais inferior das criaturas se interpor entre mim e o sol? Mas nem era imperador – e daí que fosse? De todo jeito não lhe resta solução senão sair do caminho, nem que fosse para vir atrás de briga… E, com o tempo, toda(o) coroa… vira areia. Quanto mais tempo bloqueou minha luz solar montado em seus cavalos chamados Prepotência, mais queimou as costas (uma singela inversão de Dédalo, o pai sábio, e Ícaro, o filho imprudente). E pra quê, se tive meu banho caloroso do mesmo jeito? É verdade que ele, este pai, é o “macaco de Zaratustra”: gostaria de ser eu. Hoje é ele que me imita, sem saber o que ou como imita. Mas ele quer fazer o dono, o original, ficar bravo, perder a sombra (posto que à sombra não há sua sombra). E se a indignação for só uma máscara da gargalhada, e se o macaco é que está enfezado por dentro? Sim, sinto pânico, mas essa é a parte doentia da árvore genealógica, o orgânico que atingiu seu limite. Até ele, porém, é uma atuação, em último grau. É sempre material para ressurgir.

Toda podridão pode ser cinzas para uma fênix. E macaco não é fênix. O ruim de dar azo pra macaco é que é um bicho muito folgado, por isso, mesmo descontraídos, precisamos manter meia-distância. Quem é mais triste? O macaco ignorado ou o macaco perseguido (letalmente perseguido)? O esgar dos dois por debaixo da máscara deve ser o mesmo. Talvez o macaco seja, então, nosso espelho? Com ele é o inverso, ele viveu a paródia e agora tudo termina em tragédia? Macaco com capa. Macaco capado. Bucéfalo empacado diante de Diógenes.

O sentido final da hipótese b), portanto, é que devemos vencer nosso próprio macaco, o macaco de Zaratustra, etapa e desafio obrigatórios a fim de avançarmos enquanto projetos conscientes de sermos além-homens. E esse passo exige encarar o humor com seriedade e leveza, não amargura; e desafiar a tragédia que ameaça nos aniquilar como se ríssemos de uma boa piada.

O KATHA UPANISHAD E SUA ANTECIPAÇÃO DAS ÚLTIMAS CONSEQÜÊNCIAS DA FILOSOFIA OCIDENTAL

Este é um estudo que intenta a interpretação do livro Katha, um Upanishad (livro sagrado hindu), por meio da Filosofia Ocidental. As conclusões a que chego são que o Katha Upanishad corrobora os achados dos principais filósofos de nossa própria cultura, ou, antes, dado que o Katha é mais antigo que as contribuições de Platão e de todos os seus sucessores, são os achados da Metafísica Continental ou Primeira Filosofia que corroboram estes trechos da religião-filosofia oriental do Hinduísmo como autênticos e acertados (documentos que chegam ao que convencionamos como a Verdade em sentido filosófico). Não defendo, com essa tese, que Platão e os demais em seu conjunto foram influenciados pelo Katha; ao contrário: em geral, nossos autores chegaram às mesmas conclusões, porém de forma autônoma e independente, o que fortaleceria minha interpretação deste livro sagrado. Em verdade, apenas os últimos filósofos importantes a se considerar puderam ler os Upanishads, como Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche e Heidegger. Antes do século XIX nenhum filósofo de monta havia tido acesso a boas traduções destes livros, bem como o conhecimento do Ocidente sobre o hinduísmo era meramente fragmentário. Foram utilizadas citações do Katha na tradução inglesa de Patrick Olivelle, orientalista contemporâneo (os textos hindus estão sempre em itálico).

“So he asked his father: ‘Father, to whom will you give me?’ He repeated it for a second time, and again for a third time. His father yelled at him: ‘I’ll give you to Death!’”


“A mortal man ripens like grain,

And like grain he is born again.”


“You, O Death are studying,

the fire altar that leads to heaven;

Explain that to me, a man who has faith;

People who are in heaven enjoy the immortal state—

It is this I choose with my second wish.”


 

“(Death)

I shall explain to you—

and heed this teaching of mine, O Naciketas,

you who understands the fire altar that leads

to heaven, to the attainment of an endless world,

and is its very foundation.

Know that it lies hidden, in the Cave of the heart.”


(Death)

“Choose your third wish, O Naciketas.

(Naciketas)

There is this doubt about a man who is dead.

‘He exists,’ say some, others, ‘He exists not.’

I want to know this, so please teach me.

This is the third of my wishes.

*

(Death)

As to this even the gods of old had doubts,

for it’s hard to understand, it’s a subtle doctrine.

Make, Naciketas, another wish.

Do not press me! Release me from this.

*

(Naciketas)

As to this, we’re told, even the gods had doubts,

and you say, O Death, it’s hard to understand.

But another like you I can’t find to explain it;

and there is no other wish that is equal to it.

*

(Death)

Choose sons and grandsons who’d live a hundred years!

Plenty of livestock and elephants, horses and gold!

Choose as your domain a wide expanse of earth!

And you yourself live as many autumns as you wish!”


Resposta fraca da Morte nesta alegoria, evidentemente não comprada pelo filósofo e crente (aprendiz dos Vedas e Upanishads) Naciketas. Mas a Morte (pense em Mefistófeles aqui) não desiste:


“And if you would think this an equal wish—

You may choose wealth together with a long life;

Achieve prominence, Naciketas, in this wide world;

And I will make you enjoy your desires at will.

*

You may ask freely for all those desires,

hard to obtain in this mortal world;

Look at these lovely girls, with chariots and lutes,

girls of this sort are unobtainable by men—

I’ll give them to you; you’ll have them wait on you;

But about death don’t ask me, Naciketas.”


Outrossim, a sedução do diabo no deserto (Novo Testamento).


“(Naciketas)

Since the passing days of a mortal, O Death,

sap here the energy of all the senses;

And even a full life is but a trifle;

So keep your horses, your songs and dances!

*

With wealth you cannot make a man content;

Will we get to keep wealth, when we have seen you?

And we get to live only as long as you allow!

So, this alone is the wish that I’d like to choose.

*

What mortal man with insight,

who has met those that do not die or grow old,¹

himself growing old in this wretched and lowly place,

looking at its beauties, its pleasures and joys,

would delight in a long life?”

¹ Seria uma interessante parábola, se existissem tais deuses ou vampiros! Ou, conforme veremos adiante, Naciketas fala dos sábios, em sentido puramente alegórico.


 

“The point on which they have great doubts—

what happens at that great transit—

tell me that, O Death!

This is my wish, probing the mystery deep,

Naciketas wishes for nothing

other than that.”


“(Death)

The good is one thing, the gratifying [prazeres] is another;

their goals are different, both bind a man.

Good things await him who picks the good;

By choosing the gratifying, one misses one’s goal.

*

Both the good and the gratifying

present themselves to a man;

The wise assess them, note their difference;

And choose the good over the gratifying;

But the fool chooses the gratifying

rather than what is beneficial.

*

This disk of gold, where many a man founders,

You have not accepted as a thing of wealth.

*

Far apart and widely different are these two:

Ignorance [prazer] and what’s known as knowledge. [o bem]

I take Naciketas as one yearning for knowledge;

The many desires do not confound you.

*

Wallowing in ignorance, but calling themselves wise,

Thinking themselves learned the fools go around,

staggering about like a group of blind men,

led by a blind man who is himself blind. [um homem cego é mesmo cego!]

*

This transit lies hidden from a careless fool,

who is deluded by the delusion of wealth.

Thinking ‘This is the world; there is no other’,

he falls into my power again and again.”

Creio que ninguém ainda entendeu o verdadeiro sentido do texto. Em vermelho: o hedonista ou materialista pensa “não há outro mundo, só este, carpe diem, etc.”. Mas é só este quem morre. O outro mundo é neste mundo mesmo, invisível, habitado somente pelos sábios. Eles nunca morrem. Apud Sócrates-Platão-…


“Many do not get to hear of that transit;

and even when they hear,

many don’t comprehend it.

Rare is the man who teaches it,

Lucky is the man who grasps it;

Rare is the man who knows it,

Lucky is the man who is taught it.”

Mais más concepções: não se ouve a verdade muito amiúde; quando se a escuta, se a ignora como se ela nunca fôra proferida. Isto é Zaratustra livro I, cena da praça e do mercado. Não é raro o homem que ensina a sabedoria: tantos quantos são estes professores (os sábios, a.k.a. virtuosos), uma vez na vida eles acreditam poder ensinar – esse é seu erro; a virtude não pode ser ensinada. Portanto, só quem sábio se torna, sábio já era. Torna-te aquilo que tu és. Raro é o homem assim constituído. Sortudo é quem nasceu nessa condição, pois só assim “lhe foi ensinado” o conteúdo: por si mesmo.


“Though one may think a lot, it is difficult to grasp,

when it is taught by an inferior man.

Yet one cannot gain access to it,

unless someone teaches it.

For it is smaller than the size of the atom,

a thing beyond the realm of reason.”

Não existe o guru. Quantas vezes ter-se-á de dizê-lo? Quantos murros em ponta de faca? O final, porém, é adequado: a vontade ou Idéia é menor que qualquer pedaço de matéria, o que o século XX chama de partículas sub-atômicas fundamentais. Não é deste mundo, é do outro mundo vivenciado neste mundo pelos privilegiados de nascença (se há algo do mito brâmane que sobrevive é esse fatalismo: ou se nasce sábio e bom, ou se nasce ignorante e mau). E é vontade ou Idéia, esses nomes “estranhos”, embora familiares no léxico (mas quase nunca sabem seu significado!), porque não é razão, está além da razão. Quem disse que o sábio o é em virtude da razão?! Quem disse que a Idéia de Platão ou a virtude são alcançadas pela inteligência? Somente pelo instinto, pela inclinação natural em vê-las e senti-las, em sê-las (com isso que chamam de Brahma).


“One can’t grasp this notion by argumentation;¹

Yet it’s easy to grasp when taught by another

You’re truly steadfast dear boy,

you have grasped it!

Would that we have, Naciketas,

One like you to question us.”²

¹ A dialética esvaziada de um Aristóteles, o Racional.

² O outro é sempre si mesmo, sempre a ressalva em relação aos textos sagrados hindus, que ainda não tinham a consciência da origem da sabedoria, talvez a única vantagem oferecida pela filosofia ocidental sobre o maior trabalho, a maior sabedoria, embora inconsciente, trazida pelo Oriente, e que hibernou por tanto tempo, entre nós e até eles próprios, os professores do Veda! Us também não existe. Quem formula as perguntas e também as respostas naquele que não pode ser igualado (Platão)? Ele mesmo. A Morte neste Upanishad não é uma fraude, um espírito trickster, mas, pelo contrário, o alter ego de Naciketas: este é um diálogo, a maiêutica do sábio. Quem preside é ele mesmo, mediante suas reminiscências. Outra frase célebre: Dai a César o que é de César, significa: dai a este mundo o que quer este mundo: a humildade, a labuta, um mal-disfarçado senso de superioridade (porque os tolos, em sua maior parte, crêem na sua modéstia e na sua inferioridade, não se pode usar a sabedoria para angariar vantagens no jogo temporal). Assim quitais vossas dívidas com eles. Nosso eterno sofrimento, a eterna convivência com os eternos anões. O preço de nosso paraíso, no outro mundo que é aqui, sem testemunhas senão nossos poucos iguais. Jesus Cristo, o incompreendido. Ao mesmo tempo que não iniciou, o Juízo já terminou e está acontecendo. Acontece. Todo ele é a existência. A existência é uma criação escatológica.


“What you call a treasure, I know to be transient;”

tesouro transcendental


“Therefore I have built the fire altar of Naciketas,

and by things eternal I have gained the eternal.”

Jogando minha alma na aposta eu consegui meu objetivo: a eternidade. O outro mundo neste mundo. O presente do presente, o único tempo real. A única felicidade tangível. Sem necessidade de nenhuma providência; pois já estava lá, sempre esteve.


“[Já não importa quem fala, é o Um e o Mesmo]

The primeval one who is hard to perceive,

wrapped in mystery hidden in the cave,¹

residing within the impenetrable depth

Regarding him as god,² an insight

gained by inner contemplation,³

both sorrow and joy the wise abandon.”4

¹ E quem é que começa a vida preso à caverna, no mito (ou inclusive na historiografia “séria” – como se o mito não o fosse –: homem das cavernas)? O homem. Não é que o homem busque o sol que é a Iluminação ou instrumento necessário para iluminar aquilo que não se vê. Ou em outras palavras: aquilo que não se vê a descoberto é a si mesmo. O homem não se sabe homem, não sabe o que é, precisa do sol para entender que é o que tanto procurava. O mistério da vida é o mistério do homem diante do espelho. O eu, o maior enigma. O mundo dos homens, normalmente entendido como tão despido de significado quanto “o mundo de um deus desconhecido”, ou “de um deus que morreu”. O Mito da Caverna inverte a mitologia grega em geral: não estamos destinados a nos tornar sombras, mas somos sombras que eventualmente se incorporam e ganham volume, densidade, matéria, substância, cor, tangibilidade, vida.

² Na minha interpretação é o exato oposto: sem a companhia de ninguém, e deixado à própria sorte no fundo da caverna, em sua cela do Ser, o homem não pode atingir a hubris nem a auto-afirmação: divino é o estado mais difícil. o Um sem o Outro é prosaico.

³ Isso só pode ser exato depois da própria jornada, da odisséia, do retorno diferente ao mesmo lugar do princípio.

4 Como resultado inevitável da viagem exitosa. Quem tem o presente seria por definição feliz, como quer o hindu. Porém, em face do conhecimento da eternidade neste mundo (o outro mundo), sensações transitórias perdem o significado: o que é tristeza, o que é alegria sem contraste ou interrupção, sem-fim? Nada.


 

“When a mortal has heard it, understood it;

when he has drawn it out;

and grasped this subtle point of doctrine,

he rejoices, for he has found

something in which he could rejoice.

To him I consider my house

to be open, Naciketas.”

A liberação é saber que fora de todo o possível, fora do eterno presente, só fora, e só para quem está consciente do presente, no impossível (pois não existe esse fora), finalmente é concedido o direito de morrer. Não há transição. Só há transição na eternidade do presente e da ação. Mas o que é bênção para nós é maldição para quem tem medo da morte ou esperança eterna num outro mundo que não seja deste mundo. Eles já vivem neste outro mundo que desejam: eles são objetos, não são homens. O tempo corre para eles. Estão condenados a jamais morrer, porque para eles a vida é uma morte contínua.

Veja que o próprio compilador, ou tradutor, está confuso quanto à identidade de quem fala (como eu disse, não importa, é a mesma pessoa!):

“Seeking which people live student lives”

 

Buscando quais pessoas vivem vidas de estudante. O estudante dos Vedas é a figura perfeita dos Vedas. Não só dos Vedas: da existência mesma, das Idéias de Platão e da vontade de Nietzsche. O professor dos Vedas é só um artifício didático: ele é outro estudante, o daimon guia do bom caminho. Nunca cessamos de aprender, e de nos tornar mais sábios, mas não existe a Idéia do sábio: a idéia, a busca da sabedoria. A imagem perfeita. Tão perfeita que poderíamos nos perguntar se essa imagem não é a Idéia mesma. A imagem é a Idéia sobre a Idéia. A Idéia é a imagem da Idéia. A Idéia voltada para si mesma, a Idéia ao espelho. A sabedoria socrática. Esse é o infinito, pois não termina ou conclui, e é ao mesmo tempo um estado em perpétuo movimento. Um estado não-estado. Um movimento não-movimentado. A imagem das imagens.

 

A vontade, palavra do século XIX para o mesmo: deliberações sobre as entrelinhas de Platão, o contínuo debate da Idéia. Não menos perfeito que a Idéia, por não ser exatamente uma poesia da maiêutica (e quem disse que os aforismos não o são?), pois pressupõe a Idéia, já que não é debate estático. E é ao mesmo tempo estanque, porque não evadiu o bom caminho da Idéia. O invisível vivido pelo estudante (mestre).

 

OM é tudo, é vontade e é Idéia. Vibração contínua. Sempre há um ponto cego para o sábio, mas é ele que indica o bom caminho. Há sempre um mistério residual. Dádiva negativa do presente. Tê-lo em forma viva e depois querer tê-lo no mundo material para auferir vantagens é o mesmo que dele abdicar, cair na tentação sensualista da Morte na proposta ao estudante, do diabo a Jesus no deserto, da glória mundana. Uma confirmação empírica da Idéia desvaneceria a Idéia, descaracterizando seu ar incomunicável, indemonstrável, autorreferente e exclusivista, entrada para poucos e seletos. Ouvem-se as palavras Idéia, vontade e OM, mas, como disse a Morte acima, os habitantes deste mundo que esperam o outro mundo, sem saber que ele é este mesmo, não escutam. Escutam as palavras, mas não as compreendem. E escutar é compreender desde que o homem é homem. Escutar a mais bela melodia e não entender sua beleza? Quem não riria dessa “sabedoria” e deste pragmatismo dos tolos? Num mundo em que existem bem e mal, quem se dá bem, se dá mal. Assim poderíamos traduzir as palavras mais próximas a nosso tempo “muito além do bem e do mal”: o bem vigente não é o bem de Platão. Daí a razão da reviravolta que não é reviravolta (filosofia extrema de combate ao niilismo): contorceram tanto as palavras que já é necessário desfazer mal-entendidos a fim de se afirmar a mesma coisa de dois milênios atrás. O que já foi OM, e o que hoje não é entendido pelos exegetas hindus do OM, voltará a ser o mesmo OM originário, etc. Credo quia absurdum est?


“When, indeed, one knows this syllable,

He obtains his every wish.”

Sorte que nós não somos muito exigentes, e não pedimos desejos absurdos (com o perdão do trocadilho com o final do texto acima). Para nós tudo é possível, mas nem tudo é permitido (por nós mesmos), se pudermos incluir Dostoievsky na conversa, porque somos virtuosos e nossos desejos nada têm a ver com as fábulas dos adoentados morais, os sequiosos do outro mundo, materialistas incuráveis, a imaginar gênios que lhes concedam todo tipo de coisa inesgotável neste mundo; quando este mundo mesmo é esgotável (pelo menos para eles, pela forma como eles esperam saciar sua sede neste mundo, ainda contando com um outro!), que desejo logo não daria sede-de-mais aos pedintes? Esses mendicantes querem ganhar na mega-sena; os poucos que logram continuam sendo mendicantes, não há escapatória.


“And when one knows this support,

he rejoices in Brahman’s world.”

Brahman’s world = Brahman’s word

Outro mundo = Idéia, vontade, OM, presente eterno, vida do sábio


“The wise one—

he is not born, he does not die;

he has not come from anywhere;

He is the unborn and eternal, primeval and everlasting.

And he is not killed, when the body is killed.

(The dialogue between Naciketas and Death appears to end here.)”

Com minha ajuda, vocês certamente perceberam, o único mistério que subjaz é salutar para a compreensão do texto (o ponto cego do sábio). Então, modestia à parte, não haveria nem mais que dizer – hora perfeita para encerrar o trabalho de parto (maiêutica do sábio). O Katha Upanishad não encerra aqui, porém; a narração objetiva, fora de qualquer diálogo, dá continuidade aos ensinamentos.


“If the killer thinks that he kills;

If the killed thinks that he is killed;

Both of them fail to understand.

He neither kills, nor is he killed.”

Caim não matou ninguém, apenas passou por tolo! Abel vive ainda. A natureza se feriu. Mas a natureza é imortal.


“Finer than the finest, larger than the largest,

is the self (Ātman)¹ that lies here hidden

in the heart of a living being.

Without desires and free from sorrow,

a man perceives by the creator’s grace

the grandeur of the self.”

¹ Provável etimologia de nossa palavra “alma”.


“Sitting down, he roams afar.

Lying down, he goes everywhere.¹

The god ceaselessly exulting—

Who, besides me, is able to know?”

¹ Uma das características do homem pós-moderno esvaziado de sentido é viajar (territorialmente falando mesmo) sempre que pode. À procura de algo que nunca encontra. Sempre em movimento – mas ironicamente sempre estagnado no mesmo lugar – tentando fugir inadequadamente de sua sombra. A viagem talvez seja uma característica indispensável do ser humano. Mas é possível atingir a Idéia, ou o presente eterno, nunca saindo de sua província, como é possível errar como o judeu amaldiçoado sem qualquer conseqüência. Ulisses seria um bom exemplo daquele que viaja e sai do lugar ao mesmo tempo. O turista do capitalismo tardio, no entanto, apenas repete tudo que sabe fazer enquanto erradicado na província, necessitando, não obstante, de novas vistas na janela e de uma gorda fatura no cartão de crédito – suas provas empíricas de que ele viveu. Que bebeu a mesma Heineken vendida em sua vizinhança além-mar…


“When he perceives this immense, all-pervading self,

as bodiless within bodies,

as stable within unstable beings—

A wise man ceases to grieve.

*

This self cannot be grasped,

by teachings or by intelligence,

or even by great learning.

Only the man he [the self] chooses can grasp him,

Whose body this self chooses as his own.”

Aqui, estranhamente, cai a exigência de um guru, de um mestre para o estudante do Veda, e a auto-eleição fatídica que comentei acima fica sancionada.


“Not a man who has not quit his evil ways;

Nor a man who is not calm or composed;

Nor even a man who is without a tranquil mind;

Could ever secure it by his mere wit.”

Nenhum religioso com segundas intenções. A “frieza” do sábio não é a frieza do erudito, tão reparada e criticada em nossos tempos. O sábio não é um erudito. Erudito é o filisteu da cultura de massas. Sócrates é o anti-filisteu clássico. A frieza do sábio não é a incapacidade de se comover, mas a impassibilidade com que entende a inevitabilidade do funcionamento do princípio da Teoria das Idéias, da Vontade de Potência, do Om. Queira ele ou não, queira seu ego ou não, estas são Verdades que ele compreende como verdadeiras, e por isso as aceita (com impassibilidade, sinônimo circunstancial de frieza). Doravante, este é o “eleito”, de mente tranqüila, calmo e composto. Não levemos essa exigência longe demais: quem duvida que um Sócrates apaixonado por Alcibíades, que um Nietzsche compondo os livros mais destrutivos da cultura filistéia, não cumprem o requisito desta compostura exigida? Um homem calmo não vive em fúria, mas pode demonstrar fúria – caso contrário não seria um homem que os hindus estariam procurando, mas um embotado qualquer, já incapaz da ira.

A conhecida mente fervilhante do artista tampouco é uma vedação: suscetível às mudanças no mundo e crente nesta vida (e não somente em outra) ele sabe se isolar em seu próprio espaço, concentrado (o outro mundo neste mundo), onde não tem igual (Rafaello Sanzio, Miquelângelo, etc.). Acima de tudo ele pode contemplar sua situação no mundo com a mesma objetividade de um deus, de um filósofo (como dito acima) e de alguém que está desinteressado de lucros mundanos (o que os demasiado espertos são incapazes de compreender – “se eu tivesse seu talento, eu faria acontecer, eu seria muito maior, estaria no topo do mundo” – se um pequeno ou medíocre tivesse o talento do talentoso, ele não “faria acontecer”, porque então ele não seria apenas um esperto sem sabedoria e não pensaria como pensa o sem-talentos).


“For whom the Brahmin and the Kshatriya

are both like a dish of boiled rice;

and death is like the sprinkled sauce;

Who truly knows where he is?”

Quem senão essa super-alma qualificada, este que incorporou Brahman, para ver até mesmo a casta superior indiana como um mero equivalente inanimado da classe dos guerreiros que não estudam os Vedas? A morte é um fenômeno como outro qualquer, um tempero que aumenta o gosto da comida. E quem anseia pelo outro mundo, o que quer com isso? Quer escapar da morte como quem desmaia e acorda bem-tratado pelos outros, anestesiado, fugido das pesadas implicações. Isso pelo menos quando ele está anormalmente convicto do outro mundo. Na maioria do tempo essas pessoas sentem a própria insignificância e banalidade, e tremem diante da simples palavra morte, como que pressentem que estão erradas e falam da boca para fora.


“They call these two ‘Shadow’ and ‘Light’,

The two who have entered—

the one into the cave of the heart,

the other into the highest region beyond,

both drinking the truth

in the world of rites rightly performed.”

A semelhança com o Mito da Caverna ou princípios como os recitados no mazdeísmo são óbvios.


“the imperishable, the highest Brahman,

the farthest shore

for those who wish to cross the danger.”

Decerto “as margens mais afastadas” não são um batismo ritual indiferente e vazio, “feito por fazer”, “herança dos costumes dos pais”, incompreendido em “seus mistérios”, realizado mais por medo que por qualquer outro sentimento, extremas unções, confissões e idas semanais à igreja, “para não ir para o inferno”. Não, essa odisséia não é para almas covardes que recorrem a atalhos inofensivos gravados nas pedras! Quem pode nos dizer, num país cristão, que já não estava impregnado de todas essas ridicularias desde que se entendeu por indivíduo? Porque, claro, podiam significar nada, mas há sempre um parente ou conhecido para dizer: “Antes de tal coisa, fazer 3 ave-marias e rezar 10 pais-nossos, se não funciona, ao menos não prejudica”. E assim assimilamos costumes que não podemos chamar de imbecis, porque só consideramos imbecil aquilo que podemos compreender, para avaliar; isso é menos que imbecil, é apenas um mistério herdado, automático, parte de nosso “arrumar a cama – escovar os dentes – etc.”. Não se pode jogar essas coisas fora sem substituí-las por algo melhor, dir-se-ia. O algo melhor é a verdade do conhecimento sagrado inconsciente hindu, que finalmente se tornou acessível a nós após séculos de filosofia ocidental. Não que possamos encarnar em qualquer outro a função de guru; o ritual de ascensão do ignoto herdado ao autoesclarecimento é sempre individualmente doloroso. Por isso os materialistas (hedonistas que se dizem espiritualistas!), seguros do outro mundo, são incapazes de efetuar essa transmutação.


“Know the self as a rider in a chariot,

and the body, as simply the chariot.

Know the intellect as the charioteer,

and the mind, as simply the reins.”

Uma imensa sabedoria condensada e destilada em 4 versos. Seria incapaz de enumerar a série de referências que enxergo em nosso saber ocidental ao ler somente as duas primeiras linhas: já a figura da carroça que ascende ao saber está presente na mitologia grega, na própria alusão ao deus-sol e seus servos. Hélio e Faetonte são pai e filho e contudo com o passar das gerações já se confundem num só ente. A carroça voadora deveria descrever a parábola do percurso do sol durante as 12 horas do dia (depois ele submerge e passa por debaixo dos oceanos, voltando ao leste). Mas Faetonte já é associado, a dado momento, à própria carruagem (o eu-controlado da figura poética acima). É ele, esse deus, na forma humana, qualquer que seja o nome, o único apto a conduzir a carroça sem se queimar (ou desviar do percurso correto). Desdobramentos, ainda helênicos, são perceptíveis na estória de Ícaro e seu malfadado vôo, nos escritos de Parmênides sobre o Um, no daimon de Sócrates (o self mais profundo, que conduz a ele próprio, o indivíduo histórico), que o orienta até em sonhos musicais na véspera de beber a cicuta (que ele não tema, aliás, o oposto: que ele celebre e comemore a vida no momento do estar-morrendo).

Essa voz interior passa, mais explícita ou menos explícita, pelos textos de todos os principais pensadores, até aterrissar nas investigações sobre o inconsciente, o novo nome para o daimon, nosso verdadeiro senhor. O que é um espírito-livre senão o escravo de si mesmo, ou melhor, aquele bom discípulo de si mesmo, que sabe dominar seus impulsos (ou assiste, enquanto impulsos cegos, a este domínio que vem aparentemente de fora, mas que é ele mesmo?), malgrado seu, e sabe ouvir os conselhos da sua verdadeira personalidade, desconhecida em seu todo até pela própria vida consciente do indivíduo? É o homem ético e abnegado que vê os filisteus de cima, meras manchas topográficas – esses filisteus que se julgam alpinistas de elite!

E ainda nem falei da metade final! O intelecto é o cocheiro. Que intelecto – depois que a duras penas aprendemos a desconfiar desse intelecto lato sensu desde Aristóteles até Kant? Decerto não é o intelecto cartesiano, o intelecto dos ceticistas dogmáticos, o intelecto dos Iluministas franceses, dos ateístas franceses – cristãos amargurados! –, o intelecto dos cabeças de vento do séc. XIX tão criticados por Nietzsche, a raça dos eruditos alemães! Não é o intelecto dos românticos que sucederam a Hegel, nem do próprio Hegel, o Aristóteles de nossa era. Mas um Goethe, que se equilibrou entre o Romantismo moderno e a serendipidade dos antigos, este está acima do gradiente que criticamos aqui! Dele que é o Fausto, já antigo e do folclore, mas que de sua pena é o mais célebre – mais um Jesus Cristo depenado por seu daimon errado. Mefistófeles é só um agente externo, a sociedade, o gênio da lâmpada dos que querem vencer na vida ganhando na mega-sena, não o demônio interior verdadeiro do sábio. E o ícone intelectual que ainda subsiste para nós na terceira década do séc. XXI – a fraude chamada Sigmund Freud, este compartimentador do inconsciente, que transformou num mapa ou num cubículo as forças incompreensíveis e virtualmente ilimitadas que nos regem – fariseu dos fariseus, pois como judeu esclarecido este homem sabia ser um filisteu, e continuou interpretando seu papel jocoso por maldade e ganho pessoal. O ápice do racionalismo deletério – o Descartes pós-descoberta explícita do daimon, pela primeira vez, desde Sócrates-Platão. E quantos séculos ele não terá retardado o estado das coisas? Não decerto para os poucos privilegiados, que vêem por trás da opacidade de sua pseudanálise, que enxergam por detrás dessas paredes (pontos cegos do indivíduo médio).

E as correntes de pensamento continuaram, na segunda metade do século XX, errando em pontos fundamentais, aprisionando esse self hindu. Marxistas desfiguradores do princípio maiêutico-dialético provisoriamente resgatado no XIX… Não faltava mais nada! A filosofia continental se fecha e vive de comentadores dos clássicos – talvez devêssemos comemorar. Já sabiam os últimos clássicos e já sabem os melhores comentadores que as próximas respostas úteis (úteis para nós, os anti-utilitários) devêm do Oriente, que, contrariando a projeção geológica de que os continentes africano e americano à deriva estariam se aproximando coisa de 10cm por ano, parece estar vindo a nosso encontro a galope… Portanto, para arrematar: o self hindu não é esse tipo de intelecto, só para deixar claro!

A mente simplesmente como os freios (rédeas). No sentido do poema a mente me parece apenas essa faculdade consciente dos eleitos que efetuam a boa jornada. A mente de Dédalo, o pai do imprudente Ícaro, a prudência altruísta, sem ambições solares, mas orgulhosa o suficiente para não recair em abismos.


 

“The senses, they say, are the horses,

and sense[d?] objects are the paths around them;

He who is linked to the body (Ātman), senses, and mind,

the wise proclaim as the one who enjoys.”

Quem é este que encontrou a eternidade verdadeira no único mundo possível senão “the one who enjoys”? Que momento há para gargalhar se não o presente? É verdade que a carruagem segue um percurso, mas não estamos atrás de nenhum destino particular. Como Ulisses, apesar das aparências, também não estava. Sobre cavalos, poderia até citar David Lynch, para quem, em Twin Peaks, o cavalo branco era o símbolo da morte próxima e também do vício, representado pelo hábito cocainômano da protagonista (uma protagonista que morre antes mesmo da série começar, eis uma quebra de normas!), nas duas primeiras temporadas apresentado de forma mais sugestiva, vaga, anedótica e espaçada. Na terceira temporada, no entanto, ganhamos também um poema sobre eles, os cavalos brancos, que nos brindam com muito mais associações, ou pelo menos com um termômetro para julgar as sugestões das primeiras temporadas: …The horse is the white in the eyes / and dark within, embora eu tenha omitido a primeira metade desta outra quadra (!), para não me estender com conteúdo não-relacionado aos Vedas (se é que existe um que não o seja). Novamente o contraste entre o preto e o branco, a luz e as trevas, elementos da odisséia, dialética que leva à verdade. Mas, cavalo branco ou não, alado ou não, essa charrete mitológica também tem o seu, ou os seus. Embora pareça pouco funcional, podemos dizer que são 5, os cinco cavalos são os 5 sentidos. Cinco cavalos que puxam servilmente a carruagem (você). Se a vacuidade emocional dos filisteus de nosso tempo é uma imagem de cortar o coração, (!) não nos enganemos: os sentidos, raiz dos sentimentos, não são desprezíveis para o sábio – acontece que aqui eles têm tratamento pejorativo, sem dúvida. Os cavalos ou os pégasos cavalgam ou flutuam por uma estrada ou por um arco imaginário no firmamento. A estrada do Um de Parmênides. A mente precisa subordinar os cavalos: o cavalo que olha é na verdade cego; o cavalo orelhudo é na verdade surdo; o cavalo frenético e suscetível tem na verdade a epiderme dormente; o cavalo narigudo não tem faro; e o cavalo linguarudo nem saberia se ingere capim ou torrões de açúcar. Sem uma coordenação estes cinco não são nada. E para quem sabe coordená-los, veja, eles são tudo! A via de acesso ao nosso outro mundo, que está aqui. Uma via insuficiente por si só, mas indispensável para a alma. Há quem ache que o presente são os próprios sentidos. Rematados tolos. Eles são a paradoxal via para o invisível, o que eles percebem são apenas os objetos e os contornos da estrada para o presente.

Acaba de me chamar a atenção o fato de que, consultando o dicionário, obtive que “obscuro” é um antônimo de presente. E acima se contrapôs a parte do olho que enxerga, a retina, à brancura dos cavalos, prenúncio de armadilha. Pois o que não seria essa fala na boca de um dos agentes do Black Lodge de David Lynch, nesse contexto de cavalgar por uma senda necessariamente perigosa, senão uma grave advertência sobre a mais próxima vizinhança entre o enxergar bem e o viver com um antolho nos olhos? E eu que achei que já havia secado este poço (esta é a hora dos fãs de Twin Peaks mais ligados rirem bastante)!


“When a man lacks understanding,

and his mind is never controlled;

His senses do not obey him,

as bad horses, a charioteer.”

 

Apenas um lembrete, já que tudo isso já foi bem-comentado e o trecho é simples: o cocheiro (o daimon, o Ātman) é muito mais que a mente. É evidente que esta não é apenas uma enumeração paralela de uma hierarquia dupla, é mais complexo que isso. [De modo simples: cocheiro/o inconsciente (guia maior) > homem/vida consciente/carruagem > mente/corpo/intelecção > cavalos/sentidos (guias menores).] Maus cavalos não impossibilitam o sucesso da viagem (zero cavalos sim); uma mente em frangalhos, um corpo lasso e a estupidez (tudo junto conotando uma carroça em pedaços), sim.


“When a man lacks understanding,

is unmindful and always impure;

He does not reach that final step,

but gets on the round of rebirth.”

Renascer tem quase sempre conotações positivas. Não aqui, seja para o hinduísmo conforme os exegetas hindus seja para mim, que me arrisco a uma interpretação ainda alhures, conectada a um outro mundo no aqui e agora. Nada pode ser pior do que o renascimento contínuo neste contexto. É o mesmo que ensinar a doutrina do eterno retorno para os fracos em Assim Falou Zaratustra. A bênção de uma “vida” eterna não é nada no colo de mortos-vivos. A sua odisséia não é completada, é só uma grande tortura sem-sentido. OM omento presente não tem um último degrau, mas o último degrau é necessário para os sentidos do homem (sua parte menos importante).


RESUMO DO CREDO HINDU SEGUNDO RAFAEL DE ARAÚJO AGUIAR (LEMBRANDO QUE UM LIMITE MÁXIMO – QUE CHAMAMOS DE DEUS – QUE NÃO SAIBA RIR DE SI É INÚTIL, TANTO EXISTINDO COMO APENAS ALMEJANDO EXISTIR, DÁ NO MESMO):

No que os intérpretes (todos os já consultados por mim, pelo menos) do hinduísmo e eu discrepamos é: para eles, sair da roda da existência é a libertação. Eu acredito que os Vedas genuinamente pregam, no lugar, o seguinte:

Om. Quando se diz que sair da roda da existência é a libertação, está-se dizendo isso para os tolos; pois são os tolos que lêem ensinamentos nos livros e sempre os absorvem da pior forma. Desta feita, não proibiremos a leitura aos tolos, mas nos certificaremos que eles sempre retirarão deste manancial de sabedoria a interpretação mais literal e espúria possível: para eles, escapar da roda da existência via santidade é a libertação suprema. Isto não é Brahman, mas seria pecaminoso contra a própria vida ensinar a verdadeira religião para aqueles que não a merecem. O texto está redigido de forma que os merecedores de absorvê-la saberão interpretar nosso único credo a contento. A libertação é oni-presente e inevitável, sempre esteve aqui e agora e sempre estará para o leitor puro e consciente (aquele que aspira à sabedoria na vida). Isto é Brahma. Não há reencarnações, esse é apenas um dogma regulador para os hOMens mais vis. O dOM da vida é único e especial, pois a morte não é o que se entende vulgarmente pela morte: ela não encerra nada. O presente é eterno. A realidade é una. Não há progressos, regressos, ciclos ou aléns. O fato de indivíduos nascerem e morrerem confunde as massas, porque quem se crê indivíduo tenta se colocar no lugar de outro indivíduo, no que sempre falhará até os mínimos detalhes. É preciso entender que a existência não é algo linear sobre o qual o tempo – condição de possibilidade da própria existência, mas apenas uma de suas engrenagens – tenha qualquer poder. O tempo só funciona de acordo cOM o próprio desígnio inerente do que se chama realidade ou existência. Ele, o tempo, serve a e é inseparável da vida mesma. E a individualidade, o nascer e perecer são elementos, fundamentos da existência. Não significa que os indivíduos crus sejam Brahman (a existência mesma). Mas estão equipados para entender Brahman e se tornar Brahman. Pois Brahman pensou em tudo desde o sempre, já que o tempo é apenas uma engrenagem sua e ‘sempre’ é apenas uma palavra vazia fora da percepção dos hOMens, ligada às grandes limitações dos sentidos. Início e fim só existem para os indivíduos que são tolos. Brahman só pode ser usufruído pelo que chamam de presente. A vida dos tolos é um eterno sofrer, e o que é mais irônico: um sofrer baseado em algo que não existe – sua dilaceração, sua aniquilação, sua morte. O pavor do fim. Pois eles não sabem que são eternos, e isso gera a contradição muito lógica de que eles sofrem eternamente devido mesmo a esta ignorância, que em certa medida é obra deles próprios, pois eles também são Brahman, em crisálida. A forma de reestabelecer a harmonia e a ressonância cOM Brahman, o real, é, cOMpreendendo o real, efetivá-lo (sendo real, vivendo o presente, isto é, a eternidade). Esta condição carece de sofrimento penoso; o que (os tolos) chamam de sofrimento, na vida de quem entendeu Brahman é apenas atividade e saúde, a plena realização do Brahman, separado em indivíduos apenas formalmente, para apreciação dos eternamente tolos, tolo Brahman brincalhão (a verdade é que cada um que cOMpreende Brahman é Brahman, e Brahman é indivisível)! Por que nós, Brahman, dar-nos-íamos ao trabalho de escrever de forma tão límpida para nós mesmos, Brahman, o que é Brahman, se Brahman (os tolos, agora, os Brahman não-despertos e necessários ao Brahman) ainda assim não irá entender, da mesma forma que lendo poesia e enigmas? Pois este ensinamento carece da possibilidade de ser entendido pela mera literalidade e baixeza vital. É preciso ler mais do que palavras, porque Brahman é mais do que palavras. O “inferno” de Brahman é que Brahman é tudo, e a tolice é parte indissociável deste único e melhor dos mundos, o sempre-existente. O inferno de Brahman é Brahman, mas Brahman não se importa, o que é, aliás, muito natural e desejável. Brahman é o mais vil e o mais alto, e nunca se pára de cair e nunca se pára de subir segundo o axiOMa inquebrantável de Brahman, o Um ou Ser ou Ente. Brahman é perfeito e não quer se liberar de Brahman. E nem poderia se assim desejasse. Om.

Digo que Brahman em algum momento através de mim achou de bom tom ser mais literal, para satisfazer Sua vontade (e a minha), quebrando as regras num sentido e duma forma infinitesimal que não descaracteriza Brahman, num limiar bastante desprezível do que os tolos chamam de tempo-espaço que eu traduziria em palavras como sendo minha vida, os anos que eu vivo (da perspectiva de uma terceira pessoa)¹ nos lugares que eu vivo em torno de quem eu vivo (meus amigos, coetâneos e leitores).

¹ O que é a terceira pessoa (tanto do ponto de vista metafísico quanto do ponto de vista gramatical de todas as línguas)? É a junção fictícia das duas primeiras pessoas. Eu sou a terceira pessoa de vocês; vocês são a terceira pessoa para mim. E no entanto a primeira pessoa sou eu (vocês, isoladamente) e a segunda pessoa são vocês em conjunto (eu e os outros, para vocês, individualmente).


“When a man’s mind is his reins,

intellect, his charioteer;

He reaches the end of the road,

That highest step of Vishnu.”

Com esse trecho não vou gastar saliva. Irei apenas traduzi-lo para o formato da prosa familiar a nossa cultura, omitindo as palavras desnecessárias para a compreensão total (não faz sentido, na tríade homem-mente-intelecto, pelo menos nessa tradução em inglês, conservar mind e intellect; só man já é mais do que o bastante):

“When a man (…) is (…) his charioteer, he reaches the end of the road, that highest step of Vishnu.”


“Higher than the senses are their objects;

Higher than sense[d?] objects is the mind;

Higher than the mind is the intellect;

Higher than the intellect is the immense self;”

“Mais elevados que os sentidos são as coisas que percebemos por via dos sentidos, o mundo visível; [Que eu citei acima, na hierarquização simplificada, como intelecção – esta parte do mundo visível não fazendo referência ao próprio sujeito, e para sermos sujeitos está implicado que tem de haver o binômio sujeito-objeto, pode ser omitida, inclusive porque a mente, como veremos abaixo, interpreta automatica-mente todas as percepções dos 5 sentidos, integrando-as, e não se pode falar de mundo visível (veja como nos expressamos sempre hiper-valorizando os olhos!)/sentido sem que haja a mente do ator dotando este mundo de sentido (bússola das sensações).]

Mais elevada que o mundo visível é a mente;

Mais elevado que a mente é o intelecto; [Aqui sinto que nosso pensar ocidental entra em colisão com o vocabulário hindu – ou será problema da tradução para o inglês? –, pois mente e intelecto estão indissociados de acordo com nossa maneira de representar a ambos. A terceira linha, como a segunda linha, devem ser omitidas numa tradução explicativa superior.]

Mais elevado que o intelecto é o imenso self.”

Para melhorar, destarte:

“Mais elevada que os sentidos é a consciência;

Mais elevado que a consciência é o inconsciente.”

(mundo animal < mundo humano < mundo divino [somos divinos!]) (*) O mais irônico, se seguíssemos o ‘roteiro’ do Veda seria que posicionaríamos o mundo mineral acima do animal, i.e., o mundo visível, os objetos, as coisas, a estrada que os cavalos percorrem como sendo mais importantes até que nosso tato, audição, visão, olfato e paladar, o que é absurdo, pois não vivemos em subserviência aos objetos, e sim o contrário: somos nós que os criamos graças a nossa condição de seres vivos, por assim dizer.

A palavra que mais pode gerar confusão na tradução aperfeiçoada acima é a última. O inconsciente é o sábio que mora em nós sem que possamos ou devamos cobrar aluguel. Na verdade é ele que nos sustenta, em grau ainda mais surpreendente que a consciência sustenta os meros instintos. Porém, o INCONSCIENTE sofreu muitas malversações nos últimos tempos. Não temos palavra melhor para caracterizar “o verdadeiro senhor da consciência”, mas infelizmente a psicanálise poluiu imensamente essa palavra, para não falar das (más) psiquiatrias, psicologias e filosofias (jamais leiam Von Hartmann, um homem que interpretou Schopenhauer da pior maneira possível e teve grande influência sobre os ‘apreciadores da filosofia’). É preciso decantar e esterilizar a palavra para reutilizá-la, não temos escolha, e na verdade não devíamos nos subjugar a algumas poucas gerações de tolos, ou teríamos de reinventar nomes para quase todas as coisas. Mesmo assim, para iniciar esse processo e a revalorização do termo inconsciente, bem-descrito no Veda como imenso, muito mais abrangente que a consciência (como o oceano perante uma piscina), vindo a ser em última instância tão importante que pode ser igualado a Brahman, já que qualquer entidade separada de nós e portanto de nossa instância mais elevada seria apenas criar quimeras e fábulas que só multiplicariam as complicações, quando sabemos que o que o hinduísmo diz é que somos Brahman, ao contrário do cristianismo, que estabelece um Deus infinitamente inacessível ao homem, tão inacessível que se tornou a religião favorita do niilista ocidental,¹ quer dizer, maioria da população, que é niilista sem o saber… Em suma, quero dizer que de uma forma ou de outra, se quisermos respeitar o credo hindu, devemos equiparar a noção “despoluída” de inconsciente ao Todo desta querida religião. Seja falando simplesmente inconsciente, seja empregando, se se quiser, o termo inconsciente coletivo de Jung.

¹ Podemos até dizer que quanto mais crente se é, mais ateu! Só uma religião tão mesquinha seria capaz de provocar a morte teórica de deus, gerando tamanho estrago civilizacional que os filósofos tiveram de interferir nos negócios dos padrecos!

Por outro lado, se ainda assim o leitor fizer questões de sinônimos, como mais acima, para me referir a ‘inconsciente’, recorreria a:

BRAHMAN = OM = INCONSCIENTE (COLETIVO) (Filosofia, Psicologia, Jung) = UM (Parmênides) = DAIMON (Sócrates) = Idéia (Platão)¹ = MUNDO (vulgar) = OUTRO MUNDO (Filosofia Ocidental)² = VONTADE DE POTÊNCIA ou VONTADE NÃO-UNA ou VONTADE NÃO-LIVRE (Nietzsche)³ = VIDA DO SÁBIO (hinduísmo e outros sistemas) = ETERNIDADE ou PRESENTE ETERNO4

¹ Como Sócrates não escreveu, estamos autorizados a referir o daimon socrático ao próprio gênio de Platão: tão “egoísta” que criou dois nomes para Brahman ou aquilo que há de mais sagrado!

² Emprego aqui o Outro Mundo no sentido “recuperado” que já demonstrei, em relação ao Além da maioria das religiões: o Outro Mundo é o mundo das Idéias de Platão, localizado na alma do sábio, e portanto neste mundo mesmo, no presente, aqui e agora. Esse é o tesouro máximo do hinduísmo: uma religião de massa que não nega o amor à vida e não incita à hipocrisia e à mentira, prometendo recompensas num futuro indefinido. O que é do sábio sempre foi, é e será do sábio. A eternidade já foi alcançada. Desde pelo menos Schopenhauer ou Kierkegaard (admito que Kant é um caso talvez especial; já Hegel acreditava apenas num canhestro progresso da História, sem entender que o presente já havia trazido todas as evoluções que ele só podia atribuir ao futuro da Europa), após o longo e sombrio hiato entre Platão e o mundo moderno (quase ainda ontem!), chegando ao trabalho de autores definitivamente afirmadores de um e somente um mundo, este aqui, como Husserl, Heidegger, os existencialistas, praticamente todos os filósofos dignos do século passado e deste, o Outro Mundo dos fanáticos religiosos e dos Escolásticos – considerados filósofos apenas nominalmente, meros escribas de patrões temporais (a Igreja) – foi abandonado em prol de uma nomenclatura despida de conotações deletérias, fraudulentas e niilistas: o Outro Mundo de que falo, sinônimo da nova Zeitgeist de retorno ao Oriente, é o Outro Mundo que eu interpreto estar exposto nos Vedas: o mundo do sábio que chegou à realização de que a eternidade é o presente. O reencantamento do mundo; por isso também incluo a palavra mundo, porque é no mundo que vivemos, e em nenhum outro, em que tudo é possível. Este mundo é o Um.

³ O termo “vontade de potência” gera confusão. Primeiro porque faz parte do espólio de Nietzsche, que provavelmente teria mudado a expressão antes de publicá-la ou pelo menos não a elegeria como título de sua próxima obra. Segundo, por culpa do estudante filisteu de filosofia, que tende a associar “potência” (que já é uma adaptação à tradução portuguesa de “poder” na tentativa de evitar ambigüidades e enganos!) com o conceito de poder/monopólio da violência do Estado na Política, e em decorrência a doutrinas absolutamente anti-nietzscheanas como “sobrevivência do mais forte aplicada à Ciência Política”, nazifascismo, psicologias de auto-ajuda (como se se tratasse aqui de uma ‘força de vontade’ individual tendente ao infinito, calcada na imaginação desconexa da materialidade do mundo!), etc. A terceira problemática, e que quis evidenciar empregando sinônimos como VONTADE NÃO-UNA e VONTADE NÃO-LIVRE, é a falsa equiparação que se faz entre a Vontade schopenhauriana e a Vontade propriamente nietzscheana. Como Nietzsche é influenciado por Schopenhauer, muitos filósofos até razoavelmente competentes podem cair na cilada de não enxergarem onde está uma linha de ruptura definitiva do primeiro pensador com este último. E é importante tocar no assunto, já que Schopenhauer teria cunhado o termo Vontade justamente influenciado, por sua vez, por suas leituras orientalistas vinculadas ao hinduísmo! Há aqui, pelo que se vê, uma espécie de mal-entendidos em cascata. Desfaçamos esse nó górdio de vez! Se eu estiver certo e Schopenhauer errado (e uma coisa é decorrente da outra, pois temos pontos de vista divergentes), o que Schopenhauer entendeu dos Vedas e particularmente do budismo que se desenvolveu a partir da Índia, é exatamente a leitura leiga, ou a leitura tola e literal, da ascensão rumo à Verdade bramânica. Isso porque para Schopenhauer a doutrina budista é um quietivo da vontade. Sua Vontade, em letra maiúscula, é a entidade metafísica que rege secretamente todos os fenômenos do mundo visível e observável (que ele chamará de Representação). O mundo da representação de Schopenhauer se assemelha muito ao Samsara, o inferno hindu, em que não há um propósito para a existência. Aí entra a volição individual do homem: ao se aperceber da futilidade deste mundo (e percebendo, no caso de Schopenhauer – este um grande mérito seu) que não existe um outro mundo, tudo que resta ao indivíduo informado, ou ao sábio, é negar a vontade, com letra minúscula, o outro mundo que existe neste mundo. Ora, mero produto de um mundo sobre o qual ele não tem o menor controle, o asceta budista ao menos se empenha em emascular sua vontade, ou seja, a parcela dessa grande e única Vontade que configura seus instintos e portanto seu impulso vital, tratando, em primeiro lugar, de se guardar de gerar prole (instinto da reprodução e perpetuação da vida); em segundo lugar – e não cabe aqui citar o suicídio, pois Schopenhauer sabe que não há fuga da existência, ele fala de uma mortificação da vontade individual a despeito de que no mundo aparente nada mude – de refugiar-se na ascese espiritual, descartando o quanto puder traços de egoísmo, evitando agir sobre este mundo que não tende a nada e é só uma sucessão indefinida de acontecimentos vãos e sem valor. Uma forma de conseguir reduzir sua vontade virtualmente a zero (além de escrever um tratado filosófico sobre isso), para Schopenhauer, é que o sábio se dedique a refugiar-se na arte; principalmente na Música. Schopenhauer vê na música o elemento fenomênico (sensível) mais próximo da inacessível Vontade cega regedora do universo. Através dela o ser humano pode perpassar pelo circuito de todas as emoções, e ao mesmo tempo não viver, isto é, limitar-se a sentir paixões sem qualquer conseqüência prática ou interferência no mundo exterior. Para Schopenhauer todo grande artista é um negador da vida, um budista mascarado. Discordo frontalmente desse ponto de vista. Como eu acredito no Veda como uma alegoria que quer significar exatamente o oposto – a valorização do presente e da vida –, é necessário pontuar: minha principal influência filosófica é Nietzsche, e sua vontade opera em contraposição máxima ao “niilismo passivo” schopenhaueriano. Nietzsche quer restaurar as condições do grande homem, da grande cultura, da grande civilização, algo que o Ocidente não é mais capaz de proporcionar. Daí se explica que a filosofia oriental tenha, por tabela, exercido impacto proeminente no pensar de Nietzsche. Sua vontade é não-una porque diferentemente da Vontade indivisível, “em bloco”, de Schopenhauer, Nietzsche enxerga esse elemento metafísico como sendo manifestações completamente aleatórias e independentes entre si, de modo que o que realmente há não é uma tirania da Vontade sobre este mundo material, mas a presença de vontades dispersas, cada uma unilateral, procurando exercer seu “ponto de vista” sobre as demais, e conseguintemente sobre o mundo material. Esta vontade que “não é livre” (são palavras do próprio Nietzsche), ou todas essas porções infinitesimais de vontade, só sabe uma coisa: ser aquilo que ela é; forçar seu caminho, chegar a seus últimos limites; e os últimos limites são as outras vontades. Essas vontades não são entes abstratos absolutos, quer seja, não existem desde sempre e para sempre, consideradas individualmente. Conforme o jogo de forças, que seria apenas o espelho do jogo de forças do mundo material (daí ser possível a Nietzsche descrever uma vontade que pode ser apenas nomeada por hipótese, lembrando que os sentidos, guiados pela intelecção, no homem sábio, são a via para a Verdade, exatamente como nos Vedas, e exatamente como em todo e qualquer grande filósofo; esta é uma lei), vontades antes autônomas podem se ver reagrupadas (talvez uma vontade mais poderosa englobou ou absorveu outra, vencida), como um “tecido de vontade” pode se desmembrar em múltiplas vontades com novos vetores e potencialidades… Esse jogo não termina, pois jamais houve nem haverá um vencedor. É uma “guerra democrática”, já que uma só vontade jamais se tornará soberana (a Vontade no sistema schopenhaueriano é tirânica, soberana, pois não há oposição dela consigo mesma). Não só a vida é regida pela vontade, mas ela é evidentemente seu campo de atuação primordial. Cada instinto nosso pode ser interpretado como a manifestação aparente de uma vontade. Isso explicaria, o que Schopenhauer deixou em aberto, por que num mesmo indivíduo tantas volições contraditórias precisam combater entre si para se manifestar, num jogo de sucessões intermináveis. Podemos ter uma personalidade definida e coerente, mas basta lembrar que essa é só nossa vida consciente. Por debaixo do pano “n” vontades lutam para fazerem-se valer, partindo do inconsciente até serem traduzidas no reino visível ou “mundo das aparências”. Acontece que a contraposição ao mundo das aparências, onde atuam as vontades, não é outro reino senão o ideal, o fictício, forjado principalmente pelas grandes religiões do passado do homem. O Cristianismo, o próprio Budismo são inimigos do homem que encontrou a Verdade na revelação do mundo como vontades em eterno conflito. Nietzsche reconhece que esta é a vida e ela não deveria ser diferente do que é no presente; necessariamente o que torna o homem burguês decadente haverá de ser vencido um dia, por novos valores, novas vontades, novas potências. Embora tudo nasça, se desenvolva, atinja um auge, decline e finalmente morra, o fato de as vontades se entrechocarem o tempo todo, de a realidade da Vontade de Potência ser “estar sempre em contradição consigo mesma”, ambos os fatos são o fundamento da existência, e isto é o que há de constante neste grande pensamento. Exatamente como nos Vedas. Por esse lado, Nietzsche parece ser o inimigo de um credo que buscaria a ascese suprema, a libertação, a evasão do ciclo de reencarnações, a fusão com Brahman. Mas tudo depende de se Nietzsche – que não foi explícito nesse tocante – entendeu os Vedas dessa forma ou se “empatou” com minha conclusão: os Vedas foram, até hoje, mal-interpretados. Eles são um hino à vida, coincidentes com a filosofia nietzscheana. E o que é mais espantoso é que Nietzsche, que tanto se bateu com Platão, pode (pode! não sabemos bem o que ele deixou de declarar deliberadamente – coisa de filósofos!) não ter percebido que a dialética-maiêutica de Platão, sua teoria das reminiscências e das Idéias, tudo aquilo que o alemão parece ter associado, a princípio, à negação da vida em prol de “meras conjeturas servíveis apenas num Além-mundo”, é no fundo uma filosofia gêmea a sua! São duas aproximações que redundam nas mesmas conclusões. O primeiro e maior filósofo do Ocidente encontra em Nietzsche seu acabamento, e o acabamento da filosocia ocidental como um todo, como são muitos os que o afirmam. Ou podemos considerar Nietzsche um iniciador, e Platão o responsável pelo acabamento? Não faz diferença, quando a filosofia (a busca pela sabedoria) é atemporal e não tem fim ou começo. As filosofias mais sábias e honestas tenderão a chegar às mesmas conclusões, por mais que seus métodos e termos-chaves pareçam tão distintos e antípodas – esse pseudo-antagonismo não resiste a uma análise mais detida, não são filosofias ou fés, mas a Fé, a Filosofia Verdadeira. E não é um império dual, mas um triunvirato, se eu estiver certo: o hinduísmo corrobora, antes mesmo da História do Ocidente devir, estes dois maiores filósofos, o alfa e o ômega da historiografia da disciplina; nossos legítimos contemporâneos. Nietzsche declarou que Heráclito podia ter enunciado seu eterno retorno. Talvez seja o ponto cego inerente a cada filósofo que ele não tenha visto algo tão evidente para nós: Parmênides e Platão são os legítimos filósofos do eterno retorno da Antiguidade. A teoria das reminiscências é muito afim ao karma hindu e à proposta ética de Nietzsche para passarmos esta semelhança por alto. De onde quer que se parta, o Um parmenídeo, a Idéia platônica, o daimon socrático, a vontade de potência ou o privilégio da fusão do sábio com o verdadeiro invisível dos livros sagrados da Índia, a rota percorrida parece exatamente a mesma.

Para uma explicação mais detalhada das vontades em N. e S., recomendo meu post dedicado à filosofia de Schopenhauer (HISTÓRIA DAS IDÉIAS 3) ou ainda meu livro VONTADE DE INTERPRETAÇÕES (à venda em https://clubedeautores.com.br/livro/vontade-de-interpretacoes-2). E sim, o título do meu livro foi escolhido sarcasticamente, muito em virtude das distorções voluntárias ou não de exegetas quanto ao termo vontade de potência!

4 1) Eternidade é a palavra mais fácil a que atribuir autor: pode ser determinada como de uso vulgar desde os tempos mais imemoriais;

2) Esta nota de rodapé existe em razão do segundo termo, seu equivalente, se bem que, ao mesmo tempo, enfatizador da obviedade de que em havendo eternidade só pode haver uma eternidade presente. Isso porque não nos interessa aqui considerar a divisão tripartite do tempo entre passado, atualidade e futuro, o que seria jogar pela janela toda essa interpretação, julgo eu, em alto nível dos Vedanta, e aliás regressar às noções cavernícolas de tempo para Isaac Newton, sendo que Immanuel Kant destroçou pouco depois qualquer possibilidade desse “tempo em linha reta de jardim de infância” ter qualquer validade acadêmica séria. Como não sou Arnold Schwarzenegger me recuso a retornar ao jardim de infância, ainda que seja para dar aulas que gerem mais polêmica que o tira no filme! Afinal de contas, se quiséssemos falar de pseudo-eternidades (conceitos vulgares a-filosóficos) poderíamos partir para análises historiográficas de como não fazemos rigorosamente idéia de quantos anos há para trás ou para frente no universo, debate aliás absurdo e completamente improdutivo que é uma obsessão quase sexual e do subgênero sado-masoquista (uma parafilia) desses “especialistas sem espírito” (Weber) chamados físicos modernos, que falam com pompa e autoridade sobre asneiras como “big bang ou singularidade” (o ‘Adão e Eva’ dos filisteus™), “universo antes do universo existir, (!) previamente ao início do tempo, (!!) sob a forma de um ponto de densidade infinita (!!!)” ou ainda como “uma suposta idade atual do universo na casa dos 13 ponto sei lá quantos bilhões de anos”… Tampouco me interessa, aliás, tampouco interessa a qualquer habitante do planeta Terra, para sermos francos, quantos bilhões de anos o sol demorará para “queimar”, “explodir” ou “simplesmente se apagar”, primeiro porque no ritmo do capitalismo a Terra queimará “sem ajuda” antes, muito, muito antes; segundo porque não está provado – já que os cientistas amam de paixão esta palavra –, mesmo assumindo a absurdidade da hipótese de um universo com início-meio-fim proposta por físicos que quebra as próprias leis da física,(*) que não poderia haver uma – na falta de termo melhor, e de empréstimo da astronomiaprecessão das condições de ‘sobrevivência’ do sistema solar, para começo de conversa, quando eventos teoricamente prováveis em escala de bilhões de anos segundo nossos melhores matemáticos, estatísticos, físicos e químicos não poderiam ser descartados por inumeráveis fatos intervenientes no decorrer de todo esse tempo (5 bilhões de anos de vida restantes para nosso Astro-Rei!) no próprio reino da ciência estritamente acadêmica, ainda mais levando em conta que não há disciplina que não sofra grandes revoluções de paradigmas em um módico intervalo de décadas! Para se ter idéia, se preservássemos todas as condições de realização do Campeonato Brasileiro de Futebol numa estufa, dando vida eterna aos jogadores, dentro de bilhões de anos até o Coritiba, atual equipe de várzea, viria a ser campeã dos pontos corridos um sem-número de vezes com até 100% de aproveitamento em alguma das ocasiões!!! Bilhões de anos é uma quantidade de tempo imensurável. Tudo e qualquer coisa acontece num “período” tão vasto (é tão vasto que ouso dizer que nenhuma mente humana foi formatada para conceber quão verdadeiramente vasta é a quantidade de 1 milhão de anos, de modo que se multiplicarmos isso por mil podemos ter certeza de que todos os lobos do planeta terão sido extintos pelo mero apetite de uma única criança chamada Chapeuzinho Vermelho).

Para chegarmos direto ao ponto (que não é um ponto de densidade infinita que estourará, devido a uma maldosa singularidade, justo na sua cara, fique tranqüilo!), avancemos. Obviamente não fui eu quem cunhou a expressão PRESENTE ETERNO, mas no momento eu não saberia dizer quem foi o primeiro a utilizá-la, e no sentido aqui proposto. Tenho razoável confiança de que Nietzsche chegou a utilizar este binômio; de qualquer forma, não sendo o caso, foi ele quem influenciou autores do séc. XX a forjá-lo neste sentido que tenho em mente, se for mesmo verdade que já não o tomaram de empréstimo. Mas suspeito que antes de Nietzsche esta expressão, para um sentido parecido em Metafísica, já estava em voga. Ainda preciso pesquisar a respeito.

(*) DESABAFO EM CAPS LOCK

ME DIGAM EM QUE HOSPÍCIO JÁ SE VIU TAMANHA LOUCURA! MAS FALAR NISSO EM TEMPOS DE IVERMECTINA PARA TRATAMENTO DA COVID, EU SEI, CHEGA A SER UMA BLASFÊMIA, PORQUE DESCREDIBILIZA A CIÊNCIA ESTABELECIDA, EMBORA “ISSO” QUE OS FÍSICOS CHAMAM DE “TEORIA DO BIG BANG” PASSE LONGE DE SER MÉTODO E DE SER CIÊNCIA, MOLE OU DURA! ACONTECE QUE UM DIA, A LONGO, PRAZO, ISSO DEVERÁ SER ENDEREÇADO E DISCUTIDO, ENTÃO EU ARREMESSO A PRIMEIRA PEDRA SEM PUDOR E SEM MEDO – CIENTE DO MEU LEGADO – DE SER CHAMADO POR ALGUM CABEÇA-DE-BOI DE negacionista, MINHA CONTRA-DEFINIÇÃO POR EXCELÊNCIA! PORQUE, INFELIZMENTE, QUEM TEM VOZ NESSE DEBATE ATUALMENTE E QUE ATAQUE A TEORIA DEMENTE DO BIG BANG É OU CRIACIONISTA (COMO SE INVENTAR COISAS TÃO ESTAPAFÚRDIAS COMO UM PONTO DE DENSIDADE INFINITA PARA EXPLICAR A ORIGEM DA EXISTÊNCIA NÃO FOSSE DEIXAR OS COMUNS DOS MORTAIS DE CABELO EM PÉ, LOUCOS PARA ENTRAREM NUMA IGREJA E PEDIREM SOCORRO A UM PASTOR!) OU TERRAPLANISTA, OU SEJA, ESCÓRIA DA ESCÓRIA, AINDA MAIS DEMENTES QUE OS “FÍSICOS CONTEMPORÂNEOS”…

* * *

Mas ainda não acabou a hierarquia do texto sagrado! A ele devemos regressar:

“Higher than the immense self is the unmanifest;

Higher than the unmanifest is the person;

Higher than the person there’s nothing at all.

That is the goal, that’s the highest state.”

Acontece que eu equalizei o immense self ou inconsciente a todo o imanifestável, como foi visto exaustivamente acima! O Nada. Quase consigo acreditar que esses trechos dos Vedas sofreram interpolação de fanáticos de época posterior. Olhando dessa maneira, parece que os vaticínios de Schopenhauer fariam todo o sentido! Mas não percamos de vista que o Veda é um poema e não deve ser mal-interpretado. Tendemos a ler o “nada” deste escrito tão antigo como o nada da filosofia contemporânea, o que é um erro. Claro que não posso justificar em mil anos a segunda linha. Persons, se estivermos falando de individualidades, consciências, já ficaram muito abaixo na hierarquia. Por isso a diferença no matiz dos verdes: quanto mais escuro, mais censurável. Se acima do inconsciente ou, que seja!, daquilo-que-não-pode-ser-manifestado, só há o nada, ou não há nada, não significa que o último passo já foi dado? E não foi isso que foi dito no verso sobre Vishnu mais acima? A meta é chegar à realização do presente como a felicidade máxima: mais que isso é impossível, é absurdo. A pergunta pode até ser colocada: Existe outro degrau? Mas a resposta invariável é: Não.


“Hidden in all the beings,

this self is not visibly displayed.

Yet, people of keen vision see him,

with eminent and sharp minds.”

Pode até mesmo ser que o “nada” se refira apenas aos tolos. Sabemos que o invisível que o sábio vê no topo de todas as coisas do mundo, do único mundo, é Brahman, são as vibrações do Om. É o self no sentido hinduísta. E por que voltariam a citar “this self” quando, supostamente, a hierarquia ainda “subiu mais”, citando “unmanifest” depois, e “persons” (sic)? Porque os quatro versos de “Higher than the immense self…” a “…that’s the highest state.” são de importância relativa quase nula se compararmos a tudo o que precede e sucede!


“A razor’s sharp edge is hard to cross—

that, poets say, is the difficulty of the path.”

E no entanto não basta ensinar, como eu já disse. A jornada não pode ser ensinada. Quantos tolos não existem para cada Platão? Quantos puderam entender Platão? Quantos especialistas em Platão (oxímoro) me dirão que estou correto sobre Platão? A eternidade não é uma descoberta no estilo Eureka!. Posso enunciá-la quantas vezes quiser. Alguém a terá mesmo obtido, na forma como descrevi? Eu mesmo, vivo no presente sem me autoenganar, em minha potencialidade máxima, isto é, na potencialidade máxima que cabe ao homem? Sobre isso, Bíblias demais já foram escritas para que incorramos nas mesmas e repisadas fraudes… Fechando o parágrafo com uma piadinha: desde Gutenberg, nenhuma bíblia foi escrita. Os copistas perderam o emprego!


“It has no sound or touch,

no appearance, taste, or smell;

It is without beginning or end,

undecaying and eternal;

When a man perceives it,

fixed and beyond the immense,

He is freed from the jaws of death.

*

The wise man who hears or tells

the tale of Naciketas,

an ancient tale told by Death,

will rejoice in Brahman’s world.”

Quem senão a Morte (o Nada, pois nada está acima de Brahman) poderia contar o antigo conto (tale também pode ser traduzido como história ou conversa – o que é muito revelador sobre Platão e o método dialógico)?


“If a man, pure and devout, proclaims this great secret

in a gathering of Brahmins,

or during a meal for the dead,

it will lead him to eternal life!”

E assim termina o monumental capítulo do Upanishad chamado Katha, ou pelo menos a parte que mais nos interessa.

NARCISO, GOETHE, A BELEZA [fragmentos]

De forma puramente SUBJETIVA quanto mais somos conscientes de nós próprios (o crítico apreende a obra como algo estranho, sujeito x objeto, esqueceu que a criação do artista, sua objetividade, está em ser o objeto enquanto o objeto é consciência, na fusão dos pólos). Propriamente falando, o artista não julga o que é ou não é o belo, pois se torna provisoriamente o próprio belo. Como pode a beleza argumentar intelectualmente sobre a beleza? Ela apenas é. Narciso não se reconhece ao espelho, está menos consciente de si, pode julgar seu reflexo (o outro) como belo. Narciso é o crítico – quem está desinteressado de si está interessado no outro (a obra). Nele, sujeito e objeto estão divorciados, Narciso não é a imagem de Narciso. O artista é todo consciência-de-si, ele e a obra são cegos à outridade, entendem apenas os reflexos (o espelho que reflete a si próprios), estão fechados em si numa subjetividade infinita – mas como não há outro, apenas mesmidade, identidade, trata-se da OBJETIVIDADE PERFEITA E AUTO-SUFICIENTE DO QUE É IGUAL A SI MESMO. Narciso, o crítico, se afoga porque carece, busca o complemento, a beleza (Narciso não é a beleza, ele é inconsciente de si, seu corpo não está em consideração a não ser como outro, infinitamente separado por um abismo). O reflexo (a obra) não quer nada. Sujeito e objeto aqui são um, o mundo. O exterior e o interior simultâneo. O Ser. Não há logos, só recursividade tautológica. Vênus é. O amor é cego e no entanto não deseja enxergar (interagir com o exterior). O amor é o processo de criação. O amor está na boca do mundo, é discursado pelos loucos da subjetividade irrestrita. Só neste sentido, o amor é a Poesia (subjetividade) e a crítica é a Verdade (objetiva). Homero descreve o mundo; a verdade desmistifica-o. A verdade é a verdade dos homens, discurso, sempre carente da serena objetividade muda e inacessível da beleza.

Goethe compreendeu esta antítese, e por isso sua autobiografia se chama Poesia & Verdade. Poesia é a sua obra, verdade o indivíduo biografado. Por ser uma obra, versando sobre a obra e a crítica, é Poesia, como foram antes seus poemas que não falavam de poemas, mas uma poesia sem objeto, inacabada. Por ser uma crítica, prosando sobre a crítica e a obra, é Verdade, verdade clínica e impessoal de sua vida. Beleza deficitária, crítica consumada. Tentativa de uma síntese impossível a não ser dentro da obra de arte que é o artista enquanto indivíduo. O jeito do belo ver, elogiar, participar – a possibilidade da crítica ser bela e definitiva.

OVERKILL, A BANDA CLASSE ‘A’ SEM UM ÚNICO ÁLBUM RUIM QUE É POUCO FALADA NO MEIO THRASH

Overkill (OK), de Nova York, ativa há 42 anos e contando. Principal gênero musical: thrash metal. Não só tornou-se, no decorrer da carreira, a banda do estilo com mais álbuns e músicas lançados, como sempre acompanhou a quantidade com a qualidade. E no entanto Bobby Blitz, vocalista e “membro eterno”, & seus comparsas nunca receberam a cobertura midiática que merecem. Mesmo bandas muito menores e questionáveis, como o Voivod, são muito mais conhecidas e celebradas pelo público especializado. Não é meu objetivo desvendar este mistério do show business, mas apenas enaltecer o Overkill pelos muitos “discos rodados” no meu som (ainda que seja apenas uma metáfora para a reprodução de arquivos digitais num HD ou streamings via Spotify), o que significa dizer que me proporcionaram muita alegria, euforia, admiração e até espanto, com discos se superando sem descanso.

Para falar dessa banda com um catálogo monstruoso, vale a pena ser introduzido primeiro aos álbuns por seus nomes e sua característica mais notável: considero todos os trabalhos do Overkill acima da nota 8. E não pense aquele que gosta de Overkill tanto quanto eu que estou sendo severo ao descontar, sem mais nem menos, 2 pontos de obras consideradas quase sempre próximas ao pináculo do gênero possível a cada momento. Faço essa concessão, sobretudo, para diferenciar os álbuns do Overkill nota “8 e alguma coisa” dos álbuns “9 ou mais”, pois por menor que seja a diferença de qualidade entre um trabalho e outro (o que não tem nada a ver com a dinâmica e versatilidade das composições) é necessário colocar os melhores dos melhores num pedestal. Chamemos 8, se preferível, de rank A, já considerada a primeira prateleira do thrash; e 9, se do gosto do cliente, de rank S, obra-prima, daquelas que a história conta nos dedos e, mais do que isso, que nenhuma banda, por mais clássica, indispensável e imortal, lança o tempo todo e a seu bel prazer. Qualquer grupo com trabalhos de ranking S está automaticamente no panteão dos deuses do metal. Bandas com múltiplos álbuns nessa categoria são – ame-os ou suporte-os, porque sua crítica será o mesmo que jogar palavras ao vento – fenômenos consensuais o bastante para estarem sempre no centro dos holofotes, e para marcar gerações sem conta. Com rank S quero me referir a álbuns como Reign in Blood, Ride The Lightning, Master of Puppets, Rust in Peace, Alice in Hell, Seven Churches, Beneath The Remains, Among The Living… Acho que deu para entender. Portanto, apresento-lhes, na minha imodesta opinião, os discos do Overkill até o último, de 2019, divididos nessas 2 categorias (excepcionalmente bons ou lendários!):

Inacreditável, não parece? Independentemente da minha subjetividade altamente incrustada na tabela acima, falo a princípio do fato de uma banda fundada em 1980, dum estilo rápido e agressivo, continuar lançando trabalhos de estúdio no mínimo competentes e relevantes, em intervalos curtos, mesmo com seus membros em idade mais avançada, quando não é fácil fazer turnês, manter a proficiência em seus respectivos instrumentos e – mais importante – a empolgação e a criatividade. Dezenove discos é uma estatística absurda, espetacular. Se são rank B, C, ou se menos álbuns acima são rank S para os leitores e ouvintes, isso é o de menos! Minha didática tem lá seus propósitos. Vou falar um pouco da carreira da banda de forma não-cronológica, citando cada um dos 2 grupos de discos a seu tempo:

Quem pode adivinhar o significado dos sublinhados tracejados da tabela acima? Eles significam sempre a demarcação de intervalos, entre o disco sublinhado e o seguinte, em que a banda atravessou uma fase ou efetuou uma mudança um pouco mais drástica na sua estética. Para todos os propósitos, nesse artigo entenda estética sempre como sinonímia de som, não de roupas ou temas líricos.

A primeira era do Overkill foi de um speed metal (ainda aquém da variedade e distorção de um verdadeiro thrash) muito infundido de punk. Alguns resumem essa mistureba que dá um ar selvagem e urbano a certos grupos através do rótulo street metal. Feel The Fire e Taking Over são o mais próximo de Hirax que você escutará o Overkill tocando. Uma barragem sonora frenética atrás da outra, competindo por cada segundo no CD ou bolachudo, é disso que eu chamaria. A chegada de uma banda ao mercado pede que ela “chegue chegando”, ponha todas as cartas na mesa, suba na mesa, beba a tequila e o conhaque dos inadvertidos convidados da festa, pegue o microfone e faça escândalo – se possível mije na parede depois! Tudo com classe, é claro. Se ninguém ouve muito falar desses dois trabalhos seminais do Overkill, não foi por falta de estilo e de atitude, esteja certo.

Pulando os verdadeiros anos de amadurecimento dos caras, que deixaremos para mais adiante, Horrorscope já vê um grupo que, a despeito da não-fama fora do nicho, vive para fazer música – o que pode até não parecer, mas faz uma diferença e tanto nas escolhas compositivas a partir deste momento de mais estabilidade financeira. A banda sempre teve um tema ou outro voltado para coisas de terror, como em Raising the Dead do primeiro disco, mas resolveu elevar o conceito a protagonista da sonzeira só no quinto trabalho. Horrorscope tem na sua principal composição um riff de Sexta-Feira 13. Continua e aprofunda a parte mais macabra do Years of Decay, mas, ao meu ver, principalmente na produção e na loucura que é o baixo neste lançamento – à propos, nenhuma banda do heavy metal inteiro, salvo os titãs do Black Sabbath, e só direi isso uma vez, tem um baixo tão proeminente e audível nas gravações quanto o Overkill, eis uma de suas marcas distintivas, e que é a favorita de muita gente –, loucura maior do que a média já insana da banda. Ou seja: confirmação de que o grupo toca uma variedade de technical thrash com certos elementos NWOBHM dos mais sacanas e frenéticos, mostrando que o conjunto chegou a um nível genial e elegante de composição sem por isso se desenraizar do punk. O NWOBHM sem o punk não seria nada, não custa lembrar!

I Hear Black é como o Overkill, muito inteligentemente, reagiu à onda grunge que quase pulverizou o thrash metal, transformando a maioria de seus expoentes em groove metal bands, se é que não tirando mesmo qualquer veterano insistente do radar – não com o Overkill, meus caros! Isso sem falar nas novas bandas: nenhuma, apesar da influência óbvia, tocaria igual o Metallica e o Slayer em seus anos seminais. O thrash tinha de súbito virado coisa do passado, era o que se dizia. Nem mesmo Metallica e Slayer tocariam igual o Metallica e o Slayer! Esse era o profundo significado da mudança de estética. Não havia qualquer medida comum entre todas essas bandas citadas nos anos 90 – a pior década para a existência do heavy metal, até aqui – a ponto de conseguirmos fazer comparações simplistas entre elas. O fato é que o Overkill optou por um retorno às origens como lhe cabia: compôs seu material mais derivado de Black Sabbath de que se tem notícia até o momento, tornando-se ao mesmo tempo palatável para qualquer fã de Machine Head e Pantera, porém sem que possamos dizer “virou uma banda de groove com resíduos thrash”. Na verdade é o único exemplo que eu conheço de uma banda ainda essencialmente thrash mas cheia de elementos – bem-implementados, acredite! – de groove e de doom (o que, veremos, não era inédito para a banda mesmo considerando o ano 1993). Em suma, o Overkill conseguiu encorpar seu som sem transformar a própria essência num rip-off de Vulgar Display of Power. Para quem não fosse rumar ao metal extremo nem deixar o som bem mais acessível (hard rock pra baixo, na escala da descomplicação), esse era o único jeito de seguir sua trajetória sem perder de imediato os fãs dos anos 80. As produções do thrash oitentista, os tons das guitarras, quase tudo relacionado aos discos seminais, haviam se tornado ultrapassados num período de tempo tão curto que o que antes era considerado riff pesado virou “linha de guitarra fina e enjoativa”. Como o Overkill não quis virar uma banda de rock’n’roll nem o próximo Cannibal Corpse, resgatou elementos do doom metal antes de ser doom metal e incorporou-os nas suas inconfundíveis canções aceleradas, só que deixando a velocidade menos rápida para dar ao paladar do ouvinte a chance de provar da coisa, saborear, passar a língua, e aí sim consumir direito a guloseima, isto é, a música. Se êxitos extraordinários em processos de adaptação valessem um Oscar, ou pelo menos um Prêmio Darwin, os músicos do Overkill teriam mais o que contar a seus netinhos do que têm hoje! Essa metamorfose, porém, como quase toda a carreira da banda, passou relativamente despercebida pelos olhos do headbanger médio, aquele que só vai em show grande, que ocupa estádios e arenas inteiras.

W.F.O. é a acentuação máxima do ataque dos baixos. Nunca antes uma banda de heavy metal deixou um baixo tão alto (eu sei que esse tipo de frase sempre gera piadinhas) num trabalho de estúdio, a ponto de haver gente que jura que o que ocorreu foi um desastre, uma má produção do disco. Considere apenas uma coisa: não tem como esse efeito não ter sido intencional. Escute e concorde comigo. O baixo é a maior estrela do disco, e é com certeza um exemplo do que chamam na gringa de acquired taste, talvez o caso mais claro na discografia do OK. W.F.O. encerra esta que é a fase mais experimental da banda, depois da rotação ao Black Sabbath de I Hear, e parece mais um Under The Influence, só que com o mesmo peso e “me(n)talidade” (fugindo um pouco do NWOBHM) do Horrorscope.

Em 1996 Killing Kind trouxe novidades na forma de um som sem dúvida mais pesado, mais dependente do groove e menos do metal clássico do Sabbath ou de pinceladas hard rock e derivações do punk. E de novo eu destaco: dependente do subgênero groove, porém com o thrash puxando a carroça. A banda encontrou uma espécie de terreno em que se consolidaria, lançando depois novas variantes e interpretações possíveis de uma mesma estética – mas não digo que o grupo estacionou, atolou ou se confinou neste terreno. É bom mudar; e é bom manter uma identidade. Embora nenhum disco do Overkill pareça ser de outra banda, faz sentido dizer que mudar em excesso a cada novo lançamento também não é um bom caminho, seja para atingir o potencial artístico, seja para simplesmente vender e lucrar. Por alguma felicidade do destino, o Overkill achou o seu jeito anos 90/2000 de fazer metal no Killing Kind, e com o protótipo em mãos só foi afiando a faca e aperfeiçoando o bagulho até o big bang de 2010. From The Underground and Below, Necroshine, Bloodletting, Killbox 13, ReliXIV e Immortalis nada têm de genéricos. Se passo rapidamente por eles, é só por questões de tamanho do texto! Não me deixam mentir canções-grude como Thunderhead, uma das poucas composições clássicas dos anos 90 diante das quais um marmanjo não sentiria vergonha ao cabecear em público. Faço referência ao nü metal, em ascensão meteórica no período 95-2000, talvez até um pouco além: mesmo quando uma banda ou outra tinha uma música boa, os headbangers, murchados, encolhiam os ombros, fingindo não curtir, a não ser em sigilo. Overkill tem um tipo de metal dinâmico tradicional o suficiente para não ser considerado nü metal e, por isso, é uma audição confortável para ouvintes velhos e ortodoxos. Velhos ou… envelhecidos, seria melhor dizer. E, ao mesmo tempo, o Overkill era um dos poucos bastiões do thrash ainda NO thrash capazes de competir com “o som da moda”, de Slipknot, System of a Down e congêneres, justamente por ser um metal mesclando tantas influências e composto de forma tão sem-amarras e inteligente.

Passemos agora ao lado B, digo, ao lado S. Under The Influence representa um grande salto estético para o Overkill. A banda conseguiu juntar seu anterior espírito hiraxiano ao melhor que bandas como Iron Maiden nos começos e Motörhead ou Suicidal Tendencies (“frenesi urbanóide” resume bem a atmosfera, eu diria) poderiam oferecer. Clássico imediato ou instantâneo, como apelidam os críticos. Shred faz o que o título indica: tritura, destrói. Talvez apenas millennials como eu saibam ou se lembrem, mas Shredder, o vilão de Tartarugas Ninja (e estamos, nessa jornada discográfica, em 1989, quando esse seriado estava em alta!) virou Destruidor no Brasil. Parece que nossas primeiras lições de inglês derivam dos desenhos animados… Hello from the Gutter também faz o que o título indica: um cartão de visitas da banda sujo como um Morlock residente do subterrâneo, sem direito a pizza. Os borderline speed metals de Mad Gone World, Brainfade, Drunken Wisdom e End of the Line parecem uma mistura de desabafo pessoal com olimpíadas de mosh pit. Um ditado popular é apropriado pelo punk trevoso na bem-batizada Never Say Never. Head First, que por incrível que pareça não narra um ato sexual, é minha canção predileta do (não vá parar na) U.T.I. Por fim, a banda saca de suas entranhas o terceiro capítulo de sua canção mega-épica (à la Unforgiven), Overkill: Under the Influence. A canção-tema da banda seria encerrada (por enquanto) no quinto episódio, no ainda distante Immortalis, mais uma pista de que os anos 2007-10 representam uma era de significativas mudanças conceituais na carreira dos caras.

Mas é pelo álbum seguinte, The Years of Decay, que o Overkill se tornaria majoritariamente reconhecido. Não há como não dizer que é o Master of Puppets da banda. Não só porque é seu maior sucesso comercial como até sonoramente é impossível negar que MoP foi uma grande influência para as composições. Se parece estranho que o divisor de águas do Metallica, de 1986, tenha repercutido no Overkill só 3 anos depois, havendo ainda o Taking Over e o Under The Influence no meio do caminho, lembre-se que não estamos falando de uma banda comum, maria-vai-com-as-outras! O Overkill não é daqueles grupos que surfam numa onda sem um bom motivo e sem saberem o que estão fazendo. Não se trata de uma ficha que demora a cair, mas do reconhecimento já objetivo e impessoal, distanciado do momento, de que MoP modificou o thrash e a música pesada em geral para todo o sempre. O ritmo deu uma acalmada e o impacto dos riffs ganhou uma bela ênfase. Nem os mais maliciosos poderiam dizer que se trata de um clone tentando aproveitar o vácuo deixado por Master: The Years se assemelha mais a um MoP gravado numa realidade alternativa, com músicas igualmente originais, embora sigam aquele template imortalizado por Hetfield, Ulrich & cia. Não se trata tampouco de dizer que há um melhor e um pior, nos limites deste artigo. O disco “Os anos de decadência” são 56 minutos de puro orgasmo técnico-furioso sem fillers. Quase todas as canções são presença obrigatória em shows do OK: Time to Kill, Elimination, I Hate, Birth of Tension, o tema-título e E.vil N.ever D.ies são o front agressivo por excelência. Pelas beiradas a banda ataca com o que mais chega próximo de uma balada neste disco, Who Tends The Fire. E para quem nem com os petardos acima se dobrou a essa proposta de som, Playing with Spiders/Skullkrusher (10:15 de duração) são (e digo isso porque o título já reconhece que são duas suites ou segmentos numa faixa só) a parte doom do festival de pérolas genuínas; assim como Welcome Home e The Thing that Should Not Be de sua musa inspiradora, este conjunto trovador com certeza não recebeu os aplausos devidos quando exibiu seu lado alternativo ao mundo. Muitos consideram essa faixa o calcanhar-de-aquiles do CD. Nada mais falso. As letras e a performance revolta de Blitz dão aquela pimenta a mais que o autocontido Metallica já tinha ‘castrado’ desde a era Ride the Lightning, para quem gosta de comparações e achou que o autor supostamente covarde deste texto ficaria 100% em cima do muro! Se amor é prosa, este é o sobrenome dos californianos do Metallica; Overkill é puro sexo, digo, poesia, mais direto e sem-vergonha. Espera… Tem algo de errado neste ditado! I Hate é um hino antifa. Só o amor ao ódio aos fascistas pode derrotá-los. O fato de Years of Decay ter vindo depois de …And Justice for All é um sintoma de que o OK também estava entendendo a rápida mutação no subterrâneo, e já tinha a estratégia para mergulhar, de cabeça (Head First!) nos anos 90, o que você viu mais acima. Agora um salto à distância de Maurren Maggi. Já estamos em 2010, ainda ontem!

Na década de 2010 o thrash, considerado morto e enterrado há tempos, entidade assassinada pela ascensão de cometas como Nirvana, Pantera e seus sequazes, e até pelas próprias mutações internas do Metallica, quem capitaneava o movimento em escala primeiro estadunidense, depois global (para ojeriza de um grande contingente!), dentre outros artistas, sofreu um intenso e quase incompreensível revival, e se reestabeleceu na cena, mainstream ou underground (onde, sejamos sinceros, nunca morreu, mas, sim, estagnou um pouquinho em termos de fertilidade e criatividade das composições). Eu poderia afirmar com arrogância que Ironbound (2010) foi uma das forças-motrizes do movimento, porque seria uma hipótese bastante plausível, haja vista o status de cult classic desse disco do Overkill que caiu como uma porrada para quem “entende do assunto”, e justo no comecinho da década. Porém, como é óbvio, tal oportunismo enfraqueceria de forma fatal meu outro argumento, que creio ser o mais fácil de comprovar, o sustentáculo deste artigo, afinal: sendo generalista, os metaleiros não conhecem ou não dão bola para o Overkill (ou seja, não conhecem, porque se conhecessem bem, dariam muita bola!). Então seria contraditório dizer que este álbum ajudou de forma decisiva para o movimento de revivalismo do thrash que vimos no decorrer desta década terminada segundo os calendários, mas que continua pujante durante os anos 2020, quando o assunto é o neo-thrash (a década que não terminou?). Tanto antigos grupos que fundaram a cena nos 80 como bandas de integrantes jovens, como o Evile, recolocaram o thrash na boca e nos ouvidos do “povo”. A onda “renascentista” é fenômeno observável no nosso país, com representantes de ponta como o Violator, da minha querida cidade natal.

Como descrever, portanto, o Ironbound, agora que conhecemos o contexto? Certamente a Zeitgeist afetou o Overkill. De outra forma não poderíamos explicar como raios um álbum como este veio surgir precisamente nessa época! Ainda hoje este é considerado um petardo extemporâneo, um clássico do nível dos estabelecedores do gênero nascido na “época errada”. Mesmo quem torcia o nariz para o estilo mais groovado do Overkill antes desse lançamento engoliu em seco e deu o braço a torcer: acabou por enaltecer o disco sem economia verbal.

The Goal is Your Soul  (4:37) tem o mesmo riff animal de pelo menos 3 canções clássicas do thrash de 3 das 4 bandas do aclamado “Big Four” californiano: Metallica (Phantom Lord), Megadeth (This Was My Life) e Anthrax (A Skeleton in The Closet).

Devo insistir, todavia, que o Overkill não é uma banda pura – ela é herege. Herege e… tradicionalista: jamais nega suas raízes, jamais se transforma completamente. Seu thrash, mesmo após a onda revivalista, continua sempre groovado, com algo a mais. Thrash metal é algo, a rigor, histórico e pitoresco, jamais repetível. Neo-thrash? Ressurreição?! Nós é que, tão perto da história cultural se realizando, não sabemos expressar com palavras esse fenômeno, e temos que recorrer a velhos vocábulos e formalismos classificatórios…

Dois anos depois, Electric Age, o álbum sucedâneo, já estava na praça. Ele, como também depois o White Devil Armory e o Grinding Wheel fariam, reaproveitou o template mas, na minha opinião, melhorando-o, por sua vez.

Wings of War é uma estória um pouco diferente, e por isso coloquei uma linha tracejada entre GW e WW. Em canções do último full-length da banda até a data deste artigo, como Welcome to the Garden State, Blitz se aproxima de Ozzy Osbourne na voz. É como ouvir, por alguns minutos, o clássico vocalista do Black Sabbath seguindo em sua carreira-solo, só que com uma banda instrumental ainda mais qualificada, isso quando sabemos que O.O. tem uma das trajetórias – mesmo depois da separação do BS, e antes das várias reunions ocorridas com os velhos amigos Butler e Iommi – mais dignas e respeitadas do hard rock/heavy metal. Como Blitz continua alcançando as mesmas notas nos graves e agudos que o celebrizaram como grande cantor nas canções mais “feijão-com-arroz” do disco, essa é assumidamente uma opção artística. Uma ampliação do cartel de proezas do frontman. Sem falar que Hole in my Soul, outra das faixas, parece mesmo título de música do Sabbath setentista! Se estas mutações demarcam o início de uma tendência a ser desenvolvida e completada ou são só um desvio episódico na carreira da banda, é cedo demais para afirmar. O que eu sei é que é o trabalho o mais genial que o Overkill já ofereceu composicionalmente. É sempre difícil afirmar de boca cheia algo dessa magnitude, sobretudo na época em que um lançamento ainda está quente no mercado. Mas já se passaram 3 anos, e escutei muito o Wings of War, sem que minha empolgação em relação a ele tenha minguado! Se a primeira hipótese se confirmar, mesmo sem precisar, os veteraníssimos do OK parecem ter achado “outro novo rumo”… Aquela fórmula do “em time que está ganhando não se mexe” com certeza não se aplica a músicos experientes, que sabem mudar para melhor mesmo quando, se fossem uma equipe esportiva, estão nitidamente liderando o campeonato que disputam!

PALAVRAS FINAIS

Vivemos uma nova era de ouro do estilo em que se convencionou classificar o Overkill. Vivemos, na minha opinião, além disso, o grande ápice desta banda em particular. São músicos que, em anos de carreira, superam em muito minha idade. Os membros do OK são, portanto, indivíduos avizinhando-se do que costumávamos chamar até outro dia de “terceira idade”. Os tempos mudam, dizem: a longevidade das pessoas aumenta, e com isso a duração de sua atividade em seus ofícios ou profissões. Só que não deixa, por isso, de ser uma ocorrência espantosa. Menos pelo lado físico da coisa, já que os profissionais de hoje tomam cuidado como nunca, desconstruindo esse estereótipo cretino do roqueiro que é sempre um drogado que morre jovem. Falo mais do lado essencialmente artístico: medicina e hábitos saudáveis aparte, que estes “senhores” (tem que ter respeito!), há décadas no ramo da música, continuem criando em altíssimo nível, ou seja, sigam com a alma jovem e queimando intensamente, isso sim eu considero sem precedentes e verdadeiramente assustador e admirável, toda vez que paro e penso em sua comprida trajetória. São artistas que há bastante tempo se provaram e não devem nada a ninguém. Cabe lembrar que, ao contrário da literatura, por exemplo, o auge dos artistas no campo musical se dá, historicamente, muito mais cedo. Ressalva: dá-se ou dava-se: pois é, os tempos mudam; e talvez estejamos diante de uma subversão de dados sociológicos das grandes, acompanhando tudo ao vivo!

Sagrado Inferno, Devorador de Almas (2019)

Esta banda mineira também explorou o riff mais conhecido do thrash metal, o de The Goal is Your Soul, alongando-o e distorcendo-o um pouquinho, a bem da verdade – a conferir abaixo para quem tem Spotify (segundos 1:45 a 2:35; e de novo depois de 3:20):

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A POLÊMICA ARISTÓTELES X SCHOPENHAUER NO TOCANTE AO PRINCÍPIO DA NÃO-CONTRADIÇÃO

O princípio aristotélico (ou princípio da não-contradição) talvez seja o mais importante da Primeira Filosofia (ironia das ironias, ele não é um conceito meta-Lógico, i.e., não deveria servir para elaborar metafísica, e sim apenas para discussões práticas). Uma rápida demonstração da aplicação do princípio: se A é não-B, e se B é não-A, logo: A não pode ser não-A (auto-evidente); não-A é B; B não pode ser não-B; não-B é A.

O que seria o ‘nada negativo’ que Schopenhauer enumera ao lado da contraparte aristotélico-kantiana do ‘nada positivo’ ou ainda ‘nada (meramente) privativo’? Aquilo que não existe formalmente: um A = não-A ou B = não-B; ou ainda: um superveniente C que se identificasse com A e B ao mesmo tempo (o que seria chamado, desde Aristóteles, também de absurdo ou impossibilidade). O nada não tem lugar no mundo dos fenômenos.

Mas a fim de transcender esse ‘sistema’, teríamos de imaginar um mundo ou uma filosofia contraditórios, i.e., transgredir esse princípio básico da não-contradição, aceitar e abraçar o absurdo e o paradoxal. Essa luta de Schopenhauer pelo reconhecimento do nada negativo também nos ajuda a compreender por que o autor “santifica” seu bem ascético, i.e., dá um status de bem absoluto à negação da Vontade, em que pese dizer que o “bem absoluto” é uma contradição e que só existe o bem relativo. Dentro deste quadro de superação-de- ou de aplicação-literal-e-extrema-de-Aristóteles, o filósofo alemão consegue ser coerente consigo mesmo (ele representa o C que se identifica ao mesmo tempo com o A e o B) – levando a lógica às últimas conseqüências do lado de cá (do mundo das aparências ou fenomênico e, paradoxalmente, do mundo moderno-cristão, que justamente nega por inteiro este mesmo mundo em sua doutrina mais purificada!).

O QUE É O ALÉM-HOMEM NIETZSCHIANO, DESCRITO DA ÓTICA DO DEVIR ESTÉTICO HUMANO DOS ‘CURSOS DE ESTÉTICA’ DE HEGEL?

Pensando em termos de teoria da evolução das espécies segundo Darwin, póstuma a Hegel mas com certeza prefigurada em seus contornos e bastante de seu conteúdo pelo filósofo idealista alemão, o além-homem (tradução melhor para o ambíguo super-homem do português do original “Übermensch”) seria o primeiro animal autodeterminado. Pela primeira vez a seleção do devir da espécie pode ser um adestramento, adestramento de si próprio, a construção de uma humanidade propriamente dita (ainda inexistente), ao contrário da seleção entregue às puras contingências externas. Um projeto de além-homem inclui desde o último homem ou sub-homem (o obstáculo a superar), o homem (espécie de consciência intermediária, os que não são obstáculos reativos e reacionários, mas não são ativos nessa transvaloração dos valores ou conscientes da questão) e os filósofos de vanguarda, entregues à “causa”. Com o decorrer do tempo, num mundo já pós-ocidental (num nível não-concebido por nós, que de certa forma já vivemos num contexto de superação da metafísica ocidental), inclui(rá) o próprio ente que se vê nessa transição epocal (Zaratustras? enunciadores, ainda aquém do além-homem em si) e, finalmente, o próprio além-homem, que não é mais “homem”, mas que só poderá existir pelo esforço do que um dia já foi homem, e provavelmente coexistiria com ele eternamente, qualquer que seja a nova conformação social. Seria como se realmente, sem recorrer a algo transcendental, um sujeito hipostasiado que explique a evolução (em Darwin é a própria cientificidade de sua teoria, p.ex.), pudéssemos ver o peixe, o anfíbio e os (depois dos répteis, evidentemente, até chegar a nossa identidade no reino dos) mamíferos como atores e autores do seu próprio projeto de “viagem do mar à terra”, faces de um mesmo todo. Obviamente, apenas o homem é capacitado para integrar um projeto multifacetado como este (aquilo que deve ser conscientemente superado). A tríade peixe-anfíbio-animal terrestre não passa, em contraposição, de um caos tornado destino, por se localizar em nosso passado, evolução involuntária, impessoal, figuras que não dialogam entre si (precisamente por não discursarem ou dialogarem em absoluto, atributo definidor de “homem”).

EVOLUTION OF THE CULT – PARTE II – Immortal

DEPOIS DA CALMARIA, VEM A IMORTALIDADE…

ÚLTIMA PRETENSÃO (DISCLAIMER): Quero “continuar” este livro, já que o autor ignorou algumas bandas e fez um sobrevôo por várias delas quando saíam do movimento black metal ou simplesmente chegava-se mais perto da contemporaneidade, supostamente por falta de espaço (afinal, um bom livro investigativo tem mesmo de ser mais profundo e delimitado, é o preço que se paga). Já que é assim, que tal se eu mesmo, com minhas fontes, puder descrever os álbuns 1990-atualidade do Venom, do Mercyful Fate, as bandas principais que ficaram de fora dos 50 capítulos, etc.? Não é um projeto de fácil nem rápida execução, mas fica aqui registrado o intuito, para que, se não se realizar, a culpa não possa ser atribuída a um “esquecimento casual”! Obs.: A idéia não é necessariamente escrever resenhas dos discos, mas tampouco me satisfaria apenas uma cronologia muito “individualizada” de cada banda, formato que este autor elegeu. Há um meio-caminho entre essas duas coisas passível de explorarmos! Esse approach eu deixo para a PARTE III, em que pretendo ir contando duma tacada só as principais evoluções do gênero nos anos 90, falando mais de Venom e Mercyful Fate. Neste segundo capítulo, ou segundo volume do “livro que não comecei mas que irei complementar”, dedico-me, por meio de várias seções incluindo entrevistas, overviews do impacto da banda na cultura cult extrema e, claro, notas pessoais pormenorizadas de cada álbum, o que fez muita falta no Evolution of The Cult que muitos passaram a conhecer lendo os trechos que publiquei no Seclusão. Outra sugestão, ainda não confirmada, para a parte IV, seria um artigo especial sobre o Black Metal finlandês, um dos meus prediletos. O sueco também não está fora de cogitação para uma possível parte V… Podem aguardar meses ou anos, mas sejam otimistas: dificilmente desisto dos meus projetos!

O Immortal foi formado quando uma nova banda na praça, o Amputation, começou a recrutar membros do Old Funeral em decomposição (e realmente amputações e funerais costumam desencadear com certa rapidez a ocorrência biológica ou literal desse fenômeno, decomposição). Ambos eram grupos noruegueses de death metal. Em 1988, Demonaz forma o Amputation com 2 ex-membros do Old Funeral. Abbath, um terceiro ex-integrante do Old Funeral, se juntaria ao trio logo em seguida para completar o então ainda ativo e ambicioso Amputation.

1. OVERVIEW

Uma característica de relevo quando se fala em Immortal e a cena incipiente norueguesa é que os membros deste grupo nunca se envolveram nas atividades controversas de muitos dos partícipes da segunda onda do black metal, constituída principalmente pelos jovens que freqüentavam a Helvete, loja de discos de Euronymous.

Tampouco os temas do Immortal giraram de alguma forma em torno de satanismo ou de apologias pagãs, muito menos posicionamentos políticos de qualquer natureza. Seu foco lírico é nas forças da escuridão, no mal como uma essência capturável e num gélido mundo fantástico cheio de nomes próprios e neologismos.

A primeira mudança realmente impactante na formação (embora os primeiros álbuns sejam recheados delas) foi a saída do membro fundador Demonaz do posto de guitarrista, em 1997, devido a um quadro severo de tendinite nos dois pulsos ao mesmo tempo. Ele seguiu na banda contribuindo com letras e ocasionalmente como empresário e agenciador. Conforme veremos, em 2013, surpreendendo a muitos, Demonaz, após uma ou mais cirurgias braçais e muita dedicação na recuperação total, voltou a empunhar o instrumento e a tocar no seu velho estilo ágil.

O primeiro hiato da banda se deu em 2003: Abbath, Demonaz e Horgh, o trio que então constituía o Immortal, decidiu parar temporariamente por certas divergências artísticas. Abbath começou a tocar numa banda cover de Motörhead pela mesma época, a Bömbers, na companhia de Tore Bratseth (antigo companheiro de Old Funeral, e também ex-Desekrator) e Pez; também data desta época o projeto-solo de Abbath que adotava uma linha mais comercial, de composição de heavy metal, intitulado minimalisticamente I (Eu).

O Immortal voltou de seu 1º hiato em junho de 2006 com a mesma formação e lançou mais um álbum de estúdio em 2009; em março de 2015, porém, as diferenças entre os membros se mostraram inconciliáveis, quando o grupo novamente se dissolveu. Abbath fundou uma banda com seu próprio nome para seguir a carreira.

A banda foi inusitadamente reativada poucos meses depois, em agosto, apenas com Demonaz e Horgh. Dizem que Abbath não licenciou o nome, dando a brecha para que seus ex-companheiros seguissem trabalhando sob a mesma alcunha. Apollyon seria posteriormente convidado para reestabelecer o power trio que configurou o Immortal na maioria de seu tempo inativo. Em 2018 esta formação lançou um álbum, até a data deste texto o último do Immortal.

Atualmente (já há mais de um ano), Demonaz e Horgh travam uma batalha judicial entre si pela propriedade exclusiva ou dividida do nome da banda, sem contar que Abbath nunca desistiu do assunto. Curioso que Demonaz insista no tema, haja vista considerar-se mais “qualificado” para sustentar o nome Immortal, sendo membro fundador. Horgh, que pulou no barco consideravelmente depois, considera que, embora Demonaz deva ser justamente reconhecido como associado à marca, também trabalhou o suficiente no projeto para compartilhar deste direito.

2. AMPUTATION: OS PRIMÓRDIOS

Sob a alcunha Amputation existem duas demos. É impossível determinar a residência norueguesa da banda pela sonoridade, já que ela se diferencia inclusive do som do Old Funeral, considerado bem genérico. Tampouco podem-se distinguir influências puras ou inspiração muito clara das verves sueca ou floridiana que então grassavam no death metal. Trata-se mais de um híbrido enfurecido de deathrash – na 1ª demo – similar ao que se produziu por aqui, no Brasil, em anos pretéritos, pelo Sarcófago e principalmente durante a fase Schizophrenia do Sepultura, não só nas composições mas até na atmosfera e na qualidade análoga da produção (como se não bastasse, Abbath consegue lembrar bastante o gutural do Max Cavaleira neste material!).

Na 2ª demo os elementos de death se sobrepujaram, diminuindo-se a velocidade e aumentando a ambientação, o que sinaliza claramente uma transição entre o death, ou pelo menos o BM de 1ª onda (característico dos anos 80), e o BM em si (de 2ª onda), se cotejamos com a primeira demo do já assim cognominado Immortal (i.e., com a 3ª demo desde a montagem do grupo, caso ele continuasse se chamando Amputation).

O que mais chama a atenção na primeiríssima demo são os vocais de Abbath, com balbuceios semi-gritados, cheios de interjeições à guisa de Tom G. Warrior – ewww!!!, ahhhhh!!, etc. –, risadas maníacas e uma série de esguichos primitivos. O inglês é entrecortado, nem todas as sílabas são pronunciadas, e o sotaque de Abbath é visivelmente estrangeiro, o que só aumenta o charme da exibição. Seria mais ou menos como fundir os estilos vocais do cantor do Incubus da primeira gravação do Serpent Temptation¹ e do Angel da brasileiríssima Vulcano.

¹ Lembrando que esta banda de deathrash gringa regravou este álbum com outro vocalista logo depois. Então, se você ouviu o disco, não necessariamente ouviu na voz em comento!

Na primeira demo o Amputation não economiza em velocidade e intensidade, com raros interlúdios mid-tempo com palm-mute na guitarra. Os solos estão bem-espalhados pelas composições e tornam o som ainda mais abrasivo. A bateria parece um cavalo de batalha. O blast beating é mandatório já nesta fase do death, ainda que estejamos falando de uma banda com um pé no thrash, sem se fechar num só subgênero. Portanto, podemos dizer que é um dos materiais mais extremos do death metal norueguês ainda em desenvolvimento naquele 1989.

Slaughtered in the Arms of God, o título da segunda demonstração, é o Amputation em continua mutação. Quem fizesse o download em duas ocasiões separadas poderia nem notar qualquer vínculo entre ambas as demos e julgar que a homonímia na autoria fosse só uma coincidência! A qualidade do material nos faz perguntar como raios o Old Funeral é hoje bem mais conhecido que o próprio Amputation… Talvez a razão não tenha qualquer fundamentação estética ou musical: lembremos que o OF contou com a breve presença de Varg Vikernes no baixo (já depois da saída de Abbath).

Se a primeira demo era um incontestável deathrash, a 2ª puxa mais para um dark death, resvalando inclusive no gótico, bem soturno e maligno. Embora o thrash não tenha sido completamente olvidado por contarmos com linhas de guitarra derivadas de Possessed e Autopsy, deu-se mais um passo para fugir do template amarradão do “metal mainstream”, se assim podemos dizer, numa cena que estava mudando tão rápido que de vanguarda em poucos anos o thrash estava se tornando a cada novo dia mais sinônimo de clichê. Os blast beats continuam, mas o ritmo não é tão frenético quanto o da primeira demo. O vocal segue na mesma linha, senão mais grave e cavernoso – é quase admirável que se trate do mesmo dono dos guinchos roucos e ásperos dos dois primeiros álbuns do Immortal (não que Abbath não tenha continuado por muitos e muitos discos como vocal, mas mudou, reconhecidamente, o estilo ainda mais, posteriormente, para algo um pouco mais parecido com um vocal death, o que ainda não é deixar seu terceiro estilo de canto condizente com o primeiro!). Não é exagero dizer que nesses registros Abbath pode ter mandado vocais mais baixos e graves que os do próprio Chris Barnes no começo do Cannibal Corpse – para que o leitor entenda o nível quase inumano de gutural aqui alcançado! Nessa “reformatada a meias” que a banda deu no seu estilo de uma demo para a outra, podemos dizer que desincorporou-se um pouco do Deathcrush (Mayhem) que estava injetado no grupo e injetou-se, em troca, mais de Morbid Angel.

Nesse som mais devagar, intenso e controlado, a banda quis transmitir, quiçá, uma maior coordenação sobre seus movimentos, maior domínio conceitual sobre cada instrumento, alterando a feição do som num lapso de poucos meses – com o fito de duas, uma: ou queriam divulgar inteligentemente e com esforços mínimos (6 canções) duas faces de seu versátil talento a fim de atrair o maior número possível de gravadoras; ou a evolução foi autêntica e sincera das unhas à raiz dos cabelos e os músicos treinaram e compuseram muito nessa época, buscando realmente deixar a sonoridade da 1ª demo completamente enterrada. A segunda demo é mais limitada que a irmã mais velha no quesito dimensão, pois apresenta somente 2 faixas. O mais engraçado é que a próxima demo, já como Immortal, será mais diferente da segunda do que a segunda era em relação à primeira: adentraremos no completo raw black metal sem meios-termos!

3. DESAMPUTADO E IMORTAL, MAS RESSAQUEADO?

Hervé Herbaut, dono da Osmose Productions, foi o primeiro representante de gravadora fisgado pelo som do Amputation e se lembra muito bem da transição do som da banda, que observou detidamente. Seria uma história de sucesso com 2 lados felizes: Immortal e Osmose estariam juntos por 6 full-lengths. “O que me atraiu em direção a eles foi esse deslocamento do death metal ao black metal em tão pouco tempo. Falava muito ao telefone com o Demonaz, que sempre nos prometia algo diferente do que ouvimos nas demos do Amputation, e isso foi cumprido quando saiu o primeiro disco do Immortal. Mudando de assunto, a primeira vez que eles vieram fazer entrevistas por telefone à imprensa especializada, no nosso antigo escritório, lembro que o Abbath não parava de vomitar de tão bêbado.”

4. A ERA TRVEANTI-TRVE: STORYLINE DA BANDA

A primeira demo do Immortal veio um ano depois da banda abraçar por completo o death metal sob a alcunha Amputation. Incrivelmente, o som estava mais primitivo do que nunca. Mais primitivo e, aliás, menos brutal – como mandava a estética do novo movimento. Não literalmente falando: a estética estava sendo criada, não era imposta, não existam ainda cânones, e o Immortal fez parte dessa forja que se tornaria legendária. O timbre da guitarra e o ritmo inclemente passam uma atmosfera de aspereza gelada, de som frio e setentrional. Esse sentimento inefável ao ouvir a técnica musical do grupo seria depois elevado a trademark do novo gênero, o True Black Metal (o True, em letra maiúscula, servindo para identificar o trio como norueguês, berço territorial da estética que seria exportada mundialmente).

Adeus definitivo aos vocais guturais e estupidamente abissais de Abbath: seu novo estilo era um silvo, ainda gutural, é lógico, agudo, que não vinha mais das entranhas mas da própria garganta, como se o ar não tivesse mais tempo de se elevar dos pulmões e tivesse de ser expelido imediatamente na cara do ouvinte, deparado com o sistema fonador de um ente alienígena alvinegro (referência a sua icônica maquiagem minimalista e monocromática inspirada no K.I.S.S., da qual ainda falaremos bastante). A produção não pode ser considerada perfeita para o mainstream listener, mas é exatamente o som que muitas bandas do reduto black procurariam ano após ano: muito reverb (eco), as notas das cordas e o bumbo tribal da bateria saindo abafados, como duma caverna mefítica. Das duas exíguas faixas dessa demo reinstauradora, Cold Winds Of Funeral Frost (rebatizada …Funeral Dust para o “álbum cheio” na seqüência) seria o destaque máximo.

O que pouca gente comenta é que o Immortal é cronologicamente a primeira banda de black metal norueguesa da second wave. Que me desculpem o maior relevo na cena do Mayhem e o óbvio primor de execuções primordiais (com as desculpas pelo trocadilho cacofônico) do próprio Mayhem (no template BM em si, no De Mysteriis, 1994) e de outros virtuoses como Emperor e Burzum – mas este patinho feio Diabolical Fullmoon Mysticism é quem merece os louros do pioneirismo mais bruto, tosco, cru daquele distante 1992. O som de catacumba das inúmeras demos do BM de garagem do Ildjarn já está todo aqui, em germe; parece que os membros da banda estão tocando a 20 metros do ouvinte, e cada um a pelo menos 5 ou 7m um do outro! A aura é inacreditável.

Dizem que a melhor aclimatação com este álbum (ou este tipo de álbum) só pode ser obtida ouvindo-se-o no meio de uma nevasca noturna. Infelizmente, nós habitantes de terras tropicais jamais saberemos o que é isso. Podemos, todavia, elogiar a sensação de sermos transportados para longe enquanto ouvimos suas faixas em pleno verão ou estação das secas em Brasília, como é o meu caso, e até à luz do sol de meio-dia.

Não que musicalmente seja algo tão inédito. Blood, Fire, Death e The Sign of the Black Mark, para citar só 2 obras do Bathory, têm certamente sua cota de influência nas composições de Fullmoon. Ainda assim, se é que há grande quantidade de imitadores por aí, é raro até os dias de hoje ouvir uma obra de BM que replique exatamente essa atmosfera.

Blashyrkh, uma espécie de nirvana macabro e horrendo, refúgio dos horrores da raça humana, onde se encontra a serenidade em face da imponência da natureza, com suas montanhas de gelo eterno e desertos de neve, espécie de dimensão não-euclidiana “acessada” pelos membros do Immortal e descrita esparsamente nas letras de quase todos os seus álbuns, surge modestamente em Fullmoon, num par de versos perto do final do disco. É na penúltima faixa, Blacker Then Darkness, talvez o ataque mais intenso (a segunda canção mais rápida, e certamente aquela com mais wall of sound e atmosfera mais ominosa) desferido no disco. Depois o conceito seria revelado mais integralmente aos fãs em canções como A Sign for the Norse Hordes to Ride (Pure Holocaust) e o tema-título de At The Heart of Winter, e ganharia seu próprio hino, Blashyrkh (Mighty Ravendark), epílogo do 3º disco, Battles in the North.

A explicação lógica para essa criação do imaginário vem de Demonaz: “Quando começamos nisso, nos sentíamos realmente sozinhos; era uma comunidade muito reduzida de pessoas no extreme black metal aqui em Bergen. Talvez 4 ou 5 pessoas, contando comigo e o Abbath. Nos sentíamos em antagonismo para com todos os outros. Já que quando nos reuníamos entrávamos no nosso próprio mundo, formamos o reino de Blashyrkh. Ele evoluiu ao longo dos anos, e de cada novo álbum, mas essencialmente ainda é o mesmo, se baseia no mesmo espírito. É um lugar que só nós temos a chave para abrir. Não é uma mitologia, uma criação literária, por exemplo. É uma forma de sentir o poder. Uma mística, uma experiência. São nossos lados negros, propriamente falando, que atravessam. O Immortal compõe dentro do Blashhyrkh. É nossa maneira sui generis de descrever nossos entornos e imediações.”

Até as efêmeras partes com guitarra acústica compõem maravilhosamente bem os interstícios de Fullmoon. Ao contrário de outros raw black metal, este disco possui até solos. Nada perto de Van Halen ou do thrash; mas nada tão repudiável como um risco de giz no quadro negro feito de sacanagem pelo professor que requer a atenção da turma, nem nada tão baixo ou encorpado como um solo de Pantera, que faria um fã de Immortal torcer o nariz. São mais melódicos e longos do que uma banda primitiva costuma acoplar a suas composições; entretanto, pode-se dizer que não são estranhos ao contexto.

Pesando todos os fatores, talvez seja este o canal mais acessível do forasteiro ao movimento True Norwegian Black Metal, pois há mais elementos do protoblack metal (anos 80) que nas demais bandas da cena (Gorgoroth, Enslaved, Darkthrone), o que não significa falta de inovação, já que teclados não eram solução comum em 92 para esse gênero tão iconoclasta, e o Outro (desfecho) do disco utiliza-o magistralmente para dar aquele toque de minimalismo e melancolia, não muito distante do timbre de guitarra mais depressivo e esquizofrênico de um Burzum, em termos de efeito ocasionado no ouvinte.

Aquele que se aventurar, eu diria, pelos 3 primeiros alguns do Immortal, deverá ser avisado: a ênfase está menos na memória individual das composições e mais no efeito hipnótico que a reprodução de todas as faixas em conjunto produz no ouvinte. Ia dizer no efeito hipnótico que desperta – mas seria uma contradição em termos. Ao ouvido destreinado ou intolerante, soará repetitivo, sem dúvida. Ninguém será visto assoviando riffs de Fullmoon Mysticism ou Pure Holocaust no meio da rua ou na fila do caixa…

Vale lembrar que Armagedda, baterista seminal da banda, gravou o Fullmoon mas já não estava no Pure Holocaust, de 93, cuja bateria foi gravada pelo próprio hiperativo Abbath, guitarras/vocais/batera da banda nestes tempos. Abbath não largaria a percussão até o 4º disco. Para apresentações ao vivo no período, foi recrutado Erick “Grim” Brødreskift, que se suicidaria em 1999 (ele também passou por outros grandes do gênero como o Gorgoroth). Em tributo, o Nargaroth compor-lhe-ia Erick, May Thou Rape The Angels (Erick, Que tu estupres os anjos). Singelo!

O Pure Holocaust foi marcante pra mim”, diz Peter Tägtgren, frontman do Hypocrisy e produtor dos 4 álbuns do Immortal entre At The Heart of Winter e All Shall Fall (1999-2009), além de empunhador do baixo em algumas exibições ao vivo da banda no século XXI. “Sempre estive na cola da Osmose para tentar trazer os caras para minha gravadora. Por uma ou outra razão, nunca ‘captaram minha mensagem’, isso até que se passasse meia década.” Essa entrevista foi concedida em 2009. Do Pure Holocaust aos 5 anos citados, migramos, assim, de 93 a 98, ano em que Tägtgren finalmente firmou contrato com o Immortal.

Com sua capa branca cor da neve – faceta sem precedentes no black metal – Battles in The North (1995) cimentou a lenda Immortal – imortalizou os membros no hall da fama? Mais ou menos. Não é que o Immortal não tenha produzido e não produza sempre barulho, clamor e algazarra em discussões exaltadas sobre o BM. O que não está nunca garantido de antemão é se se trata de louvor do mais enaltecedor ou de puro repúdio e ojeriza. Numa palavra, o Immortal ingressou no hall da (in)fâm(i)a do black metal, por colidir com vários cânones do gênero (que eles ajudaram a fundar, veja a ironia). Sinceramente, a “capa branca de neve” foi só um pretexto para os fundamentalistas empilharem outras razões de “por que não vamos com a cara do Immortal”. Começaram a pipocar questões como: “Por que Euronymous (do Mayhem) ajudou esses caras? Eles não são satanistas de verdade, nem pagãos, nem fascistas, nem queimam igrejas! Não são homofóbicos, não ameaçam outros membros certinhos da cena, não brigam, não matam – eles só tocam música mesmo?! O que eles fazem usando a label black metal – e, pior, True Norwegian?! Quem o Abbath pensa que é pra inventar um novo estilo vocal no subgênero, esse coachar de sapo irritante? E que poses ridículas são essas nos clipes e apresentações? Eles são uma auto-sátira? Qual é a desse corpse paint mainstream e fanfarrão? Por que eles melhoraram a produção depois do 1º CD e agora incorporam elementos do ‘inimigo’ thrash?” Todas questões, como se vê, irrelevantíssimas ou boçais, se é que não meramente retóricas, posto que de respostas muito óbvias. Mas é justamente por isso que tais questões são de importância para o fã xiita da “cena underground”, o imbecil médio das legiões de adoradores (e odiadores, na maioria do tempo).

O videoclipe da música Grim and Frostbitten Kingdoms, icônico até mesmo para comentaristas de Youtube deste 2022, não ajudou a diminuir a “polêmica” em torno do trio à época, ousando usar a paleta de cores “inversa” à preconizada pelos “metaleiros extremos”. Dizem que os ouvintes mais contumazes da banda podiam morrer de overdose de vocábulos como frostbitten (quando tecidos orgânicos ficam inutilizados ou gangrenados devido ao frio intenso) ou grim (vários adjetivos em português, todos eles ominosos – eis um deles!). Ou seja: bandas com personalidade e uma estética definida, se não fosse uma estética ou outra (de uma das outras três bandas trve do movimento, todas de Oslo ou Bergen), estavam terminantemente proibidas – “FORA IMMORTAL!!!”

A despeito do exagero [não era tão preto-no-branco (pun) assim, a banda sempre dividiu opiniões, mesmo nesses setores mais subterrâneos cheios de “opiniões instintivas”, i.e. acéfalas, nunca sendo consensualmente idolatrada ou execrada, para dizer a verdade e ser mais fiel aos fatos] que eu promovi nos 2 parágrafos anteriores, ele é simétrico ao exagero caricato dos críticos linha-dura, por isso o estilo histriônico veio bem a calhar para falar da singularidade chamada Immortal dentro desta outra singularidade chamada cena black-norueguesa. Seja como for, um elemento discreto que chama muito a atenção neste clipe minimalista acima citado é Jan Axel “Hellhammer” Blomberg, o baterista mais rodado da galáxia. Aparentemente ele não quis usar corpse paint para gravar – o que significa que ele achava coisa de poser o tipo de maquiagem adotado por Abbath e Demonaz… ou que isso fazia parte de alguma piada ou sarro do trio perante o público preconceituoso, ou nenhuma dessas duas coisas… Só estou aqui especulando para alimentar mais debates xiitas, cof cof… Fato é que o baterista em questão parece um Jesus Cristo deslocado no clipe! O que deve ter aumentado a raiva de alguns não-simpatizantes é que Hellhammer é tido por muitos (pelo menos na década de 90) como o baterista de técnica mais abençoada no gênero. Impossível ter alguém mais trve no kit, em outros termos. Quem acha que o Immortal não é trve, perdeu uma grande batalha ou recaiu em contradição quando meteu o pau no clipe…

O Battles In The North vem a ser o disco do Immortal favorito de Herbaut, chefão do estúdio que o lançou: “Foi arriscado lançar essa arte branca, fomos e ainda somos muito insultados por causa disso. Mas, musicalmente falando, eu estava totalmente boquiaberto com a direção que a banda adotou, e muito confiante nos resultados!”

Blizzard Beasts (1997) é a quarta obra de estúdio. A partir do processo de elaboração de BB e da turnê subseqüente, Horgh passou a ocupar o posto de baterista, onde se sedimentaria. Porém, não é segredo de ninguém que em muitas das gravações, tanto na deste quanto na de 2 dos discos pretéritos, Abbath é que “sujou as mãos” no kit. Este álbum é bastante criticado, e autocriticado, diríamos, pois assim se expressou Abbath sobre BB (em 2007): “Tentamos tocar rápido além da conta”. Até o fã de longa data e futuro produtor Tägtgren tende a concordar. Blizzard Beasts foi um álbum caótico. Eu não conseguia acreditar nos meus ouvidos quando pus o disco para tocar a 1ª vez. Puta merda! Que porra é essa?! Era tudo muito intenso, muita coisa rolando, e o som estava uma merda! Eu fiquei sem entender!” Adianto que discordo ao extremo: Blizzard Beasts é meu favorito do Immortal. Mas chegaremos num espaço em que eu tenha mais espaço para emitir esses juízos pessoais, se é que me entendem…

Segundo a perspectiva da própria banda e do novo encarregado dos últimos retoques de estúdio, a obra seguinte, At The Heart of Winter (1999), foi a redenção, uma gélida e polar vingança do jeito que o Immortal gosta de promover. Foi neste ínterim que a grave tendinite de Demonaz arrancou-lhe a guitarra. Abbath tocaria, portanto, os dois instrumentos de cordas em estúdio. A crítica especializada gostou da injeção criativa que esta mudança não-planejada trouxe ao som: a conceituada Terrorizer deu nota 9/10 ao trabalho. At The Heart of Winter não deixa de ser um ponto de transição para todos nós. O Peter nos ajudou a achar o som correto para a banda.”

Antes de gravar Damned in Black no ano seguinte, Abbath passou o baixo para Stian “Iscariah” Smørholm para se concentrar na guitarra e na voz. O pessoal também não curtiu muito este álbum “preto” (na estética de capa e no título) e “death”, i.e., conceitualmente oposto ao black como a água ao óleo ou o yin ao yang. Foi o capítulo de encerramento com a produtora Osmose. Herbaut diz que isso não teve nada a ver com qualquer discórdia, já que a decisão de sair foi da própria banda. “E a verdade é que nós não tínhamos a grana que eles pediram para renovar, o que eu acredito que fossem uns 280 mil euros, se não me engano.”

Como se já não abundassem os motivos para serem repelidos por facções ortodoxas do underground, o Immortal fechou com o selo main Nuclear Blast. Sua nova “casa” seriam os estúdios e as pastagens bem verdes de Donzdorf, Alemanha. Até hoje o contrato é confidencial, então ninguém sabe o vulto da grana envolvida. No começo de 2002 saiu o primeiro filho desta parceria, Sons of Northern Darkness, título que saiu de um verso da canção Storming Through Red Clouds and Holocaustwinds (Pure Holocaust, 1993). Considerou-se um “retorno ao acme” para os artistas. Mas seria a última gravação da banda por pelo menos 7 anos e meio.

No quesito “exaltar a magnitude das paisagens naturais”, talvez o Immortal seja a legítima primeira eco-black metal band, antecedendo-se em muito à hoje popular Wolves in The Throne Room e suas tantas loas à região setentrional da Cascádia (abrangendo o ecossistema de vários estados dos EUA e do Canadá), zona de proteção ambiental que seguirá tanto melhor quanto menos for tocada pelas oleosas mãos do homem capitalista. Ao todo, o Immortal compôs cânticos ecológicos e macabros (no sentido blackmetaliano) 15 anos mais cedo; mas por alguma razão insistem em se lembrar mais dos passinhos de caranguejo do Abbath…

Eu não me envolvo com política ou religião, e o Immortal não é um palco ideológico ou um culto – isso é para bandas punk”, esclarece Demonaz. Nisso, Wolves in The Throne Room são realmente outros quinhentos: eles são notórios anti-trumpistas, “esquerdopatas”. Os europeus são infinitamente mais comedidos nesse tocante. “O que nos mobiliza ou concerne são o épico, o apocalíptico, o sentido sombrio das coisas, que leve uma assinatura escandinava – sempre do ponto de vista da Escandinávia. Sou indiferente à religião; não tenho o que dizer sobre pessoas que pregam ou profetizam; nem contra ou a favor, porque esses fenômenos não me tocam, eu desconheço qualquer relação com esta esfera. Claro que eu posso dizer que me associo a humores diabólicos, a uma atmosfera nebulosa e densa, coisas que existem de verdade. Posso considerar como nosso tema a escuridão de um modo geral.”

Sobre a Mãe-natureza e seu lado imprevisível e decerto retaliador, Demonaz considera que não teremos tempo para testemunhar as piores hecatombes conscientemente: “Penso que as pessoas subestimam a natureza. Acho que a maioria esmagadora não tem qualquer conexão com ela, não a freqüenta nem a busca, portanto não a sente. A natureza não julga moralmente; não teria qualquer problema ou hesitação em destruir a humanidade de uma vez; pode acontecer de repente, a qualquer dia. Eu acho que de alguma forma nossa era é a era desse final, que se aproxima. É meu sentimento profundo. Quando penso nas coisas que o homem promoveu em larga escala, creio que, se pudesse encarnar emoções humanas, ter algum propósito, a natureza gostaria de executar uma vingança sobre nós. Esse aliás é o principal mote do nosso All Shall Fall (2009).”

Oitavo full-length desta incansável horda de guerreiros monocromáticos, construído sobre um pântano de riffagens monstruosas, degelos, abominações e as promo photos intencionalmente ridículas de sempre, ASF, dentre nós há mais de uma década, ainda pela Nuclear Blast, é um daqueles retornos comemorados ou contemplados com assombro. Não é só a mãe-natureza que parece ter uma agenda maligna por meio deste disco: o trio, saído de um exílio auto-imposto, parece querer congelar e brutalizar todo o público musical a seu alcance em mais uma empreitada.

Por que a banda jogou a toalha por tanto tempo? Abbath Doom Occulta (primeira vez que cito o nome artístico completo de Olve Eikemo, que também quase nunca é conhecido pelo seu nome de batismo!), guitarra e vocais, Reidar “Horgh” Horghagen, o baterista que acaba de entrar no seu radar, e Stian “Iscariah” Smørholm (ex-baixista, que não voltou com a formação do All Shall Fall) haviam decidido fechar as portas por tempo indeterminado, embora seguissem bastante ativos musicalmente. Cada um deles se dedicou a projetos paralelos de menor ou maior porte. Iscariah se incorporou ao Dead to This World, grupo de blackthrash. Horgh pulou no barco do Grimfist, um grupo de thrashers mais puristas (além de ter participado do Virus, álbum de 2005 dos compadres do Hypocrisy), e Abbath, por fim, fundou um supergrupo chamado I, como já antecipáramos. Só tinha faltado dizer que Armagedda, o primeiro baterista do próprio Immortal, voltou a trabalhar com Abbath. Demonaz que nunca abandonou o Immortal de verdade, estando sempre nas composições e nos bastidores após a séria lesão em seus braços, também empreendeu sua jornada individual-conquanto-em-equipe, i.e., decidiu colaborar novamente com seu grande amigo Abbath, que por sinal é também seu ex-cunhado (podendo-se dizer que o filho de Abbath sempre o chamará de tio, ou seja, que os dois, além de um vínculo artístico de décadas, são praticamente parentes de sangue). As letras do material gravado pelo I, portanto, são da pena de Demonaz. O único full até hoje, Between Two Worlds (2006), é elogiadíssimo.

A verdade é que precisávamos dar um tempo. Há muitos porquês, mas não quero entrar em detalhes sobre isso. Não éramos inimigos internamente, mas lidávamos com um nível considerável de problemas, vindos sobretudo de fora, e isso repercutia em nossa relação, evidentemente. Nós 3 sabíamos, do fundo de nossos corações, que era só um hiato, não um fim, mas também não queríamos sair e divulgar isso para a imprensa, falar em datas, deixar pessoas na expectativa. Trabalhei no I e quando me apercebi já estávamos reunidos em estúdio gravando material novo, isto é, o Immortal estava ressuscitado. Eu sempre soube que esse dia chegaria, e não tive nenhuma ânsia, para que acontecesse de forma natural.”

Abbath

É fácil cair numa armadilha deixada por uma de dezenas de companhias e grandes gravadoras, e ver vários pedaços seus sendo abocanhados por manchetes insidiosas, uma pessoa aqui, outra ali. Os interesseiros. Não quisemos que o Immortal afundasse nesse ciclo. Antes que saísse do controle, preservaríamos a instituição.”

Demonaz

A propósito, já que essa entrevista da qual peguei a maioria das declarações dos membros do Immortal que traduzi foi realizada em 2009, ano do penúltimo álbum do artista, e já que todo blackmetaleiro gosta duma fofoca ordinária, Abbath foi perguntado sobre seu ex-colega Varg Vikernes, solto da prisão em maio de 2009. Depois de 16 anos de reclusão pelo assassinato do guitarrista Øystein “Euronymous” Aarseth, queriam saber do músico se ele já havia trocado uma idéia com o antigo companheiro de banda, o que ele gostaria de dizer a respeito disso tudo, etc.: “Não tenho nada contra o Varg; ele não fez nada comigo ou contra mim. O que ele fez, o que aconteceu, foi trágico; e não gostaria de tocar nesse assunto. Ele serviu seu tempo e está livre, e desejo que tome decisões melhores no restante de sua vida.” Inteligentemente, e sem ser grosseiro, Abbath mostrou que não tem nada a ver com os ‘feitos’ do outro, e a entrevista seguiu rumos mais objetivos!

A capa do novo álbum (All Shall Fall) retrata os portões de Blashyrkh”, elucida Demonaz. É apenas o 2º disco da banda sem uma foto do grupo, com algo simbólico no lugar dos rostos dos músicos em maquiagem pesadíssima. O formato do portão é o de um corvo bicéfalo – portanto, temos a paleta de cores mais escura dessa vez, se alguém se importar. “Não foi demorado conversar com o Abbath sobre a arte e chegar à conclusão de que era hora de deixar o público conhecer um pouco mais de Blashyrkh, ainda que apenas o umbral, a entrada. Sempre gostei do conceito por trás de Beyond The Gates do Possessed. Acho que o espírito aqui é o mesmo.”

Para mim a era da internet é a idade das trevas. As pessoas podem ver tudo sem se conectar com mais ninguém. Acho que isso esconde uma espécie de desespero generalizado. Muitos grupos musicais estão neste mesmo desespero. Farão qualquer coisa para ser notados. Não pensam duas vezes em se inscrever para programas como o American Idol, se expor numa variedade de reality shows… O limite da vida privada que eles expõem no MySpace ou Facebook quase não existe! Tudo, absolutamente tudo hoje, é na base da autoexposição. As pessoas são inseguras, estão lá, sentadas em casa, tirando centenas de fotos delas mesmas e publicando na internet. Acho que uma quantidade relevante de pessoas sente uma crise de identidade por tocar a vida dessa maneira.”

Demonaz

Depois de conseguir derrubar uma série de perfis do Facebook que se faziam passar por ele, Abbath concorda com a perspectiva de Demonaz sobre a Era da Interfossa, como chamam. “Não tenho redes sociais, só uso a internet para trocar e-mails. Fiz nosso agente postar no nosso site oficial sobre impostores: qualquer um que aparecer se dizendo o Abbath, que os fãs saibam que não sou eu, não dêem ibope. Não tenho problemas com o pessoal dos memes, do humor, que tira sarro da estética do grupo e tal. Mas somando iniciativas particulares tudo isso pode virar um oceano caótico. Tudo bem parar um pouco e se divertir, mas dedicar a vida a emular um determinado outro, ou a opinar sobre o outro? Essa é sua vida? Que porra é essa que o mundo virou?”

Demonaz é ligeiramente mais conciliador que seu parceiro: tem um MySpace (lembre-se de que a entrevista é de 2009) e, claro, um endereço eletrônico de caixa postal. Mas ele diz que o negócio é “não moscar” nesses espaços. “Lido com as novas tecnologias a minha maneira. Todos se deixam afetar demais por essa coisa toda; respiram a world wide web, não podem viver sem ou fora. Olha, me sinto muito feliz de ter crescido antes de tudo isso. Meu público, meu trabalho já estavam sedimentados quando começou essa era. Bom, diria que ter um equilíbrio na vida pessoal só ficou mais difícil nesse novo milênio – eu até diria que o Blashyrkh faz parte da nossa resposta para esse dilema, a busca de um equilíbrio pessoal, de uma integridade apesar da sociedade da informação lá fora.”

Pode-se dizer que a maquiagem do Immortal é a mais característica e marcante desde o K.I.S.S. Muitas vezes a “arte facial” de Abbath é sinônima de black metal em si, goste-se ou não. “É simples e direta. No comecinho da banda, usávamos só a parte branca da maquiagem. Um dia fiquei de frente para o espelho e comecei a experimentar uns lances. Fiz isso que você está vendo aí, uma coisa meio Gene Simmons mesmo, com a maquiagem preta, e encaixei no restante da maquiagem branca que já usava. Imediatamente senti que era isso! Mostrei pro Demonaz e ele foi tão rápido quanto eu em concordar. Muita gente acha graça, acha burlesco. A gente se fode pra isso. Nós damos a última risada sempre!”

Para Abbath, a “pintura de guerra” (corpse paint pode ser chamada também de war paint no estilo) é o que facilita sua transformação de Olve Eikemo para uma besta da tormenta parecendo um urso bípede de armadura ou um emissário do deus-trovão, uma espécie de Hermes que deve comungar com as massas: “A maquiagem me torna Abbath; eu sempre sonhei com isso, desde moleque. Como Alice Cooper diz que foi o caso dele no documentário Don’t Blame Me, sou do clube dos dupla-personalidade!”

Para Demonaz o ritual não é menos importante, embora no momento desta entrevista ele não subisse mais ao palco. “Mesmo assim eu ainda me maquio, como nos velhos tempos. A última vez foi para a sessão de fotos do All Shall Fall.” Talvez de um modo ainda mais crucial, a maquiagem demarca a separação dessas entidades, Demonaz e Abbath: Com o I e sua banda particular cover de Motörhead, Abbath não usa corpse paint. Demonaz, da mesma forma, está usando o rosto limpo nas promo photos do seu próximo projeto, dessa vez individual mesmo (sem Abbath), epônimo. (O álbum, March of The Norse, é de 2011, mas como eu-lírico de quem realizou recentemente uma entrevista, ficaria meio esquisito jogar a obra para um passado remoto!¹ Por razões que ficarão evidentes ao longo desta matéria, MoTN foi o único álbum do copyright Demonaz.) “Neste caso, o cosmético representa muita coisa: sem maquiagem, sem Immortal!”, ambos são concordes.

¹ Juízo pessoal acerca da obra: muita espuma para pouca qualidade. Um disco de power metal “sujo” e lento aparentemente apreciado pela crítica; para mim, riffs sem-graça repetidos ao longo de arrastados 40min. Dispensável. Veja este parágrafo de uma resenha: “É fato que escutar um mesmo padrão simplificado de novo e de novo pode causar ou induzir um estado de transe. Simples como são, as composições geram esse efeito. Após muitas ouvidas, cheguei à conclusão de que o efeito foi pensado antes da composição, este álbum foi planejado milimetricamente. É como se cada música fosse um riff e MotN se reduzisse a uma única canção com 9 riffs.” É exatamente isso: chatice – se planejada ou não, deixo a critério do ouvinte! Para encerrar, mais um fragmento, de outra resenha, para o pessoal técnico que entende de notação musical: “Eu posso jurar que, tirando a intro acústica e o interlúdio, TODA FAIXA DO DISCO TEM O MESMO 6/8 COM GALLOPS!”

Nunca vou esquecer uma certa noite de 1991. Eu e o Abbath estávamos remando num barco da vó dele, do lugar que a gente morava até uma ilha. Usávamos maquiagem completa e caminhamos em terra a noite toda bebendo uísque quando chegamos. Nos separamos e trilhamos por uma hora até nos reencontrarmos. Queríamos sentir a atmosfera, aquele silêncio. Havia uns turistas lá e acho que nós demos um puta susto neles. O pânico deles era ver, na calada da noite, dois elementos que eles não compreendiam, que eles não esperavam em absoluto encontrar. Lá pelas 5 ou 6 da manhã, voltando para a casa do Abbath, vimos que as ruas estavam estranhamente desertas, ninguém por perto. Um ônibus escolar estava parado na estrada de terra, o motorista sozinho. Acho que se ele pudesse esconder o veículo no mato ele o teria feito, quando nos viu. Tudo isso foi porque aqueles turistas nos viram e logo espalharam a notícia que dois malucos, selvagens talvez, demônios, estavam andando por aí. Realmente é de se pensar: o que eles achavam que nós queríamos com eles ou o que nós estávamos fazendo de verdade?” Demonaz

Essas sessões de varar a noite com corpse paint se tornariam a base para a comunidade místico-xamanística que foi criada entre Abbath e Demonaz, sempre com um terceiro membro alternativo, em meio à atmosfera enclausurada do Immortal. No ano de 2009 os dois foram em setembro para uma espécie de “acampamento” ou “jornada” por Lofoten, nas regiões setentrionais mais remotas da Noruega. Esse é o conceito de férias (e nunca diga “férias de verão” quando o assunto for Immortal!) desta dupla! “É um lugar sensacional de onde se pesca praticamente todo o bacalhau norueguês”, Abbath esclarece. “Nós vamos a essas montanhas e sempre encontramos novas inspirações boreais para novas composições!”

Já divorciado, Abbath no entanto revela que mantém uma relação muito amistosa e próxima com a ex-mulher, irmã de Demonaz, conforme já situamos. Hoje (2022) o filho desse casamento tem 27 ou 28 anos. Para eles, parentesco genealógico é um de seus vínculos secundários ou casuais, em que quase nunca meditam. “Eu e o Demonaz compartilhamos da mesma cosmovisão, ele é minha outra metade; cruzamos a mesma encruzilhada – sempre foi, sempre será. Raramente nos desentendemos.” Mais adiante vamos ver que sinuosas curvas essa relação umbilical apresentou ao longo do tempo!

O Abbath pode me ligar no meio da madrugada e sem esperar nenhuma frase eu vou interrompê-lo para dizer: ‘Caralho, eu tava pensando nuns riffs!’… E ele: ‘Pois é, foi por isso que eu te liguei!’. Estamos em diálogo sem estar, é assim continuamente. É quase telepático.”

Como dito, Demonaz teve uma séria lesão nos braços que o impossibilitou de continuar tocando em alto nível (ainda mais riffs de metal extremo) em 1999, mas ele nunca deixou de estar em todo show, no camarim, trabalhando com a banda, estabelecendo contatos, fazendo o social e participando da parte criativa em si: “E se eu não estiver lá na hora, o Abbath não vai tocar do mesmo jeito. Temos essa conexão espiritual. Trabalhamos juntos há pelo menos 20 anos, não é como se fosse uma coisa de ontem!”

Não seria o Immortal sem o Demonaz e suas letras, então é bom tê-lo ao lado para os shows”, Abbath endossa. “Ele está sentado ao meu lado no hotel enquanto faço a maquiagem. Temos um papo, eu ponho Motörhead nos fones – eu sempre coloco Motörhead quando estou fazendo esse ritual pré-show. Durante o show ele fica entre o cara da mesa de som e o cara das luzes e vai controlando e gerenciando tudo de um ponto de vista privilegiado: ‘Mais fumaça! mais gelo seco, porra!’.”

Para Demonaz, esse ritual tão consagrado do amigo é “parte da magia”: “Um dos melhores momentos para mim sempre vai ser essa meia hora antes de uma apresentação, antes de subir no palco, quando o Abbath está retocando o rosto e estou por perto. Sentimos evidentemente aquele frio na barriga de mostrar ao mundo e aos interessados o nosso trabalho, as nossas entranhas. Adoro essa parte: eu gosto quando antes da batalha soam as trombetas!”

Em 2007, por exemplo, a banda, quase sempre em trio sem contar o “quarto elemento” Demonaz, isto é, a dupla fixa do Immortal mais 2 músicos de estúdio e de palco, preparava-se para expandir a irmandade dando as boas vindas a O.J. “Apollyon” Moe, numa das constantes mudanças de membros seja no baixo ou na bateria, os instrumentos não-originariamente manipulados por Abbath a não ser em caso de necessidade. Apollyon é mais conhecido por seu desempenho no posto de baixista com a banda de black-thrash de Oslo Aura Noir. “Foi um convite bem direto e informal do Abbath para me juntar à banda, e meu sim foi imediato. Immortal é uma das poucas bandas que me fariam dar esse aceite instantâneo, sem reflexão. Gosto de todas as fases do Immortal. Sobretudo nos shows – o Abbath é um rei do entretenimento, e o Horgh tem uma presença de palco inigualável. E em vez de recear a responsabilidade só me veio à mente: com tudo isso, eu não posso arruinar nada, vai dar certo com certeza!”

Como Apollyon mora a 10 horas de carro da sede dos ensaios do Immortal, eles não se reuniam tanto assim nessa formação. “Não, não fazemos tanto, no quesito quantidade, mas compensamos em intensidade quando por fim nos reunimos. Antes de um show específico ou uma turnê, faço uma viagem para ficar uma semana ‘enterrado’ no estúdio e ensaiamos todo santo dia. Mas é aquela coisa: somos veteranos, não precisamos mais ensaiar tanto como antigamente, tudo que cada um de nós faz já fez muito na vida! É até perigoso ensaiar demais porque você acaba cansando do seu material, e você pode identificar um músico enjoado de suas performances assistindo-o. É fácil notar a diferença do artista estimulado para aquele que não está. Então creio que esse é o melhor arranjo de todos.”

No momento dessa entrevista que transcrevo, a banda, curiosamente, antes mesmo da turnê do All Shall Fall, vislumbrava um rápido próximo disco, já contando com 4 canções inéditas. Não sei se saberemos um dia exatamente quais eram, nesse ponto. Abbath declarou àquela época que não levariam outros 8 anos para lançar mais uma obra. Ironias da vida… Abbath atribuía à mãe-natureza, de qualquer maneira, a última palavra, misturando, mais ou menos, o destino da banda, as letras do Immortal e o papo anterior sobre Juízo Final: “A humanidade nunca mudou tanto em tão pouco tempo. Não sei se veremos o fim do mundo, mas será definitivamente o fim do que costumava ser. Prepare-se para o caos com um belo sorriso no rosto – encare a coisa sem medo. Ouça Immortal.” O carrasco ou Anjo marqueteiro? Talvez. Carismático? Com toda a certeza!

Depois de ler tantas menções a uma relação transcendental de amizade e trabalho entre Abbath e Demonaz, aspecto que eu desconhecia antes de entrar nessa “terceira ou quarta” jornada de “Immortal da manhã à noite”, me propondo a pesquisar mais sobre a banda para completar a história do EVOLUTION OF THE CULT, fiquei ainda mais pasmo com o desenrolar dos últimos acontecimentos, i.e., o que aconteceu com o Immortal de 6, 7 anos pra cá. Vamos por partes!

Sobre o Northern, se escutá-lo bem você entenderá por que não aposentamos a banda. Tivemos complicações e desentendimentos no passado, com o Abbath, em 2003, então o melhor foi parar por um tempo. Quando aconteceu uma segunda vez (2015), para mim ficou claro que tínhamos de seguir cada qual seu caminho. E confesso que esse álbum não estava nos planos [lembra que eles já estavam com este novo álbum semi-gravado?]. Quer dizer, na verdade, sempre que eu sento para criar e compor, com quem quer que eu esteja trabalhando, sempre sento para criar o álbum definitivo do Immortal. Com cada álbum foi assim. Estamos bem sem o Abbath, podemos lidar com isso. Aconteceu, e ele está em outra e nós estamos aqui, simples assim.”

Não acho que seja simples assim!…

Não trabalhamos conceitualmente. Fomos gravando canção por canção. Tudo foi inspiração natural. Quando se fala em tocar guitarra, todo mundo tem um estilo que se desenvolve de acordo com os anos e se torna sua assinatura, de certa forma. Em nosso inconsciente, certamente queríamos trazer à tona algo que fosse 110% Immortal. Começamos do zero em 2015 com a faixa de abertura do novo álbum. Queríamos algo bem veloz. Daí nós seguimos o flow, criando o álbum composição por composição. Não havia planos prévios de forjar o material numa unidade de estilo assim ou assado, e acho que nunca estivemos tão focados no songwriting (na composição) como agora. Quando você faz parte duma banda, seu maior desejo é fazer uma gravação melhor ainda que a última em que trabalhou. Com este, não acho que deixamos o último (agora penúltimo) do Immortal para trás, acho que simplesmente nos deslocamos da estética de muitos deles. (Risos)¹ Tem muito de um feeling old school neste disco. Claro que, ao meu ver, este feeling brilha junto com nossas influências thrash de sempre.”²

¹ O que queria dizer Demonaz? Que ele não gostava das opções criativas de Abbath? Não ouvi essa entrevista, mas pelo texto sinto uma espécie de sarcasmo amargurado!

² Notou o paradoxo?! O Immortal já foi uma unidade, uma dualidade ou trindade, metamorfoseando-se muito no passado. (Abbath+Demonaz+alguém nos atribulados 1990, ou ainda Abbath+Horgh+Iscariah de 1999 a 2002 ou Abbath+Horgh+Apollyon de 2006 a 2015, a formação mais estável até hoje – Demonaz, desde 1997, por sinal, era apenas o “quarto elemento” nessa conjugação trinitária, atuando nos bastidores ou “das sombras”, com o beneplácito de Abbath, é claro; não uso “das sombras” aqui em qualquer sentido pejorativo, mas o fato é que devido a sua lesão ele não era membro oficial – ou pelo menos instrumentista – da banda, ele não subia aos palcos, exercia relativamente pouca influência e controle artisticamente falando; podemos dizer que um engenheiro de som possuía o mesmo peso que ele na banda, descontando as contribuições de lyrics, que, aí sim, são algo mais mensurável em termos de criação compositiva – parece-me que ele não criou hora alguma riffs ou solos de guitarra, p.ex.! A formação atual é tão descaracterizada que o Immortal, que quase sempre foi um trio – configuração já considerada exceção em bandas com guitarra e baixo –, atualmente – ou oficialmente até 2020, já que por ora o nome encontra-se impugnado, e não temos acesso a muito mais informação que isso – é constituído somente de Horgh e Demonaz, e Apollyon, o baixista das gravações de Northern Chaos Gods, saiu da banda antes do lançamento do álbum, ainda em 2017…) Agora que o matrimônio se esgotara, Demonaz tenta abstrair todo o passado, e, sobre aquela coisa de irmãos criativos, que trabalhavam por telepatia, nada mais resta – mas não engana ninguém, sabemos que ele compartilha muito do estilo estético do próprio Abbath. Criticá-lo seria fazer uma autocrítica. Elogiar o novo som da banda é a mesma coisa que elogiar as origens e os trabalhos com o Abbath – que sinuca de bico, hein, meu velho?! Para músicos que já passaram dos 50, é praticamente impossível, ainda mais mantendo-se no subgênero, reinventar-se, a essa altura do campeonato. Ele mesmo o sabe, pelo que declarou sobre como um guitarrista compõe e toca, mas não o admite abertamente – o marketing sempre fez e sempre fará parte do black metal, por mais autêntico que ele seja face a outros estilos “modinha”. Nós, a crítica, só estamos aqui para apontar essa contradição, que os fanáticos do gênero querem chutar para debaixo do tapete, mal disfarçando o volume de poeira! É claro que quando um décimo segundo jogador de um time entra em campo, ele vai ser vaiado ou aplaudido de acordo com o desempenho de toda a equipe, e o mérito ou a culpa nunca é todo(a) dele – é essa analogia que eu faço aqui.

Abbath o grupo, segunda formação. A quarta da esquerda para a direita é a brasileira Mia Wallace, do Nervosa.

A banda aluga um espaço para ensaios, e os custos vinham sendo divididos entre os últimos três membros da banda, Abbath, Demonaz (Harald Naevdal) e Horgh (Horghagen Reidar). Harald e Reidar não queriam mais pagar sua parte do aluguel, já que a banda, na opinião deles, estava inativa. Olve (Abbath), como songwriter hegemônico da banda, dependia pessoalmente desse espaço, e manifestou interesse em continuar arcando com o aluguel sozinho. Os outros dois simplesmente abandonaram o arranjo e deixaram por isso. Olve entendeu esse gesto como uma dissolução da banda.”

Advogado de Abbath, via comunicado à imprensa.

Esta carta divulgada à imprensa ainda argumenta que Nævdal (Demonaz), por ter estado 18 anos sem tocar guitarra, e Horgh(agen), por ter-se limitado a tocar a bateria, não sendo compositor majoritário de canções, não poderiam responder em nome do Immortal. Além do mais, Abbath alega, e de forma muito convincente, aliás, que ele e seu pseudônimo se tornaram praticamente sinônimos da marca IMMORTAL™, sendo compositor principal e frontman, i.e., aquele que fala – além de cantar – pela banda – todos sabem que o vocalista é o mais filmado e visualizado, aquele que sai centralizado nas fotos de divulgação, etc., etc.! Co-fundou a banda e nunca esteve de fora de nenhum trabalho da mesma. Como musicista profissional, desta forma, Abbath, diz, não poderia viver, ou seria injusto e complicado viver, sem os dividendos resultantes do vínculo empregatício com o Immortal. Ou seja, para Abbath, quando os dois colegas saíram da jogada, a banda se dissolvera, mas ele ainda era a banda, e para ele estava fora de cogitação enterrá-la definitivamente.

A mesma carta, em outro trecho não-transcrito, ainda revelou que o Immortal estava obrigado por força de contrato a lançar mais um disco, mesmo após o lançamento de Northern Chaos Gods, pelo selo Nuclear Blast. Não só isso, mas que Abbath já teria quase completado um CD de canções inéditas, em parceria com outros músicos.

Mais um trecho:

[A objeção de Nævdal e de Horghagen ao pleito de Eikemo de usar o nome da banda] soa como uma tentativa de vedar a prática da própria profissão a Olve Eikemo. Ele passou 25 anos incorporando o personagem Abbath e atrelando sua imagem e sua música à marca IMMORTAL. Não me parece razoável que ex-membros de uma banda possam prevenir Eikemo de registrar a marca IMMORTAL para si, especialmente uma vez que ele atende mais pré-requisitos para esta operação do que eles próprios, que presumivelmente, após o lançamento clandestino de um novo álbum, não têm planos para o futuro do nome da banda.”

Nævdal teria respondido o seguinte à divulgação da carta: “Eu li, e nosso advogado leu. Viremos com uma resposta. A carta [deles] contém informações equivocadas.”

Em 2008, em entrevista à revista Guitar World, Abbath comentou sobre a (primeira) ruptura da banda, a de 2003: “Claro que foi por razões pessoais. A banda é pessoal. Somos família. Somos irmãos. É como um casamento. Quando você se casa com alguém, você acredita no casamento. E quer continuar, mas às vezes precisa de um tempo. Muitas bandas só mamam os úberes (fazem dinheiro fácil). Podíamos ter continuado e feito muita grana. Mas nunca o fizemos. Foda-se o $$ e a fama. Nada disso significa alguma coisa se você não tem alma. E estávamos começando a perder aquela chama interior. Não somos estúpidos. Somos muito inteligentes quando se trata do nosso negócio, do que sabemos fazer melhor. Pensamos a longo prazo. Para citar Paul Stanley: ‘O K.I.S.S. não é a última moda, é um estilo de vida.’ O mesmo vale para o IMMORTAL. É da nossa vida que se trata.”

Aguardando ansiosamente pelas cenas dos próximos capítulos de “Immortal Inc. – o processo judicial”…

5. UM GOSTINHO DE CADA DISCO: PRÓS E CONTRAS, OU SÓ PRÓS E SÓ CONTRAS DE CADA ÁLBUM DOS IMORTAIS.

Primeiro, um reiteramento do que meio-mundo já sabe: comunidades, ainda mais no metal, para mim sempre tem um sentido pejorativo. Principalmente do lado crítico: tudo aquilo de que eles reclamam só tem interesse histórico para mim; normalmente ignoro ou sou veementemente contrário ao ponto de vista da dita “maioria”, ou de vozes barulhentas embora isoladas que acabo lendo ou escutando por aí. Quanto aos prós, podemos dar um desconto, e amiúde nos identificamos com as virtudes que os próprios xiitas apontam na banda, então serve como um bom norte, bússola ou termômetro (para ficarmos nas metáforas de temperatura, tão pertinentes à banda). Então como o tal do underground listener aprecia cada álbum da banda, cabendo uma pincelada minha no processo? É ao que se dedicam os próximos parágrafos. Como já falamos mais dos três primeiros álbuns na seção anterior, as informações novas mesmo surgirão a partir do 4º grupo de resenhas.

DIABOLICAL FULLMOON MYSTICISM

Em várias dimensões, escolhas estilísticas deste álbum foram usadas por outras bandas da cena (mais notadamente o Satyricon, cujo debute é bem similar – e não podemos negar a semelhança da técnica vocal entre Abbath e Satyr): as ternas e atmosféricas passagens acústicas, que não são longas, mas deixam sua marca nos exíguos ~35min desta obra-prima; a estética fantástica e ‘amadeirada’ (não, isso não é uma resenha de enólogo – em vez de sentir, como nos outros álbuns do Immortal, um frio congelante e a aspereza de uma localidade nefasta e remota, sente-se a estada num bosque ou em grutas mais cálidos, jamais pisados pelo homem), os teclados ‘barrocos’, pelo menos no sentido de evocar catedrais góticas. Diabolical Fullmoon Mysticism nem parece um primeiro álbum de banda (finjamos por um momento que o Immortal não nasceu das cinzas de outras bandas do espectro extremo), possuindo certa maturidade composicional. As músicas fluem como se fossem suites de uma mesma canção, sem conotação alguma com a “monotonia dinâmica” do gênero progressivo, onde o termo suíte é muito usado. Diria que os próximos discos são mais focados na pureza do conceito e da expressão, enquanto esta é uma obra mais total, se é que me faço entender. Um belo cartão de apresentação.

Voltando ao tema das guitarras acústicas, me parece que o Ulver leva excessivo crédito pela sua implementação, quando cronológica e até qualitativamente vemos o Immortal antecedê-los e superá-los palpavelmente. O melhor é o contraste dessas passagens escolhidas a dedo com o tom mais “crunchy” (não gosto da tradução ao português “crocante”, que faz parecer que estamos analisando um cardápio de sorveteria e descrevendo pistaches) e sujo, confuso, embaralhado… A melodia acústica, portanto, torna-se o complemento perfeito, porque estranho, a cereja sobre as bolas deste sorvete artesanal. Além disso, esse tom mais “intimista” também contrasta com os secos blast beats da bateria, intensificando a sensação de prazer doloroso constante nos clássicos do BM. Os “whoa!” de Abbath também são uma peculiaridade que favorece a obra – a intervenção vocálica como puro instrumento, quando não comunica uma mensagem verbal, mas apenas um som esquisito e, por que não?, sinistro. Não é uma sessão de música comum, senão que ao mesmo tempo se configura como um ritual.

Armagedda, aliás, não é um baterista excepcional e brilhante; não que Abbath, o baterista improvisado das próximas gravações, tenha talento nesta posição, ou uma técnica comparável a um baterista nato, mas justamente pelo amadorismo de Abbath é que a bateria dos próximos discos é algo único e inimitável, superior às batidas de Fullmoon, um pouco presas e acanhadas, com medo de fazer mais que o básico. Terá sido apenas coincidência a saída precoce de Armagedda da banda? Obviamente temos que dar um desconto, pois a qualidade da gravação e mixagem é a mais pobre de toda a discografia do Immortal, tornando a comparação algo injusta. O reverb pode beneficiar a guitarra, o baixo, o eventual teclado e os vocais, mas tem um efeito deletério para a bateria, que parece obstruída por um tapume em relação aos outros músicos. É quase possível ter uma idéia geográfica dos artistas num estúdio bastante amplo e visualizar suas posições – embora tudo possa ser falso, e ao fim e ao cabo o estúdio pudesse se resumir a uma saleta com os três músicos bastante espremidos (vale lembrar que Abbath também gravou o baixo).

A Perfect Vision of the Rising Northland, o ambicioso outro de 9min, talvez seja o destaque maior. Reminiscente dos experimentos minimalistas e envolventes de Quorthon no Bathory, é aqui que a brutalidade e o trecho acústico ao final, sem que se contradigam, mais brilham. Os riffs desta canção apresentam um caráter hipnótico (mais do que nas 5 canções anteriores, já hipnóticas em si), e há um solo de guitarra dos melhores da carreira de Demonaz. Em 1992 não era comum o uso de solos melódicos no BM, e esta pode ser considerada outra nuance em que o Immortal foi pioneiro.

Por fim, mesmo que soe repetitivo, tenho de exaltar aquele que rouba as atenções no disco: Abbath. Muito criticado pelo metaleiro médio por seus frog croacking vocals, vemos pela primeira vez (já que ele mudou seu estilo em relação ao grave do Amputation) como o estilo gutural seco pode se juntar aos instrumentos em vez de se chocar com eles, e pode retratar complexas emoções com a ajuda das letras, ao passo que outras bandas tentam copiar o estilo mas falham na parte da expressão de emoções via vocais. Abbath pode ter um alcance limitado em termos de freqüências ou notas, mas sem dúvida é convincente como ator. Não digo de forma pejorativa: o BM é o estilo de metal mais calcado na performance de palco, na incorporação de outras personas em suas apresentações, como no palco do teatro. Não só no gestual, mas nas cordas vocais, Abbath cumpre o requisito do “showman das trevas”. Tem alma, enquanto muitos outros vocalistas do gênero parecem zumbis desencarnados e unidimensionais.

PURE HOLOCAUST

Quase todas as capas do Immortal têm os rostos dos músicos estampados, mas Pure Holocaust se sobressai a todos no quesito “carisma”. É uma capa instantaneamente icônica. O mais irônico é que, apesar do amor da banda pelas paisagens nevoentas, justo nesta foto não há nada que evoque neve, e os fundamentalistas sem dúvida apreciam o fato de a cor predominante ser o preto.

Para compreender a proposta do novo álbum e o amadurecimento natural da banda é preciso voltar ao epílogo do primogênito, Diabolical Fullmoon Mysticism, no formato da já enaltecida faixa A Perfect Vision of the Rising Northland, cujo título inclusive trai todo o simbolismo que carrega como “portal” ou “marco” para a banda – uma passagem para algo muito mais insólito, que o grupo denominou Blashyrkh. A letra termina com a descrição do firmamento se abrindo para engolir o eu-lírico, transportando-o a outra dimensão, uma espécie de cemitério de almas não-euclidiano de gelo eterno.

Pure Holocaust é já esta dimensão não-euclidiana, espécie de alternativa igualmente assombrosa e carregada de inversões estéticas aos contos de terror de Lovecraft e a mitologia Cthullhu, com um matiz norueguês que lhe é todo original em relação ao escritor estadunidense. Temos a primeira versão do Immortal que se consagraria: o de um caos controlado em estúdio, diferente do approach atmosférico do primeiro álbum. Não que PH não seja atmosférico, em absoluto. Mas seria estereotipá-lo dizer que só se trata disso, uma vez que a violência musical cai como uma bigorna na cabeça dos ouvintes. Onde Fullmoon era uma meditação quase estóica e indiferente sobre a lúgubre condição humana, PH mais parece uma luta de machados em punho contra a única coisa que não se pode vencer: a própria natureza.

O tremolo das guitarras é quase incessante. A bateria é uma descarga de blast beats, com o jeito sui generis de um estranho à função de tocar o instrumento. É uma nevasca na tundra em formato sonoro. Talvez a única reminiscência dos experimentos semi-acústicos do primeiro álbum esteja na breve utilização de sintetizadores em As The Eternity Opens, sétima e penúltima faixa deste assalto de quase 34min.

Se DFM ajudou a moldar o gênero BM, PH é já uma exploração de seus limites possíveis, tão cedo quanto o ano de 1993 permitia. Simplificação é força e definição, neste caso: velocidade, aspereza vocal crescente, esta aura de “incômodo” voluntário ao ouvinte que tenta não lhe deixar qualquer zona de respiro. Até por isso é muito importante que este álbum não tenha excedido a quantia dos 40 minutos, ou seria declarado explicitamente como tortura pelos tribunais noruegueses!

Não tem-se muito o que falar de PH, na verdade: a fórmula foi repetida com cada vez mais intensidade nos dois próximos álbuns, por isso todo o template foi lançado aqui, e o que se disser sobre os 2 próximos trabalhos do Immortal no fundo também se aplica ao sophomore release.

BATTLES IN THE NORTH

Não escute Batalhas no Norte casualmente: não vai descer bem. Sente-se à noitinha num canto frio da sua sala em plena estação invernal – ou, ok, se for atrapalhar demais e produzir sensações desagradáveis em seu corpo, sente-se numa poltrona perto da lareira, desde que num dia realmente gelado – e deixe que essa música mágica chegue até você.”

gradymayhem, Metallum Encyclopaedia

Muitos vêem essa obra como um passo atrás depois do elogiado porém pouco melódico e marcante, talvez homogêneo demais, Pure Holocaust, na minha opinião pessoal o pior (menos melhor!) da banda. Aqui temos 33 minutos em 10 canções que reviram os conceitos dos dois primeiros discos do avesso, muito embora hoje todas as características de BiTN sejam consideradas canônicas do black metal. Ou seja, quer dizer que o grupo evoluiu girando 180 graus, e todavia permaneceu nos moldes do subgênero de origem norueguesa. O tempo das músicas é extremamente acelerado e, se havia alguma referência ou alusão ocultista a Satanás e Belzebu antes, ela foi completamente abolida das letras deste álbum branco, cujo tema obsessivo é só e tão-só a neve, as tempestades e nevascas e a desolação abaixo de zero!

Uma solidez branca, sempiterna e polar, sem começo nem fim. Apenas um eterno estado de auto-realização no campo de batalha mais inóspito. Assim eu descreveria o sugestivo Batalhas no Norte. Propositalmente as músicas foram editadas para não terem “começo” ou “fim” lógicos. O ouvinte já está imerso no pântano absoluto de agressividade musical desde o primeiro segundo e não é possível prever quando será feito o arbitrário corte na composição, dando uma sensação de boxeador caluniado pelo árbitro: ele queria descansar entre 2 rounds, mas sem sequer ouvir o gongo descobriu que já tinha voltado a apanhar do adversário e ser empurrado às cordas, sem a menor transição. Uma bela duma ousadia aniquiladora de cânones da música!

Eu também achava este álbum quase impenetrável, de começo. Hoje suas melodias cravam fundo, vejo-o como “mais comercial” (se é possível dizer isso no BM ortodoxo ou que ainda estava sendo definido em sua ortodoxia!) que as empreitadas anteriores: as canções são instantaneamente memoráveis, pelo menos comparadas ao Pure Holocaust. O som é seco, muito seco. Parece com calotas polares que jamais derreterão. Sem dúvida uma das marcas registradas dos trabalhos do engenheiro de som e produtor Eirik Hundvin, mais conhecido apenas como Pytten. Abbath parece mais impessoal e inumano. Ao contrário do que muitos pensam, isso nada tem a ver com uma suposta deterioração vocal, muito menos com uma péssima escolha estilística (pelo menos na minha opinião) ou, o que é pior, e muitos alardeiam no BM, incompetência técnica. Este é o único tipo de vocal que parece poder habitar no Blashyrkh criado pela banda. Qualquer outro tipo de rendição de voz “humana” teria de ser criticada. Abbath, o abbathismo (seus croaking vocals únicos) e o Immortal “clássico” (diria que deste, o 3º, até o 6º disco, de onde tiro o quinto, não obstante – embora muitos creiam que o 5º é que é justamente a magnum opus da banda, juízo do qual sou obrigado a diferir) são uma Trindade indissociável. Um álbum sem Abbath (como o último da banda no momento em que escrevo) deveria ser crime…

Onde PH, numa espécie de transição, ainda usava algum reverb atmosférico, BiTN elimina qualquer indício de “atmosfera artificial” e aposta tudo no timbre espaçoso e hiper-crocante de guitarra-baixo para engolfar de vez o ouvinte. O que 2 anos não fazem na indústria musical – em 1993, Pure Holocaust parecia já ter chegado ao limite do estilo! Não seria crível que a banda optasse por um estilo ainda mais brutal que aquele – e dessa vez é mais pegajoso e marcante, quase um milagre Coisas que devem acontecer em temperaturas extremas e negativas, tipo de “mágica” cujos bastidores o brasileiro se resigna a admirar, desconhecendo seus fundamentos.

Em contraste com as novas obras, portanto, é que finalmente DFM parece até caloroso e muito disciplinado – mas a percepção de quem ouvia a banda estreando, em 92, deve ter sido bem diferente. Só posso cogitar sobre isso, já que do prisma do século XXI é impossível ir além em especulações sócio-históricas deste tipo. Já conheci o Immortal completamente ultimado dos discos posteriores e incorporei esse som mais cedo do que o ritualístico Fullmoon em minhas funções cognitivas… Você que ouviu a discografia do Immortal na ordem linear e não tinha muito contato com o estilo –– quais são as suas próprias impressões a respeito da evolução da banda?

Respeitando as aspas que abrem a “resenha” deste disco, a primeira coisa a praticar antes de mergulhar em Battles in The North é: assista ao clipe de Grim and Frostbitten Kingdoms, linkado mais acima! Um dos audiovisuais mais originais já produzidos… Curiosamente, a bateria que se escuta não é tocada pelo convidado do clipe. O notável Jan Axel “Hellhammer” Blomberg faz apenas uma representação cenográfica (e que representação, sem pedais, em meio a uma montanha desolada, vestindo roupas inapropriadas para o frio!). O áudio foi tirado dos esforços de Abbath na batera, e assim temos o segundo e último CD em que o cara acumula nada menos do que três funções: vocais – é claro! –, percussão e também o baixo.

É simbólico que o outro (décima canção – cada álbum vai se apresentando, na história inicial do Immortal, com cada vez mais faixas ou composições individualizadas, movimento que parece inteiramente orgânico e lógico) seja batizado Blashyrkh (Mighty Ravendark) (pronuncia-se BLAQUÍRK, aliás). É como se a banda finalmente dissesse: É, chegou a hora de intitular uma música com o nome de nosso recanto extra-dimensional; finalmente chegamos ao som que queríamos desde o início; os dois primeiros álbuns ainda não mereciam que este título figurasse diretamente no caput de nenhuma música, só na letra, discretamente… O tempo da música é o mais lento de todo o BiTN e a atmosfera torna-se mais épica do que nunca, a ponto de até os detratores do 3º disco, todos que conheço, confessarem: Blashyrkh (…) é uma das melhores canções da banda!

É muito comum para quem ainda está conhecendo o catálogo do Immortal pensar que acabou de pôr as mãos numa demo dos caras, tamanho é o caos deste trabalho. A wall of sound só vai ceder com o auxílio da disposição e interesse do ouvinte, e algumas necessárias repetições do bolachudo na vitrola. Ao contrário das primeiras impressões de inacessibilidade e desorganização, para gente como eu logo BiTN passará a ser considerado frio (no pun intended) e calculado em cada passo, criação de artistas entrando em seu apogeu e maturidade.

Embora as guitarras não sejam tão cheias quanto em PH, sem usar tantas tracks na gravação nem padrões intrincados no mesmo nível, Demonaz sabe para onde ruma com um verniz mais thrash infundido no black metal ortodoxo do Immortal (E por que thrash e não death? Porque a produção é menos pesada que no metal sueco old school e o jeito de tocar é um pouco mais dinâmico e solto que no 2º estilo). Power chords são a exceção, havendo tempestades de tremolo nos riffs, em perfeito contraste com a agressividade aparentemente irrefletida e incontível da batera semi-amadora sem constrangimento de meter blast beat atrás de blast beat (ideal para o contexto!) e a rispidez vocálica do mesmo homem (já o baixo, o terceiro instrumento de Abbath, é confessá-lo-ei, é humanamente inaudível!… claro, entretanto, que faz diferença como ‘eco’ da guitarra do parceiro Demonaz). Abbath, na realidade, parece gravar tão perto do microfone que o segredo de seu chiado raspado característico é praticamente revelado: um bom técnico vocal poderia dizer quais os movimentos que sua glote está fazendo, como ele está puxando o ar e quanto ele usa o nariz em cada estrofe, imagino, sem ter de recorrer a imagens! Porém, nem todos nós somos técnicos vocais: lembram que eu pedi para verem o clipe Grim and Frostbitten (…) antes? É muito importante para “pegar” o espírito dos vocais, já que no próprio clipe Abbath é mostrado em zoom facial, com seus dentes brancos, e mostraria as próprias cordas vocais se a pele do pescoço fosse transparente – a lente da câmera está no olho do furacão, salpicada de pingos de chuva, enquanto o rosto do frontman (nada menos que o rosto da entidade Immortal) é o foco indelével desta miniprodução.

Eu amo o fato de que nenhuma faixa se estenda por muito mais que 4 minutos. Também era essencial, como nos lançamentos anteriores, que essa “barragem” não chegasse a durar 40 minutos, ou o valor do álbum certamente diminuiria alguns pontos, pois nosso nível de concentração começaria a baixar. Um belo contraponto aos lançamentos de digipack com conteúdos bônus de hoje – BiTN envelheceu excepcionalmente bem para quem odeia as convenções da indústria fonográfica, i.e., qualquer black metaller sério!

Com a chegada de Dimmu Borgir e Cradle of Filth ao grande público em 1995, o vagão do black metal inteiro se aproximava perigosamente de um território kitsch e extravagante. Eu pessoalmente adoro Cradle of Filth. E o Immortal é considerado como visualmente ridículo por muitos fundamentalistas, então tem esse ponto em comum com is ingleses… Mas essa característica não deixa de merecer menção: Dimmu Borgir, preenchendo suas composições com teclados (ou, diria, afogando-as em teclados!), e Cradle of Filth, na Ilha da Rainha, alcançando imensa popularidade ao fundir elementos primitivos do BM ao gothic, ameaçavam, mesmo que involuntariamente, o futuro do BM sem polidez e destinado ao consumo underground, esse de que falamos aqui.

BiTN adquire ainda mais importância histórica tendo aparecido nesse estranho umbral que marca a metade dos anos 90… Diria que para o período foi o cume do cume do death black metal (standards de brutalidade auditiva aparentemente ainda não-superados), já que o pouco de thrash destilado na obra é tão furioso que acaba resvalando para o gênero extremo primo ou irmão mais velho do BM, ironicamente o território em que o Immortal começara sua carreira. Hoje, obviamente, temos marcos muito mais extremos desse mesmo deathened black metal, como Panzer Division Marduk do Marduk. Só que álbuns desse patamar só foram possíveis graças a Battles in The North, que ensinou-lhes o caminho. Por outro lado, a extensão atmosférica dessa exaltação da natureza (ainda que em seu pior, i.e., algo que oprime qualquer ser humano!) faz deste álbum uma perfeita contraparte para qualquer trabalho do Nargaroth, os reis da “ambiência” (rios correndo calmos, pássaros gorjeando). Obs: não escute faixas desse disco avulsas em “playlists” por aí – ouça-o inteiro e organicamente, como produto da natureza que é!

BLIZZARD BEASTS

Esse petardo de 1997 vem a ser, no frigir dos ovos, ou no congelamento perpétuo das montanhas, como seria mais adequado em se falando de Immortal, meu favorito da banda. É o Immortal em seu auge criativo e igualmente na apoteose de sua fúria instrumental. Oito músicas precedidas por uma instrumental aclimatadora (intro) em escassos 29 minutos, o que significa que aqui as notas se conjugam de forma densa, cada segundo trazendo muita arte nas “costas”. Maioria das canções vai de 2 a 3 minutos e meio.

Horgh é o novo baterista, posição que ocupa até hoje. Demonaz começou a desenvolver sua tendinite mais ou menos nessa época, supomos que devido à incrível ferocidade dos riffs deste trabalho de estúdio. Segundo consta, para finalizarem o álbum, o Abbath já teria suprido algumas das partes de guitarra, com Demonaz levando como podia e, num ponto crítico, se aposentando da função após reiteradas consultas médicas, e após averiguar a gravidade de suas lesões, intratáveis para os recursos da época (embora já tenhamos visto que nada é tão irreversível assim quando se trata de lesões esportivas ou de artistas cuja performance tende a se nivelar com a dos melhores atletas de alta performance!).

Fato é que as guitarras do Immortal nunca foram tão técnicas e velozes como em BB. As influências de death metal começam a se fazer sentir, embora fossem totalmente relegadas para o próximo trabalho, voltando só no Damned in Black. As mais insanas e complexas melodias de Battles in The North são levadas ao extremo. A bateria está ainda mais alta na produção, embora comprimida em qualidade, o que acho que foi intencional. Novamente, para não fugir à regra, os vocais foram bem-masterizados na produção final.

Embora eu possa entender por que as pessoas costumam preferir álbuns mais tardios, com Abbath 100% cuidando das guitarras (e, nessa toada, possa até ver como conseqüência lógica por que At The Heart of Winter, o sucessor imediato, e Sons of Northern Darkness, tendem a ser tão populares na fan base), quando a banda se dirigiu a proporções mais épicas, dignas de tocar em festivais como o Wacken Open Air e atrair multidões de fora do movimento BM, se não existisse essa tetralogia de álbuns da era Demonaz como executor (e não só compositor e letrista) estou certo de que nada do futuro seria possível ou atingiria um tão alto nível, visto que constituem a base de todas as evoluções subseqüentes, e acho que nem pessoas como Peter Tägtgren entendem a dimensão dessa minha afirmação, pois denigrem o BB o quanto podem, como nas entrevistas acima.

Blizzard Beasts traz, embora com alguma maquiagem, influências dos riffs de Morbid Angel à tona. Trey Azagthot, em decorrência, deve ser visto como um dos maiores influenciadores deste trabalho magnânimo da banda. Só ouvindo após algumas vezes é que o verdadeiro apreciador poderá demarcar esses elementos death metal, que estão normalmente escondidos debaixo das camadas permanentes de neve das letras e dos furiosos ataques instrumentais! É realmente algo bem sutil, ou eu estou completamente equivocado e imaginando coisas…

A atmosfera congelada sempre foi um must para o Immortal, e desde o despontar dos 90 cada novo trabalho sempre conseguiu ser mais do que a soma de cada parte. Embora o debute, Diabolical Fullmoon Mysticism, comparativamente falando, seja hoje sentido como um álbum mais ‘quente’, digamos que nada nele é verão: no máximo, é a transição outonal em que a secura do frio e o desaparecimento progressivo do sol ao longo dos dias da estação vai tomando perceptivelmente o lugar da umidade abafada e mormacenta mais ligada ao outono, i.e., não estamos, nem ali, subjetiva e cronologicamente distantes do inverno arquetípico.

Se o desenvolvimento da banda continuar sendo comparado ao ir e vir cíclico das estações, podemos dizer que Blizzard Beasts é o momento culminante e mais característico do inverno total. Não coincidentemente, depois dessa blitzkrieg na neve que não dava espaço para muitos outros matizes e emoções, a banda mudou para um conjunto mais focado no bom acabamento de composições individuais, começando a abandonar aos poucos a atmosfera opressiva e abraçar tecnicismos. Não significa mudar do vinho para a água ou entrar em decadência, apenas uma mudança de foco em que troca-se a percepção imersiva do disco como um todo por outras maravilhas com mais personalidade e impacto individual. São duas formas de uma banda extrema cativar seus consumidores. Muitas bandas nascem e morrem em um desses departamentos, sem saber desempenhar essa “transição outonal” que, em verdade, é um revigoramento, afinal as estações nunca cessam de passar e nenhum declínio deve ser entendido como outra coisa senão uma metáfora.

As faixas de BB consistem em uma série de barragens sonoras que acertam rapidamente no rosto, e comparando-se uma com a outra não se vêem muitas fissuras no gelo: tudo é muito consistente, internamente. Com um tempo de menos de meia hora para tudo se desenrolar isso se torna mais exeqüível. Mas quem disser que falta qualquer momento memorável que impregna na cabeça está se esquecendo de Mountains of Might, o grande hit de BB. Suas proporções épicas, prefigurando At The Heart (…), aliadas a um refrão monolítico, insistente e pegajoso, contrastam levemente com as demais faixas.

Ao passo que as canções são centradas em riffs de frente crocantes, o Immortal integra como ninguém as diversas instâncias que fazem uma composição, isto é, tornam o todo exuberante e melhor que as partes (ou movimentos ou ainda temas, se falássemos de música clássica – e cá entre nós, não é este o Immortal clássico no palco-estúdio?). Tremolos gelados representam algumas dessas ligações, afora solos épicos que só esta banda sabe fazer no BM inteiro, sem com isso escapolir do próprio gênero BM (não é uma banda híbrida com outros estilos, i.e., apesar de mesclar muito death e thrash, ninguém se refere ao Immortal como uma banda de death/black metal, porque todas as influências “estranhas” servem a um propósito uno: a grandiosidade e singularidade de seu black metal), e tudo isso em composições compactas, sem a duração esperada de behemoths do metal progressivo! Afinal, o ritmo da bateria e dos instrumentos de corda é lancinante demais para imaginarmos uma música de 12 minutos. Longas composições até existem na discogradia do Immortal, mas sempre que isso acontecem eles alternam a velocidade, chegando às fronteiras do doom – enquanto que em BB composições “golias” não têm vez.

As mais longas do CD, que não são longas, mas apenas relativamente maiores, cotejadas com suas irmãs efêmeras do disco, dão uma pista do que viria na seqüência. Falo de Nebular Ravens Winter (aperfeiçoada em 2016) e Battlefields, ainda mais coesas que a média do álbum, com nuances de um epic thrash a ser desenvolvido propriamente apenas na era …Winter, cuja descrição ocorre poucas linhas abaixo. Para dar uma imagem do que se pode estar ouvindo sem ter um conhecimento profundo de muitas bandas do estilo metal (extremo ou não) ou sem ter chegado a ouvir Blizzard Beasts antes de ler a resenha, o leitor e futuro ouvinte deverá primeiro ouvir Pleasure to Kill do Kreator e pensar como esta música ficaria se transportada para a cena norueguesa 10 anos depois. Mas ainda tem um toque mainstream, uma certa reminiscência do tom cheio, abrasivo, melodioso mas linearmente bronco, i.e., uma sensação de resistência do mesmo som apesar da necessidade da dinâmica interna, o que o Metallica realizou bastante bem em …And Justice for All (que tem 10 minutos de duração e, assim como a faixa do Kreator, batiza o próprio álbum em que apareceu). Alemanha mais Califórnia desemboca na Noruega. Tudo isso, claro, apenas subliminarmente, mais obscuro e glacial quando assimilado pelos músicos aqui em questão. Nos vocais, Abbath está mais para o Bathory mais precoce.

Simplesmente incompreensível o discurso hegemônico de que Blizzard Beasts é o patinho feio (corvo lindo e branco?) da discografia do grupo. Finalmente estabilizados na formação há algum tempo (o que, desafortunadamente não duraria demasiado), esta magnum opus é o resultado de dedicação, inspiração e um ataque frontal sem tergiversações, utilizando tudo que de mais demente e demolidor já tinha sido manifestado por bandas vinculadas de perto ou de longe ao movimento do metal negro.

AT THE HEART OF WINTER

Muitos consideram este trabalho o casamento (não o primeiro, mas um arquetípico) entre o (progressive) thrash e o black metal. Porém, onde muitos vêem o epítome da criatividade da banda e o capítulo mais proeminente dessa fusão, eu vejo sinais de estafa, como se sair do subgênero fosse a única maneira de gravar um álbum de inéditas àquela altura, ou como se, para não criar clones de trabalhos passados, mesclar um “thrash melancólico” à fórmula tivesse sido a única maneira encontrada de prestar dinamismo ao material. Explicando como posso, embora o thrash não seja um elemento estranho para o Immortal nem mesmo a essa altura, é sim a primeira vez que a metade thrash parece obliterar por completo a atmosfera ominosa do black metal norueguês – isso tem uma nomenclatura mais fácil do que a explicação, sem ouvir o disco: trata-se de thrash metal melódico, e não sua vertente mais negra, viril, de first wave BM e com aquela sujidade digna de um Bathory. Tem lá seus momentos. Confesso que devo ter tendências metafísicas a torcer o nariz para obras relativamente unânimes, ou de clamor exacerbado e imerecido.

Também não gosto tanto da divisão das músicas: apenas 6, com tempos que variam de 6:03 a 8:56, ou seja, uma ruptura completa com o que se via até BB. O tom da guitarra parece sempre o mesmo, uma espécie de cripto-acústico, evidentemente com a propriedade estética de nos transmitir uma sensação de degelo soturno. Falta espessura, faltam as estalactites da caverna. Acho que Blashyrkh acabou derretendo um pouco, ficando menos majestosa e mais pantanosa. Incidentalmente, chamam Sons of Northern Darkness, o clássico mais moderno da banda, de At The Heart of Winter mal-produzido, e com “mal-produzido”, entender: BEM-produzido! Como no black metal os valores se invertem, acham a produção muito… moderna, limpa, polida, e em detrimento dos valores do old school… Mas a verdade é que o estilo de ambos se parece, e entendo por que não estejam entre meus momentos favoritos do grupo.

O que eu mais detesto sobre At The Heart of Winter, a música-título, é que o riff central me parece uma antiga abertura de programa da Globo cagada e cuspida, um programa que por mais que me esforce não consigo me lembrar, nem encontrar qualquer comprovação na internet! Globo Comunidade ou qualquer coisa bem cult dos anos 90. Às vezes essas coincidências acontecem, qual é o problema? É que essa má impressão de ver o Immortal associado a algo de segunda classe nunca me abandona… Um comentário de resenha que me chamou muito a atenção, por conter o juízo exatamente oposto ao meu é: “Isso não é um epic black metal estéril e redundante repetindo as mesmas uma ou duas seções de novo e de novo por oito longos minutos; a música é dinâmica e nunca se demora demais no mesmo tema.” Mas o pior é que <as mesmas uma ou duas seções de novo e de novo por xxx longos minutos> são a melhor descrição que encontrei para ATHOW! Ao mesmo tempo em que os entusiastas tentam defender o álbum da acusação de esnobismo, comum quando uma banda produz algo muito mais “progressivo” e “dinâmico” para os próprios padrões, deixam escapar que na verdade estamos diante de uma peça de wankerismo puro e simples, pois “Abbath [guitarrista no disco pela 1ª vez] usa todo o espectro das notas musicais”. Tudo bem, mas essa não é necessariamente uma virtude nem mesmo num disco do Pink Floyd!

Como de praxe, nada a contestar sobre os vocais abbathianos. Numa nota alta, a segunda metade da faixa de encerramento, a otimamente batizada Years of Silent Sorrow, é meu destaque pessoal.

DAMNED IN BLACK

Um álbum “odiado” e que eu exalto com a ajuda de todas as minhas entranhas, só para variar! Adeus sacarina do mar de resenhas do álbum anterior (a internet está aí para se ver que eu sou realmente um estranho no ninho em relação ao Heart of Winter, uma lasca de gelo descolada do continente) – bem-vindos, de novo, os detratores de um suposto simplismo compositivo! E de volta com as capas icônicas e ainda mais absolutamente massacradas e ridicularizadas – ô, o Immortal voltou! Só faltava mesmo xingarem a capa por ser quase toda preta (Blackshyrk?), e destoar das picturizações invernais da banda, já que com Battles in The North o chilique foi o contrário!

Onde a proeminência cabia ao melodic thrash no trabalho anterior, vejo o mesmo destaque sendo dado à virulência de um bem-forjado death metal, achatando e comprimindo o rolo atmosférico com que a banda passa por cima dos deuses e do mundo, como um disco do Immortal tem de fazer (com faixas individuais num espectro de duração mais estreito de 3-7min). Uma das razões para uma paleta escura na capa já pode ser detectada nos títulos das faixas: nem tudo, dessa vez, gira cicloneamente em torno de neve e de borrascas e precipitações do céu carregado! Tudo soa como a continuação lógica de Blizzard Beasts, talvez do outro lado do espectro, já que yin-yang precisam do branco e do preto para funcionar – é como se Heart of Winter nunca tivesse acontecido, mais ou menos o cumprimento retroativo de um desejo meu, que em 2000 ainda estava longe de conhecer o Immortal e, aliás, de começar a gostar de música, e música boa!

É interessante observar a hipocrisia do resenhista-médio de DiB: critica os blast beats unilaterais do álbum, mas há quantos deles o Immortal não apresenta a mesma bateria? Inclusive no mimado Heart of Winter – só que lá a produção tíbia jogava todo o ímpeto das viradas e pezadas incessantes para o fundo, sonicamente falando!

SONS OF NORTHERN DARKNESS

Entramos na era da internet – o que possibilitou a intensa popularidade do Immortal, mesmo entre a nova safra de metaleiros, mediante um trenzinho de memes nunca enjoativos! – e os já veteraníssimos noruegueses continuam empilhando bíblias (!) de composições do gênero que ajudaram a forjar. Seria impossível usar um medidor para situá-los entre o orthodox e o modern BM porque eles conseguem encastelar todo tipo de referência retrô com novos takes, experimentalismos e produção moderna sem que o jogo dos caras soe forçado ou deslocado em relação ao espírito da banda, sempre mutante – seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo, um amigo me dizia…

No comando dos riffs de guitarra mais uma vez, Abbath continua a roubar a cena e monopolizar os holofotes. Seu estilo no Sons of Northern Darkness em particular remete muito ao de Dave Mustaine no Rust in Peace, pelo menos em momentos definidos. Por mais estranha que essa observação pareça, ela é verdadeira: One by One possui gallops de guitarra idênticos a Take No Prisoners ou Polaris!

Além disso, para manter a tradição de álbuns realmente inéditos da banda, ao contrário de tantos grupos que se limitam a relançar o mesmo trabalho com letras diferentes e replicar a mesma e velha fórmula com micro-randomizações, as guitarras foram afinadas um tom inteiro abaixo (na linguagem técnica, D standard): isso mais os riffs reminiscentes do thrash dão ao álbum um quê de peso que o distingue de quase tudo do black metal gravado àquele tempo. É diferente até da secura dos adoráveis e repelentes ao mesmo tempo, se é que o fã entende, Blizzard Beasts e Battles in The North. A faixa Demonium parece mesmo uma revistada em BB com uma produção muito mais avantajada e classuda. A esse ponto na carreira, aliás, não é só a produção que adquiriu um “outro patamar”: ouso dizer que o Immortal chegou ao auge da maturidade em termos de intercalar momentos abrasivos e lentos com porradas inclementes nas composições. Destaque para o efeito de reverb nos vocais de Abbath em In My Kingdom Cold que fazem parecer que ele canta no meio da tempestade, decrescendo ainda mais a “temperatura do Himalaia”.

Era inegável que a simbiose do grupo com o produtor Peter Tägtgren crescia a cada trabalho. Dá para perceber, com menos rodadas do disco, cada nota e inovação. Sons of Northern Darkness agrada, portanto, aquela ala mais tolerante do BM que preza a técnica e uma guitarra bem-tocada e com boas possibilidades de ser ouvida em cada evolução. Para uma comprovação da afirmação, ouvir à antiteticamente batizada (porque a Antártida fica no sul!) Antarctica. Ou eu deveria dizer que ela não é o polar oposto de todas as letras sobre Blashyrkh? Uma grande curiosidade sobre este álbum para disfarçar o constrangimento pela piada inopo(lar)tuna: é o primeiro da banda na Nuclear Blast, i.e., Immortal praticamente “goes pop”! Dizem que a Nuclear Blast quase mudou de nome para Nuclear Blast Beats em 2002… Parece irônico que no começo mesmo dessa nova história a banda iria se dissolver pela primeira vez, ainda mais levando em conta a sincronia de estúdio – os músicos começam a se desentender justamente em meio ao processo criativo. Para se ver a que custo algumas obras de arte são paridas…

ALL SHALL FALL

Dizem que neste disco o Immortal se tornou menos metal, e nisso menos black metal, o que fãs dificilmente perdoam, e mais rock ‘n’ roll. Ou pelo menos black ‘n’ roll, para não acharmos que foi algo tão drástico ou mesmo facilmente detectável para ouvintes de primeira viagem. Os mais fanáticos dirão que foi o último prego no caixão da segunda onda do black metal, capitaneado pela Noruega. Quanto drama! O hiato forçoso da banda teria feito os músicos perderem a intimidade com os instrumentos e o entrosamento com os colegas, sem volta?! Ah, claro! Nenhuma narrativa de banda de black metal que desagrada os fãs após álbuns bombásticos está completa sem o capítulo de quando eles se venderam (ou quando compraram de volta a alma a um desapontado Lúcifer) ou efetuaram seu sold-out. E, francamente falando, isso acontece com – quase – todas as BM bands que eu tive o imenso prazer de conhecer, então se tornou um tropo ou clichê da relação destes músicos com estes seu exigente público. Público extremamente exigente, justificando o gênero a que dizem pertencer…

All Shall Fall já diz essa verdade íntima no próprio nome: tudo deve cair, desabar… Mas quer saber? Quem disse que não há quedas de pé e grandiosas? Essa expertise da banda para bons riffs e toda a sabedoria no songwriting não desaparece do dia para a noite, nem por causa de alguns anos em hibernação. Afirmemos e reafirmemos: All Shall Fall está longe de ser o melhor momento da instituição Immortal mas, se pensarmos no destino geral das bandas de 2nd wave, seja por demérito próprio ou apenas por difamação de ex-entusiastas, o Immortal parece ser o que leva a melhor. Não falemos daquele ex-ser humano que virou o Gandalf e renegou completamente o estilo. O Mayhem, de quem eu tanto gosto em sua fase contemporânea, incansável na arte de surpreender, é detonado pelos puritanos, que os consideram menos do que cinzas do que já foram. Na verdade não importa o que o Mayhem fizesse desde a morte do Euronymous, a recepção seria fatalmente a mesma. Quem sabe desde a morte ainda anterior do Dead! Bandas norueguesas da segunda onda que seguem quase todas ativas e inovando, mas, para os “autoproclamados especialistas”, que traíram ou saíram por completo do movimento. Chame-se-o de segunda onda ou não, eles não traíram nada, eles estão carregando a tocha e revitalizando o movimento em seu núcleo, independentemente da qualidade que surge na terceira onda, onde onde quer que nos encontremos neste momento (quarta onda? não faço idéia!). Mas esse é um papo para outro texto…

Sete anos. Número cabalístico. O que terão representado na vida dos músicos e na manutenção ou queda de qualidade de suas performances? Na verdade há certa contigüidade entre estes trabalhos tão distantes no tempo, assim mesmo: Sons of Northern Darkness já demonstrava certa tendência a incorporar cada vez mais interlúdios (que não são interlúdios reais, presentes na enumerção das faixas, i.e., estão dentro das músicas e não constituem produções independentes) limpos e outsiders. Isso só foi mais intensificado. Os maledicentes dirão que o supergrupo de Abbath montado no meio do caminho, que o fez curtir um “retorno ao rock” durante a paralisação da banda principal, a banda I, foi mais um degrau, antes de chegarmos a esse, nessa transição. Between Two Worlds (que não será resenhado aqui) parecia mais heavy metal, mas do tipo black ‘n’ roll, que uma dessas cartadas extremas que os membros do Immortal, como bons jogadores de pôquer, viviam dando. Antes de criticar a mudança, devemos pensar primeiro na pressão sobre os caras para “manter o nível”, surpreender ainda outra vez, et.. Conservadores ou não, Abbath & cia. resolveram apostar nas suas forças mais consolidadas e que não os trairiam nesse comeback: os riffs em profusão e sua concatenação meticulosa. É um trabalho de guitarra, principalmente. Saudosos da atmosfera reinante nos primeiros álbuns têm todos os motivos para se chatear! Quem liga pra eles? O novo Immortal, mais corpulento na produção e no volume sonoro, não podia fazer milagres e nada sacrificar aos deuses de Blashyrkh a fim de obter um novo trabalho nível “A”.

Enfim, vamos ser curtos e grossos: All Shall Fall é o mais hard rock dos álbuns do Immortal. Viva-se com isso. Mesmo assim, é raro ver hard rock com croak vocals! O croachar do sapo nunca morre… Confiram só o solo de Norden on Fire. Nada a ver com Diabolical Fullmoon, não é verdade? Não esqueçamos que essas coisas acontecem debaixo de nossas vistas e, quando não desejamos reconhecê-las, inconscientemente passam batidas. Pure Holocaust, a segunda obra, já parecia uma estreitada no som, para torná-lo mais mainstream, se comparada com o 1º trabalho de estúdio. Ninguém reclamou na época – e por quê? Porque ainda era demasiadamente black metal (mas quem afirma o que é ou não é black metal são os revisionistas, a cada ano!). Como se houvesse só um black metal! Talvez se reconhecesse isso. Mas quando a mudança se dirige a algo como o acessível hard rock e não a experimentalismos bárbaros e obscuros, sai de baixo! Menos pode não ser sempre mais, mas sem dúvida é uma tentativa válida, e cria novos discos inéditos. All Shall Fall é exatamente isso. E sem dúvida a Nuclear Blast gastou uma porção de dindim para manter o áudio perfeito para os caras. E não deve ter economizado no marketing, idem. Esse é o epítome do profissionalismo da banda, e isso alguns por aí não podem ignorar… Escutam, para depois apenas maldizer.

Claro que não é isso que explica a recepção do álbum. Houve problemas. Problemas de verdade, os não-intencionais. O processo de composição foi indubitavelmente acelerado porque os integrantes voltaram a se bicar. Romperam em 2003, ficaram oficialmente desativados como banda por 3 anos até se reunirem, e o álbum durou um bom ciclo de “Copa do Mundo” para sair (4 anos). Significa que o trabalho em equipe se mostrou mais árduo do que eles mesmos, conhecendo o passado, esperavam. Nesses casos, muito do que acontece é chegarem ao seguinte plano de carreira: Olha, vamos nos concentrar em turnês, tocar nossos velhos hits, não precisamos matar uns aos outros agora enquanto criamos novas músicas, já que cada um tem um conceito sobre música, e sem dúvida o conceito de cada um mudou com o tempo, de forma diferente do conceito dos outros membros. Vamos aproveitar a fama e essa reunion da banda! Black metal nem sempre se resume a lançar novos trabalhos e superar-se a si mesmo sem a menor tolerância para deslizes… Façamos as coisas com calma, não somos iniciantes! Imagino que, se esse não rolou como papo, deve ter ficado ao menos subentendido entre eles…

E sobre a composição de material novo, lembrando que eles estavam sob contrato para fazê-lo, teve de acontecer em algum momento. Suspeito que um pouco “em cima demais” do deadline estabelecido pela gravadora, para azar deles e o nosso. Suponho que eles passaram no máximo 2 anos escrevendo estas 7 canções, porque tem ainda todas as semanas que envolvem gravá-las, mixá-las, masterizá-las e promover o álbum antes do lançamento, o dia designado pelos chefões da parte comercial! Dois anos não é um bom tempo de preparação para uma banda já veterana, que não precisa compor com tanta velocidade para se exibir ao mundo. Ainda mais com um álbum com poucas músicas. Cada uma tem de ser muito boa, ou as pontuações nas resenhas já sofrem consideravelmente. Além disso, nenhuma delas se tornou um novo clássico da banda, o que também não ajudou a estabelecer concessões ou contemporizações. Acabaram julgando o pacote de forma homogênea. Mas sem dúvida sempre há canções melhores, as que chamamos de canções para singles, para clipes, para abrir ou fechar o álbum, e outras consideradas mais medíocres ou menos chamativas. Normal.

Muitos fãs de longa data entram em negação e quase não consideram All Shall Fall como um episódio legítimo da trajetória da banda. Mas sem dúvida o público que compra lançamentos da Nuclear Blast não se resume a uma rodinha de cricris, então o Immortal foi à mídia e mostrou do que são capazes no estado pré-nova ruptura em que se encontravam (nunca diga “ruptura definitiva”!), como que dizendo nas entrelinhas: Se querem conhecer nosso catálogo, cheio de coisas ainda melhores, comece por aqui, e depois cave mais!

NORTHERN CHAOS GODS

O fim? Sem dúvida não há consenso nem para isso, não importa a perspectiva de quem resenhe ou acompanhe uma banda. Mas, na minha opinião, sem Abbath, este é “o álbum que não deveria existir”. Não se trata de qualidade vocálica nem qualquer detalhe mais específico, mas uma espécie de “conceito da banda”, que neste caso não pode funcionar sem uma figura multi-talentosa e longeva como Abbath. Demonaz não canta mal. É até mais energético que Abbath na função, e mais “black metal”, mas isso não significa que combine com o legado do Immortal. Em alguns momentos parece mesmo que Demonaz tenta imitar o estilo do ex-parceiro (cf. Into Battle Ride). Este com certeza é um álbum mais veloz que os dois últimos, mas falta algo. Where Mountains Rise chega inclusive a repetir o riff de At The Heart of Winter (a música), o que pra mim é bem revelador: nenhuma idéia nova, apenas saudosismo barato. Nesse ponto, a necessidade de fechar um álbum com uma track de maior duração já se tornou um clichê vergonhoso, veja só a duração da última canção!

Não deixe o papo simplista e bipolar dos fãs enganá-lo, contudo: não é o álbum para quem considerou o comeback de All Shall Fall fraco, nem muito menos o inverso. Podemos dizer com a segurança de quem não irá gerar polêmica que nem o último de Abbath nem o único sem Abbath têm o que os demais discos da discografia do Immortal oferecem. E é por isso que, para não encerrar a matéria numa nota baixa, recorro a mais uma curta resenha…

ABBATH, BY ABBATH, BANDA DO ABBATH

…Se um Immortal sem Abbath ainda pode ser considerado Immortal, é mais do que justo cobrir o outro terço do “núcleo da banda” (sem esquecer Tägtgren, Apollyon e outros que colaboraram nos registros mais recentes). Abbath continua produzindo um som derivativo do gélido black metal do Immortal e certamente ouviríamos essas canções sob esse moniker não fossem, por enquanto, os desdobramentos de uma batalha judicial que ora se mostra desfavorável ao músico, porém cujo desfecho é imprevisível. Por razões de “coerência” e “extensão”, não irei resenhar o segundo álbum do projeto-solo do Abbath, nem acrescentar o terceiro, que já está às vésperas de sair no momento em que redijo. Fica como um contraponto único ao Northern Chaos Gods, até por ser o meu favorito desta nova banda, pelo menos no momento atual, e, acessoriamente, por vir com a cara do Abbath estampada em close na capa – nada mais direto podia ligar essa maquiagem icônica ao legado do Immortal!

Álbuns de black metal super bem-produzidos: polêmicos, dividem a fanbase. No caso de Abbath, Abbath (2016), tirando os fanáticos, a crítica é positiva. Dag Erik Nygaard e Danial Bergstrand, os engenheiros de som, criaram uma wall of sound com muita distorção, preservando o senso melódico das guitarras, que poucos álbuns no estilo old school poderiam replicar. Esse tipo de produção mais clean permite que a sempre subestimada performance de Abbath como guitarrista brilhe em meio à escuridão temática e atmosférica de sua nova banda. Ao que consta, ele não é o lead guitar da formação, só cuida da guitarra-base, mas isso não o impede de soltar um ou outro solo mais trad metal que não vêm, esteja certo, em detrimento do resultado final. Outro instrumento sobressalente é a bateria muito bem-coordenada de Creature, que sabe revezar os blast beats com batidas estilo hard rock enriquecendo o trabalho – que podemos classificar como black ‘n’ roll mais uma vez, sem medo das vaias dos ouvintes ortodoxos. Acontece que em produções top-notch como essa na verdade perde o sentido falar de “instrumentos sobressalentes”, porque até o baixo de King ov Hell faz a diferença e é audível em inúmeros segmentos. Enfim, tudo que os músicos performam realmente aparece na gravação final. E é quase um alívio poder ouvir o baixo num álbum de metal em pleno 2016, já às portas da aposentadoria do Matusalém Black Sabbath (que parou em 2017), reconhecido até hoje como um dos únicos do gênero em que o baixo cumpre uma função de primeiro plano!

Sair – ou ser expulso – da marca Immortal parece não ter reduzido a auto-estima de Abbath Doom Oculta; antes, pelo contrário. Além da performance dual digna de crédito, não é justo que ele não recolha o mérito de, em pouco tempo, ter juntado músicos capazes e comprometidos com o projeto composicional em que, obviamente, ele é a força criadora principal, para que tudo fluísse em ordem (uma caótica ordem, em se tratando de um subgênero de black metal que bebe da fonte do Immortal).

A produção clean não deve nunca soar pejorativa mesmo num estilo tão subversivo, porque até as linhas de guitarra mais imundas ficam mais distinguíveis ao ouvido humano, ainda que percam alguns pontinhos insignificantes em termos de atmosfera. Significa que os riffs mais ortodoxos ganham certa aura de destaque em meio aos demais, mais próximos do heavy metal clássico. Os vocais de Abbath, embora muita gente diga que são estacionários, sempre evoluem de gravação para gravação. Mantêm o inconfundível tom raspado e contam com um minimal reverb para resultar diabólico e ameaçador.

Embora o Immortal desde sempre tenha prestado ênfase ao riff work, esse talvez seja o primeiro CD em muito tempo em que podemos dizer que o riff work conduz as composições acima de todo o resto e o resultado é tão superior (volto a me referir ao indelével Blizzard Beasts). Dessa forma, podemos detectar influências de death-thrash mais do que em qualquer outro trabalho-solo do homem (isto é, contando as seqüências a esse disco e o disco único do I), parecendo-se, em alguns momentos, com um Blizzard Beasts Vol. II.

Para os mais “classicistas”, Root of the Mountain fará um sorriso aparecer no rosto, com suas linhas de baixo indiscutivelmente derivadas do Deep Purple no seu auge (a referência clara é o petardo Black Night).

Winter Bane, por outro lado, tem os vocais mais versáteis de Abbath num longo período e um videoclipe de alto nível. São quase 7 minutos de peso e conservação de fôlego em meio a toda uma algazarra que não deixa a peteca cair. Ao contrário da iniciativa de Horgh e Demonaz, temos um trabalho com originalidade, não uma compostagem do que o Immortal já foi só para atender aos fãs menos críticos (e com menos críticos queremos dizer, paradoxalmente, aqueles que mais reclamam, mas de ninharias, evidente).

O estar-egg essencial dos ursos-coelhos em preto-e-branco é um cover de Nebular Ravens Winter, do inimitável – 3ª citação! – Blizzard Beasts (e é notável que no 4º verso dessa canção encontremos a expressão “Winters bane”, explicando a referência no contexto do álbum). Ainda tem um outro, menor: um cover de uma lado B do Judas Priest.

Para arrematar, o álbum é literalmente, em conteúdo, embora não formalmente, uma continuação do que a banda Immortal deveria seguir sendo.

INDECISÃO MENTAL, IMPACIÊNCIA CORPÓREA

Por que eu coço minha barba? Os motivos da existência são antropomórficos, believe me. Eu dou alma ao que antes era puro impulso. O que este impulso ou protoalma diz a minha elucidada alma? O que posso responder à primeira pergunta? Eu sou/estou irritado e quero fazer isso, alguma coisa, não sei bem o quê… Minhas mãos não querem parar, elas querem continuar, mesmo que meus dedos doam e meu cérebro precise de repouso… Meu corpo nunca está em inércia, especialmente o meu, se podemos estabelecê-lo. Todos somos seres humanos, certo? Mas você é mais inquieto que todos a sua volta, isso com certeza, não tem erro nem tiro no escuro!… Crise de propósito de propósito?! O que está faltando nesta falta que é a náusea que é a vida, Rafael? Vamos tentar responder isso ruminando, pois pelo visto uma resposta categórica ‘inda não ‘tá pronta, oh my, yare yare.

DO ERRO PROVISÓRIO OU METAFÍSICA DA INVEJA

A única a existir. Produzida pelo desacordo, temporário, de menor ou maior duração, entre nosso corpo e uma nova maneira de pensar que adquirimos com a idade, i.e., no nosso devir: não o por que existimos ou não deveríamos existir? mas algo totalmente mais simplório e cabível, menos melodramático: por que esta é minha vida, e não a do que trabalha somente porque quer, do que não trabalha porque não precisa, ou do que tem um emprego em que se auto-realiza? Do que possui a mulher mais bela e condizente com seu temperamento, etc.? Porque no fundo esta é a única questão metafísica, que não pode ser resolvida, a menos que esse desacordo alma-corpo, FALSO, finalmente passe, de alguma forma. Eu só posso ser eu, e não aceitaria ser outra coisa. Na saúde ou na doença, minha saúde e minha doença, em minhas restrições, em minha miopia literal, que o vulgo não consegue suportar ou preferiria qualquer coisa a ter de hospedar… Só a pergunta: por que eles são tão tolos? faz algum sentido, provisório. O avesso por que não correspondo às expectativas deles? é tão absurdo quanto qualquer credo espírita ou imaginar-me fora do meu próprio corpo: este, único mundo, sou eu. Uma férdade, fusão última de verdade e fé. Porque não existe, nem nas leis materiais, algo diferente do que aquilo a que me dedico e aquilo que sofro. Acostumar-se a isso é tautologia e jogo de palavras.

DO ERRO PROVISÓRIO OU METAFÍSICA DA INVEJA

A única a existir. Produzida pelo desacordo, temporário, de menor ou maior duração, entre nosso corpo e uma nova maneira de pensar que adquirimos com a idade, i.e., no nosso devir: não o por que existimos ou não deveríamos existir? mas algo totalmente mais simplório e cabível, menos melodramático: por que esta é minha vida, e não a do que trabalha somente porque quer, do que não trabalha porque não precisa, ou do que tem um emprego em que se auto-realiza? Do que possui a mulher mais bela e condizente com seu temperamento, etc.? Porque no fundo esta é a única questão metafísica, que não pode ser resolvida, a menos que esse desacordo alma-corpo, FALSO, finalmente passe, de alguma forma. Eu só posso ser eu, e não aceitaria ser outra coisa. Na saúde ou na doença, minha saúde e minha doença, em minhas restrições, em minha miopia literal, que o vulgo não consegue suportar ou preferiria qualquer coisa a ter de hospedar… Só a pergunta: por que eles são tão tolos? faz algum sentido, provisório. O avesso por que não correspondo às expectativas deles? é tão absurdo quanto qualquer credo espírita ou imaginar-me fora do meu próprio corpo: este, único mundo, sou eu. Uma férdade, fusão última de verdade e fé. Porque não existe, nem nas leis materiais, algo diferente do que aquilo a que me dedico e aquilo que sofro. Acostumar-se a isso é tautologia e jogo de palavras.

PROVA DA INEXISTÊNCIA DE DEUS!

“Deus” é sinônimo de onipotência, o conceito humano para o uno, ilimitado e intangível, uma chave de acesso ao transcendental via linguagem: quatro letras que encerram a idéia de tudo que está por trás da existência e da possibilidade de se ter qualquer idéia. Como tal, “Deus” cresceu com o homem. É seu mito, sua raiz. A determinado ponto foi sistematizado em escrituras – o que não o desvencilha do paradigma panteísta, não obstante: panteísmo é a crença de Deus sendo tudo e todas as coisas. O universo, a natureza. Aqui está o ponto a que desejava chegar para comprovar a inexistência de Deus, se é que o leitor não preferirá legitimá-lo de uma forma diferente… (vide adiante) Serei lógico; acompanhe:

O caráter de onipotência de Deus é sua definição pura. Significa que para tal entidade inexiste o impossível. A realidade inteira é o desenrolar de sua vontade. Como tal, só pode ser ele mesmo (o que é vontade de Deus é deus, e não há o que não seja): voltamos ao Panteísmo, ainda que sejais cristãos. Se tudo é deus, eu também sou deus. Afirmar deus é negar-me a mim mesmo. Penso que sou livre para escrever que sou livre. Tenho autonomia na decisão. A simples crença na assertiva basta ao leitor a fim de negar Deus. Porém, sigamos adiante, rumo aos limites da argumentação: se se aceita que eu sou Deus para não negá-lo, eu me anulo. Eu existo – o leitor existe – e aceitar-se como Deus representando a própria impossibilidade do Ser de existir é pífio. Existo e por isso automaticamente Deus deve ser negado.

Ainda que eu fosse Deus – esse é o único método, entenda o leitor, de poder afirmá-lo (a legitimação em “forma diferente” supracitada) –, ou tudo sou eu (tudo que acontece é minha vontade – sua liberdade acabou de ser formalmente morta), ou eu sou uma PARTÍCULA de Deus. Mas um poder infinito não se divide: a principal característica divina é a unidade, é ser a arrumação coerente do todo. Não existe, portanto, essa conveniente solução intermediária. Retomando, há dois (ou três) paradigmas: 1) TUDO é Deus (e sua Vontade), sob o alto preço de não existirmos (nossas individualidades não passam de ilusão, falsas consciências de Deus regidas por uma, e só uma, verdadeira consciência); 2) NADA é Deus. Esta possibilidade permanece de pé, pois permite que existamos; 3) O indivíduo é DEUS. Incabível. Porém, interessante observar que “3)” não existe senão como subconjunto de “1)”. Deus não pode ser um subconjunto, nem mesmo possuir um subconjunto! Deus não pode existir se há no universo qualquer consciência que levante o problema. Perdemos um deus no momento em que passamos a acreditar nele.

16/08/2008

POR QUE VOCÊ NÃO LUTA?

A visão de que cada nação possui o governo que merece é ilusória e precisa ser abolida. Sequer há o que se pode chamar de nação, e não porque o Estado-nação não respeite nações, mas porque o próprio conceito de nação está seriamente em xeque. Não existe o povo, por mais que o tópico-frasal da sociologia coaja qualquer sociólogo incipiente a dizer o contrário. O que acontece em um país como o nosso é a tendência auto-implosiva do Capital: uma plutocracia que impede o movimento revolucionário, porquanto este só representa perigo sendo massivo. Uma vez que estão destruídas as condições para que ele o seja (tome como base a mídia brasileira, que impossibilita o menor pensamento transgressor), fica na mão do indivíduo consciente a decisão: dada a impossibilidade democrática de atingir minhas metas e a inviabilidade de qualquer negociação pacífica com o Estado e demais forças, baluartes da moral do Ocidente, diria um Nietzsche, eu devo lutar e arriscar a piorar ainda mais drasticamente minhas condições de existência neste mundo ou eu devo me conformar, manter minha propriedade, minha liberdade, enfim, meus direitos civis, minha relação com a família, meus estudos e meu emprego? Parece que, diante de impasse de tal ordem, sempre escolheremos a segunda opção. Mas, para ser auxiliado por um provérbio simples contudo verdadeiro, “nada é eterno”. O que se depreende disso? Aparentemente, o momento da luta pela ruptura irreversível do sistema é invariavelmente empurrado para frente e jamais concretizado. Não há como imaginarmos, de fato, que poderia haver uma “anarquização” da sociedade moderna a ponto de transformar poderios incalculáveis como o produto nacional bruto e o exército americanos em cenários tão imprevisíveis quanto as Farc no território colombiano ou as milícias mexicanas em guerra de trincheiras com o Estado. A própria constituição do rebelde como exceção é a quase refutação de qualquer esperança. Para a vida dos ainda vivos no momento deste texto, e do seu autor, o cenário é tão ou mais desanimador: escolho minha profissão estável, minha ficha criminal limpa e meu conhecimento socrático-cristão a contragosto, mesmo ciente de que são postulados inversamente proporcionais à “sociedade” como se constitui de fato (não passando de idealismos vis, disfarçáveis para alguns, mas intransponíveis para todos), por julgar que só encurtaria minha vida se lutasse contra tudo e todos, ou reduziria cabalmente meu já ridículo quinhão. Faticamente, assim funcionam as coisas. Onde está, então, a mágica que torna o inimigo invencível do homem um respeitante do ditado de que “nada seja eterno”? Nele próprio. O invencível (figura sem corpo, apenas a idéia que temos enquanto somos escravos do próprio Ideal) é a vítima derradeira de seu próprio sucesso. As contradições do Capitalismo tornam-se mais agudas à medida que seu êxito se torna mais inquestionável. Há um ponto de ruptura nas auto-vitórias do maleável Capital e da casca de todo seu conteúdo, a moral do Ocidente. As fendas já aparecem. Existe um momento em que as condições de existência do regime não podem ser mantidas nem que se o almejasse: contramedidas apenas aceleram o colapso, e por mais que tal lição seja aprendida o colapso, em si, não pode ser evitado. Não procede a crítica de Marx de que “o que um homem vê, os outros vêem, ou o vêem vendo”, apontando para o fato de que, se o homem faz sua História, então ao se corrigir o rumo da História que Marx queria levar a cabo, a história realizada é o Capitalismo (Fim da História, no qual já depositei minhas fichas). Digamos que apenas se espera pelo inevitável. Longe de uma visão de espírito (neo-hegeliana), trata-se da constatação, pelo homem que se enrolou no pólo natureza-cultura, de que ele, o homem, junto de seus produtos, é a natureza. E pulsa. Como vida, não pode se negar a vivê-la excedendo o limite “x”. Esse limite “x” é o dia da derrocada do sistema capitalista em decorrência das próprias ultra-contradições e da soma das vontades individuais da grande maioria de manter o sistema intacto (o que implodirá as últimas ilusões de chances que tais grupos poderiam possuir). Não me encarem como um profeta, mas como um bom leitor. Sigamos…: a saturação da moral do Ocidente se avizinha. O tal dilema da escolha pessoal, lutar ou se conformar, deixará de fazer sentido. Será o momento de cada um agarrar sua oportunidade. Obviamente, muitos se recusarão a agarrá-la, mas cada fracasso terá seu papel: amantes da vida precisam de seres humanos inferiores para exercerem sua dominação (paradigma natural). Não desejo ser mal-interpretado. Significa que o homem moderno não rompe integralmente com seu passado, uma vez que coexistirá (e coexiste, pois há homens modernos hoje, embora não no comando do que quer que seja) com os pseudo-modernos, criaturas que atualmente parecem ditar a História e que no entanto não compreendem ou não podem evitar o problema futuro de ter compreendido hoje que não se tratam de indivíduos modernos, mas entes mais fracos, pré-modernos, pré-históricos. A diferença fundamental é que no leme da embarcação histórica encontraremos, na coexistência reformulada do fim do Capital, os modernos. Lembre-se que, coletivamente, ao olhar ao redor, jamais fomos modernos. Se você é um moderno e guarda seu tesouro, sua vida pré-moderna será transcendida e transvalorada logo. É bem verdade que muitos nessas circunstâncias morreram sem ver a verdadeira Aufklärung sangrenta. E outros vão morrer. Mas isso fazia parte da modernidade deles. Há alguns modernos que vêm antes dos outros. Nem por isso são menos modernos. A História está sendo feita, não há Idealismo em minha convicção: é que os modernos dão suas parcelas de contribuição desde muito antes deste texto, que aliás nasceu de seus esforços; e embora isoladamente esses esforços não consigam vencer o inimigo chamado de “o invencível”, quem está tramando, neste exato minuto, em laboratório, a própria e inaudita morte são os pré-modernos, figuras que já divisam sua extinção no horizonte (nenhuma contramedida pode surtir efeito se se permanece no âmbito da visão progressista autofágica). Se há algo de desesperador na vida, é a vida, aquela mesma que cria o sentimento do desespero (e já é um privilégio usufruí-lo!), que recai no auto-perceptível fatalismo. Alguns andam lendo meu blog e me apelidando de oráculo. Porém, eu sou o oráculo do fim dos oráculos: a única e caprichosa meta-tendência quem traça são vocês. A tendência do auto-expurgo do mundo. O Ocidente é um monstro que se come a si mesmo e quanto mais come mais julga o prato delicioso sendo portanto apenas bom senso e não qualquer dom premonitório que me permite asseverar que ele nunca deixará de se comer até que suas funções vitais sejam desligadas – porque ele acredita piamente que está cada vez mais corpulento, quando seu aspecto ao observador alheio (o moderno, imerso no estômago do monstro e que pode ser ejetado na ocasião oportuna) é o do definhamento. E não há meios de um monstro que só triturou tudo com seus dentes de repente aprender a fazer outra coisa… É a natureza desse bicho que se crê anti-natural e imortal. Mas o que é a imortalidade? Tem-se de estar vivo para não estar morto, ou para pensar nesses dilemas. E a vida não pode ser anti-natural, posto que da natureza provém. Portanto, sem sentido, o monstro explode. Esse bicho acredita no Fim da História. Mas a natureza não acredita em equilíbrios…

27/07/2008

HISTÓRIA DAS IDÉIAS: INTRODUÇÃO À EPISTEMOLOGIA HUME-KANTIANA

Ambiciono traçar o papel de David Hume e de Immanuel Kant na filosofia moderna em algumas linhas, recorrendo a certo número de observações que considero não menos pertinentes que originais. Kant pode ser entendido sem Hume (embora ilustrar alguns conceitos kantianos com a ajuda de Hume não seja contra-indicado), mas Hume (e suas limitações), hoje, não pode ser corretamente introduzido sem um bom número de referências a Kant.

MENSURANDO A GRANDEZA DE ALGUNS FILÓSOFOS

Hume está para Kant no século XVIII como Feuerbach está para Marx no XIX. E assim como o Hegelianismo informa em grande medida todas as correntes filosóficas posteriores, atribuo ao conceito de Idéia em Platão uma importância essencial para o desenvolvimento dos pensamentos de Hume e Kant. A diferença crucial neste contraste improvisado é que Hegel viveu na mesma Alemanha de Feuerbach e Marx, com poucos anos de diferença, havendo um contínuo ininterrupto entre eles, como uma perfeita fotografia da evolução do Idealismo alemão, quase frame a frame. Platão, por outro lado, viveu antes de Cristo, o que não o impede de projetar sua poderosa luz e sombra sobre qualquer filósofo posterior de renome; portanto, é sua obra que escolho para “mentora” destes dois ícones do século do Iluminismo.

As analogias não se encerram por aqui: Feuerbach foi exímio hermeneuta e crítico do trabalho de Hegel, consciente de todas as suas limitações; porém, ao filosofar da própria pena, o que seria a continuação natural de seu trabalho inicial de demolição, nada de essencial veio a produzir. Ele foi louvado pelo Marx jovem, mas depois severamente criticado pelo Engels maduro em seu livro sobre Feuerbach – que nada faz senão parafrasear e sintetizar as concepções marxianas acerca de Feuerbach, como o próprio Engels admite no prefácio (na ausência de Marx, que já havia morrido, como uma espécie de última homenagem). Com a visão panorâmica adquirida pelos autores Marx e Engels após décadas de desenvolvimento do materialismo histórico, foi tarefa simples para a dupla verificar que havia progredido tanto a ponto de no final da vida passar a ver Feuerbach – que lhe servira de estímulo durante a fogosa juventude – como um mero retardatário, olvidável na história do pensamento, alguém que envelhecera mal como autor de filosofia. O principal erro ou limitação de Feuerbach foi ter se tornado vítima da própria “ressaca esterilizante” do sistema que tanto ajudou a “refutar” – o Idealismo hegeliano –, não havendo possuído a competência para, partindo de um ponto qualquer do próprio hegelianismo semi-defunto, ensaiar um revigoramento da filosofia, o que Marx lograria logo na seqüência a partir de sua releitura do princípio da negação da negação.

Uma “síndrome” similar desponta em David Hume, conhecido como “o ceticismo encarnado na modernidade” (já que na Antiguidade também temos diversos avatares da escola cética que nada lhe devem). Não digo que, em paralelo ao raciocínio sobre Hegel-Feuerbach, Hume “refutara Platão”. Platão é o “filósofo perfeito”, o mais atemporal de todos eles. Mas Hegel segue hoje de maior estatura que Feuerbach, apesar de seus defeitos, hoje visíveis para o estudante vulgar; e Platão permanece intacto como marco na contemporaneidade, ponto de entrada, parada e até arremate em termos de Filosofia, sendo necessário lê-lo e relê-lo, abandoná-lo só para a ele voltar em seguida. Platão seria Pelé contra um Hume “jogador de destaque num clube mediano”. Isso é o que me autoriza a usar esse contraste tão insólito.

O complemento que o platonismo atualmente exige, a fim de que possa ser recepcionado pelos leitores modernos sem muitas perdas, precisa ser retirado dos escritores que estão mais próximos de nós no tempo, ainda que a prosa poética multifacetada de Platão siga inigualável quando lida na fonte. Não diria que Hume compreendera a filosofia de Platão sob a forma de sistema, pois seria leviano de minha parte achatar os escritos de Platão confinando-o, dessa maneira, a um quadro teórico em que todas as partes teriam de estar coerentemente subordinadas a um todo, o que jamais foi sua intenção e, duvido, um desígnio inconsciente seu que acabou por escapar-lhe e se realizar em suas obras. Houve, decerto, ao longo da história, quem compreendesse o platonismo como um sistema, mas estes, quer fossem platônicos ou não, acabaram, através deste procedimento, por diminuir Platão e gerar mal-entendidos em cadeia entre os intérpretes do mestre. Se se encara o platonismo como sistema fechado de idéias, no sentido moderno (como pode-se falar dos sistemas cartesiano, humeano, kantiano e hegeliano, por exemplo), torna-se tarefa simplória exaltar ou execrar uniformemente seu legado, ao preço de eliminar inadvertidamente detalhes e nuances que fazem de Platão “muitos Platões”, cada um deles utilíssimo para nós. É como o velho provérbio de jogar o bebê fora junto com a água da bacia…

Além de erro meu, seria colocar na boca de Hume algo que ele nunca atestou por palavras, e confessar que ele também errou e foi um destes que acusei de “maus leitores” de Platão. Contudo, a noção essencial que Hume deveria incorporar, a fim de desenvolver a contento seu “ceticismo aplicado”, ele incorporou: trata-se da Idéia de Platão, que para não dar ensejo a mal-entendidos chamarei de axioma da representação nestas páginas. Portanto, poderíamos limitar o Platão desta comparação Hegel-Feuerbach-Marx/Platão-Hume-Kant a dois ou três livros, ou até ao sétimo da República somente, que contém a famosa passagem da alegoria da caverna. Hume soube ler Platão e utilizá-lo a seu favor. Mas estacou não muito além de algumas considerações muito específicas sobre o valor da experiência na vida humana. Quem soube, finalmente, sair de uma aporia que incomodava os racionalistas modernos (todos os filósofos que vieram depois dos Escolásticos e Patrísticos) foi Immanuel Kant, a não mais que algumas centenas de quilômetros de distância do próprio Hume, de quem foi virtualmente coetâneo. Foi ele o primeiro, depois do próprio Platão, a entender corretamente em toda a sua extensão o axioma da representação. Quando se fala de “certo” ou “errado” em Filosofia, vale o lembrete: o que eu chamo de correto é o que está em voga hoje (e nunca para todos, evidentemente). Por conseguinte, Kant, enquanto intérprete de Platão, enquanto crítico de Hume, e em boa parte do que filosofou de forma autoral, é um pensador atual e relevante, nosso legítimo contemporâneo. Kantiano é o substrato da Fenomenologia do século XX, mesmo que os fenomenólogos tenham muitas críticas cabíveis que fazer a Kant. É necessário reconhecer heranças para avaliar contribuições filosóficas duradouras.

AS METAFÍSICAS DE HUME & KANT: UM PANORAMA

A base da epistemologia de Hume (epistemologia numa pergunta: como é possível o conhecimento?) inclui considerações a respeito de 3 degraus de uma escada, nitidamente distinguidos por ele,¹ e que abarcariam a condição humana, além de explicarem por si sós um bom fragmento da história da filosofia: (1) os instintos (chamaremos de escola naturalista a dos filósofos que deram primazia aos instintos na explicação da natureza do conhecimento), (2) os sentidos (de onde o próprio Hume extrai a nomenclatura sistema dos sentidos em sua obra Investigação Sobre o Entendimento Humano), (3) e, por fim, o ceticismo, que é a crítica dos dois degraus anteriores, o que Hume chamaria de sistema aperfeiçoado dos sentidos, seu sistema. Embora naturalistas, “sensualistas” (ou empiricistas) e céticos existam em todas as épocas da filosofia, Hume considera os dois degraus inferiores dessa “escada epistemológica” como um discurso sobre o passado da disciplina: com a escola naturalista esgotada, os filósofos se voltaram para a importância dos sentidos ou da experiência para a obtenção do conhecimento. Embora conhecido hoje como “filósofo apologista da experiência”, o segundo degrau não é onde Hume se auto-situa. Ele usa sua nomenclatura de “sistema dos sentidos” para classificar, ora veja!, uma espécie de “baixo clero” da escola empirista, da qual ele se arroga o título de melhorador. Chegamos ao terceiro estágio, seu método cético. Um cético é essencialmente um filósofo, ou seja, o termo traduz a competência na capacidade de duvidar, que é o principal motor do progresso filosófico.

¹ Não com estas palavras. Essa figura de linguagem para explicar Hume é de minha inteira responsabilidade: em nenhum lugar o autor faz qualquer menção a uma escada com três degraus.

Mas e a razão, onde está a razão? “Inimigo” da razão, ou do mau emprego da razão na explicação da natureza do conhecimento, sempre cauteloso quanto aos exageros típicos de escolas do pensamento, Hume só discorrerá sobre ela enquanto subordinada aos sentidos, daí eu não haver sequer incluído a escola racionalista¹ (Descartes, principalmente) nos degraus da minha escada.

¹ Separar os filósofos em escolas e dar-lhes epítetos é didático, mas generalista e inconveniente num nível mais profundo. O reducionismo de chamar Leibniz de “o filósofo da mônada” ou Spinosa de “o filósofo da substância” ou “panteísta” em nada ajuda a entender esses autores. Até epítetos mais aceitáveis como Schopenhauer, o filósofo da Vontade podem encerrar noções muito vulgares e inadequadas. Por isso previno o leitor: ali onde René Descartes é tratado, em livros-textos, como sinônimo de racionalista, há “peguinhas”. Logo abaixo me refiro a Descartes e sua filosofia como “idealismo”, geralmente equiparável a racionalismo. Mas não estaria errado em enfatizar seu lado sensualista ou empiricista, e isso porque os qualificativos sempre dependem de uma abordagem ou contexto. No caso específico da crítica humeana a Descartes, pode parecer que Descartes é racionalista ou idealista e nada mais. Deixo, pois, os leitores de sobreaviso sobre o perigo de “crer demais” em interpretações consagradas. Tampouco deve-se tentar pensar a alcunha idealismo aplicada a ou por um autor do século XVII ou XVIII, na França ou no Grã-Bretanha, como apresentando qualquer correlação considerável com o idealismo platônico da Grécia pré-cristã ou com o Idealismo romântico alemão de 150 anos depois de Descartes! Todo cuidado é pouco.

Para me aprofundar em Hume e para explicar o kantismo, recorro de agora em diante a citações de Hume, que virão entre aspas. Meus comentários, em azul, guiarão o leitor sobre o contexto das afirmações:

N.B.: Além disso, grifei em verde trechos que são considerados refutados pela filosofia séria de hoje, i.e., conteúdo defasado; e em vermelho trechos de suma importância para a exposição presente.

[A filosofia] não pode mais recorrer ao instinto infalível e irresistível da natureza [naturalismo, mera noção enganosa ou, antes, verificada como impossível de ser alcançada através da ‘equipagem’ do ser humano], pois tal caminho nos conduz a um sistema completamente diferente, que se demonstrou falível e mesmo enganoso.” Refutação do naturalismo e do idealismo cartesiano, duas correntes de pensamento filosóficas – ambas refutáveis já uma pela outra através de ceticismos incompletos ou parciais, segundo Hume. O ceticismo de Hume estabelece-se a si próprio num patamar superior a ambas essas tendências, que são, na história das idéias, afinal, apenas diferentes manifestações do mesmo equívoco epistemológico. Na linguagem de Hume: os naturalistas e os racionalistas erram porque exageram em suas crenças injustificadas. Não duvidam o suficiente.

E justificar esse pretenso sistema filosófico por uma série de argumentos claros e convincentes, ou sequer por algo que se assemelhe a um argumento, é algo que está fora do alcance de toda a capacidade humana.” Descoberta de que a raiz da imperfeição tanto do naturalismo quanto do pseudo-ceticismo cartesiano são a mesma: o racionalismo, ou a fé na razão, que os primeiros filósofos da modernidade elevaram a uma categoria superior aos instintos e aos sentidos, mas que é mera ficção ou arbitrariedade, i.e., a razão apresenta no fim das contas um conteúdo vazio, contaminado pelos próprios instintos e sentidos dos filósofos racionalistas.

Por qual argumento se poderia provar que as percepções da mente [sentidos e raciocínios] devem ser causadas por objetos externos inteiramente distintos delas, embora a elas assemelhados (se isso for possível), e não poderiam provir, seja da energia da própria mente, (I) seja da sugestão de algum espírito invisível e desconhecido, seja de alguma outra causa que ignoramos ainda mais?” (II)

Começo da compreensão da dialética interior-exterior no homem. Sujeito e objeto são díspares, porém categorias os intersecionam num uno: cores e formas. A mente e uma mesa são objetos materiais, vermelhos, marrons, brancos, pouco importa, sólidos, etc. (I) é uma alusão avant la lettre a um tipo de solipsismo: conjetura-se: e se… todos os objetos exteriores que apreendemos forem apenas criações nossas? despidas de materialidade, meras ilusões? Evocação hiperbólica de noções mais atenuadas, como a das sombras na alegoria da caverna, do criticismo kantiano (que, sublinho, Hume não conheceu) e das próprias considerações de uma filosofia ainda mais tardia a Hume e Kant eles mesmos, i.e., a fenomenologia do século XX, em que entendemos o axioma da representação, sob a alcunha de fenômenos, como meras aparências e ao mesmo tempo como nossa realidade relativa. O (II) seria uma alusão direta à Coisa-Em-Si: uma causa que está além do homem, e que incita à metafísica vã, ou seja, a meras especulações, sem jamais poder ser refutada ou provada. Logo voltaremos a citar a Coisa-Em-Si.

Reconhece-se, de fato, que muitas dessas percepções não surgem de nada exterior, como nos sonhos, na loucura e em outras enfermidades. E nada pode ser mais inexplicável que a maneira pela qual um corpo deveria operar sobre a mente para ser capaz de transmitir uma imagem de si mesmo a uma substância que se supõe dotada de uma natureza tão distinta e mesmo oposta.”

Poucas linhas, mas tão prenhas de significado! Trata-se primeiramente de uma crítica do materialismo ou objetualismo mais rasteiro, que concede a prioridade à matéria e ao objeto em detrimento do sujeito, continuando o exemplo acima: a hipótese de que as percepções da mente devam ser causadas por objetos externos. O que Hume quer dizer com isso? E com “objetos inteiramente distintos porém assemelhados” à mente? Significa que para o filósofo grosseiro ou tosco, ou isso ou aquilo deve ser escolhido: ou a realidade advém da própria mente (o mundo todo é ilusório) ou a matéria não-viva comanda nossos corpos. Para o torpe filosofar, que só vê extremos ou duas opções incondicionais, sem matizes, era assim que se colocava a questão. Não pode, para eles, haver um compromisso entre o que é tão “distinto”: é certo que nós, seres com consciência, somos feitos dos mesmos elementos (átomos) das naturezas mortas ou do mundo vegetal ou dos insetos, todos sem consciência, mas uma rocha não pode ser igualada a um ser humano, porque não sente nem raciocina! Nessa formação limitante, caso não se queira enxergar o mundo como ilusão de um Eu, recorre-se ao que é igualmente tachado como disparate por Hume: A pedra é como ela é, então ela possui uma faculdade que nem o mais desenvolvido dos humanos possui: a de demonstrar-se a si mesmo. É a solução do realismo exacerbado, que vê no olho do observador da pedra apenas um escravo da própria pedra. Para se provar que a pedra é real (pois se fosse, de outra forma, condicionada pela mente, a pedra seria apenas uma ficção do sujeito), diz-se que a matéria determina o real, e dá-se (a pedra dá!) de antemão aos sentidos aquilo que eles devem sentir, dá-se à mente o que ela deve pensar. A quem se ri do caráter ridículo dessa hipótese, não é outro o motivo do termo “objetivo” em complemento a “conhecimento”, e “objetividade” em ciência dita pura ou bruta, que estamos fartos de ler e ouvir falar: se se quer um conhecimento preciso, tudo deve ser objeto, ou então subordinado ao objeto! Nós não nos curamos, nem mesmo na linguagem técnica, desses atavismos falaciosos…

Em segundo lugar, esta passagem é a assunção humeana de corpo e mente como instâncias irrevocavelmente separadas. Por mais que isso seja desagradável para o leitor atual, é necessário compreender que Hume devia efetuar essa separação para progredir em seu ceticismo, ou estaríamos efetuando uma análise anacrônica e falsa do seu sistema filosófico: para o homem cético escocês não havia nenhum inconveniente nessa dualidade – antes, haveria na unidade mente-corpo. (Perceba que nisto Hume é muito inferior a Platão, que não cinde mente e corpo.)

O corpo representa, nesta instância, os sentidos. A mente a capacidade de abstração. O que a substancia? A matéria cinzenta, o cérebro, nosso sistema cognitivo. Sentidos e razão não possuem qualquer coincidência entre si. Nenhum pode sobrepor o outro, ambos são sempre contraditos e contradizem o outro, mas isto, esta conjugação paradoxal, é o homem. (Vejam que, se há de haver um sentido de unidade em qualquer parte, Hume vê no ser humano, o invólucro de mente e corpo; mas não admite mais do que isso: não admite a sinestesia ou mistura entre razão e sensação.)

Voltando à dicotomia sujeito-objeto (reino da distorção X reino do “real”): por que é tão difícil reconciliá-los nesse sistema filosófico? Nós sequer possuímos uma “imagem objetiva” de nosso próprio corpo, seja internamente seja externamente. Ex: não sabemos a priori como são nossas entranhas e como funcionam nossos sistemas biológicos como o digestório-excretório, o circulatório, o respiratório, etc., antes de uma investigação racional sobre tais temas. A mente também não pode comunicar conceitos ao corpo, e ela mesma não se conhece fisicamente ou, como queira, no nível espiritual, de forma objetiva, dadas nossas intrínsecas e palpáveis limitações. Não há uma instância maior-que-o-real a que se possa recorrer para a arbitragem imparcial de todo esse impasse: no sonho, basta que se acorde. A causa está fora do sonho, por isso o sonho pode ser objeto de investigação do sujeito acordado. Na loucura, o louco não pode investigar-se, mas pode ser objeto de estudo. O homem, o filósofo, não pode investigar-se e investigar o mundo da mesma forma como o sonhador investiga o sonho e a medicina investiga o paciente (nas Investigações Hume descreve a medicina como ciência abstrata, o que seria impensável hoje!). Neste caso, se é dada primazia ao sujeito, estamos dentro de um sonho, chamado mundo, e somos portadores de monomanias ou loucuras parciais que não podemos exatamente explicar ou esclarecer. Eis o que se pode construir, com segurança, sobre as bases de um ceticismo esclarecido (humeano). São nossos limites epistemológicos. A única alternativa seria recair no problema anterior, o da objetivação integral da realidade, o império do objeto ou da coisa – seres humanos como coisas. Logo, a alternativa não é viável.

PERGUNTA – É uma questão de fato se as percepções dos sentidos são produzidas por objetos externos a elas assemelhadas – como se decidirá esta questão?”

Ainda o mesmo. Nossos olhos enxergam outras matérias porque são matéria também (idênticos, em última instância, ao que observam), ou nossa visão (sentido) cria a matéria tal qual a observamos? Hume encontra-se preso entre os dois extremos e embora não se disponha a escolher de maneira cega entre “o ovo ou a galinha”, sua única solução, que ele reconhece como parcial (duplo sentido), é pender para o lado do sujeito no binômio sujeito-objeto. Parcial porque a filosofia não pode concluir sobre aquilo que não pode experimentar, (1) e parcial porque aquilo que parte de um indivíduo não é “realmente” uma “realidade” (imparcial) (2).

Tal debate parece hoje inocente, mesmo da perspectiva epistemológica. Até por isso é necessário esclarecer o leitor, no entanto, que tampouco fala-se aqui da investigação física sobre o fenômeno da visão, da óptica e das cores (já que usamos presentemente este sentido como exemplo, e não à toa: a visão é dos 5 sentidos de longe o mais explorado pela filosofia ocidental, em detrimento do tato, paladar, audição e olfato), que até a época de Hume não estavam solucionados nas bases atuais (a resposta encontrando-se na luz enquanto onda – para esta questão, podemos ignorar suas características de partícula – em interação tanto com a retina humana quanto com o objeto). Não é este “ângulo cru”, ou de ciências exatas, que interessa neste livro de Hume. Ele está, ao invés, a se perguntar: Que é a verdade, qual é o fundamento do real? (Dimensão epistemológica)

Essas mesmas perguntas, repito, são para nós inocentes, pois a filosofia kantiana decidiu-se sobre esse aspecto, sem recorrer quer ao ovo, quer à galinha, dando o passo que Hume hesitou em dar ou, antes, escolhendo deliberadamente não dar o passo, e justificando esta não-ação, no que ficou conhecida como a síntese kantiana (ou ainda crítica, simplesmente) das correntes filosóficas importantes que o precederam. Em Kant, não é dada primazia à faculdade do olho (uma câmera senciente, por assim dizer, i.e., uma câmera ligada a um sistema nervoso) nem aos objetos. Reconhece-se que este era um falso dilema. A solução é o que eu chamei anteriormente de axioma da representação. Dá-se ênfase ao caráter relativista da apreensão do mundo inerente ao ser humano e ao “fenômeno”, conceito que detalharemos a seguir.

Nem existe nada de que se possa falar que seja externo ao ser (um cogitado real ou coisa-em-si), nem é o sentido do ser que cria ilusões sensórias em detrimento de acessar uma suposta realidade não-sensível, independente (o que poderíamos, hoje, tanto chamar de coisa-em-si – de novo, ou seja, tanto no extremo objetivista quanto no extremo subjetivista deparamo-nos com ela – como de absurdo). O ser é a própria realidade que observa; a pedra, a mesa, a luz, o olho humano são fenômenos (representações, aparências), única forma da realidade regida pelo tempo-espaço. Esse novo binômio agora introduzido, o tempo-espaço, é nosso único modo de vivência. Nosso corpo e mente já não se encontram cingidos à maneira humeana no sistema kantiano, posto que enquanto fenômeno eternamente aparente (ou seja, em modificação) ele é em si a elucidação dos conceitos de espaço e de tempo, conteúdo, forma e sua variação, que estão embutidos em nossos instintos, sentidos e cognição (se desdobra num e noutro desde que existe, até que deixe de existir – agora sensação e razão também são capazes de coexistir).¹ A realidade é relativa ao indivíduo porque dois corpos não podem ser conhecidos ao mesmo tempo da mesma perspectiva, nem ‘no mesmo espaço’, sendo cada apreensão fenomênica um ‘caso isolado’ na perspectiva de um só indivíduo ou de vários. Se Hume ainda falava de um Absoluto, mas ao mesmo tempo defendia haver uma impossibilidade prática de acessá-lo, Kant, na medida em que não trata da coisa-em-si de forma moral (ao menos não até redigir a Crítica da Razão Pura Prática, mas esta obra só nos interessará como contraponto a ser marginalmente criticado, neste artigo), mas apenas a cita (como que em referência à filosofia anterior), dispensa o absoluto, ao tempo em que, justamente, assim procedendo, conserva-o, somente que sob a forma do fenômeno (que não conhece distinção sujeito-objeto), único absoluto de seu sistema.

¹ Leia a nota de rodapé sobre a memória, no próximo parágrafo.

RESPOSTA – Pela experiência.”

Como antecipei, Hume, vacilante, acaba por escolher o sujeito, embora de forma muito mais restrita que os subjetivistas (empiristas) que lhe precederam. E como Hume não segue pela senda kantiana, ele entende que o real (o fenômeno, ou ilusões diáfanas de acordo com seu sistema, trevas que ele tentará diminuir humildemente) possa ser paulatinamente investigado pela experiência (“sentidos acumulados”, “razão orientada pelos sentidos”, “sentidos orientados pela razão” até, como queiram, embora soe herético para os ouvidos de um Hume – e também “memória”).¹ Sucede que, na fenomenologia póstuma chega-se ao veredito: a experiência humana não “acumula” fatores necessários para o entendimento da própria experiência ou do real, como diz Hume, simplesmente porque os fatores necessários são tempo e espaço,¹ que são inerentes ao ser enquanto ser (e a única manifestação do ser é através do devir fenomenológico).² Em outros termos, Hume procura uma solução que já estava solucionada, sendo sua investigação tautológica ou até mesmo pré-tautológica, contraproducente e falsificadora (já que podemos entender o mundo dos fenômenos como, agora sim, a verdadeira tautologia).

¹ Como esta é uma INTRODUÇÃO À EPISTEMOLOGIA destes dois autores, achei por bem não carregar a cabeça do leitor e complicar demasiado a exposição logo de início com um último fator enunciado por Kant na sua primeira Crítica que completa um “tripé de fundamentos”, fechando o círculo de seu axioma da representação. Se possível gostaria de ter deixado esta parte fora até, mas como Hume, a dado ponto das Investigações cita a própria “memória” e o termo que aqui é conveniente citar, i.e., “aprendizado das causas e efeitos”, vejo-me compelido a citar, ao menos nesta nota de rodapé, o “terceiro elemento” da tríade kantiana, embora a explanação do sistema seja já auto-suficiente recorrendo-se estritamente a tempo e espaço e nenhum prejuízo decorreria de não haver falado neste terceiro aspecto, nem decorre de só dele falar agora. O fator que explica a memória e o acúmulo de experiências, no sistema kantiano, é o princípio inato de apreensão de causa-efeito; se já não fôssemos equipados desta intuição elementar, a própria passagem do tempo ou as mudanças do espaço (que são, em realidade, um único fenômeno que se separa, para nós, na expressão da linguagem) não seriam apreensíveis, o que demoliria todo o sistema. E na verdade quando falamos em espaço e em tempo já intuímos, por assim dizer, noções como a hegemonia de causas e efeitos no real, nos fenômenos. Nosso próprio conceito ou abstração mais ingênuo do que seria nossa memória envolve um recipiente, um contêiner, uma caixa, por exemplo, extensa e tridimensional, finita, capaz de armazenar, em diferentes etapas e períodos, informações, sendo que esta caixa nunca nos parecerá totalmente vazia nem cheia, embora deduzamos que ela tem um limite determinado – ainda que nem evoquemos aqui o esquema tão laborioso e complexo de um cérebro para a neurociência mais em dia, subdividido em inúmeros segmentos, dezenas de bilhões de neurônios, e com todas as regras das sinapses, i.e., das idas e vindas das ‘informações’ enquanto impulsos elétricos de ordem infinitesimal, e sua relação com as terminações nervosas por todo o corpo…, ainda que nem evoquemos tudo isto, esta imagem inocente da caixa já é o suficiente. Este modelo cerebral citado que, antes de dissecar um corpo, um ser humano não conhece em sua aparência nem em qualquer de seus atributos (não é exclusividade do cérebro: o mesmo se poderia dizer do intestino, p.ex.) a não ser através da educação ou instrução, direta ou indireta, comunicada por seres humanos que obtiveram estes dados no passado, i.e., numa palavra, mediante a razão. Em suma, a noção de causa-efeito nada mais é do que a articulação lógica que possibilita nossa compreensão (inata) de tempo e espaço como fundamento do real e articulação unitária regente de todos os fenômenos. De forma ainda mais simples: a dita razão ou conhecimento abstrato (a posteriori) nada mais é do que um tipo de super-conhecimento a priori, com diferença só de grau, mas não de qualidade, posto que não importa quão complicado seja esse conhecimento intelectual, a ele se remonta através de incessantes aplicações do princípio causa-efeito. Este insight kantiano assinala, novamente, a inédita compreensão moderna de outra parte da filosofia platônica: sua doutrina da metempsicose conjugada com a teoria das reminiscências, e o conseqüente postulado epistemológico de que “nada aprendemos, apenas nos lembramos do que sabemos”. Ou seja, para Platão até a sabedoria é um a priori, todavia é óbvio que ele não usa esta expressão.

² Se de alguma coisa eu me orgulho é de poder ter exposto o sistema kantiano sem vários dos termos esdrúxulos utilizados por Kant! Aquele que já se aventurou a lê-lo sabe do que estou falando… Schopenhauer, talvez o maior admirador de Kant que já existiu, Nietzsche e muitos outros não nos pouparam de comentários acerbos sobre como é árida sua leitura, como Kant escreve mal e complicado sem necessidade, etc.! Um dos termos que me guardei de usar no parágrafo acima, mas que já havia usado em negrito no artigo (e na nota ¹ acima), foi o a priori. Qu’est-ce que c’est, l’a priori kantienne? Que vem a ser esse tal a priori kantiano? Nada mais do que a afirmação positiva de Kant, que para ser percebida e enunciada por Hume exigiria que ele abdicasse de seu ceticismo esclarecido num ponto decisivo: como o homem não precisa aprender sobre espaço e tempo, já nasce sabendo-os, diz-se que tempo-espaço são percepções a priori de todo ser. Hume não admite conhecimentos a priori, e esse é o calcanhar-de-Aquiles de seu sistema.

Recorrer à veracidade do Ser supremo para provar a veracidade de nossos sentidos é, certamente, tomar um caminho muito inesperado.” Aqui Hume está se referindo aos filósofos pré-modernos, no meio dos quais é suma autoridade, sendo seu ceticismo completamente equipado para refutar suas doutrinas exotéricas. E, coisa inusitada, o próprio Kant, na Crítica da Razão Pura Prática, continuação moral de sua clássica e inauguradora Crítica da Razão Pura, retrocedeu e recaiu no próprio erro que já havia superado anos antes: atribuiu ao Ser supremo mediado pela ética cristã no mundo fenomênico o fundamento de nossa conduta social! Ele fez isso porque não encontrou outra solução metodológica para o dilema moral que suas conclusões no primeiro livro traziam (ou que ele imaginava que traziam, seria mais apropriado dizer): a queda no niilismo desenfreado, uma vez que os fenômenos são relativos e, portanto, realidades últimas individuais e desconexas umas com as outras. Este novo modo de ver, que hoje chamamos mundano ou imanente, parece de súbito a Kant (crise de meia-idade?) despido de algo muito importante, uma comunicação com o que batizamos de transcendência. No velho sentido, transcendência pode se referir a uma coisa-em-si, ou seja, a algo inalcançável para o ser humano; mas em Kant a transcendência ganha o novo sentido de realização moral mundana sob um princípio mais elevado. Talvez ele sentisse que faltava completamente ao homem moderno o senso (ironicamente) a priori de virtude que parece emanar do homem grego. Faltava, segundo ele, a explicação de como era possível a ética, isto é, a ação-no-mundo ao mesmo tempo individual e coletiva, isto é, a ação do homem de forma que fosse possível a vida estável em sociedade, fora da situação hipotética hobbesiana do estado de natureza (todos os homens contra todos os homens ou guerra perpétua ou ainda guerra civil, caso ocorresse numa civilização já constituída) e guiada por e para fins mais nobres do que a própria mundanidade fenomênica. Sua bem-conhecida resposta para esse relativo desespero veio na forma do imperativo categórico. Sua premissa é válida para poucos séculos europeus de civilização cristã, ignorando portanto qualquer desenvolvimento histórico tais quais a manifestação do Estado antes do modelo constitucional moderno, as civilizações anteriores, as civilizações não-européias e as civilizações póstumas, todas elas fenômenos transcendentais (no seu sentido) e estáveis, regidos porém por morais, culturas, religiões e códigos de ética alternativos ao tempo-espaço específico de Kant, i.e., a monarquia constitucional européia do século XVIII. Enquanto o grego antigo da polis achava uma orientação deontológica dentro de si mesmo e da comunidade de seus iguais, o homem kantiano ideal tinha de recorrer novamente ao Deus monoteísta judeo-cristão. Kant retomaria uma epistemologia independente da coisa-em-si, restituindo o transcendental à sua origem fenomênica, no seu terceiro trabalho clássico, a Crítica da Faculdade do Juízo, num campo mais delimitado, contudo: a fim de explicar a possibilidade da Estética.

Este é um tópico, portanto, no qual os céticos mais profundos e mais filosóficos sempre haverão de triunfar quando se propuserem a introduzir uma dúvida universal em todos os objetos de conhecimento e investigação humanos.” No sentido aqui atribuído ao ceticismo, todos os trabalhos filosóficos ainda válidos para nossa própria idade foram efetivamente legados por indivíduos céticos, sem reparos.

É universalmente reconhecido, pelos modernos pesquisadores, que todas as qualidades sensíveis dos objetos, tais como o duro e o mole, o quente e o frio, o branco e o preto, etc., são meramente secundárias e não existem nos objetos eles mesmos, mas são percepções da mente que não representam nenhum arquétipo ou modelo externo. Se isso se admite com relação às qualidades secundárias, o mesmo deve igualmente seguir-se com relação às supostas qualidades primárias de extensão e solidez, as quais não podem ter mais direito a essa denominação que as anteriores. A idéia de extensão é inteiramente adquirida a partir dos sentidos da visão e do tato, e se todas as qualidades percebidas pelos sentidos estão na mente, não no objeto, a mesma conclusão deve alcançar a idéia de extensão, que é inteiramente dependente das idéias sensíveis, ou idéias de qualidades secundárias. Nada pode nos resguardar dessa conclusão a não ser declarar que as idéias dessas qualidades primárias são obtidas por abstração, uma opinião que, examinada cuidadosamente, revelar-se-á ininteligível e mesmo absurda. Uma extensão que não é nem tangível nem visível não pode ser minimamente concebida, e uma extensão visível ou tangível que não é nem dura nem mole, nem preta nem branca [Hume quis dizer: sem cor], está igualmente além do alcance da concepção humana. Que alguém tente conceber um triângulo em geral que não seja nem isósceles nem escaleno, nem tenha qualquer particular comprimento ou proporção entre seus lados, e logo perceberá o absurdo de todas as noções escolásticas referentes à abstração e às idéias gerais. [Em nota] Tomou-se de empréstimo esse argumento ao Dr. Berkeley; e, de fato, a maior parte dos escritos desse autor extraordinariamente habilidoso compõe as melhores lições de ceticismo que se pode encontrar entre os filósofos antigos ou modernos, incluindo Bayle. (…) Ele [Berkeley] declara, entretanto, na folha de rosto (e sem dúvida com grande sinceridade), ter composto seu livro contra os céticos, bem como contra os ateus e os livres-pensadores. Mas todos os seus argumentos, embora visem a outro objetivo, são, na realidade, meramente céticos, o que fica claro ao se observar que não admitem nenhuma resposta e não produzem nenhuma convicção. Seu único efeito é causar aquela perplexidade, indecisão e embaraço momentâneos que são o resultado do ceticismo. [do ceticismo = do filosofar] Aqui Hume estava muito próximo de chegar ao criticismo kantiano, por exemplo. Diríamos que estava “quente”, mas que alguns parágrafos à frente já havia “esfriado” de novo…

Pode parecer muito extravagante que os céticos tentem destruir a razão por meio de argumentos e raciocínios, contudo esse é o grande objetivo de todas as suas disputas e investigações.”

A principal objeção contra todos os raciocínios abstratos deriva das idéias de espaço e tempo; idéias que, na vida ordinária e para um olhar descuidado, passam por muito claras e inteligíveis, mas, quando submetidas ao escrutínio das ciências profundas (e elas são o principal objeto dessas ciências), [Aqui Hume se refere à Escolástica, o que nada tem a ver com nosso conceito de ciência profunda – para ele era a ‘velha metafísica’ somente.] geram princípios que parecem recheados de absurdos e contradições.” Significa, ainda, para além de uma crítica à Escolástica: podemos abstrair inúmeras conclusões físico-matemáticas falsas acerca do espaço e do tempo, o que seria produto de um uso indiscriminado e mal-feito da razão, mas o que há de empírico e sensível no tempo e no espaço é, por sua vez, irrefutável, indiscutível mesmo, ignorando e destruindo qualquer conceito ou abstração impróprios, em última instância. Daí é fácil intuirmos por que o espaço-tempo é a base do kantismo: eis a noção mais imediata e impregnada no Ser, a condição de possibilidade de todos os fenômenos e representações.

Os assuntos ligados à moral e à crítica são menos propriamente objetos do entendimento que do gosto e do sentimento. A beleza, quer moral ou natural, é mais propriamente sentida que percebida. Ou, se raciocinamos sobre ela, e tentamos estabelecer seu padrão, tomamos em consideração um novo fato, a saber, o gosto geral da humanidade ou algum outro fato desse tipo, que possa ser objeto do raciocínio e da investigação.” Longe de mim, ao demonstrar que a epistemologia kantiana é, em síntese, a superação da epistemologia humeana, rebaixar ou relegar Hume a um canto irrelevante da história dos pensadores. Nesta passagem, por exemplo, se vê com assaz clareza que Hume, apenas 13 anos mais velho que seu ainda mais celebrado “rival”, respirando a mesma cultura portanto, poderia muito bem ter sido o autor de todo o criticismo kantiano, se rumasse por veredas não muito distintas de seu próprio método, posto que essas linhas por si só contêm em germe não só as conclusões kantianas mais sublimes (como os postulados da primeira e da terceira Críticas) como até o sensato corretivo dos devaneios kantianos sobre a moral (segunda Crítica)!

Minha idéia de escrever detidamente acerca de Hume e Kant num artigo veio-me como de supetão, lendo Hume. Em caso de que essa “estranha vontade” me ocorra novamente, continuarei a série, esmerilhando outros filósofos, sob o nome mais geral de HISTÓRIA DAS IDÉIAS.