HISTÓRIA DA MATEMÁTICA: Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas – Tatiana Roque, 2012. – CAPÍTULO 7. O século XIX inventa a matemática “pura” ou “A ERA DO RIGOR”

no século XIX, a análise matemática adquiriu a forma que reconhecemos, ainda hoje, como válida. O movimento de rigorização pode ser dividido em duas fases: uma francesa, na qual se destaca a figura de Cauchy; e outra alemã.”

não bastava reconhecer que infinitésimos, ou limites, eram fundamentos inadequados para a análise; uma doutrina positiva se fazia necessária.”

Não que os matemáticos, preocupados com um suposto estado caótico de sua disciplina, tenham feito uma reunião e combinado os novos padrões que deveriam substituir os que estavam em uso. Os pesquisadores do século XVIII sequer percebiam seus métodos como pouco rigorosos ou desorganizados. Portanto, não podemos afirmar que seus resultados carecessem de rigor, como se eles tivessem o objetivo de avançar sem preocupações com a fundamentação de seus métodos. A noção de rigor se transformou na virada do século XVIII para o XIX porque os matemáticos da época se baseavam em crenças e técnicas que não eram mais capazes de resolver os problemas que surgiam no interior da própria matemática. Ou seja, isso não se deu por preocupações formalistas, nem por um interesse metamatemático de fundamentar essa disciplina. O rigor é um conceito histórico, e a noção de rigor de Lagrange era diferente da de Cauchy, que, por sua vez, também seria criticado por Weierstrass, baseado em sua própria concepção aritmética.”

A discussão sobre as quantidades negativas, durante o século XVIII, mostra que somente os números absolutos eram aceitos, pois se pretendia relacionar a existência em matemática a uma noção qualquer de <realidade>. Para avançar, era preciso migrar para um conceito abstrato de número não subordinado à ideia de quantidade.”

Por volta de 1800, a matemática era teórica e prática ao mesmo tempo. Fazia parte de seu projeto representar a natureza por equações, e os matemáticos teóricos se viam como pertencentes à mesma tradição inaugurada por Newton e outros. Uma das consequências da reflexão sobre a estrutura interna da matemática, que ocupou o século XIX, foi a sua separação da física. Ainda que procurasse se estabelecer como uma disciplina independente, a análise do século XVIII era motivada por problemas físicos que continuaram a exercer grande influência por alguns anos.”

Ainda que, desde o século XVII, as entidades algébricas tenham adquirido um lugar de destaque na matemática, até o final do século XVIII as raízes negativas e imaginárias de equações eram consideradas quantidades irreais. Os números que hoje chamamos de <irracionais> apareciam na resolução de problemas, mas também não tinham um estatuto definido.”

A partir daí, a noção de função terá um papel central na matemática, no lugar das curvas ou das expressões analíticas que as representavam. A expressão <ponto de vista dos Conjuntos> não se refere ainda à teoria dos conjuntos. Essa distinção é importante em nossa abordagem, pois pretendemos contextualizar as contribuições de Cantor¹ para a definição de conjunto no desenvolvimento conceitual e abstrato da matemática na Alemanha, ligado aos nomes de Dirichlet, Riemann e Dedekind.”

¹ Ainda hoje tratado como louco e contestado na própria Matemática.

Os métodos sintéticos voltaram a ser defendidos e o valor atribuído à possibilidade de generalização fornecida pela álgebra passou a ser criticado em prol de métodos que pudessem ser mais intuitivos. O ápice desse movimento ocorreu em 1811 e um de seus protagonistas foi Lazare Carnot.”

Nos últimos anos do século XVIII, Laplace adquiriu grande poder na cena francesa, sobretudo depois de se tornar ministro, com o golpe de Napoleão, em 1799. A partir daí, ele passou a incentivar uma padronização do ensino na École Polytechnique com base na análise e na mecânica. O curso de análise deveria ser dividido em 3 partes: análise pura (ou análise algébrica); cálculo diferencial; e cálculo integral. Além disso, a introdução ao cálculo deveria ser feita com base no método de limites, exposto por Lacroix.”

Segundo Schubring, Lazare Carnot é o melhor símbolo da discussão sobre o rigor em análise que teve lugar na França naquele momento, anteriormente esboçada por d’Alembert. As principais contradições dessa reação consistiam em tentar obter, ao mesmo tempo, uma maior generalização da matemática, mas mantendo o apelo à intuição. Em 1797, Carnot já havia publicado uma obra sobre os fundamentos do cálculo chamada Réflexions sur la métaphysique du calcul infinitesimal (Reflexões sobre a metafísica do cálculo infinitesimal), segunda versão de um texto de 1785.”

Não houve descoberta que tivesse produzido, nas ciências matemáticas, uma revolução tão feliz e tão rápida quanto a da análise infinitesimal; nenhuma forneceu meios mais simples, nem mais eficazes, para penetrar no conhecimento das leis da natureza. Decompondo, por assim dizer, os corpos até os seus elementos, ela parece ter indicado sua estrutura interior e sua organização; mas, como tudo o que é extremo escapa aos sentidos e à imaginação, só se pôde formar uma ideia imperfeita desses elementos, espécies de seres singulares que tanto fazem o papel de quantidades verdadeiras quanto devem ser tratados como absolutamente nulos e parecem, por suas propriedades equívocas, permanecer a meio caminho entre a grandeza e o zero, entre a existência e o nada.” Carnot

Mas sua posição mudará depois dessa data. Carnot foi exilado por razões políticas e retornou à França em 1800, graças a Napoleão, que o designou ministro da guerra. Em pouco tempo, contudo, renunciou ao cargo e passou a se dedicar às questões ligadas aos fundamentos da matemática, publicando, em 1813, uma nova edição de seu livro. Nessa nova versão, reviu suas posições sobre a álgebra, afirmando que seus princípios são ainda menos claros do que os do cálculo infinitesimal. Tal posição refletia a concepção mais geral da época, que voltava a valorizar a geometria e o saber dos antigos. Inspirado por essa tendência, Carnot passou a defender o método dos infinitamente pequenos contra o dos limites e propôs seguir os princípios de Leibniz em análise.

Maine de Biran integrou uma segunda geração do grupo dos idéologues franceses e atacou os defensores da álgebra, destacando o caráter obscuro de seus métodos. Segundo ele, a linguagem algébrica é uma prática cega e mecânica que não possui a clareza da geometria.”

A noção de função será então definida antes das noções de continuidade, limite e derivada, a fim de eliminar as incertezas ligadas à concepção sobre essas noções.”

Quando quantidades variáveis são ligadas de modo que, quando o valor de uma delas é dado, pode-se inferir os valores das outras, concebemos ordinariamente essas várias quantidades como expressas por meio de uma delas que recebe, portanto, o nome de <variável independente>; e as outras quantidades, expressas por meio da variável independente, são as que chamamos funções desta variável.” Cauchy

Durante muito tempo a historiografia da matemática enxergou Cauchy como o pai fundador do movimento de rigor na análise, até que começaram a ser identificados alguns erros em sua concepção de continuidade. As duas imagens são as duas faces da mesma moeda. Ao procurar na obra desse matemático francês antecedentes das noções modernas em análise, podemos nos deparar com erros que frustrarão nossas expectativas. Pensamos ser mais proveitoso ver Cauchy como um homem de seu tempo, que buscava um tipo de rigor que já não era o do século XVIII, fundado na algebrização, mas que também não era o rigor típico do século XIX. Para ele, o conceito de continuidade era fundamental, e essa idéia se associava ao universo das curvas. A noção de função se relacionava implicitamente a essas curvas, uma vez que exemplos de funções que não podem ser vistas como curvas ainda não intervinham na matemática da época.

A matemática não era a ferramenta central de uma busca especulativa pela verdade, e sim o elemento principal de uma cultura ligada à engenharia. Esse papel da matemática ajudou a configurar um certo espírito de corpo na elite francesa, que adquiria uma identidade científica. A Revolução democratizara o ideal meritocrático, que substituiu os critérios de nascimento no acesso aos serviços. A admissão na École Polytechnique passou a se dar por concurso e a matemática ganhou status nessa meritocracia, uma vez que tal saber era tido como capaz de medir a inteligência.”

A física matemática e a mecânica celeste eram os principais campos de pesquisa dos matemáticos franceses no século XIX. Eles procuravam estudar as equações que governam fenômenos físicos em mecânica dos fluidos, eletrostática e eletrodinâmica, teoria do calor e da luz, etc. A análise complexa, desenvolvida por Cauchy, emergiu do estudo de equações diferenciais parciais, ligadas a problemas físicos. Em 1824, o secretário perpétuo da Academia de Ciências de Paris, Joseph Fourier, ao relatar os avanços daquele ano, proclamava: O tempo das grandes aplicações das ciências chegou.

Existia uma separação entre, de um lado, a física matemática e a mecânica celeste; e, de outro, a mecânica que lidava com artefatos para a engenharia ou a indústria. Além disso, havia também a geometria, que trabalhava com instrumentos óticos e sobrevivia desde o século XVII. Mesmo para Cauchy o rigor não era uma restrição nem um objetivo em si mesmo; era a condição para o desenvolvimento de métodos gerais com vistas à aplicação. A prática da matemática não era muito valorizada por si mesma, sobretudo em comparação com seu desenvolvimento na Alemanha das décadas seguintes.

Ao afirmarmos que a pesquisa matemática na França inspirava-se nas aplicações não queremos dizer que sua orientação não fosse eminentemente teórica. O domínio de aplicação de uma teoria era tanto maior quanto mais elevado era seu ponto de vista. Esse princípio levava à busca de uma ciência derivada de uma ideia unificadora, caso da análise para Lagrange. O mesmo princípio levou Fourier a constituir sua análise sobre as séries trigonométricas. Logo, como afirma B. Belhoste, o movimento de teorização não se opunha às aplicações; encontrava nelas sua inspiração. O interesse pela solução de problemas de física ou de engenharia e a busca por teorias cada vez mais gerais eram os dois lados da mesma moeda.” Quanto mais se abre a perspectiva de uma “ciência ‘x’ aplicada”, mais se consolida a ciência “x” em sua modalidade teórico-epistemológica – vide desdobramentos da psicanálise científica no século XX. O “científica” como sobrenome da psicanálise eu insiro aqui num sentido extra-moral: os acadêmicos empiricistas, psicólogos de araque e teólogos que se virem para desmoralizá-la, ou seja, aplicar sua crítica enviesada e altamente interessada… Contra ou a favor da Psicanálise como um todo, não poderíamos ter a má-fé de considerá-la um esoterismo judaico, como alguns proto-nazistas insinuaram e ainda insinuam…

Paris deixava de ser o principal centro da atividade matemática e a École Polytechnique perdia seu caráter inovador. O clima de autoritarismo do final do Segundo Império tornou ambíguo o papel da matemática, que era divorciado da pesquisa. Seu estudo era incentivado, acima de tudo, por sua utilidade prática no treinamento de engenheiros e a sociedade se interessava cada vez menos por pesquisas teóricas e abstratas.”

A invasão napoleônica, no início do século XIX, motivou a necessidade de elevar o nível de sofisticação militar e científica da Alemanha. Os alemães explicavam a própria derrota apontando para o alto nível de educação científica dos franceses, consequência da reforma educacional implantada após a Revolução Francesa. O traço característico das universidades que se desenvolviam na Alemanha a partir de 1810 era o papel indissociável entre o ensino e a pesquisa. Essa estreita relação permitia aos professores ir além dos cursos padronizados e elementares, baseados em livros-textos, para introduzir novos resultados, ligados a pesquisas.

O estilo dos matemáticos alemães da época pode ser explicado, em grande parte, pela proximidade com a faculdade de filosofia e pelo contato com filósofos. Promoviam-se, assim, orientações mais teóricas, motivadas também por pressuposições filosóficas. O grupo dos neo-kantianos do início do século XIX, que se opunha ao idealismo de Hegel, exerceu forte influência sobre diversos matemáticos alemães algumas décadas depois. Os valores neo-humanistas enxergavam a matemática como uma ciência pura, o que era expresso na visão de vários pensadores da época. Os conceitos fundamentais deviam ser definidos por meio de outras definições claramente explicitadas e nunca se basear em intuições [e isso foi empreendido por neo-kantianos, quão paradoxal!].

Por favor, não metam Kant no meio! “A matemática em si mesma, ou a assim chamada matemática pura, não depende de suas aplicações. Ela é completamente idealista; seus objetos, número, espaço e força, não são tomados do mundo externo, são idéias primitivas. [Que não derivam do espaço, do tempo, logo do contável, nem do princípio da causalidade! Ok!] Eles seguem seu desenvolvimento independentemente, por meio de deduções a partir de conceitos básicos. … Qualquer adição de aplicações ou ligação com estas, das quais ela não depende, são, portanto, desvantajosas para a própria ciência.”

Os matemáticos não eram mais vistos como práticos; participavam de uma elite intelectual de professores universitários que valorizava o saber puro, principalmente no contexto das humanidades enfatizadas por Humboldt.” Nada mais inconcebível para o Brasil em qualquer período.

Em Berlim, a matemática passou a se basear em noções puramente aritméticas. Nessa atmosfera, Cantor recebeu sua educação matemática entre 1863 e 1869. Weierstrass preferia apresentar seus resultados nos cursos, por isso eles permaneceram praticamente inéditos até 1895, quando foi editado o primeiro volume de suas obras. Mas, durante os anos 1870, sua fama se espalhou. Muitos convidados vinham assistir a seus cursos e escreviam anotações que acabavam circulando. No final do século, a noção de rigor defendida por Weierstrass se tornou predominante, repousando sobre a aritmetização da matemática, conforme essa tendência foi denominada por Felix Klein em 1895, na ocasião do aniversário de 80 anos de Weierstrass.”

As tentativas anteriores de assegurar as bases ontológicas dos conceitos fundamentais da matemática a partir da relação com uma certa realidade, não importa qual fosse, colocavam os alicerces dessa disciplina no mundo externo.”

Dizia eu que a aritmética não existe, a priori

Os seguidores de Al-Khwarizmi resolviam equações e admitiam o caso de raízes irracionais. Ao traduzir o termo grego alogos, que também possui o sentido de <inexprimível>, essas soluções foram chamadas de <mudas> (jidr assam). Nas versões latinas, a designação árabe foi, algumas vezes, traduzida por <números surdos>, que é como os irracionais ficaram conhecidos. Como mencionado no Capítulo 4, os métodos algébricos adquiriram grande autonomia com os árabes (começando a ficar independentes com relação à geometria). Além dos irracionais quadráticos, eles calculavam raízes de ordem qualquer, obtidas pela inversão da operação de potenciação e aproximadas por métodos elaborados que também permitiam resolver equações numéricas.”

Em 1585, o holandês Simon Stevin publicou um texto de popularização em holandês e francês, chamado De Thiende (O décimo, traduzido para o francês como La disme), defendendo uma representação decimal para os números fracionários e mostrando como estender os princípios da aritmética com algarismos indo-arábicos para realizar cálculos com tais números. Apesar de seu sistema ser bastante complexo, sem o uso de vírgulas, o fato de escrever as casas decimais de um número tornava mais evidente a possibilidade de se aumentar o número de casas, o que é útil se quisermos aproximar um número irracional por um racional.

A introdução da representação decimal com vírgulas foi um passo importante na legitimação dos irracionais, uma vez que fornecia uma intuição de que entre dois números quaisquer é sempre viável encontrar um terceiro, aumentando o número de casas decimais. Nota-se, por meio dessa representação, que, apesar de os irracionais escaparem, é possível que racionais cheguem muito perto.”

Raiz de 2 ao longo do tempo, conforme os matemáticos se tornavam cada vez mais especializados em sua “decifração”:

  1. 3/2 =1,5

  2. 7/5 = 1,4

  3. 41/29 = 1,41379310…

  4. 99/70 = 1,41428571…

  5. 17/12 = 1,41666…

Numa linha contínua (eixo x), apenas as divisões (3) e (4) chegavam mais próximas do que seria a “raiz de 2”.

Descoberta, no séc. XVII, do TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA: “O nº de raízes de uma equação é dado pelo seu grau.”

Ex: 2x4 + 5x³ − 35x² − 80x + 48 = 2(x + 3)(x + 4)(x − 4)(x − ½) = 0

Obviamente, para admitir esse número de soluções, será necessário admitir como válidas as soluções que Girard designa <impossíveis>. Mas para que servem essas soluções se elas são impossíveis?”

tanto as verdadeiras raízes quanto as falsas não são sempre reais, mas às vezes apenas imaginárias; o que quer dizer que podemos sempre imaginar tantas quanto dissemos em cada equação, mas às vezes não há nenhuma quantidade que corresponda àquelas que imaginamos.” Descartes, The Geometry, livro III, p. 86, tradução da própria Tatiana Roque.

O exemplo utilizado [por Descartes] para ilustrar esse caso é o da equação dada por x³ − 6x² + 13x − 10 = 0, para a qual podemos imaginar três soluções, das quais apenas uma é real, dada pelo número 2. Quanto às outras, mesmo que as aumentássemos, diminuíssemos ou multiplicássemos, não conseguiríamos fazer com que deixassem de ser imaginárias. A palavra <imaginária>, talvez devido à grande influência da obra de Descartes, passará a ser a mais usada para designar essas quantidades.

Enquanto um número negativo −a era entendido como 0 − a, não se punha o problema de defini-lo em si mesmo.” “Em alguns tratados do século XV os resultados negativos eram usados sem grandes discussões.” “É interessante observar que números negativos, quando apareciam nos cálculos, podiam ser chamados <negativos>, entretanto, quando representavam a solução de uma equação eram ditos <fictícios>.” “Apesar de afirmar explicitamente que a raiz quadrada de um número negativo não é correta, Cardano não se privava de operar com raízes de números negativos.”

Bombelli não usava essa notação. Designando a raiz quadrada por R.q. e a raiz cúbica por R.c., escrevia que R.c. 2.p.dm.R.q.121 + R.c. 2.m.dm.R.q.121. Observamos que ele usava a notação dm.R.q.121 para (raiz quadrada ou simples de -121), o que é diferente de R.q.m.121 [o que diabos é o “d”? ver abaixo!]. Isso indica que a sua notação para (raiz quadrada ou simples de -121) privilegiava a operação realizada com esse número e não o número obtido como raiz de uma quantidade negativa.”

p.dm., que é a abreviação para più di meno, em italiano, designa que estamos somando a raiz quadrada do nº negativo 121 e m.dm., abreviação de meno di meno, designa a subtração dessa mesma quantidade.”

A historiografia retrospectiva da matemática, praticada, por exemplo, por Bourbaki, chega a afirmar que più, meno, meno di meno e più di meno são, respectivamente, 1, −1, −i e i.” “porém, dizer isso hoje soa inadequado. A razão é porque o símbolo i será utilizado como uma unidade imaginária, ao passo que più di meno e meno di meno contêm em suas expressões as idéias de adição e de subtração, ou seja, relacionam-se a operações.”

numerro e³zat0

A introdução de uma nova notação, com os trabalhos de Viète, desviou a atenção dos matemáticos que sucederam os algebristas do século XVI, e ele não admitia nem números negativos e imaginários como raízes de equações, apesar de operar com a regra dos sinais de modo pragmático.”

O livro de Arnauld Nouveaux éléments de géometrie (Novos elementos de geometria) traz o primeiro debate explícito entre dois matemáticos sobre o modo de conceber as quantidades negativas. Schubring mostra que Arnauld recorre a justificativas geométricas, similares às de Cardano, para defender que <menos com menos deve dar menos>. Seu opositor, Prestet, mencionado no Capítulo 6, afirma, ao contrário, que as quantidades negativas devem ter o mesmo estatuto das positivas. Além disso, a regra dos sinais deve ser provada algebricamente e não geometricamente, como Cardano havia proposto e Arnauld justificado.”

Uma novidade é que suas considerações eram escritas em francês e não em latim, como antes. Logo, tiveram grande impacto nos meios cultos franceses até o início do século XVIII.”

TODA RAIZ É UMA CURVA (NENHUMA POTÊNCIA É LINEAR), O MUNDO MESMO É CIRCULAR! “Pascal e Barrow afirmavam que números irracionais deviam ser entendidos somente como símbolos, não possuindo existência independente de grandezas geométricas contínuas. Um número como (raiz de 3), por exemplo, deveria ser entendido como uma grandeza geométrica. § Com Leibniz e Newton, o cálculo infinitesimal passou a usar sistematicamente as séries infinitas. A noção de que a um ponto qualquer da reta está associado um número ficava implícita.” Comentário acima sobre a raiz de 2 e suas 5 respostas.

Nesse período, o cálculo de áreas já estava distante da tradição euclidiana e buscava associar a área a um número. O método utilizado era baseado, primordialmente, na manipulação de séries infinitas, como já era o caso da técnica usada por Pascal e Fermat descrita no Capítulo 6. A solução de problemas envolvendo quadraturas e equações diferenciais fez proliferar o uso dessas séries.”

Arquimedes já havia encontrado limites para a razão entre o perímetro e o diâmetro da circunferência, e outros matemáticos já tinham aproximado o valor dessa razão, mas no contexto do cálculo leibniziano se colocará o problema de admitir π como um número.”

No século XVI, alguns matemáticos, como M. Stifel, já haviam aventado a hipótese de a quadratura ser impossível. Para demonstrar isso, era necessário verificar que o perímetro não está para o diâmetro assim como um número inteiro para outro. Em meados do século XVIII essa possibilidade não surpreendia mais os matemáticos, sobretudo devido à grande variedade de séries infinitas que se relacionavam à quadratura do círculo. Se a soma dessas séries for uma quantidade racional, ela será um número inteiro ou uma fração; caso contrário, pode ser um número transcendente. Desde o século XVII eram fornecidas diversas aproximações para o valor da razão entre o diâmetro e a circunferência do círculo. Mas apenas em meados desse século os matemáticos perceberão que, ao invés de buscar o verdadeiro valor de π, poderiam mostrar que não há <verdadeiro valor>, ou que esse valor é impossível.”

A designação de número <real> começou a ser empregada por volta de 1700 para distinguir essas quantidades das negativas e imaginárias, que ainda não eram consideradas reais.”

Durante os séculos XVII e XVIII, com o estudo das funções transcendentes o logaritmo se tornou um conceito importante para esclarecer as ferramentas algébricas da análise e dar-lhes consistência.”

Clairaut seguiu a mesma linha de Fontenelle, admitindo quantidades negativas como soluções das equações. No entanto, os escritos de ambos foram atacados duramente por d’Alembert, que, na Encyclopédie, criticou radicalmente a aceitação dos números negativos, atitude que, conforme seu pensamento, partia de uma falsa metafísica. Do mesmo modo, devia se rejeitar, ainda segundo ele, a generalidade obtida pela álgebra na resolução de equações. Essa posição contradizia sua defesa do poder de generalização da álgebra no contexto da análise, mas, para d’Alembert, na resolução de equações o uso da álgebra dava lugar a uma metafísica equivocada sobre as quantidades negativas. Ou seja, podia-se aceitar a regra dos sinais nas operações, no entanto não era legítimo conceber quantidades negativas como sendo menores que zero, pois essa idéia é incorreta.

A ruptura provocada por d’Alembert devia-se às suas posições em relação ao logaritmo de números negativos, que requeria a intervenção de números imaginários. Em uma controvérsia com Euler, que descreveremos a seguir, d’Alembert acreditava que esses logaritmos deviam ser reais, o que tentava demonstrar a todo custo. Isso o fez questionar, em geral, o estatuto dos números negativos, evitando o problema de dar consistência a seus logaritmos.”

Se log(1) = 0, aceitar-se-ia log(-1) = 0?

Logo, um nº e seu oposto devem possuir o mesmo logaritmo. Leibniz tinha enunciado a regra de que a derivada de log(x) é igual a 1/x, mas afirmava que ela só era válida para valores reais de x.”

os logaritmos de números negativos devem ser imaginários, e não reais.”

notações como o símbolo (raiz de -1) só começaram a ser usadas no final do séc. XVII.”

D’Alembert registrou em 1784, em sua Encyclopédie, a importância de seu próprio trabalho nos verbetes denominados Équation e Imaginaire. Ele ressaltava ter sido pioneiro em demonstrar que qualquer quantidade imaginária, tomada à vontade, pode sempre ser reduzida à forma (e + função de raiz de -1), com e e f sendo quantidades reais.”

Euler já via a álgebra como uma ciência dos números, e não das quantidades. Para ele, todas as grandezas podiam ser expressas por números e a base da matemática devia se constituir de uma exposição clara do conceito de números e das operações. Entretanto, suas propostas não foram reconhecidas no século XVIII. Para Euler, o modo de se obter os números negativos era similar ao modo de se obter os positivos.”

Chega a ser surpreendente, logo depois de 1800, o número de trabalhos sobre a representação geométrica dos negativos e imaginários escritos por pessoas que não participavam da comunidade matemática. Um exemplo conhecido é o do dinamarquês Caspar Wessel, mas no meio francês houve também o caso do padre Adrien-Quentin Buée, que não integrava a comunidade científica.”

Outro personagem mítico é Jean-Robert Argand. Na historiografia tradicional, diz-se que se tratava de um suíço, amador em matemática, que trabalhava como guardador de livros. Mas essa versão é falsa. Hoje só se pode afirmar que, entre 1806 e 1814, um certo Argand parece ter sido um técnico que estava a par do desenvolvimento da ciência na época.”

Annales de Mathématiques Pures et Appliquées, a primeira revista especializada em matemática, editada fora de Paris por J.D. Gergonne.” “Argand publicou, ainda em 1813, nos Annales de Gergonne, o artigo Essai sur une manière de représenter les quantités imaginaires dans les constructions géométriques (Ensaio sobre uma maneira de representar as quantidades imaginárias nas construções geométricas).” “Supondo uma balança com dois pratos, A e B. Acrescentemos ao prato A as quantidades a, 2a, 3a, 4a, e assim sucessivamente, fazendo com que a balança pese para o lado do prato A. Se quisermos, podemos retirar uma quantidade a de cada vez, restabelecendo o equilíbrio. E quando chegamos a 0? Podemos continuar retirando essas quantidades? Sim, afirmava Argand; basta acrescentá-las ao prato B. Ou seja, introduz-se aqui uma noção relativa do que <retirar> significa: retirar do prato A significa acrescentar ao prato B. Desse modo, as quantidades negativas puderam deixar de ser <imaginárias> para se tornarem <relativas>. [Nasce aí] a grandeza negativa –a

Na balança de Argand, o 0 pode ser visto como ponto de apoio entre os braços. Esse 0 não é propriamente um <nada>, nem o número negativo é um <menos que nada>; o 0 é o referencial que permite a escolha (decisão) de uma orientação que tornará um número positivo ou negativo. Se considerarmos os números um agregado de coisas, como uma pluralidade, o +1 será sempre ligado a acrescentar algo mais, operação que pode ser repetida infinitas vezes, mas não o inverso. A balança de Argand consegue reverter essa dessimetria entre positivos e negativos e o 0 pode ser visto como ponto de apoio dos braços que devem se reequilibrar, à direita e à esquerda, enquanto colocamos pesos em cada um dos pratos ou deles os retiramos.” “A multiplicação deve ser entendida agora como uma rotação em sentido horário, quando se multiplica por (- raiz de -1); e anti-horário quando se multiplica por (+ raiz de -1)” “Temos então, no lugar de uma reflexão, uma rotação.”

Essas primeiras propostas sobre o fundamento dos negativos e imaginários, apresentadas por pensadores que não eram centrais na matemática, revelam que o pensamento da época tinha necessidade de se apoiar em uma epistemologia baseada em uma relação geométrica com a realidade. A tentativa de estender a análise às variáveis complexas, feita por Cauchy, trazia novos problemas e, logo, uma nova demanda quanto à definição desses números de modo formal. A matemática que se desenvolverá a partir de meados do século XIX passará a privilegiar a coerência interna dos enunciados e a definição de seus objetos prescindirá dessa conexão com o mundo externo. A concepção de objetos matemáticos plenamente abstratos é marcante no trabalho de Gauss sobre os números imaginários, o que sugerirá que esses números sejam admitidos em matemática tanto quanto os outros, não sendo mais chamados de <imaginários> e sim de <complexos>.”

Quando, em 1831, Gauss publicou o que denominava <metafísica das grandezas imaginárias>, no artigo Theoria residuorum biquadraticum (Teoria dos resíduos biquadráticos), já tinha renome. Foi o primeiro matemático influente a defender publicamente as quantidades imaginárias, desde seus trabalhos sobre a demonstração do teorema fundamental da álgebra, editado em 1799. De certo modo, pode ser visto como um homem do século XVIII, por não distinguir suas pesquisas das realizadas em física, astronomia e geodésia, além de escrever em latim. Contudo, seus temas de estudo e suas ideias sobre a matemática, sobretudo sua concepção de rigor, aproximam-no das novas tendências do século XIX.”

Na Alemanha, a influência da filosofia de Kant fazia com que os matemáticos se baseassem em concepções epistemológicas diferentes dos franceses. Como mostra Schubring, Gauss retirou boa parte de suas teorias sobre os números negativos e complexos dos trabalhos de um professor do secundário chamado W.A. Förstemann, que, por sua vez, usou os escritos sobre os números negativos que Kant havia publicado em 1763 (Attempt to introduce the conception of Negative Quantities into Philosophy).”

A aritmética generalizada, criada na Idade Moderna, era superior à geometria dos antigos, pois, partindo do conceito de inteiros absolutos, foi possível estender seus domínios passo a passo: de inteiros a frações, de números racionais a números irracionais, de positivos a negativos, de números reais a números imaginários.” “Basta lembrar que Gauss estava envolvido na invenção de uma nova geometria, não-euclidiana, que não se apóia na intuição. As restrições que os objetos matemáticos deviam sofrer para se adequarem ao espaço euclidiano deviam ser, de acordo com sua concepção, eliminadas.” “mas o passo decisivo para que o estatuto dos números complexos fosse firmemente estabelecido foi dado com a introdução da noção de vetor. Esse conceito apareceu na Inglaterra, no século XIX, nos trabalhos de W.R. Hamilton. No final desse século, o plano como conjunto de pontos e o plano como composto de vetores passaram a ser vistos como dois conceitos distintos.”

Dirichlet havia estudado em Paris nos anos 1820 e logo se tornou fundamental para a disseminação da análise e da física matemática francesas na Alemanha. Havia participado do círculo de Fourier, que era secretário-geral da Academia de Ciências, onde Dirichlet conheceu Alexander von Humboldt, que promoveria sua carreira na Alemanha. Dirichlet trabalhou em Berlim até os anos 1850 e, no início da carreira, estudou e divulgou os trabalhos de Gauss sobre a análise de Fourier, a teoria da integração e a física matemática. Na época, a Universidade de Göttingen ainda não era um centro de matemática avançado. Gauss era professor de astronomia e não se via estimulado a transmitir suas descobertas a alunos pouco preparados.” “A presença de Dirichlet, juntamente com Riemann e Dedekind, que se via como seu discípulo, mudaria a matemática praticada na Universidade de Göttingen. Os três inspiravam-se em Gauss e propunham uma visão abstrata e conceitual dessa disciplina. Apesar das diferenças entre seus campos de pesquisa, eles convergiam nas preferências metodológicas e teóricas e podem ser considerados um grupo.”

o exemplo de Dirichlet é tido como o primeiro passo para que se percebesse a necessidade de expandir a noção de função, uma vez que, nesse caso, esta não tinha nenhuma das propriedades admitidas tacitamente como gerais: não pode ser escrita como uma expressão analítica (segundo Dirichlet); não pode ser representada por uma série de potências; e não é contínua em nenhum ponto (também não é derivável nem integrável).” “Logo, o exemplo de Dirichlet só pode ser visto como uma função se esse conceito for entendido como uma relação arbitrária entre variáveis numéricas.” “Ou seja, apesar de aquilo que ele considerava <arbitrário> ser mais um caso particular do que se entende hoje do uso desse adjetivo, parecia importante, naquele momento, afirmar a generalidade como forma de questionar a redução da prática matemática ao escopo das expressões analíticas.”

Depois da estranha função sugerida por Dirichlet, proliferarão exemplos de funções patológicas, sobretudo na segunda metade do século XIX, que incitarão uma revisão da definição de função. Um exemplo famoso desses <monstros>, como se dizia no meio, era a função construída por Weierstrass, que desafiava o senso comum da época. Por volta de 1860, Weierstrass adotava uma definição de função semelhante à de Dirichlet, mas, em 1872, apresentou à Academia de Ciências de Berlim um exemplo de função contínua não derivável em nenhum ponto. Esse tipo de função contraria nossa intuição geométrica de que uma função traçada continuamente, por um desenho a mão livre, deve ser suave, salvo em pontos excepcionais, ou seja, não pode ter bicos em absolutamente todos os seus pontos.

Diversos exemplos contra-intuitivos surgiram nesse período. Riemann foi responsável pela criação de alguns deles ao longo de seu estudo da integração; a investigação das séries trigonométricas também deu origem a funções bizarras, como a proposta por Du Bois-Reymond (que é contínua mas não pode ser desenvolvida em séries de Fourier); Hankel e Darboux construíram outras funções patológicas e investigaram suas propriedades. Antes, as funções surgiam de problemas concretos, como os de natureza física; agora vinham do interior da matemática, a partir dos esforços dos matemáticos para delimitar os novos conceitos que estavam sendo forjados e deviam servir de fundamento para a análise, como os de função, continuidade e diferenciabilidade.”

A curva de Koch é obtida quando as iterações se repetem ao infinito. No limite, chega-se a uma curva contínua em todos os pontos que não é derivável em nenhum desses pontos (ou seja, é constituída exclusivamente por bicos).” Parece uma moita – um fractal.

Antes desse momento supunha-se, de modo geral, que a reta contivesse todos os números reais. Por isso não havia preocupação em se definir esse tipo de número. Um exemplo disso foi visto anteriormente, no estudo das raízes de uma equação de grau ímpar, ao se admitir que o gráfico de uma função, positiva (para x positivo) e negativa (para x negativo), deve cortar o eixo das abscissas em um ponto que é assumido como um número real.”

Cantor concluiu que a unicidade também pode ser verificada quando a série trigonométrica deixa de ser convergente, ou deixa de representar a função, em um número finito de pontos excepcionais. Logo depois, ele refinou mais uma vez o argumento, ao perceber que sua conclusão ainda era válida mesmo que o número desses pontos excepcionais fosse infinito, desde que estivessem distribuídos sobre a reta de um modo específico. Para estudar essa distribuição dos pontos, era necessário descrever os números reais de um modo mais meticuloso e detalhado, sem supor, implicitamente e de modo vago, que esses números fossem dados pelos pontos da reta.”

A fim de caracterizar a continuidade, Dedekind julgava necessário investigar suas origens aritméticas. Foi o estudo aritmético da continuidade que levou à proposição dos chamados <cortes de Dedekind>. Ele começou por estudar as relações de ordem no conjunto dos números racionais, explicitando verdades tidas como óbvias, por exemplo: se a>b e b>c, então a>c. A partir daí, deduziu propriedades menos evidentes, como a de que há infinitos números racionais entre dois racionais distintos a e c. Dedekind notou que um racional a qualquer divide os números racionais em duas classes, A1 e A2, a primeira contendo os números menores que a; a segunda contendo os números maiores que a. Podemos concluir, assim, que qualquer número em A1 é menor do que um número em A2.”

A argumentação de Dedekind recorria aos gregos para dizer que eles já sabiam da existência de grandezas incomensuráveis. No entanto, não é possível usar a reta para definir os números aritmeticamente, pois os conceitos matemáticos não devem ser estabelecidos com base na intuição geométrica.

Logo, era necessário criar novos números, de tal forma que <o domínio descontínuo dos números racionais R possa ser tornado completo para formar um domínio contínuo>, como é o caso da linha reta. A palavra usada para designar a propriedade da reta que distingue os reais dos racionais é <continuidade>, que seria equivalente ao que chamamos de <completude>. Apesar de Dedekind afirmar que é preciso <completar> os racionais, esse termo não era empregado com sentido técnico.”

Apesar da compreensão comum da palavra <multiplicidade> estar associada à ideia de algo que é <múltiplo> (ou vários), não é nesse sentido que a estamos empregando, o que fica claro quando se fala de <uma multiplicidade>. Usamos <multiplicidade> para indicar algo que possui vários aspectos, ou várias dimensões.”

Dedekind expôs essa questão em uma correspondência com outro matemático alemão, R. Lipschitz, aluno de Dirichlet, na qual diz que a continuidade do domínio das quantidades era uma pressuposição implícita dos matemáticos, além da noção de quantidade não ter sido definida de modo preciso. Até ali, os objetos da matemática, as quantidades, existiam e a necessidade de definir sua existência não se colocava. Ao contrário dessas suposições, no texto Was Sind und was Sollen die Zahlen? (O que são e o que devem ser os números?), Dedekind insiste que o fenômeno do corte, em sua pureza lógica, não tem nenhuma semelhança com a admissão da existência de quantidades mensuráveis, uma noção que ele rejeitava veementemente.” “Retomando as duas classes A1 e A2 definidas anteriormente, ele afirma que a essência da continuidade está no fato de que todos os pontos da reta estão em uma das duas classes, de modo que se todo ponto da primeira classe está à esquerda de todo ponto da segunda classe, então existe apenas um ponto que produz essa divisão.”

Para obter um conjunto numérico que traduza fielmente a continuidade da reta, Dedekind usou um procedimento que se tornaria muito freqüente na matemática. Sempre que encontrarmos um número não-racional produzindo um corte, deveremos incluir esse número na nova categoria a ser criada, que deve admitir racionais e não-racionais. Ou seja, quando o corte é um número irracional, esse número será reunido aos racionais formando um conjunto, que gozará da propriedade de continuidade da reta, chamado de <conjunto dos números reais>.”

A principal propriedade dos números racionais, que os torna essencialmente distintos dos reais, é o fato de poderem ser enumerados. O que é isso? Eles são pontos discretos, não-imbricados entre si, logo, podemos associá-los a números naturais e contá-los. O resultado dessa contagem será um número infinito, mas ela permite enumerar os racionais.

Essa propriedade levará Cantor a concluir que o conjunto dos números racionais é infinito de uma maneira distinta do conjunto dos números reais, que não podem ser enumerados. O procedimento de <enumeração> dos elementos de um conjunto é feito por meio da associação de cada um desses elementos a um número natural; e a associação é definida como uma função de um conjunto no outro, uma correspondência biunívoca entre seus elementos.” “Uma função é dita biunívoca se diferentes elementos no seu domínio estão associados a diferentes elementos no contra-domínio e se cada elemento y no contra-domínio está associado a algum x no domínio.

Podemos pensar na relação <ser filho de> entre os conjuntos A = {alunos de uma turma} e B = {mães dos alunos}. Tal relação constitui uma função, pois não há aluno sem mãe biológica (ainda que esta não esteja mais viva) e cada aluno possui apenas uma mãe biológica. Porém, essa função não é biunívoca, pois pode haver alunos irmãos, isto é, eles terão a mesma mãe (diferentes elementos do domínio com a mesma imagem).

Considere agora a relação <ser o dobro de> entre os conjuntos A = {números naturais} e B = {números pares}. Tal relação constitui uma função biunívoca, pois ao dobrar números naturais diferentes os resultados serão diferentes e cada número par é o dobro de algum número natural (a sua metade).”

Nesse contexto surgirá a idéia de função como uma correspondência entre dois conjuntos numéricos. Se x é um elemento do conjunto dos reais, e n um elemento do conjunto dos naturais, pode ser estabelecida uma correspondência entre x e n, de modo que cada elemento de um conjunto seja associado a um, e somente um, elemento do outro? Essa é a pergunta que Cantor formula para Dedekind em 1873. Ele mesmo provou que é impossível encontrar tal correspondência, estabelecendo uma diferença fundamental entre o número de elementos (cardinalidade) do conjunto de números reais e o número de elementos do conjunto dos números naturais.

O conceito de correspondência biunívoca servirá de base para a constituição da nova teoria dos conjuntos, por volta de 1879. Dois conjuntos são ditos com a mesma <potência> se existe correspondência biunívoca entre seus elementos. Os conjuntos que possuem a mesma potência dos naturais são chamados <enumeráveis>, e os outros são <não-enumeráveis>. A resposta ao critério para que uma série trigonométrica represente uma função, fornecida por Cantor, repousa sobre essa diferenciação, e essa resposta é afirmativa no caso de a série deixar de convergir em infinitos pontos, contanto que eles formem um subconjunto enumerável da reta.”

coisas distintas são entendidas de um mesmo ponto de vista quando consideradas a partir de seus números. Nesse caso, podemos dizer que essas coisas formam um conjunto.”

O ponto de vista de Weierstrass também pode ser dito conceitual, mas de um modo diferente dos matemáticos de Göttingen, pois ele não tinha o mesmo entendimento do tipo de abstração que estava em jogo ao se definirem os conceitos básicos da análise. Cantor foi inspirado por Weierstrass, mas, como mostra Ferreirós, sua dedicação à teoria dos conjuntos levou-o a se afastar do grupo de Berlim. Ele chegou a ser criticado por Weierstrass, e o caráter abstrato de suas definições pode ser relacionado à influência crescente de Riemann e Dedekind em seus trabalhos, a partir dos anos 1880.”

A história da análise matemática é vista, freqüentemente, como uma evolução dos conceitos intuitivos usados no cálculo do século XVII às definições rigorosas propostas pelo movimento de aritmetização da análise e pela teoria dos conjuntos. Um bom exemplo é o título do livro editado por Grattan-Guinness em 1980, From Calculus to Set Theory (Do cálculo à teoria dos conjuntos).”

Na última metade do século XIX, Cantor teria introduzido o infinito na matemática, um dos ingredientes principais para o florescimento espetacular da matemática moderna. Na narrativa tradicional, a repulsa ao infinito, o horror infiniti, teria reinado entre os matemáticos desde os gregos, impedindo os avanços dessa ciência, até que Cantor venceu todas as barreiras e logrou fazer com que o infinito fosse, finalmente, aceito.” Ao preço da própria loucura…

Eu espiei, através das páginas de Russell, a doutrina dos conjuntos, a Mengenlehre, que postula e explora vastos números que um homem imortal não atingiria mesmo se exaurisse suas eternidades contando, e cujas dinastias imaginárias possuem as letras do alfabeto hebreu como cifras. Não me foi dado entrar neste delicado labirinto.” Jorge Luis Borges

Muitas narrativas do início do século XX atribuem a Cantor o papel de pai fundador da moderna teoria dos conjuntos. Como mostra Ferreirós na introdução dessa sua obra monumental sobre a história dessa teoria, em 1914 Hausdorff dedicou o primeiro manual da teoria dos conjuntos a seu criador, Cantor; e Hilbert escolheu a teoria dos conjuntos como um exemplo-chave do tipo de matemática defendida por ele, freqüentemente associada ao nome de Cantor.” “Mas muitos matemáticos e filósofos já haviam tratado rigorosa e positivamente da noção de infinito antes de Cantor. Só para dar dois exemplos na Alemanha: Dedekind, na matemática; e Hegel, na filosofia.” HM

A noção de conjunto não é uma descoberta do século XIX executada por mentes geniais que, finalmente, desvendaram o fundamento correto da matemática, tido como eternamente válido e implícito em todos os tempos, mas que vinha sendo usado por pessoas ainda despreparadas para penetrar seu misterioso labirinto, como na citação de Borges. Preferimos pensar que a matemática efetivamente praticada pelos matemáticos do século XIX partia de pressupostos que os fizeram inventar noções que participavam de uma [cosmo-]visão conceitual e abstrata, propícia ao desenvolvimento da noção de conjunto e à sua aplicação em problemas de naturezas diferentes. Esse ponto de vista, que chamamos <conjuntista>, tem sua própria história, que não se identifica com a história da teoria dos conjuntos, como procuramos mostrar aqui.” “A teoria dos conjuntos emergiu, assim, da investigação de conjuntos concretos, encarados de modo cada vez mais conceitual e abstrato. Essa história é detalhada por Ferreirós. Usamos sua distinção entre a teoria dos conjuntos, como ramo da matemática, e a abordagem conjuntista, como concepção sobre a matemática, com o fim de caracterizar a imagem da matemática que moldou também a maneira de escrever sua história até meados do século XX.”

A visão modernista da matemática prega uma renúncia ao mundo, uma vez que não se deve fazer geometria ou análise com os objetos dados pelo senso comum, mas sim construir o edifício da matemática sobre noções dotadas de uma consistência interna.”

A imagem de que a matemática é um saber axiomatizado baseado nas noções de conjunto e estrutura foi popularizada por Nicolas Bourbaki, a partir de 1939, com o início da publicação de seus Éléments des mathématiques: les structures fondamentales de l’analyse (Elementos de matemática: as estruturas fundamentais da análise). <Bourbaki> é o pseudônimo adotado por um grupo de matemáticos franceses dos anos 1930 cujo objetivo era elaborar livros atualizados sobre todos os ramos da matemática, que pudessem servir de referência para estudantes e pesquisadores. Cada um desses ramos era visto como uma investigação sobre estruturas próprias, tendo como principal ferramenta o método axiomático. Uma de suas principais contribuições foi organizar as subdisciplinas da matemática, selecionando seus conceitos básicos, suas ferramentas e seus problemas. Nesse quadro, a definição de função usada por Dedekind e Cantor será considerada insuficiente e, em seu lugar, Bourbaki proporá:

Definição bourbakista de função: Sejam E e F dois conjuntos, que podem ser distintos ou não. Uma relação entre um elemento variável x de E e um elemento variável y de F é dita uma relação funcional se, para todo x pertencente a E, existe um único y pertencente a F que possui a relação dada com x. Damos o nome função à operação que associa, desse modo, a todo elemento x, pertencente a E, o elemento y, pertencente a F que possui a relação dada com x; y será dito o valor da função no elemento x.

Em seguida, essa primeira versão será reformulada e a função será definida como um determinado subconjunto do produto cartesiano dos dois conjuntos E × F. Ou seja, (…)” Ou seja: falaram merda sem pensar, tsk. “Conjunto e variação passam a ser idéias inconciliáveis.” Não se fala mais de x nem de y.

A definição formal de função, que aprendemos na escola, segue o padrão bourbakista, o que provoca uma dificuldade de conciliação em relação aos exemplos de função que são efetivamente estudados. É difícil associar a noção dinâmica de função, que aparece em situações físicas, à definição formal, de natureza estática. Na história da física, a função serviu para estudar a variação, ou a mudança, a partir de uma escolha de variáveis relevantes em um certo fenômeno. Além dos exemplos físicos, as funções são exemplificadas por curvas ou expressões analíticas, que foram outros modos de conceber funções ao longo da história. Isso mostra que, isolada de seu contexto histórico, a definição de função e as funções que conhecemos durante nosso aprendizado de matemática não convergem. Podemos dizer que se trata de uma deficiência do ensino, porém, não fazemos essas considerações para discutir a educação.” Azar o seu, pois deviam.

Nos Elementos de matemática de Bourbaki, cada um dos livros sobre certa sub-área era introduzido por um relato sobre a evolução histórica daquele assunto até ali. Esses relatos foram reunidos em um só volume, publicado em 1960 como Éléments d’histoire des mathématiques (Elementos de história da matemática), com critérios idênticos para avaliar as idéias importantes do presente e do passado. Não foi à toa que os bourbakistas se preocuparam em escrever uma história da matemática. Alguns de seus membros mais ilustres, como André Weil e Dieudonné, publicaram escritos de história independentemente do grupo, mas reproduzindo o mesmo ponto de vista. A historiografia tradicional da matemática, muitas vezes criticada por nós, foi impulsionada pelo estilo bourbakista.” “Foi, portanto, quando a matemática passou a se enxergar como matemática <pura> que a distinção entre teoria e prática se tornou importante na escrita de sua história.” A arrogância lhe subiu a cabeça e não quis mais andar com os primos… Uma conduta irracional!

Por volta dos anos 1960, as ideias de Bourbaki contaminaram a educação, o que ajudou a cristalizar a concepção pouco, ou nada, histórica da matemática. Com o movimento da matemática moderna, que teve grande repercussão no Brasil, defendia-se que essa disciplina devia ser ensinada com os conceitos de base definidos à maneira bourbakista, que seria adaptada às nossas estruturas cognitivas. Nessa época, muitos matemáticos e educadores compartilhavam a crença de que os alunos têm de ser acostumados a pensar em termos de conjuntos e operações. Piaget chegou a estabelecer uma correspondência entre as estruturas defendidas por Bourbaki e as primeiras operações por meio das quais as crianças interagem com o mundo.” Não é o que a nossa posição nos rankings indica…

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Corry, Modern Algebra and the Rise of Mathematical Structures

Ferreirós, Labyrinth of Thought

Grattan-Guinness, The Development of the Foundations of Mathematical Analysis from Euler to Riemann

Gray, Plato’s Ghost: the Modernist Transformation of Mathematics

Sir Isaac Newton, Two Treatises of the Quadrature of Curves

Lacroix, Traité du calcul différentiel et du calcul intégral