HISTÓRIA DAS IDÉIAS 3: SCHOPENHAUER: MULTIFACETAS

As citações e comentários a seguir são baseados exclusivamente na obra O Mundo como Vontade e como Representação. O post com mais aspas e comentários deste livro está em data mais remota no Seclusão. Todas as citações do 2º e 3º volume, que não existem em Português, foram traduzidas por mim para esta compilação.

ÍNDICE (usar CTRL+F para pular para o tópico desejado)

Em negrito, o capítulo (tópico de capítulo) mais importante.

1. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO A ENTENDER KANT, O PRIMEIRO FENOMENÓLOGO DA IDADE MODERNA

1.1 COISA-EM-SI = VONTADE

2. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO NÃO-SOCIALISTA A DENUNCIAR E REFUTAR O IDEALISMO HEGELIANO: COMO DESCONTAMINAR-SE DE HEGEL, O CHARLATÃO

3. CRÍTICA DA RELIGIÃO: A ESCOLÁSTICA DUROU ATÉ KANT, MAS FOI CONTINUADA PELO HEGELIANISMO: A verdadeira filosofia deve compreender que nunca estará dissociada das religiões e se situar honestamente no campo

3.1 CRISTIANISMO, FIGURA AMBIVALENTE PARA SCHOPENHAUER

3.1.1 CRISTIANISMO PRIMITIVO, NOVO TESTAMENTO & DOGMAS

3.1.2 O PODER SECULAR DO CATOLICISMO

3.1.3 REFORMA PROTESTANTE

3.2 PRECURSOR ORIENTALISTA: EXALTAÇÃO DO HINDUÍSMO E DO BUDISMO

3.3 POLITEÍSMO, PANTEÍSMO, GNOSTICISMO, RELIGIÕES MENORES

3.4 ÉTICA: O DILEMA DE CILA OU CARIBDE: ACEITAÇÃO DO FENÔMENO OU ASCETISMO

3.4.1 A VIDA DO HOMEM SANTO

4. O FILÓSOFO QUE COMPREENDEU PLATÃO A MEIAS: POR QUE A IDÉIA DE PLATÃO DEVE SER LIDA COMO A ANTI-IDÉIA POR EXCELÊNCIA, I.E., COMO VONTADE, ASSIM ENUNCIADA DESDE A ANTIGUIDADE

5. O ANTI-ARISTÓTELES: CONSEQÜÊNCIA DA HIPER-VALORIZAÇÃO ARISTOTÉLICA PROMOVIDA PELO(A) HEGELIANISMO/ESCOLÁSTICA: O Aristotelismo deve ser superado

6. POR QUE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE ESTÃO, ESSENCIALMENTE, EM PÓLOS OPOSTOS NA FILOSOFIA – E NÃO O CONTRÁRIO – MESMO QUE AQUELE SEJA O PRINCIPAL PRECURSOR DESTE

7. DESPROPÓSITO DA VIDA HUMANA CONSCIENTE: A EXISTÊNCIA É SÓ UM SONHO

8. SOBRE O SUICÍDIO

9. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS

9.1 A MATEMÁTICA E A LÓGICA: ARISTÓTELES E NIILISMO

9.2 A ASTRONOMIA

9.3 A FÍSICA

9.4 A BIOLOGIA

10. A MEDICINA

10.1 CONTRIBUIÇÕES À PSIQUIATRIA (FISIOLOGIA DO GÊNIO)

11. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS

11.1 A HISTÓRIA

11.2 O DIREITO

11.3 SOBRE A EVOLUÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS LÍNGUAS: SUMA DEPRECIAÇÃO DO HOMEM ALEMÃO

12. SCHOPENHAUER E A ESTÉTICA: APERFEIÇOADOR DE KANT

12.1 ARQUITETURA

12.2 ESCULTURA

12.3 PINTURA

12.4 POESIA E TEATRO

12.5 METAFÍSICA DO GÊNIO

12.6 MÚSICA, O PALIATIVO FINAL

13. A FAMOSA MISOGINIA SCHOPENHAUERIANA

14. RESÍDUOS: AFORISMOS, PASSAGENS DIFÍCEIS DE CLASSIFICAR, CONSOLAÇÕES OU INVECTIVAS CONTRA FILÓSOFOS OU PERSONALIDADES MENORES

1. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO A ENTENDER KANT, O PRIMEIRO FENOMENÓLOGO DA IDADE MODERNA

Com Locke a coisa-em-si é sem cor, som, cheiro, gosto, não é nem quente nem fria, nem mole nem rígida, nem macia nem áspera; e no entanto ela conserva extensão e forma, é impenetrável, está em repouso ou movimento, possui massa e número. Com Kant, a coisa-em-si já se despiu de todas essas últimas qualidades, porque elas só são possíveis por intermédio do tempo, espaço e da causalidade, e este trio emana do intelecto (cérebro), assim como as cores, os tons, os aromas, etc., se originam dos nervos dos órgãos dos sentidos.”

Em geral, este é o ponto em que a filosofia de Kant conduz à minha, ou em que esta brota daquela como um galho do tronco. Os leitores se convencerão disso quando lerem com atenção na Crítica da razão pura p. 536 e 537 (V, 564), e depois ainda compararem com esta passagem a introdução à Crítica da faculdade de juízo, p. XVIII e XIX da 3ªed., ou p. 13 da edição Rosenkranz, em que é até mesmo dito: ‘O conceito de liberdade pode tornar representável uma coisa-em-si (que é de fato a vontade) em seu objeto (Objekt), mas não na intuição; ao contrário, o conceito de natureza pode tornar de fato representável seu objeto (Gegenstand) na intuição, mas não como coisa-em-si.’Resumo: o sentido da vida não está dado! Por isso existe o mundo: para o Ser ser!

Queremos conhecer a significação dessas representações. Perguntamos se este mundo não é nada além de representação, caso em que teria de desfilar diante de nós como um sonho inessencial ou um fantasma vaporoso, sem merecer nossa atenção.” Será a conclusão nas últimas linhas do primeiro tomo, mesmo que inadvertida. Em resumo, este momento é o pulo do gato ainda-kantiano-demais da filosofia schopenhaueriana…

Já na audição se dá algo completamente diferente. Tons podem provocar dores imediatamente e, sem referência à harmonia ou à melodia, podem ser também de imediato sensualmente agradáveis. O tato, enquanto uno com o sentimento do corpo inteiro, está ainda mais submetido a esse influxo imediato sobre a vontade, embora também haja tato destituído de dor ou agrado. O odor, entretanto, é sempre agradável ou desagradável; o paladar ainda mais. Portanto, estes 2 últimos sentidos são os mais intimamente ligados à vontade. Eis por que sempre foram chamados de sentidos menos nobres e, por Kant, de sentidos subjetivos.”

O excelente livro de Thomas Reid,¹ Inquiry into the Human Mind on the Principles of Common Sense [o livro não tem tradução ao português, mas se uma houvesse, seria Investigação da mente humana segundo os princípios do senso comum; em breve, tradução completa minha no Seclusão], serve de prova negativa das verdades kantianas, e nos convence piamente da inadequação dos sentidos para produzirem a percepção objetiva das coisas, e nos convence também da origem não-empírica da percepção do espaço e do tempo. (…) O livro de Thomas Reid é, enfim, muito instrutivo e digno de nosso tempo – dez vezes mais digno do que a soma de toda a filosofia que vem sendo escrita desde Kant.”

¹ 1710-1796, adversário de David Hume.

O intelecto deve, primeiro de tudo, unir em um ponto todas as impressões, ao tempo em que gera suas implicações de acordo com suas respectivas funções, seja se resumindo a meras percepções ou atingindo concepções, um ponto que será, por assim dizer, o foco de todas as suas ramificações, tudo a fim de que a unidade da consciência se apresente como idêntica ao eu volitivo, cuja mera função do conhecimento ela é. Esse ponto de convergência da consciência, ou o eu teórico, é simplesmente a unidade sintética da apercepção kantiana, a partir da qual todas as idéias se estendem, como num colar de contas ou ramo de árvore, e com base no que o <eu penso>, como o fio condutor de tudo que é derivado, <deve ser capaz de acompanhar todas as idéias que formulamos>.”

1.1 COISA-EM-SI = VONTADE

a palavra do enigma é dada ao sujeito do conhecimento que aparece como indivíduo. Tal palavra se chama VONTADE.” “Isso que se furta a toda fundamentação, contudo, é justamente a coisa-em-si, aquilo que essencialmente não é representação, não é objeto do conhecimento e só se torna cognoscível quando entra naquela forma.”

a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade. – Decisões da vontade referentes ao futuro são simples ponderações da razão sobre o que se vai querer um dia (…) apenas a execução estampa a decisão, que até então não passa de propósito cambiável, existente apenas in abstracto na razão. Só na reflexão o querer e o agir se diferenciam; na efetividade são uma única e mesma coisa.” “No entanto, é totalmente incorreto denominar a dor e o prazer representações, o que de modo algum são, mas afecções imediatas da vontade em seu fenômeno, o corpo, vale dizer, um querer ou não-querer impositivo e instantâneo sofrido por ele.” Grande erro de Schopenhauer: frase responsável pela hedionda vitória da psicanálise (fracasso da humanidade) no século XX.

Fenômeno se chama representação, e nada mais.” Este “…e nada mais”, até este e nada mais!, Freud copiou de Sch., em seu Projeto para uma Psicologia [Pseudo]científica (1895). Também no Seclusão: https://seclusao.art.blog/2021/02/27/escritos-precoces-de-freud-incluindo-o-projeto/.

COISA-EM-SI, entretanto, é apenas a VONTADE. (…) Aparece em cada força da natureza que faz efeito cegamente, na ação ponderada do ser humano: se ambas diferem, isso concerne tão-somente ao grau da aparição, não à essência do que aparece.” Erro fundamental reparado por Nietzsche.

Também me compreenderá mal quem pensar que é indiferente se indico a essência em si de cada fenômeno por vontade ou qualquer outra palavra. Este seria o caso se a coisa-em-si fosse algo cuja existência pudéssemos simplesmente DEDUZIR e, assim, conhecê-la apenas mediatamente, in abstracto. Então se poderia denominá-la como bem se quisesse. O nome seria um mero sinal de uma grandeza desconhecida. (…) Até os dias atuais subsumiu-se o conceito de VONTADE sob o conceito de FORÇA.” “renunciamos ao único conhecimento imediato que temos da essência íntima do mundo: fazemos tal conhecimento se dissipar num conceito abstraído do fenômeno, com o qual nunca poderemos ir além deste último.Ao mesmo tempo que sentimos a segurança e verdade por trás destas palavras, ou nestas palavras, sentimos também a hesitação, dúvida e autocontradição do sistema schopenhaueriano (mas somente quem já chegou ao final do livro quarto e voltou a comparar algumas afirmações clássicas do autor pode reparar nesta segunda parte).

SÍNTESE IMPECÁVEL DA OBRA: “A totalidade do processo é o auto-conhecimento da Vontade; começa nisso e retorna a isso, e constitui o que Kant chamara de fenômeno em oposição à coisa-em-si.” “Assim sendo, a totalidade é, em última instância, a Vontade, que de e por si mesma se converte em representação, e é essa unidade fenomenal que chamamos com letra maiúscula de a Representação.”

Kant assumira afoitamente que, aparte o conhecimento objetivo, quer seja, aparte o mundo como representação, nada nos é dado salvo a consciência, a partir da qual ele elaborou aquele mínimo que ainda lhe restava de propriamente metafísico, i.e., sua teologia moral, à qual ele atribuiu, não obstante, e de forma conseqüente, por um lado, validade exclusivamente prática, e absolutamente nenhuma validade teórica para existir. Ele pecou ao não ver que (…) nossa própria natureza fenomênica deve também estar enquadrada no mundo da coisa-em-si, isto é, na raiz das representações, a Vontade [que é imoral].”

A polêmica de Lucrécio (IV, pp. 824-58) contra a teleologia é tão crua e desajeitada que refuta a si mesma e nos convence do oposto. Agora quanto à de Bacon (De augm. scient., III, 4), ele não faz, em 1º lugar, distinção no tocante ao uso de causas finais entre naturezas organizadas e não-organizadas (o que seria o ponto focal); em seus exemplos de causas finais, mistura a ambas. A partir daí, Bacon bane as causas finais da física e da metafísica, de uma só vez; mas esta última é, de acordo consigo, o que é a metafísica para muitos ainda hoje, idêntica à teologia especulativa. (…) Por fim, Spinoza (Ética, I, proposição 36, apêndice) torna bastante claro que ele identifica a teleologia com a físico-teologia – contra a qual se expressa com amargura – de tal maneira que chega a enunciar Natura nihil frustra agere: hoc est, quod in usum hominum non sit [A natureza não age em vão, i.e., nunca faz nada que não seja de proveito para o homem], bem como que Deus fez tudo para dirigir o homem,¹ etc.” “Seu propósito era meramente bloquear a passagem ao teísmo; e, confessemos, ele reconheceu de maneira acertada que a prova físico-teológica² é o maior adversário do teísmo. Mas estava reservado a Kant o encargo de refutar esta prova, e a mim o de fornecer a correta exposição da filosofia kantiana, de modo que satisfiz à velha máxima: Est enim verum index sui et falsi [Há uma medida verdadeira do que é verdadeiro e do que é falso], ou seja, há um critério avaliador das aparências, que supera o ceticismo.”

¹ E que, portanto, existindo o homem, deus se retira de todo do mundo e não é mais necessário.

² Aquilo que os escolásticos tanto buscaram e desenvolveram até seus últimos limites. Mais detalhes em uma das notas de rodapé das próximas aspas.

Com efeito, toda mente sã e funcional deve, considerando a natureza organizada, no mínimo chegar à teleologia spinozista, a não ser que esta mente seja deturpada por opiniões preconcebidas, ou físico-teológicas¹ ou antropo-teleológicas,² as primeiras absorvidas por Spinoza em seu argumento teleológico panteísta, as segundas condenadas, pela mesma razão, no spinozismo.”

¹ Neste trecho se torna ainda mais claro o que Sch. entende por físico-teologia, i.e., uma física com primado do último termo, da teologia: um saber das causas finais aplicado aos mandamentos da religião, como se assim se pudesse extrair os desígnios morais últimos de qualquer credo, monoteísta ou politeísta.

² A antropo-teleologia é a ciência dos fins aplicada ao homem, considerando-o “emancipado” da natureza. Em Spinoza, dizer que a natureza tem seus fins últimos é o mesmo que dizer: o Deus que criou as religiões e o homem tem seus fins últimos; com efeito, ele é a própria natureza. Chega-se a uma espécie de determinismo ou finalismo ateu absoluto. Já em Hegel encontramos a contraposição a Spinoza, porém de uma forma simetricamente deficiente: em vez de considerar que não há finalidades últimas, nossos destinos estando em aberto, por termos “dominado a natureza”, respondemos, segundo o hegelianismo, à História, que é a forma de manifestação da Razão ou do Espírito, da Essência Absoluta. Ou seja, a História é o desenrolar das causas finais de acordo com os próprios parâmetros do Espírito em sua jornada temporal de auto-reconhecimento. Mas sabemos o quanto Hegel é desprezado por Sch. (vide 2., em instantes). Mais valeria dizer: o homem não tem um sentido a cumprir na História; se ele é joguete ou escravo de alguma coisa, se há algo a que sua liberdade empírica e ética responde, este algo se chama Vontade e faz parte de nós e de nossos corpos, por mais que dela não possamos conhecer em sua totalidade, ao contrário da ciência hegeliana que dá todos os instrumentos para concluir sobre as causas últimas do Espírito na Fenomenologia do Espírito, Ciência da Lógica e Enciclopédia Filosófica. Resumindo em 2 frases a tese (anti-)teleológica schopenhaueriana: Temos olhos para ver, ouvidos para escutar, dentes para triturar a comida… Não temos um projeto de humanidade realizável através de um Estado-nação nem pretendemos encontrar a (re)conciliação com o Deus cristão neste, o único mundo.

Toda observação do mundo com o fito de explicar qual é a tarefa do filósofo confirma e comprova que vontade de vida, longe de ser uma invenção arbitrária ou uma expressão vazia, é a única expressão genuína acerca da natureza mais íntima do mundo.”

2. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO NÃO-SOCIALISTA A DENUNCIAR E REFUTAR O IDEALISMO HEGELIANO: COMO DESCONTAMINAR-SE DE HEGEL, O CHARLATÃO

Com exceção de Feuerbach, Marx e Engels (falamos apenas de figuras proeminentes de livros-textos de filosofia), Arthur Schopenhauer foi o primeiro a compreender a fragilidade do sistema hegeliano, contrapô-lo como um todo e descrever de forma límpida e facilmente compreensível os erros e absurdos do Hegelianismo. É, portanto, o primeiro filósofo fora do movimento dos jovens hegelianos de esquerda e socialistas que romperiam posteriormente com seu mentor ideológico, chegando ou não a uma teoria completa pós-hegeliana (Feuerbach ficou no meio do caminho, paralisado criativamente após a crítica a Hegel; Marx & Engels fundaram o materialismo histórico). Schopenhauer é o primeiro filósofo independente de correntes sócio-políticas amplas a ser um Anti-Hegel de envergadura.

A filosofia [hegeliana] da identidade, nascida em nosso tempo e de todos conhecida, poderia não ser compreendida sob a citada oposição, [sujeito e objeto] na medida em que não torna o sujeito nem o objeto o ponto de partida propriamente dito, mas um terceiro, o absoluto cognoscível por intuição-racional, que não é sujeito nem objeto, mas o indiferenciado. Embora a ausência completa de qualquer intuição-racional me impeça de falar da mencionada indiferenciação e do absoluto, todavia, na medida em que tenho acesso a todos os protocolos dos contempladores-racionais, [o deboche!…] também abertos a nós profanos, tenho de observar que a dita filosofia não pode ser excluída da oposição anteriormente estabelecida entre os 2 erros, já que, apesar da identidade entre sujeito e objeto (não-pensável, e intuível apenas intelectualmente, ou experienciada por imersão nela), a referida filosofia une em si os 2 erros quando os decompõe em 2 disciplinas, a citar: o idealismo transcendental, que é a doutrina-do-eu de Fichte e, por conseqüência, em conformidade com o princípio de razão, faz o objeto ser produzido ou tecido fio a fio a partir do sujeito; e a filosofia da natureza, que, semelhantemente, faz o sujeito surgir aos poucos a partir do objeto mediante o uso de um método denominado construção, que me é pouco claro, mas o suficiente para bem notar que se trata de um progresso conforme o princípio de razão em várias figuras. Renuncio à profunda sabedoria contida nesta construção.HAHAHA!

pobreza espiritual, confusão, perversidade vão vestir-se a si mesmas com os termos mais rebuscados, as expressões mais obscuras, para assim, em frases difíceis e pomposas, mascararem pensamentos miúdos, triviais, insossos, cotidianos”

CRÍTICA DO IDEALISMO ALEMÃO, MAIS CONHECIDO COMO HISTORICISMO: “Semelhante FORMA HISTÓRICA DE FILOSOFAR fornece na maioria das vezes uma cosmogonia, a qual admite muitas variedades, ou então um sistema da emanação, doutrina da queda; ou ainda, por parte da dúvida desesperadora advinda dessas tentativas estéreis, é-se levado a um último caminho, oferecendo-se uma doutrina do constante vir-a-ser, brotar, nascer, vir a lume a partir da escuridão, do fundamento obscuro, do fundamento originário, do fundamento infundado e outros semelhantes disparates.” “toda uma eternidade (…) já transcorreu até o momento presente, pelo que tudo o que pode e deve vir-a-ser já teve de vir a ser. Todas essas filosofias históricas, não importa seus ares, fazem de conta que Kant nunca existiu e tomam O TEMPO por uma determinação da coisa-em-si

O autêntico modo de consideração filosófico do mundo, ou seja, aquele que nos ensina a conhecer a sua essência íntima e, dessa maneira, nos conduz para além do fenômeno, é exatamente aquele que não pergunta ‘de onde’, ‘para onde’, ‘por quê’, mas sempre em toda parte pergunta apenas pelo QUÊ do mundo” Antes não seria pelo ‘que’ (conjunção conectiva)?

OS LIMITES DA FILOSOFIA CONTINENTAL (Ponto de concordância com H.): “Repetir abstratamente toda natureza íntima do mundo de maneira distinta e universal, por conceitos, e assim depositá-la como imagem refletida nos conceitos permanentes, sempre disponíveis, da razão, isso, e nada mais, é filosofia.” Trecho mal-redigido ou traduzido?! Seria como escrever: “Repetir conceitual, distinta e universalmente toda natureza íntima do mundo, e assim depositá-la como imagem¹ da razão: apenas isso é filosofia.”

¹ Pois toda reflexão é abstrata, conceitual – ou seja: o autor repete 4x a mesma terminologia inútil. Além disso, o próprio “razão” já é quase uma quinta referência ao mesmo arcabouço de idéias (conceitos!), em menos de 3 linhas completas! Um pot-pourri de pleonasmos… Mas o pior é que acho que nenhum filósofo negaria sua afirmação, que foi feita para ser polêmica

A despeito de tudo que possa ser dito, nada é tão persistentemente e tão reiteradamente incompreendido como o Idealismo, porque ele é interpretado como significando que se nega a realidade empírica do mundo exterior.” Memento: o idealismo hegeliano é somente uma forma de idealismo.

Gradativamente essas amplas e desnecessárias concepções passam a ser usadas quase que como símbolos algébricos, e são manipuladas a torto e a direito como estes últimos na matemática; assim, a filosofia fica reduzida a um mero processo combinatório, um tipo de ajuste de contas que (como todo cálculo) nada emprega nem demanda senão as faculdades inferiores. Disso finalmente resulta um mero malabarismo de palavras, do qual o exemplo mais chocante nos é apresentado pelo acéfalo Hegelianismo, em que dito malabarismo é levado ao extremo do puro nonsense.”

O nobre escolástico Pico de Mirandula já havia percebido que a razão é a faculdade das idéias abstratas, e o entendimento a faculdade das idéias da percepção, como se vê pelo seu livro De Imaginatione, cap. 11 (…) Spinoza também caracteriza a razão de modo sumamente correto como a faculdade de elaborar concepções gerais (Ética, 2, proposição 40, escólio 2). Essas filigranas nem precisariam ser citadas se não fossem as artimanhas lançadas nos últimos 50 anos pela totalidade dos filosofastros da Alemanha para descrever o conceito de razão.”

Pode-se verificar o quanto a escolha das palavras em filosofia é importante diante do fato de que aquela expressão inepta – a Idéia –, e todos os mal-entendidos dela decorrentes, tornaram-se o solo e fundação de toda a pseudofilosofia hegeliana, que ocupou os alemães por 25 longos anos.”

ressalto, de passagem, que meu antípoda direto entre os filósofos é Anaxágoras [o queridinho de Hegel entre os pré-socráticos]. Ele assume arbitrariamente como aquilo que é primigênio e originário, aquilo de que tudo o mais procede, o nous, uma inteligência, um sujeito de representações, e é considerado o primeiro a promulgar tal visão racionalista.” “de acordo comigo, os pensamentos, pelo contrário, são a última aparição.” “Toda essa teologia física (ou física teológica) é uma insistência e persistência no erro, o exato oposto da verdade expressa no início deste capítulo. O erro que consiste em afirmar que a forma mais perfeita da origem das coisas é unicamente aquela pensada, racionalizada por um intelecto. § Desde o tempo de Sócrates até o tempo vigente nós vemos que a principal questão das disputas intermináveis dos filósofos foi e é o ens rationis, a alma.”

o velho dogmatismo construiu uma ontologia quando só tinha material para uma dianoiologia [ciência das faculdades intelectuais ou do pensamento – em outras palavras, seu cume é a filosofia hegeliana].”

Os hegelianos, fanáticos que vêem a filosofia da história como o fim último de toda filosofia, fariam melhor em ler Platão, que infatigavelmente repete que objeto da filosofia é aquilo que é inalterável e que sempre permanece, e não aquilo que agora é assim, depois assado.”

Todos os filósofos cometeram o mesmo erro: eles situam o elemento eterno, metafísico e indestrutível do homem invairavelmente no intelecto.”

A contradição é que do ponto de vista do conhecimento ou intelecto (ou ainda da representação, ou ainda: dos fenômenos) os filósofos sempre tentaram provar com persuasivas razões que a morte não é um mal; e não obstante o medo da morte permanece inevitável para todos, porque está enraizado não no conhecimento, mas na vontade.”

GROSSO MODO, ASSIM SCH. RESUME A PROBLEMÁTICA HISTÓRICO-FILOSÓFICA:

politeísmo (onde se subscreve a moral socrática) monoteísmo (infantilização/regressão) panteísmo (antítese completa do estágio anterior, e por isso, no extremo da amoralidade ou imoralidade, tão daninha quanto a hipermoralidade beata) recuperação com Spinoza (resgate parcial da discussão ética SECULAR do indivíduo) + menção honrosa para o ceticismo ou exposição ético-negativa de Hume e Voltaire. Filisteísmo (interpretação ainda mais espúria e materialista da ‘fraca’ Ética spinozista) Hegel (uma queda abrupta, posto que fetichizando a Santíssima Trindade, como seria fácil de imaginar) (Sabidamente, Schopenhauer diz que não só ele mesmo ainda não podia ser compreendido, como nem mesmo Kant o tinha sido em sua época.) Discípulos de Hegel (o fundo do poço, relativização de todos os valores e a neura do Estado-nação como ‘indivíduo’, como se se pudesse falar de ética nessa esfera da pura aparência). |Schopenhauer| (síntese final).

Quem quer que tenha compreendido minha filosofia da ascese não mais encarará como além de todas as medidas da extravagância que faquires se sentem e, contemplando a ponta de seus narizes, busquem banir todo pensamento e percepção; e que em muitas passagens dos Upanishads encontrem-se prescrições para o indivíduo mergulhar silenciosamente em si mesmo pronunciando o misterioso mantra Om, até acessar o imo do ser, onde sujeito e objeto e conhecimento desaparecem.” Parágrafo feito de encomenda para polemizar com Hegel. Ver também 3.2.

3. CRÍTICA DA RELIGIÃO: A ESCOLÁSTICA DUROU ATÉ KANT, MAS FOI CONTINUADA PELO HEGELIANISMO: A verdadeira filosofia deve compreender que nunca estará dissociada das religiões e se situar honestamente no campo

3.1 CRISTIANISMO, FIGURA AMBIVALENTE PARA SCHOPENHAUER

aquela doutrina considera cada indivíduo de um lado como idêntico a Adão, o representante da afirmação da vida e, nesse sentido, entregue ao pecado (original),¹ ao sofrimento e à morte; de outro, o conhecimento da Idéia mostra cada indivíduo como idêntico ao redentor,² ao representante da negação da Vontade de vida e, nesse sentido, partícipe de seu auto-sacrifício, redimido por seu mérito, salvo das amarras do pecado e da morte, i.e., do mundo. (Romanos 5:12-21³)”

¹ Não diria isso: aquele constringido pelo pecado original nega esta vida (efeito involuntário da fé cristã).

² Este, também, é claro, nega esta vida (cristão idôneo que verdadeiramente entendeu sua fé). No fim de contas, nenhum dos dois é capaz de afirmar a vida, a não ser no além, o que é o mesmo que negar absolutamente a vida (o fenômeno, mas também a Vontade subjacente).

³ A propósito, um dos trechos mais mal-escritos da Bíblia inteira!

o sublime fundador do cristianismo teve necessariamente de adaptar-se em parte consciente, em parte inconscientemente, ao judaísmo, de modo que o cristianismo é composto de 2 elementos bastante heterogêneos, dentre os quais prefiro o puramente ético, nomeando-o exclusivamente cristão, para distingui-lo do dogmatismo judeu com o qual é confundido. Se – como amiúde se temeu, em especial nos dias atuais – essa religião excelente e salutar entrar definitivamente no ocaso, eu procuraria a razão disso apenas no fato de ela consistir não de um elemento simples, mas de 2 elementos originariamente heterogêneos postos em combinação pelo curso mundano dos eventos. Ora, daí só poderia resultar a dissolução, devido à degeneração provocada por parentesco desigual e pela reação ao espírito avançado do tempo. (…) o lado puramente ético (…) é indestrutível.”

Recorri aqui aos dogmas da religião cristã (eles mesmos estranhos à filosofia) tão-somente para mostrar que a ética oriunda de toda a nossa consideração – a 1ª sendo no todo coerente e concordante com as partes da 2ª –, embora nova e surpreendente em sua expressão, de modo algum o é em sua essência; ao contrário, concorda totalmente com todos os dogmas propriamente cristãos, e no essencial já se achava nestes.” E é o terrível aspecto derivado disso que torna suas conclusões completamente equivocados, Schopenhauer! – diria Nietzsche!

ensinar que alguém que veio recentemente do nada, e conseqüentemente por toda uma eternidade foi um nada, e que esse alguém, no entanto, será imperecível é o mesmo que ensinar a alguém que, embora ele seja produto do trabalho de um pai e uma mãe, num devido tempo e local, assim mesmo ele terá de se responsabilizar por suas ações por toda a eternidade.”

o tempo em que eu não mais serei chegará objetivamente; mas subjetivamente nunca pode chegar. Deve ser perguntado, então, a que ponto cada qual, em seu coração, estende sua crença numa coisa que é absolutamente inconcebível” “Nisso o Antigo Testamento é perfeitamente consistente; porque nenhuma doutrina da imortalidade é cabível partindo-se duma criação do nada. O cristianismo do Novo Testamento possui tal doutrina por ser hindu em espírito, muito provavelmente também indiano de origem, muito embora apenas indiretamente, através do Egito. Mas com o talo judeu, sobre o qual essa sabedoria indiana teve de ser enxertada na Terra Sagrada, esta doutrina é tão pouco compatível como é o livre-arbítrio com seu determinismo”

Eu admiro as origens orientais do cristianismo, mas não sua própria roupagem.”

Embora o cristianismo, em todas as partes essenciais, tenha pregado somente o que a Ásia sempre soube muito antes, e de forma até melhor, reconheço que para a Europa ele foi uma coisa nova e uma grande revelação, elevando em muito a tendência espiritual das bárbaras nações européias.”

3.1.1 CRISTIANISMO PRIMITIVO, NOVO TESTAMENTO & DOGMAS

não é mais necessária liberdade alguma no operari, [agir] pois ela se encontra no esse, [essência] e justamente aqui reside também o pecado, enquanto pecado original. (…) rejeita-se o que é genuinamente cristão e retorna-se ao judaísmo. (…) todo dogma arruína a teologia, bem como qualquer ciência. De fato, se se estuda a teologia de Agostinho nos livros De civitate Dei (especialmente no 14º livro), experienciamos algo análogo ao caso em que tentamos manter em pé um corpo cujo centro gravitacional está fora dele: não importa como se o gire ou se o mude de lugar, sempre cairá novamente.” Schopenhauer ofereceu as armas para a própria tréplica “neo-pelaginiana”, pelo visto… Porém, comentando o trecho em vermelho, o dogma é o sine qua non da teologia ou crença, enquanto que ele define um campo científico, mas não seu teor, dentro de amplos limites (ex: o dogma da Física são algumas leis fundamentais, mas tudo o que se inscrever nelas e for debatível entre os físicos não será dogmático – o dia em que os dogmas da Física qua Física forem insustentáveis, acabará esta disciplina).

Onde é que já houve verdadeira liberdade no pensar? Já foi muito gabada e alardeada, mas sempre que essa liberdade quer se exceder um milímetro além das convenções dos mais precários dogmas da religião de um país, um sagrado estremecimento parece se apoderar dos tão tolerantes profetas, e eles acabam por dizer: <Nenhum passo adiante!>. Que progresso da metafísica seria possível sob tamanha opressão?” “em metafísica os antigos ainda são nossos professores.” “Considere-se a que pico de arrogância o sacerdócio de qualquer religião não chegaria se a crença em suas doutrinas fosse tão firme e cega quanto eles realmente desejam. Dê-se uma olhada também nas guerras do passado, nos distúrbios, rebeliões e revoluções da Europa do oitavo ao décimo oitavo século; quão poucas não encontraremos que não possuíam como sua essência ou pretexto alguma controvérsia sobre credos, i.e., um problema metafísico, que se tornara ocasião de suscitar nações contra nações. (…) Eu gostaria de ter uma lista autêntica de todos os crimes que a cristandade realmente evitara, e de todas as boas ações que ela realmente praticou, para assim poder colocar ambas como contrapeso, no outro lado da balança.” “A filosofia não passa essencialmente de sabedoria mundana: seu problema é o mundo. A ela concerne isso e somente isso, deixando os deuses em paz – mas ela espera, em troca, ser também deixada em paz pelos deuses.”

a conexão entre o Novo e o Velho Testamento é no fundo apenas externa, acidental e forçada. A única conexão visível entre o cristianismo e o judaísmo está na estória da Queda, que, de toda forma, encontra-se isolada dentro da estrutura do próprio Velho Testamento; diria até que esquecida pelos últimos profetas, pois desse mito fundador não se deriva nenhum dogma após os primeiros livros. De acordo com as próprias palavras das Escrituras, referendando meu entendimento, só os adeptos mais ortodoxos do Velho Testamento é que insistem na questão da crucificação de Cristo, porque consideram seus ensinamentos em conflito com os dos judeus.”

É interessante ver como Clemente mistura o Novo e o Velho Testamento, tentando estabelecer uma coesão entre ambos; mas, no afã de realizar seus esforços, só o que ele conseguiu, em grande parte, foi preterir o Novo Testamento em prol dos dogmas do Antigo. No começo do terceiro capítulo de sua obra ele objeta ao marcianismo que eles derivem para o paganismo de Platão e Pitágoras ao considerar a criação uma falha ou erro. Marcião, com efeito, ensina que a natureza é má, feita de um material imperfeito, ou seja, invariavelmente má desde a raiz. Para Marcião, não se deve povoar este mundo, mas se abster do casamento.” Schopenhauer, famoso anti-natalista, teve, obviamente, muitos precursores, cristãos ou não.

3.1.2 O PODER SECULAR DO CATOLICISMO

entre os povos monoteístas, ateísmo, ou a falta de Deus, tornou-se sinônimo de ausência de moralidade. Aos padres tais confusões conceituais são bem-vindas e apenas em conseqüência delas pôde originar-se aquele monstro assombroso, o fanatismo, imperando não só sobre indivíduos isolados, perversos e maus além de toda medida, mas também sobre povos inteiros, e, finalmente, o que para a honra da humanidade só aconteceu uma vez em sua história, corporificando-se neste Ocidente como Inquisição, a qual, segundo as mais novas informações finalmente autênticas, somente em Madri (no resto da Espanha havia muito mais desses queimadouros religiosos) em 300 anos matou de modo torturante na fogueira 300 mil pessoas por questões de fé. Convém lembrar tudo isso a todos os fanáticos, sempre que eles queiram levantar a sua voz.”

Por que uma religião necessitaria do sufrágio de uma filosofia? Ela já tem tudo a seu lado – a revelação, a tradição, os milagres, as profecias, o governo, a aristocracia, o consentimento e a reverência da massa, mil templos onde é pregada e praticada, um séquito de vocacionados sob a alcunha de padres e, o que é ainda mais importante que todo o resto, o privilégio nunca superestimado de contar com a liberdade de imprensa para suas doutrinas e o direito de inculcar-se seus dogmas aos novos rebentos por toda parte, o que os converte praticamente em idéias inatas.” “Teria sido mutuamente benéfico se a metafísica cristã ou teologia se tivesse mantido aparte da metafísica laica. Ambas se desenvolveriam a contento em suas próprias potencialidades. Ao invés disso vemos, durante toda a era cristã, o esforço de se engendrar uma fusão de ambas, porque os conceitos e dogmas de uma são aplicados à outra, de forma que as duas se deterioraram.”

Spinoza tinha seus motivos para nomear o que sobrara de Deus em seu sistema substância; assim, se não a coisa, a palavra estava preservada. As estacas de Giordano Bruno e de Vanini estavam ainda frescas na memória; ambos também foram sacrificados por esse Deus em nome de quem um número incomparavelmente maior de homens serviu de bode expiatório no altar consagrado, altar do qual jorrou mais sangue do que os de todos os deuses pagãos dos dois hemisférios somados. Se, considerando esse histórico, Spinoza, nas entrelinhas, chama o mundo de Deus, isso não passa de um subterfúgio para escapar de sua época, e é como se fosse Rousseau, no seu Contrat social, denominando a massa, o conjunto dos homens e cidadãos, de o soberano.”

quando vejo com que cuidado essa época incrédula finaliza as igrejas góticas deixadas inacabadas na crédula Idade Média, me parece que o que desejam é embalsamar uma cristandade morta.”

3.1.3 REFORMA PROTESTANTE

[Que nossas ações são predeterminadas] é uma doutrina cristã original dos evangelhos, defendida por Agostinho, em acordo com os mestres da Igreja, contra as rasteirices dos pelagianos¹ e cuja purificação dos erros e restabelecimento foi o objetivo principal dos esforços de LUTERO, como este o declara expressamente em seu livro De servo arbitrio: a tese de que a VONTADE NÃO É LIVRE² mas está originariamente propensa ao que é mau.”

¹ Cristãos contra a doutrina do pecado original e a favor do livre-arbítrio e de certa faculdade de auto-divinização no homem. Me pergunto como tal seita sobrevive no cristianismo a ponto de ter um verbete no Wikipédia – certamente os primeiros pelagianos foram todos queimados na fogueira; mas imaginar que ainda se organizem!… Parecem mais um braço do paganismo que agride a crença cristã a partir de seu interior! Atenção para a pérola: John Rawls era um crítico do pelagianismo, uma atitude que ele manteve mesmo depois de se converter em ateu. Suas idéias anti-pelagianas influenciaram seu livro A Theory of Justice [mantive no original por não saber qual a tradução oficial – Uma Teoria de Justiça é minha tradução literal], onde ele argumenta que diferenças na produtividade entre os seres humanos são um resultado de ‘arbítrios morais’ e que, em conseqüência, níveis de renda desiguais são imerecidos.” Será uma crítica ao pelagianismo algo central num livro de Direito/Economia?!? Disso eu jamais ouvira falar! Além disso, por mais que eu seja um “justiceiro social”, essa tese é prática e barata como uma mula manca adornada de ouro!

² Não entender este trecho no sentido da Vontade de potência livre/não-livre (diferença traçável entre Sch./Nietzsche num nível metafísico, cf. 6.), mas apenas como negação do livre-arbítrio na discussão te(le)ológica sobre o determinismo (liberdade X necessidade) nas ações e nos assuntos humanos (muito em voga, na religião, na época da reforma protestante e, nas ciências humanas, no século XIX, embora, claro, seja uma discussão infindável).

a contradição entre a bondade de Deus e a miséria do mundo, e entre a liberdade da vontade e a presciência divina, é o tema inesgotável de uma controvérsia quase secular entre cartesianos, Malebranche, Leibniz, Bayle, Klarke, Arnauld (…) todos eles giram incessantemente em círculos (…) i.e., tentam resolver uma soma aritmética que nunca chega a um bom resultado (…) Apenas Bayle mostra que percebeu este problema.” Ainda não tive a felicidade de ler nada “autoral” deste “enciclopedista” avant la lettre! (O Dicionário histórico e crítico é sua obra mais famosa, contendo sinopses das vidas dos maiores pensadores e personalidades – em breve no Seclusão.)

Não se compreende Hume sem antes ler sua História da Religião Natural nem seus Diálogos sobre a Religião Natural. Ali vê-se-o no seu máximo, e ambas as obras, perfiladas com o Ensaio n. 21, ‘Dos caráteres nacionais’, são os escritos que fazem deste homem – e não conheço nenhum outro livro ou ensaio que justifique tanto sua fama – tão odiado pelo clero anglicano até os dias atuais.”

O protestantismo, desde que eliminou o ascetismo e seu ponto central, a santidade do celibato, abandonou, portanto, o que restava do núcleo mais profundo da religião cristã, de modo que chegará o tempo em que reconhecerão que o protestantismo é uma nova religião, separada do cristianismo. Em nossos dias essa tendência se tornou aparente através da lenta transformação dos dogmas protestantes em racionalismo barato, um pelagianismo moderno, que por fim degenera na doutrina do Pai amoroso, quem teria criado o mundo a fim de que as coisas se dessem sempre em felicidade e harmonia (sinal evidente de que ele falhou no processo!), quem também, caso se interprete de forma diferente e se aceitem apenas algumas palavras da Bíblia, promete um mundo futuro ainda mais belo (é uma pena que a entrada para este mundo seja tão sofrida!). Essa pode ser uma boa religião para pastores letrados, casados e bem-estabelecidos economicamente; mas isso nada tem que ver com cristianismo. Cristianismo é a doutrina da profunda culpa da raça humana condenada a viver só, e da esperança de libertação deste estado de miséria, que, porém, só pode ser obtida via os maiores sacrifícios e a negação de si mesmo, ou seja, via uma completa inversão da natureza humana. Lutero pode estar repleto de razão do ponto de vista prático, i.e., quanto aos escândalos da Igreja de seu tempo, que ele queria purificar, mas, quanto à teoria, se engana cabalmente. Quão mais sublime uma doutrina é, mais está exposta a abusos nas mãos da natureza humana, que, como um todo, é de disposição mesquinha e má: natural que o catolicismo se tornasse muito mais vilipendiado que o protestantismo. Em suma, Lutero foi demasiado longe na sua interpretação da Palavra, longe o bastante para aniquilar a nobreza da crença em questão.”

3.2 PRECURSOR ORIENTALISTA: EXALTAÇÃO DO HINDUÍSMO E DO BUDISMO

A mais sábia de todas as mitologias, a indiana, exprime isso dando ao Deus que simboliza a destruição e a morte (como Brama, o deus mais pecaminoso e menos elevado do Trimurti, simboliza a geração e o nascimento, e Vishnu a conservação), Shiva, o atributo do colar de caveiras e, ao mesmo tempo, o linga, símbolo da geração, que aparece como contrapartida da morte.” “Eis por que os sábios ancestrais do povo da Índia expressaram diretamente esse conhecimento nos Vedas, permitido somente às 3 castas regeneradas, ou nas doutrinas sapienciais esotéricas, e isso até onde o conceito e a linguagem o podem apreender e até onde era possível a suas formas de exposição pictórica e rapsódica; na religião popular, todavia, ou doutrina exotérica, isso foi comunicado apenas de maneira mítica.” “Esta [mitologia hindu] é o fim de todas as doutrinas religiosas, na medida em que são roupagens míticas completas da verdade inacessível à tosca inteligência comum.”

Nunca as nossas religiões deitaram ou irão deitar raízes na Índia; a sabedoria ancestral da raça humana não será reprimida pelos acontecimentos na Galiléia. Ao contrário, a sabedoria indiana avança sobre a Europa e produzirá uma mudança fundamental em nosso saber e pensamento.”

Propriamente falando, aquela justiça exacerbada do hindu é mais que justiça, a saber, é já efetiva renúncia, negação da Vontade de vida, ascese (…) Por outro lado, viver sem fazer nada, servindo-se das forças de outrem em meio à riqueza herdada e sem realizar coisa alguma, já pode ser visto como algo moralmente injusto, embora, segundo as leis positivas, tenha de permanecer algo justo.”

Parece-me que, assim como as línguas mais antigas são as mais perfeitas, assim também com as mais antigas religiões. Se eu tomasse os resultados da minha filosofia como o padrão da verdade, seria obrigado a conceder a preeminência ao budismo contra todo o resto.” “Até 1818, quando primeiro apareceu meu trabalho, havia muito pouca informação, excessivamente incompleta e minguada, sobre o budismo na Europa, limitada inteiramente a uns quantos ensaios nos primeiros volumes das Asiatic Researches [Pesquisas Asiáticas, série enciclopédica de várias tendências e autores, segmentada em muitos livros-compilações – mas não superestimar sua relevância contemporânea, já que se trata de pré-antropologia bastante etnocêntrica], focados no budismo dos burmese. Só a partir de então mais dados sobre essa religião nos chegaram, principalmente através dos instrutivos e profundos ensaios do meritório membro da Academia de São Petersburgo J.J. Schmidt, nos relatórios e anuários daquela academia; de pouco em pouco também estudiosos britânicos e franceses enriqueceram o material, a ponto de que eu finalmente pude fornecer uma copiosa lista dos melhores trabalhos em religião, o que fiz em Sobre a Vontade na Natureza, na portada Sinologia. Desafortunadamente Csoma Körösi,¹ húngaro perseverante, que, para estudar a língua e os escritos sagrados do budismo, permaneceu tantos anos no Tibete, e quase sempre em monastérios budistas, morreu justo quando começava a pôr no papel os resultados de suas vastas pesquisas.”

¹ Livros do autor, apesar de sua morte precoce:

Essay towards a Dictionary, Tibetan and English. Prepared, with assistance of Bandé Sangs-rgyas Phuntshogs, Calcutta: Baptist Mission Press, 1834. (parcial ou totalmente disponibilizado pelo Google Books – ainda preciso checar): https://books.google.com/books?id=a78IAAAAQAAJ&printsec=frontcover&dq=csoma&redir_esc=y#v=onepage&q=csoma&f=false;

Analysis of the Dulva, part of the Kangyur, Asiatic Researches, Calcutta, 1836, vol. 20-1, pp. 41-93;

A Grammar of the Tibetan Language in English. Prepared under the patronage of the Government and the auspices of the Asiatic Society of Bengal, Calcutta: Baptist Mission Press, 1834;

Collected works of Alexander Csoma de Körös, Budapest: Akadémiai Kiadó, 1984.

Todos conhecem apenas um ser na imediatez – sua própria vontade autoconsciente. Tudo o mais sabe-se apenas indiretamente, e é julgado em analogia com a própria vontade. Este processo o homem leva adiante na proporção do grau de seus poderes reflexivos. Mesmo estes só emanam em última instância em virtude do fato de que na realidade há apenas um ser; a ilusão do múltiplo (Maja), que provém das formas da compreensão objetiva do exterior, não poderia penetrar a consciência interior, simples e una” Alta relação com 6.

Os ditos filósofos e glorificadores da história são meros realistas, e também otimistas e eudemonistas, conseqüentemente cabeças ocas e o tipo ideal do filisteu. Por fim, são a escória do cristianismo, já que o espírito autêntico, o cerne do cristianismo, como outrossim o do bramanismo e do budismo, é o conhecimento da vaidade da felicidade terrena, o completo desprezo por ela, e o virar o rosto para as aparências, preferindo uma existência de outro tipo, digo, de um tipo oposto. (…) mesmo o budismo ateísta está muito mais relacionado ao cristianismo que o judaísmo otimista ou sua cria, o islamismo.”

os deuses hindus são conhecidos por não piscar os olhos quando aparecem em forma humana.”

Encontramos a doutrina da metempsicose, florescendo nos tempos mais nobres e antanhos da raça humana, espalhada e com efeito sendo a crença sincera da maioria da humanidade; no fundo, até de todas as religiões, com exceção do credo judeu e dos 2 que dele descenderam. Na forma mais sutil de todas, entretanto, esta verdade está exposta na doutrina esotérica do budismo. Enquanto os cristãos se consolam com a idéia de se reencontrarem no outro mundo, no qual o indivíduo recuperaria todos os seus traços de personalidade e reconheceria qualquer face familiar da Terra instantaneamente, nas outras religiões o reencontro com os outros está se dando exatamente agora, só que sem o conhecimento das partes.” O Espiritismo é a terceira e última subreligião monoteísta da decadência. Claro, na outra mão, que se o budismo “tomasse conta da terra”, no sentido nietzschiano, qualquer progresso estaria comprometido, ou ao menos hibernado…

a resignação perfeita, que é o espírito mais íntimo tanto do cristianismo quanto da sabedoria indiana, a renúncia a todo querer, a viragem, a supressão da Vontade e, com esta, da essência inteira do mundo, portanto a redenção.”

No Veda (…) diz-se que quando um homem morre, sua faculdade de ver se torna una com o sol, seu olfato com a terra, seu paladar com a água, sua audição com o ar, sua fala com o fogo, e assim por diante (Upanixade, I, p. 249-ss.); e ainda pelo fato de que, em cerimônia especial, a pessoa moribunda transfere um por um seus sentidos e faculdades inteiras ao filho, como se fosse continuar a viver nele (ibid., II, p. 82-ss.).”

3.3 POLITEÍSMO, PANTEÍSMO, GNOSTICISMO, RELIGIÕES MENORES

Consideremos, por exemplo, o Alcorão. Esse livro deplorável foi o bastante para fundar uma religião ecumênica, de proporções globais, satisfazendo as necessidades metafísicas de inúmeros milhões de homens por 1200 anos, tornando-se o fundamento de sua moral, uma que, aliás, não nutre pouco desprezo pela morte, capaz de inspirar os fiéis a guerras sangrentas e a grandes campanhas militares. O islamismo é a forma mais triste e pobre de teísmo. Decerto que muito pode ter-se perdido nas traduções; mas nunca descobri um só pensamento de valor neste credo. Esse exemplo demonstra que capacidade metafísica não anda de mãos dadas com necessidade metafísica.”

esse estranho hermafrodita ou centauro, a assim chamada filosofia da religião, que, como uma espécie de gnose, tenta interpretar as religiões estabelecidas e explicar o que é o verdadeiro sensu allegorico [sentido alegórico – das Escrituras] mediante algo que seria um verdadeiro sensu proprio [sentido próprio, verdade absoluta – em suma a fil. da rel. tenta interpretar a mensagem espiritual contida nos símbolos, recorrendo à própria mensagem, um absurdo]. Mas para isso teríamos de possuir a verdade em seu sensu proprio desde o início; e neste caso uma interpretação seria supérflua.”

Os judeus decerto foram exitosos, com o fogo e a espada, em expulsar da Europa e de parte da Ásia aquela crença consoladora primitiva da humanidade; mas resta duvidoso por quanto tempo. Quão árdua foi essa tarefa é bem-exposto nas mais antigas histórias da igreja. Maior parte dos hereges era perseguida em virtude da crença na metempsicose neste mundo mesmo; p.ex. os simonistas, os basilidianos, os valentinianos, os marcionistas, os gnósticos e os maniqueus ou maniqueístas. Os judeus mesmo caíram, em parte, nessa heresia, como Tertuliano e Justino (em seus diálogos) nos informam. No Talmud é dito que a alma de Abel migrou para o corpo de Seth, e depois para o de Moisés.”

o que no Novo Testamento nos é, por assim dizer, visivelmente envolto em véu e névoa, aparece-nos desvelado nas obras dos místicos com total clareza e distinção.”

O místico se encontra em oposição ao filósofo por ser aquele que começa pela interioridade, enquanto o filósofo começa pelo mundo exterior.” “O filósofo deve, sendo assim, guardar-se do perigo de cair na senda mística e, p.ex., seguindo intuições intelectuais ou pretensas apreensões imediatas da razão, enveredar pela vã exposição de um conhecimento positivo sobre aquilo que está perpetuamente inacessível a toda modalidade do conhecimento, ou no máximo pode ser filosoficamente obtido pela via indireta do conhecimento negativo facultado ao filósofo.” “Eis que o que se acaba de dizer explica por que meu sistema, quando atinge o ponto culminante, assume um caráter de negação. Meu sistema só pode falar daquilo que é negado, daquilo de que desistimos: o que, com isso, se ganha, o que se torna patrimônio humano, é minha obrigação moral dizer: nada [corroborando as famosas últimas palavras de seu primeiro tomo]. Tudo que se pode acrescentar, ademais, é a consolação de que esse nada é meramente relativo, não um absoluto. Porque se algo é nada, este algo representando tudo aquilo que sabemos, essa conclusão serve para nós, falando em termos gerais. Isso é nada, para o homem. Não segue necessariamente dessa premissa que de qualquer ponto de vista imaginável e em todo sentido possível o que se ganha deva ser nada, mas somente que nós estamos limitados a um conhecimento completamente negativo do que excede o fenômeno, o que justifica a asserção óbvia de que a perspectiva humana é em si mesma imperfeita, errática, insuficiente. Aqui é onde o místico procede de forma positiva, então não recaio em contradição se digo que, a partir desse ponto, só resta a experiência mística. Para aqueles que desejam esse tipo de suplemento ao conhecimento negativo que é o ponto culminante da filosofia ocidental, recomendo escritos místicos os mais ricos e belos que conheço, o Oupnekhat [este nome é o da 1ª tradução européia dos Upanishads, livros sagrados do hinduísmo]. Para além disso, prescrevo as Enéadas (ννεάδες) de Plotino, [o motivo do nome é porque cada capítulo está dividido em 9 partes] os escritos de João Escoto Erígena, certas passagens de Jakob Böhm; e em especial o maravilhoso livro da Madame de Guion, Les Torrens, e o autor Angelus Silesius. Finalmente, não poderia deixar de fora os poemas dos sufistas, [místicos islâmicos] que podem ser encontrados em latim vertidos por Tholuk, além de já existir também em alemão. Os sufistas são o mesmo para o Islã que os gnósticos representam no Ocidente. O teísmo, calculado com referência à capacidade do múltiplo, coloca a fonte da existência fora de nós, como um objeto. Todo misticismo, logo também o sufismo, de acordo com os vários graus de sua iniciação, reposiciona essa fonte gradualmente de volta em nós, como sujeitos, de forma que o adepto reconhece com espanto e deleite que ele mesmo é essa fonte. Esse procedimento, comum a todo misticismo, achamos expresso não só pelo Mestre Eckhart, o pai do misticismo teutônico, na forma de um preceito para o ascetismo perfeito, <o homem não deve procurar Deus fora de si> (edição de Pfeiffer, volume 1), mas também de forma muito ingênua pela própria ‘filha espiritual’ de Eckhart, que procurava Deus no exterior até experimentar a conversão em seu imo. Contando desta etapa de sua vida, ela escreve: <Senhor, rejubila-te comigo, eu me tornei Deus>. O misticismo dos sufistas também se expressa através de uma concórdia análoga com esse espírito, apoiado principalmente na revelação que desperta na consciência de que cada um é o cerne do mundo e a fonte de toda a existência, a quem tudo retorna.” “Correspondendo a essa diferença de concepção, o misticismo maometano apresenta um caráter muito sereno; o misticismo cristão, um melancólico e sombrio; ao passo que o hindu, posando sobre todos os demais, é como que um meio-termo destes extremos.” “A seita quietista, o ascetismo e o misticismo estão inextricavelmente entrelaçados. Todo aquele que prega um deles, ao tomar conhecimento dos ensinamentos dos outros 2 deve necessariamente aceitá-los, mesmo contra seus próprios desígnios.” “Mas a palavra seita, usada em virtude da influência da Igreja no julgamento destas minorias, não deve ser encarada a sério. O membro de uma seita adere, defende e propaga um dogma favorito assim que a ela se converte. Os místicos indianos, cristãos e muçulmanos, os quietistas e os ascéticos são, contudo, diferentes dessa caracterização, salvo na significância interior e espiritual de seus ensinamentos.”

Quem quer que tenha lido tais escritos, comparando seu estilo ao do ascetismo e do quietismo, vendo como este mesmo estilo percorre todas as obras do bramanismo e do budismo, onde se fala, a cada página, das mesmas noções gerais, admitirá, ao cabo, que toda filosofia, que deve, para ser coerente e consistente, rejeitar todo esse modo de pensar, coisa que ela só pode fazer denominando os representantes místicos de impostores ou loucos, deve com toda probabilidade ser falsa. Todos os sistemas europeus, com exceção do meu, são abarcados por esta crítica.” “Nenhuma filosofia pode deixar o tema do quietismo e do ascetismo isento de resolução. Esse tema é, em seu conteúdo, idêntico ao de todas as metafísicas e éticas já elaboradas. Eu espero e desejo que toda filosofia otimista declare-se como tal. Se, no julgamento dos contemporâneos, a coincidência paradóxica e sem precedentes encontrada entre minha filosofia e o ascetismo e o quietismo, se parece com uma enorme rocha que obstrui o caminho, eu, ao contrário, vejo nessa circunstância a prova de sua corretude e de sua verdade, e também um fundamento explicativo de por que minha filosofia é ignorada e na verdade mantida o mais escondida possível pelas universidades protestantes. Porque não somente as religiões do Oriente, mas o próprio cristinismo autêntico estão permeados deste caráter ascético fundamental que minha filosofia explica como a negação da vontade de vida. Vejo que o protestantismo vigente quer a todo custo ocultar essa verdade.” “a cabeça desses homens, infelizmente, bem como a cabeça de milhares de outros na Alemanha do tempo presente, encontra-se distorcida e corrompida pelo hegelianismo miserável, essa escola de tédio, esse centro da incompreensão e ignorância, esse destruidor de mentes, sabedoria espúria, que, ao menos, e já demasiado tarde, começa a ser reconhecido por aquilo que é; logo a veneração de Hegel será relegada à Academia dinamarquesa, para quem até um grosseiro charlatão como ele é um summus philosophus [é o mestre de todos os outros filósofos]HAHAHAHAAHA! O destino de Hegel lembra um pouco o de Wagner: esculhambado por Schopenhauer/Nietzsche, vive até hoje entre nós, bastante arranhado, é verdade, mas ainda ‘recomendado’.

O maniqueísmo é de certo modo um meio-termo entre o otimismo e o pessimismo, uma ponte entre o judaísmo e o cristianismo, como o significado de seu próprio nome já aduz. No Zend-Avesta, Ormuzd, o bom deus, é antagonizado pelo pessimismo de Ahriman. E foi do maniqueísmo que o judaísmo proveio, como J.G. Rhode comprovou extensivamente em seu livro Die heilige Sage des Zendvolks [A palavra sagada dos povos Zend]. Ormuzd é o protótipo de Jeová, e Ahriman o de Satã, que, no entanto, passa a exercer um papel demasiado secundário no credo semita (…) destarte, o mito da queda é o único que permanece como elemento pessimista do Antigo Testamento, e isto ainda assim por mera derivação do maniqueísmo.”

Ocorre que Ormuzd é derivado do bramanismo, embora de uma vertente mais vulgar do bramanismo primitivo. Ele é o avatar de Indra, o deus subordinado do firmamento e da atmosfera, que é representado freqüentemente em rivalidade com os homens. Esta identidade foi muito claramente estabelecida por J.J. Schmidt em seu livro sobre a relação das doutrinas gnóstico-teosóficas com as religiões do Oriente. Indra-Ormuzd-Jeová viria a assumir a figura da divindade cristã, porque essa última religião nasceu na Judéia. No entanto, devido ao caráter cosmopolita do Cristianismo, seu nome foi esquecido e passou-se a denotá-lo pela palavra de cada língua para seres supra-humanos, i.e., TEOS, Deus, que vem do sânscrito Deva (a origem mútua de deus e demônio), ou ainda, entre os gótico-germânicos, God, Gott, que vém de Odin Wodan, Guodan, Godan. Da mesma forma foi que o Islã batizou seu deus de Allah, que também era um nome de divindade na antiga Arábia.” “Na China, a 1ª dificuldade dos missionários proveio do fato de que em Mandarim não há apelação do tipo, nem mesmo palavra que equivalha a ‘criação’; as 3 principais religiões chinesas desconhecem deuses, no plural ou no singular.”

A singular seita dos shakers dos Estados Unidos [desconheço o termo em português para se referir a eles], fundada por uma britânica, Anne Lee, em 1774, possui cerca de 6 mil praticantes, divididos em 15 comunidades. Eles povoam diversos vilarejos dos estados de Nova York e Kentucky, sobretudo no distrito de New Lebanon, perto da cidade de Nassau. A característica fundamental desta vertente cristã é o celibato absoluto e a completa abstenção de qualquer prazer sexual. É unanimemente admito, mesmo pelos ingleses e americanos que os visitam, que deles troçam em qualquer outro respeito, que essa regra é estrita e perfeitamente observada, apesar de que irmãos e irmãs [no sentido lato, i.e., homens e mulheres] ocupem comumemnte as mesmas casas, comam na mesma mesa, até dancem juntos nas cerimônias religiosas da igreja. Quem se abstém honestamente levando adiante o maior autosacrifício instintual pode e deve dançar diante do Senhor, é a idéia central da seita.” O problema de uma seita rara em que ninguém se reproduz (ninguém faz sexo!) é que ela está destinada do começo à mais lenta e morosa das extinções. Veja o Wikipedia dos shakers (link acima para artigo completo), com números um pouco diferentes dos apresentados por Sch. para o séc. XIX (mais comunidades, mas menos membros). “Em 2019, só um vilarejo shaker resta: Sabbathday Lake Shaker Village [a Cidade Shaker do Lago de Sábado], no Maine. Conseqüentemente, muitos dos acampamentos e vilas Shakers antigos, hoje despovoados, se transformaram em museus.” (tradução do Wikipedia English)

Não há famílias e, destarte, não há propriedade privada. Todos se vestem igual, à moda quaker, com grande asseio. São industriosos e diligentes: preguiça e indolência são repudiados. Outra regra da seita é proibir qualquer barulho desnecessário, como gritos, batidas de porta, estalar de chicotes [o terror de Schopenhauer, que já escreveu longamente a respeito dessa prática na Alemanha!], batidas fortes, etc. (…) Eles têm a política de jamais pregar em busca de novos adeptos, mas testam rigorosamente aqueles que se apresentam voluntariamente ao noviciado, durante vários anos. Além disso, todos são livres para deixar a comunidade; o índice de excomunhões por mau comportamento é baixíssimo. Crianças adotadas são educadas muito de perto, mas de modo leigo, sem os dogmas mais severos da crença, e quando se tornam maiores é que podem escolher se juntar à seita. Dizem que nas controvérsias entre os ministros shakers e o clero anglicano, o último costuma levar a pior, porque os shakers argumentam solidamente com base em passagens do Novo Testamento. Mais informações sobre a seita podem ser obtidas em Run through the United States de Maxwell (1841) e em History of all Religions de Benecit (1830)”

Os antigos, embora tão mais avançados quanto a tudo o mais, continuaram crianças com respeito ao principal, e foram superados nesse quesito até mesmo pelos druidas, que ao menos ensinavam a metempsicose. Que um ou dois filósofos, como Pitágoras e Platão, pensassem diferente do resto dos gregos não muda nada.” Enigma: quem é mais burro, aquele que só entende alegorias ou aquele que só entende a mensagem direta? Ao contrário do que Schopenhauer pensa, creio que tanto a religião quanto a filosofia sejam um híbrido destas duas (para ele a filosofia é uma vocação seleta por lidar com a mensagem direta, a bíblia, p.ex., apenas conta estórias morais, etc.). Nada mais ilusório. Nesse sentido, Platão seria um superfilósofo inacessível até para os prosaicos filósofos… E o que dizer da simplicidade com que a massa abraça um culto tão ‘esotérico’? Talvez porque ele não o seja (tanto).

3.4 ÉTICA: O DILEMA DE CILA OU CARIBDE: ACEITAÇÃO DO FENÔMENO OU ASCETISMO

remanesce sempre a forma do tempo, e o ser objeto e sujeito do conhecimento em geral. Nessa sabedoria inerente a coisa-em-si despiu, em grande medida, seu véu, mas não está ainda de todo nua. Em virtude da forma que o tempo possui, sempre aderido a esta coisa-em-si, todo mundo conhece sua vontade somente em seus atos sucessivos, e nunca como um todo, em e para si: por conseguinte, ninguém conhece seu caráter a priori, senão que aprende a conhecê-lo através da experiência, e sempre de modo incompleto.”

OLAVO DE CARVALHO IN A NUTSHELL: “Nada é mais exasperante, quando debatemos contra um homem sem razões e muito menos argumentos, de modo que nós tentamos de tudo para convencê-lo de nossa perspectiva, sob a impressão de que tudo que importa no problema é seu entendimento, nada é mais exasperante, eu dizia –– que descobrir de súbito que ele não quer entender, ou antes que ele quer não-entender; que nossa única maneira de vencer o debate seria apelando para sua vontade e disposição, que se encontra fechada contra a verdade. E quando esta disposição fechada se torna pública, essa circunstância só estimula seu dono a invectivar contra os outros ainda mais, utilizando-se de barafundas deliberadas, chicanas e sofismas, a fim de se entrincheirar detrás de seu falto entendimento e de sua falta de insight, crendo-se, através desse método agressivo, refugiar em lugar seguro. Logo, enquanto assim for, esse homem não será enleado e manterá suas convicções, porque bons argumentos e provas aplicadas contra a vontade (o temperamento) são como os golpes de um fantasma desferidos contra um corpo sólido.”

Não posso estabelecer, como é sempre estabelecida, a diferença fundamental entre todas as religiões sobre a questão de se são monoteístas, politeístas, panteístas ou ateístas, mas unicamente sobre a questão de se elas são otimistas ou pessimistas, quer seja, se apresentam a existência do mundo como justificada em si mesma, e destarte a louvam e valorizam, ou se entendem a existência como mera conseqüência de nossa culpa, e destarte concluem que não deveríamos ser, pois reconhecem que a dor e a morte nada têm que ver com a ordem eterna, original e imutável de todas as coisas, como o mundo devera ser. O poder que permitiu ao cristianismo superar o judaísmo, e depois todo o paganismo greco-romano, subjaz tão-só em seu pessimismo, na confissão de que nossa condição é igualmente pecaminosa e amaldiçoada, ao passo que o judaísmo e o helenismo eram otimistas.”

maldade extraordinária (…) exemplos desse tipo são: Ricardo III, Iago em Otelo, Shylok em O mercador de Veneza, Franz Moor [Schiller], Fedra de Eurípides, Creonte em Antígona“Shakespeare nos apresenta na figura do Cardeal de Beaufort (Henrique VI Parte II) o terrível fim de um facínora que morre cheio de desespero, pois nem sofrimento nem morte podem quebrar sua vontade veemente, que ia até o extremo da crueldade.”

seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos quanto que nossas estéticas produzissem poetas, artistas plásticos e músicos.”

neste livro de ética não se devem esperar prescrições nem doutrinas do dever, muito menos o estabelecimento de um princípio moral absoluto parecido a uma receita universal para a produção de todas as virtudes. Também não falaremos de ‘DEVER INCONDICIONADO’, porque este (…) contém uma contradição, nem tampouco falaremos de uma ‘lei para a liberdade’Clara oposição a Kant.

A filosofia de Bruno não possui uma ética propriamente dita, e a ética da filosofia de Spinoza não procede absolutamente da essência de sua doutrina, mas, apesar de bela e louvável, é adicionada a ela simplesmente por meio de fracos e palpáveis sofismas.”

Meu único fim, pois, só pode ser expor a afirmação e a negação, [da vontade de vida] trazendo-as ao conhecimento distinto da faculdade racional, sem prescrever nem recomendar uma ou outra”

toda pessoa tosca, seguindo seu sentimento, defende ardorosamente a plena liberdade das ações individuais, embora os grandes pensadores de todas as épocas, inclusive os doutrinadores religiosos mais profundos, a tenham negado.”

Ponderemos pelo que decidiremos no momento da aparição das circunstâncias, que nos permitiriam atividade e decisão livres. Na maioria das vezes a ponderação racional, que vê longe, fala antes em favor de uma decisão; já a inclinação imediata, por sua vez, fala em favor de outra. Enquanto, compelidos, permanecemos passivos, o lado da razão aparentemente tende a ganhar a preponderância; entretanto, já antevemos fortemente o quanto o outro lado irá nos atrair quando a oportunidade para agir se fizer presente. Porém, até lá nos esforçaremos zelosamente, por fria meditação dos pro et contra, em alumiar o mais claramente os motivos dos 2 lados, a fim de que cada um possa com toda a sua força fazer efeitos sobre a vontade quando o momento preciso se apresentar, e, com isso, nenhum erro da parte do intelecto desvie a vontade para decidir-se de modo diferente do que faria se tudo fizesse efeito equanimemente. Semelhante desdobrar distinto dos motivos em dois lados é, no entanto, tudo o que o intelecto pode fazer em relação à escolha. A decisão propriamente dita é por ele esperada de modo tão passivo e com a mesma curiosidade tensa como se fosse a de uma vontade alheia. De seu ponto de vista, entretanto, as duas decisões têm de parecer igualmente possíveis: isso justamente é o engano da liberdade empírica da vontade. (…) O intelecto nada pode fazer senão clarear a natureza dos motivos em todos os seus aspectos, porém sem ter condições de ele mesmo determinar a vontade, pois esta lhe é completamente inacessível, sim, até mesmo, como vimos, insondável.”

como Kant ensina, e toda a minha exposição torna necessário, se a coisa-em-si reside fora do tempo e de toda forma do princípio de razão, segue-se que não apenas o indivíduo tem de agir de maneira igual em situação igual e que cada ação má tem de ser a garantia segura de inumeráveis outras que ele TEM DE levar a cabo, e não PODE deixar de fazê-lo, mas também que, como Kant ainda diz, caso apenas fossem dados, de maneira completa, o caráter empírico e os motivos, a conduta futura do homem poderia ser calculada como um eclipse do sol ou da lua. (…) A Vontade, cujo fenômeno é toda a existência e vida do homem, não pode mentir no caso particular. O que o homem quer em geral sempre quererá no particular.

A defesa de uma liberdade empírica da vontade, vale dizer, do liberi arbitrii indifferentiae, está intimamente ligada ao fato de se ter colocado a essência íntima do homem numa ALMA, a qual seria originariamente uma entidade QUE CONHECE, sim, propriamente dizendo, uma entidade abstrata QUE PENSA, e só em conseqüência disto algo QUE QUER. Considerou-se, assim, a Vontade como de natureza secundária, quando em realidade o conhecimento o é. A Vontade foi até mesmo considerada como um ato de pensamento e identificada com o juízo, especialmente por Descartes e Spinoza. De acordo com isso, todo homem teria se tornado o que é somente em conseqüência de seu CONHECIMENTO. Chegaria ao mundo como um zero moral

Seu caráter é originário, pois querer é a base de seu ser. Pelo conhecimento adicionado ele aprende no decorrer da experiência o QUÊ ele é, ou seja, chega a conhecer seu caráter. [e não mudar]

o homem é sua própria obra antes de todo conhecimento, e este é meramente adicionado para iluminá-la. Daí não poder decidir ser isto ou aquilo, nem tornar-se outrem, mas É de uma vez por todas, e sucessivamente conhece o QUÊ é. Pela citada tradição, ele QUER o que conhece; em mim ele CONHECE o que quer.” Em última instância, como será aprofundado em 6., conhecer-se a si mesmo (Sócrates) e tornar-se aquilo que se é (Nietzsche) são uma e a mesma coisa.

o dogma da predestinação (…) Romanos 9:11-24, o qual é manifestamente derivado da intelecção do homem como imutável, de tal maneira que sua vida e conduta, o seu caráter empírico, são apenas o desdobramento do caráter inteligível, são apenas o desenvolvimento de decididas e imutáveis disposições já reconhecíveis na criança.”

a conduta de um homem pode variar notavelmente sem que com isso se deva concluir sobre a mudança em seu caráter. O que o homem realmente e em geral quer, a tendência de seu ser mais íntimo e o fim que persegue em conformidade a ela, nunca pode mudar por ação exterior sobre ele, via instrução, do contrário, poderíamos recriá-lo.”

a uma juventude arrebatada, selvagem, pode seguir-se uma idade madura, ordenada e judiciosa.”

no começo somos todos inocentes, e isto apenas significa que nem nós, nem os outros, conhecemos o mal de nossa própria natureza (…) Ao fim, nos conhecemos de maneira completamente diferente do que a priori nos considerávamos, e então amiúde nos espantamos conosco mesmos.

ARREPENDIMENTO nunca se origina da Vontade ter mudado (algo impossível), mas de o conhecimento ter mudado.”

para enganar a si mesmas, as pessoas fingem precipitações aparentes, que em realidade são ações secretamente ponderadas. Porém mediante tais truques sutis não enganamos nem adulamos ninguém, senão a nós mesmos.”

O peso de consciência em relação a atos já cometidos não é arrependimento, mas dor sobre o conhecimento de nosso si mesmo

pensamentos abstratos. São estes que amiúde nos são insuportáveis, criam tormentos, em comparação com os quais o sofrimento do mundo animal é bastante pequeno.”

seria esforço vão trabalhar numa melhora do próprio caráter (…) sendo preferível submeter-se ao fatídico, entregando-se a toda inclinação, mesmo as más.”

Ao lado do caráter inteligível e do empírico, deve-se ainda mencionar um terceiro, diferente dos dois anteriores, a saber, o CARÁTER ADQUIRIDO, o qual se obtém na vida pelo comércio com o mundo e ao qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou se a censura por não o ter.” Schopenhauer só se complica tentando aperfeiçoar seu sistema e acrescentar cada vez mais coisas. Se ele tivesse feito uma obra bem menor, seria um clássico imortal da filosofia, coisa que quase já é, sem reparos a acrescentar! Não existem 2 caráteres, muito menos 3!

Ora, se a pessoa segue apenas as aspirações que são conformes ao seu caráter, sente, em certos momentos e disposições particulares, estímulo para aspirações exatamente contrárias e incompatíveis entre si: nesse sentido, se quiser seguir aquelas primeiras sem incômodo, estas últimas têm de ser completamente refreadas.” “assim como, de acordo com a doutrina do direito de Hobbes, cada um de nós tem originariamente o direito a todas as coisas, mas não o exclusivo a cada uma delas, e no entanto se pode obter o direito exclusivo a coisas individuais renunciando-se ao direito a todas as demais, enquanto os outros fazem o mesmo em relação ao que escolheram; exatamente assim também se passa na vida, quando só podemos seguir com seriedade e sucesso alguma aspiração determinada, seja por prazer, honra, riqueza, ciência, arte ou virtude, após descartarmos todas as aspirações que lhe são estranhas, renunciando a tudo o mais.”

embora (…) siga o próprio caminho guiado por seu demônio interior (…) a muitos invejará em virtude de posição e condição que, no entanto, convêm exclusivamente ao caráter deles, não ao seu, e nas quais se sentiria antes infeliz, até mesmo sem as conseguir suportar. Pois assim como o peixe só se sente bem na água, o pássaro no ar, a toupeira debaixo da terra, todo homem só se sente bem na sua atmosfera apropriada.”

muitos fazem os mais diversos e fracassados tipos de tentativa, violam o próprio caráter no particular e ainda têm de se render novamente a ele no todo: aquilo que conseguem tão penosamente contra a própria natureza não lhes dá prazer algum. O que assim aprendem permanece morto. Até mesmo do ponto de vista ético, um ato demasiado nobre para o seu caráter e nascido não de um impulso puro, imediato, mas de um concerto, de um dogma, perderá todo o mérito até mesmo aos seus olhos num posterior arrependimento egoístico.”

Assim como só pela experiência nos tornamos cônscios da inflexibilidade do caráter alheio e até então acreditávamos de modo pueril poder através de representações abstratas, pedidos e súplicas, exemplos e nobreza de caráter fazê-lo abandonar seu caminho, mudar seu modo de agir, despedir-se de seu modo de pensar, ou até mesmo ampliar suas capacidades; assim também se passa conosco.” “Conhecemos, portanto, o gênero e a medida de nossos poderes e fraquezas, economizando assim muita dor.” Guardaremo-nos de tentar aquilo que não nos permitirá ser bem-sucedidos.” “Amiúde alguém assim partilhará a alegria em sentir seus poderes e raramente experimentará a dor em ser lembrado de suas fraquezas, o que se chama humilhação” “Eis por que nada é mais salutar para nossa tranqüilidade de ânimo que a consideração do já-acontecido a partir do ponto de vista da necessidade, de onde todos os acasos aparecem como instrumentos de um destino soberano.”

A ESTAGNAÇÃO SCHOPENHAUER-CAMUS: “O desenvolvimento mais claro de tudo isso, o tema capital deste último livro, foi-nos preparado e facilitado pelas considerações entrementes expostas sobre liberdade, necessidade e caráter. Porém, tais considerações se tornarão ainda mais claras após as termos colocado novamente e dirigirmos nosso olhar para a vida mesma, cujo querer ou não-querer é a grande questão” A vida só quer.

De modo algum o tédio é um mal a ser desprezado; por fim ele pinta verdadeiro desespero no rosto.” “Também em toda parte, por meio da prudência estatal, são implementadas medidas públicas contra o tédio, como contra outras calamidades universais; porque esse mal, tanto quanto seu extremo oposto, a fome, pode impulsionar o homem aos maiores excessos: o povo precisa panem et circenses. O rígido sistema penitenciário da Filadélfia torna, pela solidão e inatividade, o mero tédio um instrumento de punição (…) Na vida civil, o tédio é representado pelo domingo, e a necessidade pelos 6 dias da semana.” “Quando desejo e satisfação se alternam em intervalos não muito curtos nem muito longos, o sofrimento ocasionado por eles é diminuído ao mais baixo grau, fazendo o decurso de vida o mais feliz possível.”

os obtusos: (…) para a maioria dos homens, as fruições intelectuais são inacessíveis. Eles são quase incapazes de alegria no puro conhecimento: estão completamente entregues ao querer.”

os jogos de carta, que, no sentido mais próprio do termo, são a expressão do lado deplorável da humanidade.” Entender como nossos jogos de azar.

Os esforços infindáveis para acabar com o sofrimento só conseguem a simples mudança da sua figura, que é originariamente carência, necessidade, preocupação com a conservação da vida. Se, o que é muito difícil, obtém-se sucesso ao reprimir a dor nesta figura, logo ela ressurge em cena, em milhares de outras formas (variando de acordo com a idade e as circunstâncias), como impulso sexual, amor apaixonado, ciúme, inveja, ódio, angústia, ambição, avareza, doença, etc. Finalmente, caso não ache a entrada em nenhuma outra figura, assume a roupagem triste, cinza do fastio e do tédio, contra os quais todos os meios são tentados. Mesmo se em última instância se consegue afugentar a estes, dificilmente isso ocorrerá sem que a dor assuma uma das figuras anteriores, e assim a dança recomeça do início, pois entre dor e tédio, daqui para acolá, é atirada a vida do homem.”

uma convicção viva produzirá um grau significativo de equanimidade estóica, e reduzirá consideravelmente a preocupação angustiada acerca do próprio bem-estar. Contudo, em realidade um tal controle tão poderoso da razão sobre o sofrimento imediatamente sentido raramente ou nunca é encontrado.”

a paradoxal mas não absurda hipótese de que em cada indivíduo a medida da dor que lhe é essencial se encontraria para sempre determinada através de sua natureza

grandes sofrimentos tornam todos os pequenos totalmente insensíveis e, ao inverso, na ausência de grandes sofrimentos até mesmo as menores contrariedades nos irritam e atormentam (…) quando uma grande infelicidade, cujo mero pensamento antes nos estremecia, de fato ocorre, nossa disposição permanece no todo inalterável após a imediata superação da primeira dor; por outro lado, logo após o aparecimento de uma felicidade longamente ansiada, não nos sentimos no todo e duradouramente muito melhores ou mais contentes do que antes.”

CONCORDE COM GRODDECK, O PAI DA PSICOSSOMÁTICA: “o motivo externo de tristeza não passa daquilo que para o corpo é um vesicatório,¹ o qual atrai para si todos os humores ruins que, do contrário, espalhar-se-iam pelo organismo. A dor encontrada em nosso ser nesse período de tempo, e portanto inevitável, seria, sem as causas exteriores determinadas do sofrimento, repartida em centenas de pontos, aparecendo na figura de centenas de outras contrariedades ou caprichos sobre coisas que agora ignoramos inteiramente”

¹ “Que faz nascer bolhas na pele” (para combater um mal maior).

tanto o júbilo quanto a dor excessivos se fundam sempre sobre um erro ou um engano: conseqüentemente, essas duas tensões excessivas da mente podem ser evitadas por intelecção.” “A ética estóica empenhava-se sobretudo por livrar a mente de todo esse engano e suas conseqüências”

E assim se passam as coisas, ao infinito, ou, o que é mais raro e pressupõe uma certa força de caráter, até que encontremos um desejo que não pode ser satisfeito nem suprimido: então, por assim dizer, temos aquilo que procurávamos, a saber, algo que a todo momento poderíamos acusar, em vez do nosso próprio ser, como a fonte dos sofrimentos, que nos divorcia de nossa sorte, porém nos reconcilia com a nossa existência, na medida em que novamente temos conhecimento de que, a ela mesma, o sofrimento é essencial e a satisfação verdadeira é impossível. A conseqüência dessa última forma de desenvolvimento é uma certa disposição melancólica, o sustento contínuo de uma única, grande dor, que faz desdenhar todos os sofrimentos ou alegrias pequenos; por conseguinte um fenômeno muito mais digno que a frenética correria por sempre novas formas de ilusão, coisa muito mais usual.”

É sempre uma exceção se um semelhante decurso de vida sofre uma interferência e, devido a um conhecer independente do serviço da vontade e direcionado à essência do mundo em geral, conduz à demanda pela contemplação estética ou à demanda pela renúncia ética.” Schopenahuer confunde: onde advém a contemplação, não é certo que deva haver renúncia ética (à ação). Nem onde há participação coletiva há necessariamente sua presença. Além disso, aquilo que é independente da Vontade, e portanto se escora exclusivamente no fenômeno, certamente se interessa pelas coisas do mundo, de forma ativa, não-contemplativa. Um estóico que descobrisse a Vontade antes de Sch. estaria além do envolvimento ou contemplação (gozo) estético, e, aí sim, sem dúvida, seria o perfeito indiferente ético. Porém essa figura é utópica.

A justiça eterna furta-se ao olhar turvado pelo conhecimento que segue o princípio de razão, o principium individuationis. (…) Vê o homem mau, após perfídias e crueldades de todo tipo, viver em alegria e deixar o mundo sem ser incomodado. Vê o oprimido arrastar-se numa vida cheia de sofrimento, até o seu fim, sem que apareça um vingador ou retaliador. Mas só conceberá e aprenderá a justiça eterna quem se elevar por sobre o conhecimento que segue o fio condutor do princípio de razão, atado às coisas particulares; assim fazendo, conhece as Idéias [a Vontade; vide 4.], vê através do principium individuationis e percebe que as formas do fenômeno não concernem à coisa-em-si. É só uma pessoa assim que, em virtude desse mesmo conhecimento, pode compreender a essência verdadeira da virtude

EXPLICITAÇÃO DA FÓRMULA DO NIILISMO NEGATIVO: “podemos, metafórica e figurativamente, chamar a total auto-supressão e negação da Vontade, sua verdadeira ausência, unicamente o que acalma e cessa o ímpeto da Vontade para todo o sempre” “podemos chamar essa total auto-supressão e negação da Vontade de bem absoluto, summum bonum, e vê-la como o único e radical meio de cura da doença [a existência mesma] contra a qual todos os outros meios são anódinos, meros paliativos.”

mediante a moral e o conhecimento abstrato em geral, nenhuma virtude autêntica pode fazer efeito, mas esta tem de brotar do conhecimento intuitivo, [temperamento, caráter] o qual reconhece no outro indivíduo a mesma essência que a própria.” “pode-se tão pouco formar um virtuoso por meio de discursos morais e sermões quanto formar um único poeta com todas as estéticas desde Aristóteles.”

Seria em realidade muito funesto se a principal coisa da vida humana, o seu valor ético, válido pela eternidade, dependesse de algo cuja obtenção está submetida tão ao acaso quanto os dogmas, as crenças religiosas, os filosofemas.”¹ “Decerto os dogmas podem ter uma forte influência sobre a CONDUTA, sobre os atos exteriores, assim como o têm o hábito e o exemplo (neste último caso porque o homem ordinário não confia em seu juízo, de cuja fraqueza está consciente, seguindo apenas a experiência própria ou de outrem); mas com isso a disposição de caráter não mudou. (…) Todo conhecimento comunicável só pode fazer efeito sobre a vontade exclusivamente como motivo. (…) o que o homem verdadeiramente e em geral quer sempre permanece o mesmo. Se adquirir outros pensamentos, foi meramente sobre as vias para alcançar esse fim; motivos imaginários podem guiá-lo como se fossem reais.”

¹ Aqui vale lembrar: Gustave Le Bon tampouco foi um pioneiro.

Eis por que quase nunca podemos julgar com acerto moral os atos de outrem e raras vezes os nossos. – Os atos e as maneiras de agir de um indivíduo e de um povo podem ser bastante modificados por dogmas, pelo exemplo e pelo hábito. Porém, em si, todos os atos (opera operata) são meras imagens vazias; só a disposição de caráter que conduz a eles fornece-lhes sentido moral. Este, por sua vez, pode em realidade ser o mesmo, apesar da diversidade exterior dos fenômenos. Com grau igual de maldade um homem pode morrer na guilhotina e outro pacificamente no regaço de seus parentes. Pode ser o mesmo grau de maldade o que se expressa em UM povo nos traços crus do assassino e do canibalismo, e em OUTRO fina e delicadamente in miniature nas intrigas da côrte.”

O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório, reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo”

O direito do homem à vida e à força dos animais baseia-se no fato de que, com o aumento da clareza de consciência, cresce em igual medida o sofrimento, e a dor, que o animal sofre através da morte e do trabalho, não é tão grande quanto aquela que o homem sofreria com a privação de carne ou de força do animal. O homem, pois, na afirmação de sua existência, pode ir até a negação da existência do animal, e a Vontade de vida no todo suporta aí menos sofrimento que no caso inverso. Isso ao mesmo tempo determina o grau de uso que se pode fazer das forças animais sem cometer injustiça, o que, entretanto, é freqüentemente desrespeitado, particularmente em relação aos animais de carga e aos cães de caça; contra o quê, portanto, a sociedade protetora dos animais em especial orienta sua atividade. Aquele direito do homem, na minha opinião, não se estende à vivissecção, sobretudo em animais superiores. Já o inseto não sofre tanto através da sua morte quanto o homem sofre com a sua picada. – Isto os hindus não o perceberam.” “Parece até mesmo que a difícil passagem da Bíblia, Romanos 8:21-24, pode ser interpretada nesse sentido.”

o estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade (…) [E seu oposto:] As promessas da esperança, as adulações do tempo presente, a doçura dos gozos, o bem-estar que fazem a nossa pessoa partícipe da penúria de um mundo sofrente sob o império do acaso e do erro atraem-nos novamente ao mundo e reforçam os nossos laços de ligação com ele.”

Sua Vontade se vira; ela não mais afirma a própria essência espelhada no fenômeno, mas a nega. (…) a transição da virtude à ASCESE.”

Quem atingiu o 2º patamar ainda sempre sente – como corpo animado pela vida, fenômeno concreto da Vontade – uma tendência natural à volição de todo tipo, porém a refreia intencionalmente, ao compelir a si mesmo a nada fazer do que em realidade gostaria de fazer: ao contrário, faz tudo o que não gostaria de fazer, mesmo se isto não tiver nenhum outro fim senão justamente o de servir à mortificação da Vontade.” Nesse ‘estágio’ “o lado doce da vida” fica eternamente trancado – porém reavivado com persistência – dentro dos sonhos.

ISSO ESTÁ PARA ALÉM DO ESTÓICO (UTÓPICO ALÉM DO UTÓPICO): “todo sofrimento exterior trazido por acaso ou maldade, cada injúria, cada ignomínia, cada dano são-lhe bem-vindos. Recebe-os alegremente como ocasião para dar a si mesmo a certeza de que não mais afirma a Vontade, mas alegremente toma partido de cada inimigo fenomênico da Vontade, inimigo esse que é a sua própria pessoa.” Talvez, portanto, quando diz “dar a outra face”, o Evangelho seja mais impraticável que o próprio estoicismo, tido tantas vezes como um Sermão da Montanha exagerado…

SUPERVALORIZAÇÃO? “sua obra-prima imortal Fausto, exposição essa ao meu ver inigualável poeticamente, na história do sofrimento de Gretchen. Esta é um perfeito modelo do segundo caminho que conduz à negação da Vontade, não, como o primeiro, pelo mero conhecimento adquirido livremente do sofrer de um mundo inteiro, mas através da dor excessiva sentida na própria pessoa.” Schopenhauer às vezes parece um garoto que tudo vê pelas lentes de sua idéia fixa. Mas todos os filósofos devem ser crianças, em grau menor ou maior!

Um caráter deveras nobre é sempre pensado por nós com um certo traço de tristeza silenciosa, que de modo algum se deve ao constante desgosto ligado às contrariedades cotidianas (este seria antes um traço ignóbil e faria temer uma disposição má de caráter mau).”

a negação da Vontade de vida, ou – é o mesmo – a resignação completa

Ora, como em conseqüência de tal efeito da graça toda a essência do homem é radicalmente mudada e revertida, de tal forma que ele nada quer do que até então veementemente queria, logo, em conseqüência do efeito da graça, RENASCIMENTO. Pois o que ela chama de HOMEM NATURAL, a quem nega toda capacidade para o bem, é justamente a Vontade de vida – que tem de ser negada, caso a redenção de uma existência como a nossa deva ser alcançada. Em realidade, por trás da nossa existência encrava-se algo outro, só acessível caso nos livremos do mundo.” Um papel lamentável de carrasco, senhor Último Homem! Essencialmente, um Platão insatisfeito… Em seguida seu “trunfo” é citar Romanos 8:3, como se ainda estivéssemos na idade média e não no século XIX!

CIRCUNSTÂNCIA X CONSTÂNCIA, CARÁTER X APARÊNCIA, ESSÊNCIA X SUPERFÍCIE, DOR E PRAZER CONTRA O INCONSCIENTE OU GÊNIO PESSOAL: “Se, por exemplo, sozinhos conosco mesmos, pensamos sobre nossas circunstâncias mais pessoais e, eventualmente, representamos vivamente e no nosso presente imediato a ameaça de um perigo verossímil e a possibilidade de um desfecho trágico após sua ocorrência, logo a ansiedade se produz, comprimindo nosso coração, diminuindo a circulação do sangue nas veias. Mas se, logo em seguida, nosso intelecto passa de uma possibilidade indesejada para seu oposto, dando asas à imaginação e livre curso a esperanças e alegrias longamente cultivadas, nosso pulso se acelera novamente, o sangue corre impetuoso e o coração se sente leve como uma pluma, pelo menos até o intelecto acordar de seu devaneio. Suponha então que uma ocasião suscite à memória insultos e agravos sofridos muito tempo atrás: de supetão, a raiva e o amargor encherão nosso peito, que há um segundo estava imerso em tranqüilidade. Imagine também que venha à tona, por acidente, a imagem de um antigo amor, agora perdido, carregando consigo toda a cadeia de pensamentos a ele atrelada: todas as nuances do romance uma vez vivido, seus momentos mais mágicos em relevo; essa raiva que havia brotado de súbito dará lugar instantaneamente a um profundo pesar e à melancolia. E, finalmente, se nos ocorre algum incidente humilhante e vexatório, afundamos e desmilingüimos de pronto. Gostaríamos de desaparecer da vista de todos, e da nossa mesma. Ruborizamos, acanhados. Nossa reação mais natural é tentar distrair o espírito emitindo alguma exclamação, como se fosse para espantar um espírito mau. Vê-se que o intelecto joga, brinca, manipula: a Vontade apenas dança conforme a música. Sim, o intelecto é o maestro dessa composição,¹ e faz a Vontade representar o papel duma criança jogada de um lado para outro em cenários de dor e prazer, de exuberância e de pavor alternados, conforme uma babá que conta uma estória bem variada, multifacetada e envolvente. Isso só é possível porque a Vontade existe por si mesma sem conhecimento, e nossa faculdade do entendimento, [o a priori kantiano] uma vez aplicada a ela, não dispõe, por si mesma, de uma <Vontade>. Assim, parece que a primeira é uma eterna marionete, a última um titereiro, único canal para a manifestação dos motivos dos movimentos do boneco.

[¹ Talvez apenas no homem fraco, vencido?]

Em que pese esse esquema desalentador, a primazia última da Vontade se torna uma certeza absoluta no juízo do analista perspicaz e insistente, isto é, do homem que conquista um certo autodomínio e procede à reversão desta Vontade: [autodomínio: subjugação do intelecto, pois ele é naturalmente incontrolável, e a Vontade é que deve sobrepujá-lo por completo, deixar de ser só a carroça!] de joguete do intelecto, a Vontade passa em última instância a exercer importantes proibições ao intelecto (à imaginação). [Mas esta disciplina schopenhaueriana parece ainda muito fraca diante do que tenho em mente quando falo da verdadeira supremacia da Vontade sobre a cognição!] Associações inteiras de idéias são em última instância bloqueadas. É um aprendizado derivado do próprio intelecto, [e por isso tão limitado] utilizável pela Vontade. O sujeito, após repetidas teatralizações e recorrências do mesmo vendaval de sentimentos, chega à conclusão de que, deixado desimpedido, o intelecto despertaria emoções nem sempre interessantes à Vontade, como as circunstâncias debilitantes descritas mais acima. Neste ponto – e só neste ponto –, ocorre uma inflexão, análoga ao do cavaleiro sobre a cavalgadura. É bem esse o vocabulário: a Vontade toma as rédeas, e dirige o intelecto a fim de evitar, doravante, certas estradas e paisagens já conhecidas e indesejadas. A princípio essa reviravolta de marionete em cavaleiro parece fantástica, mas todo aquele que já sentiu o vigor do impulso inicial da Vontade decidida em empreender essa torção sabe que a continuidade do processo ocorre mais por inércia do que por esforço continuado: o essencial é a decisão original da Vontade em virar o jogo e inverter os papéis.² A resistência nesse novo jogo de jóquei não provém do intelecto, como se poderia pensar, pois a imaginação do sujeito se conserva eternamente indiferente às emoções – a resistência vem da própria Vontade, quando não decidida o suficiente. A Vontade é sempre instável e oscilante, [não seria o intelecto? e o intelecto que deixa a Vontade assim?] e terá, ora mais ora menos, certa inclinação ou propensão a uma determinada variante de representações coerentes entre si. Jamais as inclinações da Vontade deixarão de ser ambíguas num certo grau, porque a Vontade em si mesma, impossível de ser ‘flagrada’ diretamente, se apresentará ao sujeito (a Si mesmo, à Vontade mesma, por intermédio do intelecto, que a interpreta) ora sob um aspecto em que exalta e endeusa uma idéia, ora sob um outro aspecto em que abomina e odeia esta mesma idéia – como que por capricho. O que move a Vontade é um interesse não-valorativo, i.e., tal coisa instiga, excita a Vontade – não interessa o prazer ou o desprazer desta excitação em si mesma. O conhecimento abstrato – o intelecto – do sujeito é que revelará, com o passar do tempo, que determinada representação ou idéia seguirá ‘atormentando’ o sujeito, sem meta clara nem qualquer lógica.³ Então por que um teatro tão exaustivo? Em conformidade com o aprendizado do conhecimento abstrato, a Vontade dirigirá sua propensão a evitar ao máximo a sensação do tormento, [mas deveria apenas ignorá-lo!] de modo a dirigir com mais sentido sua ‘busca’ ou ‘atuação’. É assim, mediante as próprias descobertas, que o intelecto abstrato acaba sendo compelido a colaborar mais e mais com a Vontade, que antes submetia por completo. Na linguagem das ruas, a aquisição desta sabedoria e desta capacidade de torná-la prática e configuradora do caráter individual é o que se chamaria <tornar-se o senhor de si mesmo>. [ou tornar-se o que se é] Não há dúvida de que o senhor desta frase é a Vontade, e o servo (o si mesmo) é o intelecto. É sempre a Vontade que prevalece[ria] no homem que se desenvolve até a última instância, [o homem redimido, transvalorado] sendo seu verdadeiro núcleo, o íntimo do Ser mesmo.”

² Isso é o mesmo que o salto da fé de Kierkegaard.

³ Cf. o protagonista de O Eterno marido, de Dostoievski.

Eu não acredito que Baltasar Gracián estava correto quando disse (Discreto, p. 406), <Não há simplório que não seja malicioso>, embora ele tenha o provérbio espanhol em seu favor: <Nunca a necedade caminhou sem malícia>. Porém, pode acontecer de muitas pessoas estúpidas se tornarem maliciosas pela mesma razão de muitos corcundas, por amargor diante da negligência sofrida em face da natureza, e porque elas pensam poder, eventualmente, compensar aquilo de que prescindem (entendimento) através da esperteza e astúcia, procurando assim ligeiros triunfos. Sob essa luz, a propósito, torna-se compreensível porque quase todo mundo se torna malicioso na presença de uma natureza muito superior.” “Grande superioridade intelectual isola mais do que qualquer outra coisa, e faz do homem em questão, nem que apenas veladamente, odiado. É o contrário disso que faz pessoas estúpidas tão queridas no geral; especialmente quando muitos só conseguem ver nelas aquilo que tanto procuram (distanciar-se de grandes espíritos).”

Se um homem é tolo, perdoamo-lo alegando que ele não tem culpa; mas, na hora de desculpar um homem maligno, recorrer à falta de culpa seria o mesmo que se tornar objeto do riso geral. E ainda assim tanto uma coisa quanto a outra, a tolice e a maldade, são inatas. Mas isso serve para provar mais uma vez que a Vontade é o homem propriamente falando, e que o intelecto é uma mera ferramenta.”

Se, olhando para fora de nós, refletimos que há vita brevis, ars longa, [vida breve, arte¹ longa] e consideramos como as mais belas e maiores mentes, o mais das vezes antes mesmo ou logo após atingirem seu platô, e os maiores mestres, não muito tempo após chegarem ao domínio pleno de sua ciência, são logo varridos da existência, recebemos essa confirmação: que o sentido e o propósito da vida não é intelectual, mas moral.”

¹ Trabalho ou desempenho de alguma atividade, i.e., em latim esta palavra assume uma conotação bem mais ampla. No final, a frase quer dizer: pouco tempo para muito o que fazer e aprimorar.

o intelecto sofre mudanças muito consideráveis com o tempo, enquanto que a vontade e o caráter remanescem intocados por ele.”

O avanço da idade, que gradualmente consome os poderes do intelecto, deixa as qualidades morais intocadas. (…) malícia, despeito, avareza, dureza de coração, infidelidade, egoísmo e vilezas de todo tipo se mantêm, e justamente pelo novo contraste se tornam muito mais aparentes.”

Um enigma é resolvido, um enigma tão velho quanto o próprio mundo, simplesmente porque esse tempo todo ele estava sendo analisado de cabeça para baixo. A liberdade persistentemente buscada no Operari, [ação, por extensão fenômeno] a necessidade no Esse. [ser] (…) [no meu sistema,] a liberdade é transferida para o Esse, e a necessidade limitada ao Operari.” “Para salvar a liberdade do destino e da sorte, ela teve de ser transferida da ação para a existência.” Nasce aqui formalmente o existencialismo, pois todas as condições já estão postas para Nietzsche, Husserl, Heidegger e Sartre o desenvolverem posteriormente.

Inclinação é toda forte suscetibilidade da vontade a motivos de certo jaez. Paixão é uma inclinação tão poderosa que os motivos que a excitam exercem um poder sobre a vontade, que é mais forte que o poder de qualquer motivo possível que poderia se opor ao primeiro; destarte, seu domínio sobre a vontade se torna absoluto, [confuuuuuuuuso – isto é a própria vontade! e pior: a vontade desintelectualizada, ou seja, nua e crua] e conseqüentemente, com referência à paixão, a vontade é passiva ou sofrimento.¹ Deve ser ressalvado, entretanto, que é raro que as paixões atinjam tal grau em que se as possa chamar conforme meu conceito. O mais das vezes afetos ganham o nome de paixões meramente por aproximação nuançada: nesse estágio mais assíduo das paixões, há ainda contra-motivos atuantes para, ao menos, restringir o efeito passional, que às vezes não pode mesmo ser distinguido pela consciência (paixão fraca).”

¹ Eis que Schopenhauer involuntariamente descobriu a fuga final, desta vez uma que funciona: viver apaixonado!

O TUDO É PERMITIDO (DOSTOIEVSKI) AVANT LA LETTRE E SUA SUPERAÇÃO: “Depois de ser desmerecidamente negligenciado por mais de um século, Spinoza foi, em geral, superestimado neste século pela reação causada pelo efeito do vaivém do pêndulo da opinião. Todo panteísmo deve necessariamente ser descartado em prol das demandas inevitáveis da ética, e depois pelo mal e sofrimento do mundo. Se o mundo é uma teofania, então tudo que o homem, ou mesmo o animal, faz é igualmente divino e excelente; nada pode ser censurável, e nada pode ser mais enaltecido que o restante: destarte, inexiste ética.

Um homem que assimilasse firmemente em seu modo de pensar as verdades até agora referidas e, ao mesmo tempo, não tivesse chegado a conhecer por experiência própria ou por uma intelecção mais ampla que o sofrimento contínuo é essencial a toda a vida; e na vida encontrasse satisfação e de bom grado nela se deleitasse, e, ainda, por calma ponderação, desejasse que o decurso de sua vida, tal qual até então foi experimentado, devesse ser de duração infinda ou de retorno sempre novo; cujo ânimo vital fosse tão grande que, no retorno dos gozos da vida, de boa vontade e com prazer assumisse as suas deficiências e tormentos aos quais está submetido; um tal homem, ia dizer, se situaria ‘com firmes, resistentes ossos sobre o arredondado e duradouro solo da terra’ e nada teria a temer. Armado com o conhecimento que lhe conferimos, veria com indiferença a morte voando em sua direção nas asas do tempo, considerando-a como uma falsa aparência, um fantasma impotente, amedrontador para os fracos, mas sem poder algum sobre si, que sabe: ele mesmo é a Vontade, da qual o mundo inteiro é objetivação ou cópia; ele, assim, tem não só uma vida certa mas também o presente por todo o tempo, presente que é propriamente a forma única do fenômeno da Vontade; portanto, nenhum passado ou futuro infinitos, no qual não existiria, pode lhe amedrontar, pois considera a estes como uma miragem vazia e um Véu de Maia. Por conseguinte, teria tão pouco temor da morte quanto o sol tem da noite. – No Bhagavad-Gita Krishna coloca seu noviço Arjuna nesse ponto de vista, quando este, cheio de desgosto (parecido a Xerxes) pela visão dos exércitos prontos para o combate, perde a coragem e quer evitar a luta, a fim de evitar o sucumbir de tantos milhares. É quando Krishna o conduz a esse ponto de vista, e, assim, a morte daqueles milhares não o pode mais deter: dá então o sinal para a batalha.”

3.4.1 A VIDA DO HOMEM SANTO

Portanto, aqui talvez tenhamos pela 1ª vez expresso abstratamente e purificado de todo elemento mítico a essência íntima da santidade, da auto-abnegação, da mortificação da vontade própria, da ascese como NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA que entra em cena após o conhecimento acabado de sua essência ter-se tornado o quietivo de todo querer.”

Desenvolvem escrúpulos de consciência em cada prazer inocente ou em cada pequena agitação da própria vaidade, a qual também morre por último, e, entre todas as inclinações do homem, é a mais difícil de destruir, a mais ativa e a mais tola. – Sob o termo, por mim já amiúde empregado, de ASCESE, entendo no seu sentido estrito essa quebra PROPOSITAL da Vontade pela recusa do agradável e a procura do desagradável, mediante o modo de vida penitente voluntariamente escolhido e a autocastidade, tendo em vista a mortificação contínua da Vontade.”

O grau supremo dessa justiça de disposição – sempre associada à autêntica bondade, sendo que o caráter desta não é mais meramente negativo – vai tão longe que a pessoa pode até questionar o próprio direito à propriedade herdada e assim desejar manter o seu corpo apenas com as próprias forças, espirituais ou físicas, sentindo todo serviço prestado por outros, todo luxo, como uma repreenda, inclusive podendo entregar-se por fim à pobreza voluntária. Desse modo, vemos PASCAL, após assumir orientação ascética, não mais querer serviços de ninguém, apesar dos seus vários serviçais; e, em que pesasse sua doença crônica, fazia a própria cama e buscava a refeição na cozinha, etc. (Vie de Pascal par sa soeur, p. 19).” Uau, que independente esse Pascal!

Um santo pode estar convencido das mais absurdas superstições, ou, ao contrário, ser um filósofo; é indiferente. Apenas a sua conduta o evidencia como santo.”

A literatura indiana, a julgar pelo pouco que podemos conhecer do até agora traduzido, é bastante rica em descrições da vida dos santos e penitentes, chamados samanas, saniasis, etc.” “Também entre os cristãos não faltam casos em favor das elucidações aqui intentadas. Leiam-se as, na maioria das vezes, pessimamente escritas biografias daquelas pessoas denominadas almas santas ou pietistas, quietistas, entusiastas pios, etc. Coleções dessas biografias foram feitas em várias épocas, como a Vida das almas santas de Tersteegen, a História dos renascidos de Reiz. Em nossos dias confira-se a coleção de Kanne que, misturada ao muito de ruim, contém várias coisas boas, entre as quais a Vida da Beata Sturmin. A essa categoria pertence por inteiro a vida de São Francisco de Assis, verdadeira personificação da ascese e modelo de todos os monges mendicantes. (…) Vita S. Francisci a S. Bonaventura concinnata (Soest, 1847). (…) Histoire de S. François d’Assise, par Chavin de Mallan (1845). (…) Spence Hardy: Eastern monachism, an account of the order of mendicants, founded by Gotama Budha (1850) (…) recomendo a autobiografia de Madame de Guion, esta bela e grandiosa alma, cuja lembrança sempre me enche de reverência, que deve ser gratificante a todo espírito nobre conhecer, e fazer justiça à excelência de sua disposição de caráter, vendo com indulgência as superstições de sua razão, apesar de saber que, às pessoas de espírito comum, i.e., a maioria, aquele livro sempre terá um péssimo crédito, pois em geral e em toda parte cada um só pode apreciar aquilo que lhe é de algum modo análogo (…) a conhecida biografia de Spinoza, se usarmos como chave para ela a sua excelente introdução ao deficiente ensaio De emendatione intellectus; pois se trata do intróito mais eficiente que conheço como calmante para a tempestade das paixões (…) inclusive Goethe, por mais grego que fosse, não considerou indigno de sua pena mostrar-nos esse lado mais belo da humanidade, em límpido espelho da poesia, quando expôs de forma idealizada a vida da senhorita Klettenberg, em Confissões de uma bela alma.”

as descrições da vida dos homens santos e auto-abnegados são para o filósofo – apesar de na maioria das vezes serem muito mal-escritas e narradas com uma mescla de superstição e absurdo –, devido ao significado de seu estofo, incomparavelmente mais instrutivas e importantes até mesmo que Plutarco e Lívio.”

Mateus 16:24-25; Marcos 8:34-35; Lucas 9:23-24, 14:26-27 e 14:33. Essa tendência foi gradativamente desenvolvida e deu origem aos penitentes, aos anacoretas, aos monges”

Teologia alemã, da qual Lutero diz, no prefácio a ela aditado, que de nenhum livro, excetuando-se a Bíblia e Agostinho, mais aprendeu o que seja Deus, Cristo e o homem.” Prequel da Ideologia alemã? Hahaha.

Entretanto, esta consideração é a única que nos pode consolar duradouramente, quando, de um lado, reconhecemos que sofrimento incurável e tormento sem fim são essenciais ao fenômeno da Vontade, ao mundo e, de outro, vemos, pela Vontade suprimida, o mundo desaparecer e pairar diante de nós apenas o nada.” C0nstrução linguística infeliz, porque insuficiente, porque demonstrativa do não-resultado ou do resultado aquém do esperado que a filosofia da representação e da Vontade de Schopenhauer manejou conquistar: quietivo tímido da vontade, mesmo para indivíduos santos, nada de supressão, a não ser de maneira hiper-figurada. Qual é a utilidade da filosofia schopenhaueriana, pois? Não epistemológica, sem dúvida; apenas ética, como espécie de prolegômenos para a vida prática (nem se pode chamar de ‘guia’ o que não contem senão uma base precária em direção a uma). Uma ética de não levar a existência demasiado a sério e, portanto, bastante limitada, em que pese realista. Com efeito, limitada porque realista. Esta citação também é a frase final do livro.

O próprio tradutor achou necessário acrescentar em nota de rodapé ao último parágrafo: “a linguagem fracassa nesse momento final de sua filosofia”. Por que outro motivo haveria de fazê-lo senão porque o empreendimento schopenhaueriano deixou a desejar?

Ressalva: nada destas minhas críticas incisivas e mordazes diminui a importância do autor no panorama filosófico ocidental, pois ele foi continuado por outros pensadores e sua noção de Vontade segue tendo uma repercussão tremenda.

4. O FILÓSOFO QUE COMPREENDEU PLATÃO A MEIAS: POR QUE A IDÉIA DE PLATÃO DEVE SER LIDA COMO A ANTI-IDÉIA POR EXCELÊNCIA, I.E., COMO VONTADE, ASSIM ENUNCIADA DESDE A ANTIGUIDADE

os GRAUS DE OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, ia dizer, não são outra coisa senão as IDÉIAS DE PLATÃO.” “Se para nós a Vontade é a COISA-EM-SI e as IDÉIAS a sua objetidade imediata num grau determinado, encontramos, todavia, a coisa-em-si de Kant e a Idéia de Platão – único que verdadeiramente é –, estes dois grandes e obscuros paradoxos dos dois maiores filósofos do Ocidente, de fato não como idênticas, mas como intimamente aparentadas e diferentes apenas em uma única determinação.”

Platão diz o seguinte:

(…) Sim, cada um veria inclusive a si mesmo e aos outros apenas como sombras na parede à frente. Sua sabedoria, então, consistiria em predizer aquela sucessão de sombras apreendida na experiência. Ao contrário, apenas as imagens arquetípicas reais daquelas sombras, as Idéias eternas, formas arquetípicas de todas as coisas, é que podem ser ditas verdadeiras, pois elas SEMPRE SÃO, MAS NUNCA VÊM-A-SER. [Aqui parou Kant] A elas não convém PLURALIDADE, pois cada uma, conforme sua essência, é una, já que é a imagem arquetípica mesma, cujas cópias ou sombras são as coisas efêmeras isoladas da mesma espécie e de igual nome.”

Platão não chegou a essa expressão superior e só indiretamente pôde isentar as Idéias dessas formas, na medida em que nega às Idéias o que só é possível por elas, a saber, pluralidade do igual, nascer e perecer.”

só a Idéia é a mais ADEQUADA OBJETIDADE possível da Vontade ou coisa-em-si; é a própria coisa-em-si, apenas sob a forma da representação” Interpretação platônica desautorizada!

O tempo é meramente a visão esparsa e fragmentada que um ser individual tem das Idéias, as quais estão fora do tempo, [Como representação? Por isso o grifo verde acima em ‘sob a forma’!] portanto são ETERNAS.” Acaba de contradizer o precedente. Se ao menos aqui fosse IDÉIA, e à p. 242 (página da citação anterior) IDÉIAS, no plural, poderíamos ceder a palmatória a Sch…. O problema é que o autor inverteu os termos. A representação nunca é Una. E o que está fora do tempo é sempre, no autor, o Um, “a” Vontade.

Antes, muitos dos exemplos platônicos de Idéia e as elucidações de Platão sobre as mesmas são aplicáveis apenas aos conceitos.”

PLATÃO, O INFINITO: “Não podemos admitir que uma obra artística seja intencional e deliberadamente a expressão de um conceito, como é o caso da ALEGORIA. Uma alegoria é uma obra de arte que significa algo outro que o exposto nela.” “Com a POESIA, a alegoria tem uma relação completamente diferente do que com a arte plástica. Se nesta é repreensível, naquela é admissível (…) aqui o que é dado imediatamente em palavras é o conceito, e o próximo passo é sempre ir deste ao intuitivo, cuja exposição tem de ser executada pela fantasia do ouvinte.”

Visto que, como já dito, toda esta obra é apenas o desdobramento de um pensamento único (…) é requerida a lembrança do leitor não apenas de coisas há pouco ditas, como também das precedentes, para assim poder conectá-las com o lido a todo momento, por mais que já tenha sido dito de outro modo. Exigência esta também feita por Platão aos seus leitores nas digressões complexas e tortuosas de seus diálogos, os quais só depois de longos episódios retomam o pensamento principal; contudo, exatamente por isso, o pensamento se torna mais claro.” “Daqui a necessidade de um estudo repetido do livro, unicamente por meio do qual a conexão de todas as suas partes se torna distinta” Ok, Sch., não precisa dizer de novo!

Nunca houve, nem nunca haverá, um mito tão intimamente ligado à verdade filosófica, no entanto acessível a tão poucos, quanto esta doutrina ancestral [a transmigração das almas] do povo mais nobre e antigo (…) no entanto, já Pitágoras e Platão apreenderam com admiração aquele non plus ultra da exposição mítica, adquirida da Índia, ou do Egito, e a respeitaram, aplicaram-na e, embora não saibamos em que extensão, até mesmo nela acreditaram. – Nós, por outro lado, agora a enviamos aos brames, [?] clergymen ingleses e tecelões da confraria morávia, [??] a fim de por compaixão doutriná-los melhor, fazendo-lhes entender [na seqüência, i.e., em separado à doutrina da transmigração tentar catequizar os outros, supondo que o cristianismo é melhor ou superior] que foram criados do nada e devem agradecer e alegrar-se com isso.” HAHAHA!

[?] O mesmo que brâmane no português de Portugal. Porém, neste caso, seria um reenvio, já que a doutrina veio de lá (da Índia, da Ásia)!

[??] A Morávia é atualmente uma região da República Tcheca. No geral, essas aspas são complicadas de entender, provavelmente devido à tradução ruim.

Platão encetou pela geometria. [Ele começou a vida com outros estudos prévios à filosofia, e entendeu que seus discípulos, ou os filósofos d’A República, também o deveriam, para não cometer o tipo de erro metafísico dos jovens…] Da mesma maneira, somos incitados a tomar a geometria, em Platão, como um exercício preliminar através do qual a mente do pupilo se acostumará a lidar com objetos incorpóreos, tendo até ali, em sua vida prática, travado relações somente com coisas corpóreas.” Porém, círculos imaginados ou desenhos no papel tem muito mais a ver com rodas e távolas perfeitamente redondas que com a Idéia do círculo.

A Idéia de Platão é o pináculo: pura representação, zero vontade. (…) Sendo assim, em Platão, o gênio poderia ser definido como o mais alto grau de objetividade do conhecimento.” Terrível salada! A Idéia de Platão já encerra a consideração do subjacente no mundo das aparências, portanto é um conceito-mestre entre os conceitos que já espelha a resolução nietzschiana da metafísica ocidental, em seu portentoso início antigo. Apenas no século XX, mas lentamente, num processo ascendente ainda não-finalizado, os filósofos começaram a compreender Platão em toda a sua magnitude ontológica. Além disso, na frase em negrito Sch. contraria tudo que dissera até então sobre a Idéia de Platão. As Idéias são tudo, menos representação! Quanto à tipificação do gênio como aquele que dominou a objetividade, a razão em detrimento da vontade, temos os maiores motivos para inverter a equação: o gênio é aquele que coloca as rédeas da razão nas mãos da Vontade, como na metáfora já utilizada mais acima. Mas são acima de tudo um debate e uma dicotomia tolas: se o gênio se funde com o universo no momento da criação da obra-prima, ele só está sendo ele mesmo – e ele é o universo – ou o universo está sendo ele? Irrelevante jogo de palavras. Mas observador imparcial ele não é, e se Sch. usa o termo objetividade nesse sentido mais bem-compreendido por nós na filosofia e no mundo técnico-acadêmico, digamos que é um uso bastante infeliz do termo, onde subjetividade caberia mil vezes melhor. De todo modo, o artista e o filósofo – há, não por acidente, uma completa identidade neste aspecto – não são aqueles capazes de verem a Verdade, mas de sê-la ou produzi-la. A visão está ligada à contemplação passiva, ao objeto; o ser e produzir à atividade, ao sujeito.

5. O ANTI-ARISTÓTELES: CONSEQÜÊNCIA DA HIPER-VALORIZAÇÃO ARISTOTÉLICA PROMOVIDA PELO(A) HEGELIANISMO/ESCOLÁSTICA: O Aristotelismo deve ser superado

a forma substantialis de Aristóteles designa exatamente Aquilo que aqui nomeio o grau de objetivação da Vontade em uma coisa.” Ou seja: substância em Aristóteles e Idéia em Platão são – PARA SCHOPENHAUER – um e o mesmo.

o horror íntimo do malvado em relação aos seus próprios atos, o qual ele tenta ocultar de si, contém ao mesmo tempo, junto ao pressentimento da nulidade e mera aparência do principium individuationis [esta terminologia é aristotélica: é um ataque direto a sua filosofia] e da diferença por este posta entre si e outrem, também o conhecimento da veemência da própria vontade, da violência com a qual se entregou e apegou à vida, precisamente esta vida observada diante de si em seu lado terrível no tormento provocado em alguém por ele oprimido, e com quem, entretanto, é tão firmemente enlaçado que, exatamente dessa forma, o que há de mais horrível sai de si mesmo como um meio para a afirmação completa da sua vontade.” “Eis por que coisas que aconteceram há muito tempo ainda continuam a pesar na consciência.” “o mau (…) [v]ê a extensão em que pertence ao mundo e quão firmemente está ligado a ele.” “Fica em aberto se isto alguma vez irá quebrar e suplantar a veemência de sua vontade.” “quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o injusto e o justo, mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha, quem, conseqüentemente, de acordo com a nossa explanação, jamais, na afirmação da própria vontade, vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo – é JUSTO.” “vê através do Véu de Maia [além do princípio de individuação] e iguala a si o ser que lhe é exterior, sem injuriá-lo.”

Quase insiro estas passagens no capítulo sobre ética, mas me contive.

O que há de mais proveitoso em Aristóteles são as opiniões dos filósofos mais arcaicos, que ele cita. (…) Aristóteles (…) fiel a seu método costumeiro, desliza pela superfície das coisas, confina-se a características isoladas e concepções fixadas por expressões correntes [a-filosóficas, vulgares] e afirma que sem sensação não pode haver desejo, e que plantas não possuem sensação. Ele se põe, entretanto, em considerável embaraço, como demonstra sua linguagem confusa, quando ele mesmo afirma: <ali onde falha a compreensão, uma palavra toma o lugar como deputada de tudo que ela quer dizer>, isto é, vira uma nutriz do saber. Plantas o possuiriam, segundo o autor, então fariam jus ao que se chama de alma. (…) [Esse termo, saber,] é, portanto, um mau substituto para toda a investigação realmente profunda de seus antecessores, que ele não perde tempo em criticar de forma rasteira (Empédocles, Anaxágoras, Platão).”

DA BOTÂNICA AOS ASTROS: “Vemos ainda, no segundo capítulo [do livro Das Plantas], que Empédocles chegou mesmo a reconhecer a [bis]sexualidade das plantas; o que Aristóteles também rejeita, e oculta sua falta de conhecimento específico atrás de proposições gerais, como essa: as plantas não poderiam ter ambos os sexos combinados, pois isso significaria que elas são mais completas que os animais. Por um procedimento praticamente análogo ele rejeita o correto sistema astronômico de Pitágoras, e graças a seus absurdos princípios fundamentais, que Aristóteles expõe detalhadamente nos seus livros intitulados Do céu, valida no seu lugar o sistema de Ptolomeu, procedimento que fez a humanidade retroagir em 2 mil anos. [!]Pitágoras havia de fato formulado um sistema heliocêntrico? A resposta, conforme a Wikipédia, abaixo, é: mais que heliocêntrico – de alguma forma, Filolau, pitagórico (a fonte é Estobeu), intuiu que o sistema solar não representava o centro do universo! Segue minha tradução dos trechos relevantes da enciclopédia pública em sua página inglesa: “Um sistema astronômico posicionando a Terra, a Lua, o Sol e outros planetas revolvendo ao redor de um <Fogo Central> invisível foi desenvolvido já no quinto século antes de Cristo e fôra atribuído ao filósofo pitagórico Filolau. O sistema foi chamado de <o primeiro coerente em que corpos celestiais se movem em círculos>, antecipando Copérnico em 2 mil anos ao deslocar <a Terra do centro do cosmo, (e) fazendo dela um planeta como os outros>. Embora seus conceitos de um Fogo Central distinto do Sol e de uma <Anti-Terra>¹ fossem errôneos, o sistema continha o insight de que <o movimento aparente dos corpos celestes> se dava (em grande medida) devido ao <próprio observador encontrar-se em movimento>.”

¹ Conhecida invenção teórica dos pitagóricos para que o sistema solar conhecido, contando com a Terra, a lua e o sol, apresentasse 10 e não 9 corpos celestes, sendo o 10 um número <divino> no pitagorismo.

Quanto a Aristóteles de forma geral, gostaria de chamar a atenção ao fato de que seus ensinamentos, enquanto referentes à natureza não-organizada, são muito deficitários e hoje inutilizáveis, tanto mais que, nas concepções mecânicas e físicas fundamentais ele admite os erros mais grosseiros, o que é tanto menos perdoável quanto, antes dele, os pitagóricos e Empédocles já haviam ensinado, na matéria, o caminho das pedras, chegando a conhecimentos superiores.¹ Empédocles, como lemos no próprio Aristóteles, Do céu, 2º livro, capítulo I, p. 284, já havia exprimido a concepção de uma força tangencial decorrente da rotação da Terra, servindo de contraparte à gravidade, o que Aristóteles cita, porém rejeita. Quanto à investigação aristotélica da natureza organizada, entretanto, podemos dizer que esse é seu campo por excelência. Aqui, a riqueza de seu conhecimento, a agudeza de suas observações, a profundidade de seus insights, nos assombram.” Aristóteles, o Biólogo Vocacionado.

¹ Isto representa uma grande rocha demolidora de toda a exegese hegeliana na História da Filosofia, muito calcada no aristotelismo, inclusive na Física aristotélica. E não devemos nos esquecer, ainda que Schopenhauer não o cite, de Epicuro, que interpretou os pré-socráticos (principalmente os atomistas) no sentido correto, evitando os enganos de Aristóteles neste setor de sua filosofia.

6. POR QUE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE ESTÃO, ESSENCIALMENTE, EM PÓLOS OPOSTOS NA FILOSOFIA – E NÃO O CONTRÁRIO – MESMO QUE AQUELE SEJA O PRINCIPAL PRECURSOR DESTE

A Vontade é, pois, livre de toda PLURALIDADE, apesar de seus fenômenos no espaço e no tempo serem inumeráveis.” A vontade de potência, em Nietzsche, é múltipla e autocontraditória, jamais unitária. Um homem que cavou tão fundo só não viu que um jogo não é jogado com apenas peças brancas, ou com apenas peças pretas, sem adversário e nada mais. O jogo do universo exige vários jogadores, vontades colidindo, competindo para ver qual vai mais longe e perdura mais na humanidade.

O QUANTIFICADOR DO NADA: “Se a coisa-em-si, como acredito ter demonstrado de modo claro e suficiente, é a VONTADE, então esta, considerada nela mesma e apartada de seu fenômeno, permanece exterior ao tempo e ao espaço; por conseguinte não conhece pluralidade alguma, portanto é UNA [só porque está-se tratando da Vontade enquanto coisa-em-si, o que ela não é]. Mas, como já disse, uma não no sentido de que um indivíduo ou um conceito é uno, mas como algo alheio àquilo que possibilita a pluralidade, o principium individuationis.” Se acrescentasse que é autocontraditória, não obstante, até poderíamos aceitá-la como a versão definitiva da vontade. “Por conseqüência, a pluralidade das coisas no espaço e no tempo, que em conjunto são uma OBJETIDADE, não lhe concerne, e ela, apesar dessa pluralidade, permanece indivisa.” Desnecessário dizer que, em Nietzsche, a Vontade é a verdadeira encarnação de “objetividade”, inapurável diretamente pelo ser humano (como as Idéias de Platão).

Assim, em toda parte na natureza vemos conflito, luta e alternância da vitória, e aí reconhecemos com distinção a discórdia essencial da Vontade consigo mesma. [autocontraditória – CHECK – Will leveled up!] Cada grau de objetivação da Vontade combate com outros por matéria, espaço e tempo. Constantemente o que subsiste tem de mudar de forma, na medida em que, pelo fio condutor da causalidade, fenômenos mecânicos, químicos, orgânicos anseiam avidamente por entrar em cena e assim arrebatam uns aos outros a matéria, pois cada um quer manifestar a própria Idéia.¹ Esse conflito pode ser observado em toda a natureza.”

¹ Na medida em que Sch. emprega o verbo “manifestar”, ou seja “evidenciar”, ou seja representar, para sua concepção de Idéia (que por colocar em letra maiúscula deve equiparar à platônica, o que como já bem-mostrado é exatamente seu oposto, uma ANTI-IDÉIA), além de depois comentar que o “conflito pode ser observado” na natureza, ele fala aqui da Vontade aplicada ao reino dos sentidos, da sua Representação (PARTES 1&3 do TOMO 1). Ou ele interpreta mal a Idéia de Platão, no que não acredito neste contexto, ou o sentido da frase seria: manifestar o imanifestável (o que se esconde por trás do fenômeno). Obviamente, uma vez que a Idéia seja aplicada ao reino das aparências, não são mais as Idéias platônicas aquilo de que se fala. Essa nota de rodapé se justifica devido à péssima escolha de título para a tradução inglesa dos TOMOS 2&3, “WILL & IDEA”, que, obviamente, eu retifiquei em todos os momentos para “WILL & REPRESENTATION”, que é o que quis dizer o tradutor atrapalhado. “Manifestar a própria representação” seria contraditório no trecho acima, e não partiria da boca de Schopenhauer (felizmente é um trecho em português). O que pode confundir o leitor é que a noção de manifestar algo oculto foi conjugada com a observação direta dos fenômenos naturais, logo à frase seguinte! Mas quando assim aparecesse na versão inglesa (to manifest the representation itself) significaria que Sch. sem dúvida quisera denominar o fenômeno, e não a Vontade. Se o tradutor quisesse manter algum tipo de fidelidade simétrica e ao mesmo tempo o trambolho-palavra IDEA, deveria ter pensado em “World as IDEA & REPRESENTATION”. Representação fenomênica não poderia em caso algum ter ficado de fora do título desta obra que é, essencialmente, bipartida (torna-se quadripartida por uma espécie de chacota schopenhaueriana misturada com homenagem a Kant). Para fechar o raciocínio: supondo que Sch. se expressa corretamente no original e que o tradutor inglês quisesse efetuar ‘o melhor trabalho’, como Jair o fez pelo menos nesse trecho, podemos admitir ainda que “quer manifestar” não é o mesmo que “manifestar”, e aí sim usar “(platonic) Idea”, algo que os múltiplos fenômenos gostariam de manifestar embora não possam (would wish/aim/long/yearn/crave/urge to manifest its own Will/Idea).

No fundo, tudo isso se assenta no fato de a Vontade ter de devorar a si mesma, já que nada existe de exterior a ela, e ela é uma Vontade faminta. Daí a caça, a angústia, o sofrimento.” “Cada vontade é vontade de alguma coisa. Tem um objeto, um fim de seu querer.”

Por diversos momentos Schopenhauer parece poder desembocar numa filosofia que seria perfeitamente precursora do nietzschianismo, da transvaloração de todos os valores, do enunciado de um Übermensch, da morte de Deus ou de um eterno retorno, porém, na prática, Schopenhauer sempre retroage dessa ousadia teórica e recai no que podemos chamar, da ótica de Nietzsche, de um niilismo passivo, conforme fica claro no título sobre a relação de Schopenhauer com o cristianismo e o próprio budismo. Nietzsche soube utilizar os elementos vanguardistas de Sch. e seperar o joio do trigo em sua filosofia, i.e., evitar o caráter reacionário da falta de vontade de viver, problema do agravamento do niilismo cultural que Sch. tão engenhosamente nos revelou, mas ao qual não deu uma resposta positiva e fenomênica. Podemos dizer que o conceito schopenhaueriano de vontade é estático; em Nie. ele é dinâmico.

a translação dos planetas, a obliqüidade da elíptica, a rotação da terra, a separação entre terra firme e oceanos, a atmosfera, a luz, o calor e todos os fenômenos semelhantes, que na natureza são aquilo que o baixo fundamental é na harmonia, acomodam-se plenos de pressentimento à geração futura de seres vivos, dos quais serão o sustentáculo mantenedor. Do mesmo modo, o solo se adapta à alimentação das plantas, estas à alimentação dos animais, estes à alimentação dos predadores, e todos estes àquele primeiro.” Inconciliável: Vontade UNA / Idéias MÚLTIPLAS. Inconciliável dum ponto de vista lógico, anyway… Chutando para o espaço sideral o princípio de não-contradição, tudo isto é lícito, legítimo, coerente, irretocável.

O autoconhecimento da Vontade e, daí, a sua decidida afirmação ou negação é o único evento em si.” Parágrafo 35 in a nutshell: #EternoRetorno ; e depois retrocesso a #Camus. Nem infinito, nem retorno, nem negação: só afirmação-nova-no-tempo.

Resta apenas o mundo como representação; o mundo como Vontade desapareceu.” Resumo do objetivo de Sch. no livro 3.

Vontade livre” O alvo de ataque do Nietzsche maduro – porém, não se pode chamar a Vontade não-livre deste de “ressurreição” do imperativo categórico. Até porque não é universal nem voluntária: faz parte do caráter de poucos escolhidos, que não podem ser auto-escolhidos. Uma casta-diretriz dos valores da humanidade, os avaliadores de valores. Dizer que a vontade é livre para devorar a si mesma é negar que ela tenha outra escolha ou que a parte devorada da vontade (no final, sempre a vontade como um todo) seja parte desse mesmo destino de uma vontade una.

Que a Vontade enquanto tal seja LIVRE segue-se naturalmente de nossa visão, que a considera como a coisa-em-si, o conteúdo de qualquer fenômeno.” Novamente, é correto, do ponto de vista schopenhaueriano, pois para ele a Vontade = COISA-EM-SI (1.1).

A necessidade do agir individual foi suficientemente demonstrada por Priestley em sua Doctrine of philosophical necessity. Foi Kant, todavia, cujo mérito a este respeito é em especial magnânimo, o primeiro a demonstrar a coexistência dessa necessidade com a liberdade da Vontade-em-si (…) estabelecendo a diferença entre caráter inteligível e empírico, a qual conservo por inteiro,¹ conquanto o primeiro é a Vontade como coisa-em-si a manifestar-se em fenômenos num determinado indivíduo e num determinado grau, [neste caso o nome ‘caráter inteligível’ está pessimamente auferido – melhor seria dizer caráter metafísico ou, respeitando a própria nomenclatura do autor, caráter-em-si] já o segundo é este fenômeno mesmo tal qual ele se expõe no modo de ação segundo o tempo,¹ e já na corporização segundo o espaço. A fim de tornar mais clara a relação entre ambos, a melhor expressão a ser empregada é aquela presente no meu ensaio introdutório sobre o princípio de razão, ou seja, que o caráter inteligível de cada homem deve ser considerado como um ato extratemporal, [?] indivisível e imutável da Vontade,² cujo fenômeno, desenvolvido e espraiado em tempo, espaço e em todas as formas do princípio de razão, é o caráter empírico como este se expõe conforme a experiência, vale dizer, no modo de ação e no decurso de vida do homem.”

¹ Eis a procurada refutação de que as Vontades de Nie. e Sch. sejam sinonímias, in loco.

² Esse remendo só é necessário ao sistema schopenhaueriano porque ele não abria mão de uma Vontade una, ao invés de múltiplas Vontades em eterno conflito. Não existe unidade na natureza, apenas a aparência conceitual de tal (i.e., a palavra fenômeno quando aplicada a todo fenômeno ao mesmo tempo).

O mito aqui aludido é o da transmigração das almas. Ele ensina que todos os sofrimentos infligidos em vida pelo homem a outros seres têm de ser expiados numa vida posterior neste mundo e precisamente pelos mesmos sofrimentos. [ou em outros mundos renascidos após a destruição do atual, como prega o budismo] Tal ensinamento vai tão longe que quem apenas mata um animal nascerá no tempo infinito exatamente como este animal, sofrendo a mesma morte.” Esse quadro é muito mais horripilante que o eterno retorno da sua própria vida, Sch. – como conciliar tal contradição?

BOM (…) BELO e VERDADEIRO (…) Dentre as pessoas familiarizadas com os escritos de nossos tempos, quem não se enfastiou com aquelas 3 palavras, por mais que elas apontem coisas originariamente admiráveis? Quem não se enfastiou após ver milhares de vezes como os mais incapazes de pensamento acreditam, com boca escancarada e ares de bronco inspirado, poder apenas com a pronúncia das mencionadas palavras transmitir grande sabedoria?” “tudo o que é favorável à Vontade em alguma de suas exteriorizações e satisfaz seus fins é pensado pelo conceito BOM, por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectos. (…) tudo o que é exatamente como queremos que seja.” “felicidade (…) como sendo idêntica ou conseqüência da virtude, e isso sempre de maneira sofística (…) Ao contrário, em (…) nossa consideração, a essência íntima da virtude resultará de um esforço em direção totalmente oposta à da felicidade, ou seja, oposta à direção do bem-estar e da vida.” Estes trechos estão nesta seção porque cremos que, quando Schopenhauer se põe como adversário do cristianismo (o que ele não faz senão de modo hesitante), pode muito bem ser considerado o verdadeiro precursor de livros póstumos como O Anticristo e Muito Além do Bem e do Mal. Aliás, às vezes penso que, em contundência, e até por ter vindo primeiro, Sch. paradoxalmente aparece como o maior dentre os detratores do cristianismo. Hoje mesmo, 4/7/22, lia o personagem canastrão Fomá Fomitch, de A aldeia de Stepantchikovo de Dostoievski, declarar, em capítulos sucessivos, 1º que a virtude é o mesmo que a felicidade, para logo no seguinte, bufão que é, em 2º, dizer que a virtude é o contrário da felicidade, e que por isso se comprazeria em sofrer virtuosamente. Ao contrário de um asceta ou do próprio Sch., entretanto, este personagem dostoievskiano é incapaz de viver sem os luxos da vida nobre um dia sequer.

O BOM (sic) ABSOLUTO é uma contradição.” Reitera-se: o núcleo nietzschiano já estava bem-preparado. 1. Não há absoluto; 2. A existência do bem exige que ele seja relativo a um mal. Ambos os conceitos são relativos, posto que criados, convencionados.

o homem bom de modo algum deve ser considerado como um fenômeno da Vontade originariamente mais fraco em comparação ao homem mau.” Comentário nitidamente antitético com tomos anteriores. Porque aqui Sch. parece duvidar de si mesmo, enquanto que Nietzsche diria isso de peito aberto e muito mais convicção. Em Nietzsche, o mau, o pior, o terrível – no sentido não-depreciativo – é aquilo que tem força para transformar a si mesmo em parâmetro ou valor dos valores do que é bom e excelente. Daí a controvérsia sobre o sentido de sua vontade de poder, que é entendida por leitores incautos como alguma espécie de apologia à supremacia do mais forte, como alguma defesa do caos da natureza puro e simples ou do emprego da força bruta, em forma física ou na forma ampliada e estatal (política), o que não passa de mau uso da palavra “forte” em Nie., alguém claramente anti-darwinista e anti-Estado, antifascista avant la lettre.

O ANTI-HEGEL, O PRÉ-NIETZSCHE: “essa doutrina tão repetida de que o homem caminha progressivamente para um nível de perfeição cada vez maior, ou qualquer fé que deposita no devir o processo de desenvolvimento mundial, está em completa oposição ao conhecimento a priori de que em qualquer ponto do tempo um tempo infinito já correu, e, em conseqüência, de que tudo aquilo que deveria advir com o tempo já deve necessariamente ter existido; dessa forma abre-se uma lista interminável das contradições de assunções dogmáticas sobre a realidade dada das coisas. Por outro lado, devo veementemente recusar que qualquer doutrina de minha filosofia poderia ser adicionada a essa mesma lista, porque cada uma de minhas premissas foi pensada em presença da realidade perceptível, e nenhum pensamento importante meu tem sua raiz puramente em abstrações conceituais. Há, ainda, na minha filosofia, um pensamento fundamental aplicado a todos os fenômenos do mundo como chave; [fala da descoberta da invisível Vontade] mas esse raciocínio se prova o alfabeto correto mediante o qual todos os mundos e sentenças adquirem sentido e significado. [!] (…) Sendo assim, até agora minha filosofia é como uma soma que produz o resultado absolutamente esperado, porém não no sentido de que ela soluciona todos os problemas ou responde todas as perguntas. Afirmar qualquer coisa do gênero seria uma negação presunçosa dos limites do conhecimento humano em geral. Qualquer que seja a tocha que conduzamos à frente, e qualquer que seja o terreno iluminado por ela, nosso horizonte sempre remanescerá envolto em profunda noite. A solução definitiva do enigma do mundo está necessariamente ligada às coisas-em-si-mesmas, jamais aos fenômenos.”

O conhecimento condicionado deve repousar na fundação de toda obra de arte genuína. A mudança objetiva requerida para isso não pode proceder da vontade, justamente por tal mudança consistir na eliminação de todas as volições; a arte não pode ser ato da vontade, i.e., não pode repousar em nossa escolha.” Mas é justamente a liberdade (do intelecto) que pressuporia a negação da Vontade; o artista é o oposto da figura que Sch. descreve: um hiper-concentrador de Vontade! Significa que Schopenhauer erra duplamente no aforismo: 1) não é o intelecto o mecanismo que explica o dom (irracional); 2) ainda que o fosse, ele implicaria que o artista poderia escolher seus meios, sua forma de expressão da obra de arte, e Sch. termina a passagem contradizendo-se! Em suma, é verdade que nada disso depende de nossa escolha, mas isso depõe a favor da Vontade como protagonista do processo artístico. Como Nietzsche é muito insistente nesse ponto (o que eu defendi, contra Sch.), incluí estas aspas aqui, mas há comentários mais extensos na seção 12.5.

Não há contraste maior do que aquele entre o incessante devir do tempo, que leva todos os conteúdos consigo, e a rígida imobilidade do que é atual e presente, o que em todos os tempos é um e o mesmo. Se desse ponto de vista observamos os eventos da vida, i.e., de um ponto de vista puramente objetivo, o Nunc stans [eternidade] se torna claro e visível para nós no centro da roda do tempo. Aos olhos de um ser de vida incomparavelmente mais longa, que de um só vistaço compreendesse a raça humana em todo seu percurso, incluindo a alternação constante de nascimento e morte, nossa existência assemelhar-se-ia a uma vibração contínua. Não ocorreria a este ser interpretar nossa condição como o emergir de algo novo ou o retorno ao nada em momento algum. Assim como para nós a faísca revolvendo em círculo em alta velocidade parece um círculo contínuo, para os olhos desta criatura privilegiada em relação a nós a morte e a vida como um todo não apareceriam como mais do que vibrações daquilo que tem um Ser e permanência indiscutíveis.”

Aquele que refletir que até o agora, quando se existe, um tempo infinito já decorreu, e com ele uma infinidade de mudanças, reconhecerá sua existência como uma necessidade. Toda a extensão dos estados possíveis já se exauriu sem que com isso a existência tivesse logrado a autodestruição. Se fosse possível que o indivíduo não fosse, ele já não seria agora. A infinitude do tempo já decorrido, com a exaustão das possibilidades de eventos dela decorrente, garante que o que existe deve existir.” Veraz a acusação de Wagner de que Nietzsche apenas reproduzia Schopenhauer em seus livros mais polêmicos? [1/3] – Gaia é mais forte que bombas de hidrogênio: uma espécie de paradoxo do avô se instala no presente: no futuro ninguém apertará o botão vermelho.

Mas o grande equívoco reside de fato na palavra eu“Mas o ‘eu’ é um ponto escuro na consciência, como na retina o ponto exato em que o nervo da visão entra é cego, como o próprio cérebro, que concede ao corpo a faculdade da sensação, é inteiramente desprovido de sensação, como o corpo do sol é negro, e como o olho tudo vê, exceto a si mesmo.” [2/3] Tudo isso também foi repetido e ruminado por Nietzsche.

Porém, o seguinte aspecto deve ainda ser levado em consideração: a individualidade da imensa maioria dos homens é tão miserável e destituída de valor que com sua perda o sujeito em questão na verdade nada perde. Só naqueles em que ainda pode residir algum valor está o elemento humano universal” Imensa maioria dos homens: substrato do último homem, eterno como qualquer Um. Aqueles em que ainda pode residir algum valor: substrato do além-homem nietzschiano. [3/3!]

a mais excitante das questões metafísicas. Começo, fim e continuação são concepções que derivam simples e tão-somente do tempo, e são válidas, portanto, exclusivamente com ele em vista. Mas o tempo não tem uma existência absoluta; não é o modo de dizer da coisa-em-si, mas meramente o modo de nosso conhecimento de nossa existência e natureza, conhecimento que é aliás um tanto imperfeito e limitado aos fenômenos. Uma resposta às perguntas nascidas das nossas concepções do tempo é impossível,¹ e toda asserção nesse sentido, num ou noutro sentido, está sempre aberta a objeções convincentes.” “Tudo isso apenas quer dizer: o problema é transcendente. A morte permanece um mistério.”

¹ O que invalida qualquer possibilidade de conclusão do projeto heideggeriano de Ser e Tempo: livro que, não à toa, Heidegger jamais veio a terminar. Provavelmente porque soubesse que qualquer continuação dos dois primeiros volumes estaria aquém do projeto inicialmente traçado, que era ter essa visão ‘extra-humana’ do tempo para assim compreender o sentido do ser.

O sujeito atua na vida como executando um serviço compulsório que lhe cabe. Mas quem contraiu a dívida? – Seu progenitor, na fruição dos prazeres sensuais. Logo, porque um aproveitou, o outro deve viver, sofrer e morrer. (…) Mas minha filosofia é a única que confere à ética seus direitos totais; porque só se a verdadeira natureza do homem é sua própria vontade, e conseqüentemente ele é, no sentido mais estrito, sua própria obra, suas dívidas ou faltas pertencem de fato e inteiramente a ele próprio e devem ser pagas por ele mesmo e não por outrem. Sempre que o homem tem uma outra origem, que é obra de seres diferentes dele mesmo, [nas outras filosofias e religiões] sua culpa volta à origem.” É importante assinalar esse parágrafo nesta seção porque a tomada de responsabilidade do indivíduo pela própria vida e existência é o imperativo ético essencial implicado no eterno retorno. E o único imperativo ético que pode dar certo é anticristão, pois não temos culpa de nada; Adão não tem culpa de nada; a existência não tem culpa de nada.

Dessa forma, o problema discutido na época socrática é agora, pela 1ª vez, finalmente resolvido, e a demanda por pensar a razão enquanto moral é satisfeita.” “Minha doutrina atinge esse limite na vontade de vida, que em sua própria manifestação afirma ou nega a si mesma. (…) Devemos interromper nossa reflexão aqui” Nietzsche seguiu todos os passos de Schopenhauer, mas não parou ou se interrompeu ‘aqui’.

Um homem, ao fim de sua vida, se fosse igualmente sincero e clarividente, talvez jamais a desejasse de novo, porém, antes, preferiria a total não-existência. O conteúdo essencial do célebre monólogo em Hamlet, quando resumido, é este: nossa condição é tão miserável que o decididamente preferível seria a completa não-existência.¹ Se o suicídio efetivamente nos oferecesse esta última, de tal modo que a alternativa ‘ser ou não ser’ fosse posta no sentido pleno da palavra, então aquele seria incondicionalmente escolhido como um desenlace altamente desejável (a consumation devoutly to be wish’d). No entanto, algo em nós diz que não é bem assim”

¹ Formulação do odium fati. Mas não é essa a questão: o passado não é aniquilado. O cadáver de Hamlet não quer ter vergonhas nem arrependimentos…

7. DESPROPÓSITO DA VIDA HUMANA CONSCIENTE: A EXISTÊNCIA É SÓ UM SONHO

Eis por que de bom grado nunca ficam sozinhos com a natureza; precisam de sociedade, ao menos de um livro. Seu conhecer permanece servil à Vontade. Procuram, por conseguinte, só por aqueles objetos que têm alguma relação com o seu querer e, de tudo que não possua uma tal relação, ecoa em seu interior, semelhante a um baixo fundamental, um repetitivo e inconsolável ‘de nada serve’. Assim, na solidão, até mesmo a mais bela cercania assume para eles um aspecto desolado, cinza, estranho, hostil.”

a supressão do caráter da espécie mediante o caráter do indivíduo é caricatura, e a supressão do caráter individual mediante o caráter da espécie é ausência de significação.”

Esses indivíduos que aparecem sucessivamente estão por inteiro sozinhos, visto que a massa e a multidão da posteridade sempre será e permanecerá tão perversa e obtusa quanto a massa e a multidão de todos os tempos. – Que se leiam os lamentos dos grandes espíritos em todos os séculos sobre os seus contemporâneos: soam sem exceção como hoje, porque o gênero humano sempre foi o mesmo.”

Dom Quixote (…) alegorizava a vida de um homem que, diferentemente dos demais, não tem em vista apenas cuidar do próprio bem-estar mas persegue um fim objetivo, ideal, que se apossou de seu pensamento e querer, com o que se sente, obviamente, isolado neste mundo.”

Hamlet, a quem Horácio gostaria de seguir voluntariamente; porém, aquele pede que permaneça e respire por mais algum tempo neste ingrato mundo de dores, a fim de esclarecer o destino de Hamlet e zelar por sua memória.” “A palavra final no Maomé de Voltaire expressa isso literalmente, quando a agonizante Palmira diz a Maomé: ‘O mundo é para tiranos, vive!’

as críticas obtusas (…) que o Dr. Samuel Johnson dirige a peças isoladas de Shakespeare, censurando a sua licenciosidade: qual fato levou as Ofélias, as Desdêmonas, as Cordélias a serem culpáveis? – Só a visão de mundo rasa, otimista, racional-protestante, ou, melhor dizendo, judaica, fará a exigência de justiça poética para, com a satisfação desta, encontrar a sua própria. O sentido verdadeiro da tragédia reside na profunda intelecção de que os heróis não expiam os seus pecados individuais, mas o pecado original, i.e., a culpa da existência mesma

ADEUS, QUERIDO COCÔ (ESCREVI-O COM (C)ALMA)! “Ora, assim como estamos a todo momento contentes em conservar a forma, sem lamentar a matéria perdida, também temos de nos comportar do mesmo modo quando na morte ocorre o mesmo, porém numa potência mais elevada” “Do mesmo modo que somos indiferentes num caso, não devemos tremer no outro.” “parece tão tolo embalsamar cadáveres como o seria conservar nossos excrementos.”

Naturalmente, se pensarmos retrospectivamente nos milênios transcorridos, nos milhões de pessoas que neles viveram, perguntaremos: que foram elas? Que se fez delas? Por outro lado, precisamos só evocar o passado de nossas vidas e vìvidamente renovar suas cenas na fantasia para de novo perguntar: que foi tudo isso? Que foi feito deles? Como no caso de nossa vida, assim também no caso da vida daqueles muitos milhões. Ou deveríamos supor que o passado alcançou uma nova existência ao receber o selo da morte? Nosso próprio passado, inclusive o dia mais recente e o anterior, é tão-somente um sonho nulo da fantasia; o mesmo é o passado de todos aqueles milhões. Que foi? Que é? A Vontade, cujo espelho é a vida, e o conhecer destituído de volição, que mira claramente a Vontade nesse espelho. Quem ainda não reconheceu isso ou não o quer reconhecer pode acrescentar à questão anterior, sobre o destino das gerações passadas, ainda esta: Por que precisamente ele, o questionador, é tão feliz em possuir este tempo presente precioso e fugidio, único real, enquanto aquelas centenas de gerações de homens, sim, os heróis e os sábios daqueles tempos, naufragaram na noite do passado e assim se tornaram nada, enquanto ele, seu insignificante eu, existe realmente? Ou, de maneira mais sucinta, embora estranha: Por que este agora, seu agora, é precisamente agora, e não FOI há muito tempo?”

quem está satisfeito com a vida como ela é, quem a afirma em todas as suas maneiras, pode confiantemente considerá-la como sem fim e banir o medo da morte como uma ilusão a infundir-lhe o tolo temor de que poderia ser despojado do presente, ludibriando-o sobre um tempo destituído de presente, parecido com aquela ilusão relativa ao espaço, em virtude da qual alguém fantasia a exata posição ocupada por si no globo terrestre como a de cima, e as restantes como a de baixo.” “temer a morte porque ela nos arrebata o presente não é mais sábio do que temer deslizar para baixo no globo terrestre redondo, a partir do topo, onde felizmente nos encontramos agora.” “meio-dia sempiterno”¹ “se um homem teme a morte como seu aniquilamento, é simplesmente como se pudesse pensar que o sol se lamentaria diante da noite(*) (…) Contrariamente, quem está oprimido pelo peso da vida e ainda assim a deseja e afirma (…) não pode esperar da morte a libertação, nem pode salvar a si mesmo pelo suicídio. Apenas com aparências falsas lhe seduz o frio e tenebroso Orco, como se fôra o porto da paz.

[¹ Nietzsche puro!]

(*) Eckermann, Conversas com Goethe: (…) Goethe diz: ‘Nosso espírito é um ser de natureza totalmente indestrutível: ele faz efeito continuamente de eternidade a eternidade. É comparável ao sol, que parece se pôr apenas aos nossos olhos terrenos, mas que em realidade nunca se põe, brilhando incessantemente.’ – Goethe tomou a comparação de mim, não eu dele. [!] Sem dúvida ele a utilizou nessa conversa de 1824, em virtude de uma reminiscência, talvez inconsciente, da passagem acima escrita, pois esta aparece, com os mesmos termos aqui empregados, na 1ª ed. de minha obra, p. 401, e também ocorre novamente na p. 528, bem como na conclusão do §65. Aquela 1ª ed. lhe foi enviada em dezembro de 1818, e em março de 1819 ele mandou, por minha irmã, uma carta de congratulação para Nápoles, onde então me encontrava. À carta adicionava uma papeleta, onde assinalava os números de algumas páginas que especialmente lhe agradaram. Logo, ele lera o meu livro.”

Os males imediatamente necessários e absolutamente universais, p.ex., a necessidade no avanço da idade e a morte, bem como os muitos incômodos cotidianos, normalmente não nos entristecem.”

É realmente inacreditável o quanto a vida da maioria dos homens, quando vista do exterior, decorre insignificante, vazia de sentido e, quando percebida no seu interior, decorre de maneira tosca e irrefletida. Trata-se de um anseio e tormento obscuro, um vaguear sonolento pelas 4 idades da vida em direção à morte, acompanhado por uma série de pensamentos triviais. Assemelham-se a relógios aos quais se deu corda e funcionam sem saber por quê. Todas as vezes que um homem é gerado e nasce, o relógio da vida humana novamente tece a corda, para mais uma vez repetir o seu estribilho inúmeras vezes tocado: frase por frase, medida por medida, com insignificantes variações. – Todo indivíduo, todo rosto humano e seu decurso de vida é apenas um sonho curto a mais do espírito infinito da natureza, da permanente Vontade de vida; é apenas um esboço fugidio a mais traçado por ela em sua folha de desenho infinito, ou seja, espaço e tempo, esboço que existe ali por um mero instante se for comparado a ela, e depois é apagado, cedendo lugar a outros. Contudo, e aqui reside o lado sério da vida, cada um desses esboços fugidios, desses contornos vazios, tem de ser pago com toda a Vontade de vida em sua plena veemência, mediante muitas e profundas dores e, ao fim, com uma amarga morte, longamente temida e que finalmente entra em cena. Eis por que a visão de um cadáver nos torna de súbito graves.

A vida do indivíduo, quando vista no seu todo e em geral, quando apenas seus traços mais significativos são enfatizados, é realmente uma tragédia; porém, percorrida em detalhes, possui o caráter de comédia, pois as labutas e vicissitudes do dia, os incômodos incessantes dos momentos, os desejos e temores da semana, os acidentes de cada hora, sempre produzidos por diatribes do acaso brincalhão, são puras cenas de comédia.”

Se se conduzisse o mais obstinado otimista através dos hospitais, enfermarias, mesas cirúrgicas, prisões, câmaras de tortura e senzalas, pelos campos de batalha e praças de execução, e depois lhe abríssemos todas as moradas sombrias onde a miséria se esconde do olhar frio do curioso; se, ao fim, lhe fosse permitida uma mirada na torre da fome de Ungolino, ele certamente também veria de que tipo é este meilleur des mondes possibles.”

Cada um mira a própria morte como o fim do mundo; já a morte dos seus conhecidos é de fato ouvida com indiferença” “O lado terrível disso se encontra na vida dos grandes tiranos e facínoras, nas guerras que devastam o mundo, enquanto o seu lado hilariante é objeto da comédia, e aparece sobretudo na presunção e na vaidade, o que Rochefoucauld, melhor que qualquer outro escritor, conseguiu apreender e expor in abstracto.”

Éris (…) expulsa do conflito dos indivíduos por meio da instituição estatal, retorna de fora como guerra entre os povos e então exige, no seu total e numa só parcela, como débito acumulado, sacrifícios sangrentos, os quais se lhe haviam evitado ao recorrer-se à astuta precaução. Sim, supondo-se que tudo isso fosse, ao cabo, ultrapassado e posto de lado por uma prudência acumulada pela experiência de milênios, o resultado seria a efetiva superpopulação de todo o planeta, cujo horrível mal só uma imaginação audaciosa poderia agora tornar presente.”

Os dias passam cada vez mais rápido, os eventos perdem sua significância, tudo se torna lívido. O homem avançado em idade tateia ao redor mancando ou permanece num canto como uma sombra, um fantasma de seu antigo eu. O que restaria acaso para a morte destruir?”

Que uma mosca que zumbe agora em meus ouvidos vá dormir esta noite, e zumba de novo amanhã, ou morra nessa mesma noite, e então na primavera seguinte outra mosca que nasceu dos ovos daquela antiga zumba novamente: tudo isso em si mesmo é a mesma coisa

Repare em seu cachorro. Quão despreocupado e pacificamente ele vive! Muitos milhares de cães tiveram de perecer até que chegasse a vez desse exemplar viver. Mas a morte dessa infinidade de antepassados não afetou em nada a Representação do cachorro. O cão de hoje existe tão fresco e dotado com força vital quanto os indivíduos mais primitivos da espécie. Todo dia ele vive como se fosse seu primeiro dia e como se nunca um dia pudesse ser seu último. Nos seus olhos brilha o princípio indestrutível dessa vida cíclica e inexaurível, o archaeus [arquétipo].”

FILOSOFIA VAMPÍRICA AVANT LA LETTRE: “Desejar que a individualidade fôra imortal não significa nada mais que desejar a perpetuação de um erro infinitamente. Pois no fundo toda individualidade é apenas um erro singular, um passo em falso, algo que era melhor jamais ter sido”

Eis o ponto em que a filosofia transcendental se conecta à ética. (…) o medo de que, com a morte, tudo terminará se iguala ao caso daquele que imagina, num sonho, que há apenas sonhos sem um sonhador.”

Os terrores da morte dependem em maioria da falsa impressão de que se o ego desaparece agora, o mundo continua. Mas na verdade é o oposto” O rio Lethe da Vontade é a morte de um indivíduo. Com o esquecimento, a Vontade está livre e inexausta novamente para poder desejar, noutro invólucro.

8. SOBRE O SUICÍDIO

o suicídio já se nos apresenta aqui como um ato inútil e, por conseguinte, tolo. Quando tivermos avançado ainda mais em nossa consideração, ele aparecerá numa luz menos favorável ainda.” Nem para o moribundo incurável que já sentiu o doce mel da vida entre os lábios?

Eis por que nas maiores dores espirituais a pessoa arranca os cabelos, golpeia-se no peito, arranha o rosto, atira-se ao chão: tudo sendo propriamente apenas meios violentos de distração em face de um pensamento de fato insuportável. E justamente porque a dor espiritual, como a mais aguda de todas, torna alguém insensível à dor física, o suicídio é bastante fácil para quem se encontra desesperado ou imerso em desânimo crônico, embora antes, em estado confortável, tremesse com tal pensamento. De maneira semelhante, preocupações e paixões, portanto o jogo do pensamento, abalam o corpo muito mais freqüente e intensamente que deficiências físicas.”

o suicídio não fornece salvação alguma: o que cada um QUER em seu íntimo, isto ele deve SER; e o que cada um É, precisamente isto ele QUER.”

terrível e lenta autopunição para a completa mortificação da Vontade: o que ao fim pode conduzir à morte voluntária mediante jejum, atirar-se aos crocodilos ou precipitar-se do pico sagrado do alto do Himalaia ou ser sepultado vivo, e também mediante o lançar-se sob as rodas do carro colossal que passeia as imagens de deuses entre o canto, o júbilo e a dança das bailadeiras (apsaras). [hinduísmo]” “Tanta concordância em épocas e povos tão diferentes é uma prova factual de que aqui se expressa não uma excentricidade ou distúrbio mental, como a visão otimista rasteira de bom grado o afirma, mas um lado essencial da natureza humana, e que, se raramente aparece, é tão-só em virtude de sua qualidade superior.”

O suicídio, em realidade, é a obra-prima de Maia na forma do mais gritante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma.”

o suicida se assemelha a um doente que, após ter começado uma dolorosa operação de cura radical, não permite o seu término, preferindo permanecer doente. (…) Eis por que todas as éticas, tanto filosóficas quanto religiosas, condenam o suicídio, embora elas mesmas nada possam fornecer senão estranhos argumentos sofísticos.” “quietivo final”

Reconhecidamente, de tempos em tempos repetem-se casos nos quais o suicídio é estendido às crianças. O pai mata os filhos que tanto ama e em seguida a si próprio. Se tivermos em mente que a consciência moral, a religião e todos os conceitos tradicionais fazem reconhecer no assassinato o pior crime; e que, porém, o pai o comete na hora da própria morte e em verdade sem ter nessa ocasião motivo egoístico algum, então o ato só pode ser explanado como se segue. A vontade do indivíduo se reconhece imediatamente nas crianças, enredada na ilusão que envolve o fenômeno como se fosse a essência-em-si e, ademais, profundamento abalado pelo conhecimento da miséria de toda vida, acredita que, ao suprimir o fenômeno, também suprime a essência mesma; portanto, deseja resgatar a si e aos filhos da existência e de suas penúrias.”

Entre esta morte voluntária resultante do extremo da ascese e aquela comum resultante do desespero, deve haver muitos graus intermediários e combinações, sem dúvida difíceis de explanar. Contudo, a mente humana tem profundezas, obscuridades e complicações cuja elucidação e detalhamento são de extrema dificuldade.”

A tendência ao suicídio é especialmente hereditária.”

9. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS

o fim e ideal de qualquer ciência da natureza é, no fundo, um materialismo desenvolvido até as suas últimas consequências.”

o fim da ciência não é a certeza máxima, pois esta pode ser igualmente encontrada até mesmo no conhecimento singular, mais desconexo, mas a facilitação do saber mediante a sua forma (…) dizer (…) que a cientificidade do conhecimento reside na sua maior certeza é uma opinião equivocada, como também é falsa a afirmação daí proveniente de que só a matemática e a lógica seriam ciências no sentido estrito do termo, visto que somente nestas, devido a sua completa aprioridade, tem-se certeza irrefutável do conhecimento.” “o velho erro de que somente aquilo que é demonstrado é completamente verdadeiro (…) Antes, ao contrário, cada demonstração precisa de uma verdade indemonstrável que em última instância sustenta a ela ou a sua demonstração.” Heidegger plagiará essas aspas em Ser e Tempo, sem dar o crédito.

Ora, como todas as demonstrações são silogísticas, não é preciso primeiro procurar demonstração para uma nova verdade, mas uma evidência imediata. Só pelo tempo em que esta se encontra ausente é que a demonstração pode ser provisoriamente fornecida. Nenhuma ciência pode ser absolutamente demonstrável, tampouco quanto um edifício pode sustentar-se no ar. Todas as suas demonstrações têm de ser remetidas a algo intuitivo, por conseguinte não mais demonstrável. (…) Toda evidência última, i.e., originária, é INTUITIVA, o que a palavra já o indica.”

DEBATEDORES E REFUTADORES DE REDES SOCIAIS: “Demonstrações são destinadas não tanto aos que estudam mas antes aos que querem disputar. Estes negam obstinadamente a intelecção imediatamente fundamentada.”

nenhum ramo das ciências naturais, p.ex., a física, a astronomia, a fisiologia, pode ser descoberto de uma só vez, como foi possível com a matemática e a lógica, mas precisaram e precisam de experiências completas e comparadas de muitos séculos.”

Ciências “quantitativas” para o autor: história natural, fisiologia, mineralogia, geologia, mecânica, físico-química…

Chamaríamos, no lugar do “quantitativo” de Sch., de ciências meramente descritivas. Poderia incluir a própria psicologia se fosse uma disciplina formada em sua época.

9.1 A MATEMÁTICA E A LÓGICA: ARISTÓTELES E NIILISMO

De nossa parte exigimos a remissão de cada fundamentação lógica a uma intuitiva. A matemática euclidiana, ao contrário, empenha-se com grande afinco, em todo lugar, em descartar deliberadamente a evidência intuitiva sempre ao alcance da mão, substituindo-a por uma evidência lógica.” “Euclides (…) em vez (…) de nos dar uma intelecção fundamental da essência do triângulo, simplesmente formula algumas proposições desconectadas e escolhidas arbitrariamente acerca dessa figura, fornecendo dela um fundamento de conhecimento lógico por meio de uma demonstração laboriosa conduzida segundo o princípio de contradição. (…) Quase se tem a sensação desconfortável parecida àquela produzida por um truque.” “Outras vezes, como no teorema de Pitágoras, linhas são traçadas sem se saber ao certo por quê; depois se nota que eram laços estendidos para capturar desprevenida a concordância do leitor, o qual, atônito, tem de admitir o que, em seu foro íntimo, permanece completamente inconcebível, tanto mais que pode estudar a matemática euclidiana inteira sem ganhar uma intelecção propriamente dita das leis das relações espaciais, mas apenas aprende de memória alguns de seus resultados.” “Entretanto, a maneira como tudo isso foi conduzido por Euclides mereceu toda a admiração que os séculos lhe dedicaram, indo tão longe a ponto de seu método de tratamento da matemática ter sido declarado modelo de todas as exposições científicas, segundo o qual se procurou modelar as demais ciências.”

É em geral o método analítico o que desejo para a exposição da matemática, em vez do sintético, usado por Euclides.” “Na Alemanha começa esporadicamente a mudar a exposição da matemática, e o caminho analítico é trilhado mais vezes.”

o princípio de contradição mesmo, que é uma verdade metalógica e fundamento universal de toda demonstração lógica. Quem nega a necessidade intuitivamente exposta das relações de uma proposição expressa espacialmente pode com igual direito negar os axiomas, a conclusão enquanto conseqüência das premissas, sim, pode até mesmo negar o princípio de contradição: pois tudo isso são coisas igualmente indemonstráveis, imediatamente evidentes e conhecidas a priori.”

É esse Hobbes o mesmo que, em seu livro De principiis Geometrarum, caracteriza estranhamente seu modo de pensamento, no todo empírico, negando por completo a matemática propriamente pura, ao afirmar, obstinadamente que o ponto possui extensão e a linha possui largura, e, como nunca podemos exibir-lhe um ponto sem extensão e uma linha sem largura, tampouco podemos fazer-lhe compreender a aprioridade da matemática ou a aprioridade do direito, visto que ele se fecha a qualquer conhecimento não-empírico.”

A dependência do fator tempo em toda contagem é-nos revelada pelo fato de que em todas as línguas ‘multiplicação’ é expressa exatamente por tempo, i.e., por um conceito-de-tempo: sexies, six fois, sex mal [seis vezes].” Vez no dicionário: período igual de tempo, do latim para ‘sucessão’.

o conceito de NADA é essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado, que ele nega. Essa qualidade foi atribuída (especialmente por Kant) apenas ao nihil privativum que, sinalizado com (-) em oposição a (+), podia, de um ponto de vista invertido, tornar-se (+). Ora, em oposição ao nihil privativum foi estabelecido o nihil negativum, o qual em toda relação sempre seria nada, utilizando-se como exemplo a contradição lógica,¹ que se suprime a si mesma.” Belo trecho dessa vez, significativamente elucidativo! A propósito, o matemático curioso com relação à filosofia, porém essencialmente leigo, que, lendo passagens como essa, lançasse a hipótese de que a filosofia continental (até Sch., pelo menos) nada mais é que “discussões excessivamente abstratas de matemáticos entre si” estaria de certa forma correto

¹ Princípio aristotélico (princípio da não-contradição), talvez o mais importante da Primeira Filosofia (ironia das ironias, ele não é um conceito meta-Lógico, i.e., não deveria servir para elaborar metafísica, e sim apenas para discussões práticas): Se A é não-B, e se B é não-A, logo: A não pode ser não-A (auto-evidente); não-A é B; B não pode ser não-B; não-B é A. O que seria o ‘nada negativo’ que Schopenhauer enumera? Aquilo que não existe formalmente: um A = não-A ou B = não-B; ou ainda: um superveniente C que se identificasse com A e B ao mesmo tempo (o que seria chamado, desde Aristóteles, também de absurdo ou impossibilidade). O nada não tem lugar no mundo dos fenômenos. Para transcender esse ‘sistema’, teríamos de imaginar um mundo ou uma filosofia contraditórios, i.e., transgredir esse princípio básico da não-contradição, aceitar e abraçar o absurdo e o paradoxal. Este trecho também nos ajuda a compreender por que Schopenhauer “santifica” seu bem ascético, i.e., dá um status de bem absoluto à negação da Vontade, em que pese dizer que o “bem absoluto” é uma contradição e que só existe o bem relativo. Dentro deste quadro de superação-de- ou de aplicação-literal-e-extrema-de-Aristóteles, o filósofo consegue ser coerente consigo mesmo (ele representa o C que se identifica ao mesmo tempo com o A e o B) – levando a lógica às últimas conseqüências do lado de cá (do mundo das aparências e, paradoxalmente, do mundo cristão, que justamente nega por inteiro este mundo das aparências!).

qualquer nada (…) subsumido em um conceito mais amplo é sempre apenas um nihil privativum. (…) exemplo do não-pensável, necessariamente requerido na lógica para demonstrar as leis do pensamento.” “O universalmente tomado como positivo, o qual denominamos SER, e cuja negação é expressa pelo conceito NADA na sua significação mais geral, é exatamente o mundo como representação

Negação, supressão, viragem da Vontade é também supressão e desaparecimento do mundo, seu espelho. Se não miramos mais a Vontade neste espelho, então perguntamos debalde para que direção ela se virou, e em seguida, já que não há mais onde e quando, lamentamos que ela se perdeu no nada.” Mais fácil falar e especular do que escapar efetivamente do problema do nada negativo ou absoluto, do qual não se escapa. Enquanto houver fenômeno, há Vontade. Sempre.

9.2 A ASTRONOMIA

CÉU, O LABORATÓRIO PERFEITO: “Eis o material inteiro da astronomia que, tanto pela sua simplicidade quanto pela sua segurança, conduz a resultados definitivos e muito interessantes, fazendo jus à grandeza e importância de seus temas. P.ex., se conheço a massa de um planeta e a distância de seu satélite, posso concluir com certeza o período de translação do último conforme a segunda lei de Kepler. O fundamento dessa lei é que, a essa distância, apenas essa velocidade determinada é capaz de manter o satélite orbitando em torno do seu planeta, impedindo que caia nele.”

o movimento aparente dos planetas é conhecido empiricamente. Depois de muitas hipóteses falsas sobre a relação espacial desse movimento (órbita planetária), a hipótese verdadeira foi finalmente encontrada, bem como as leis que o movimento segue (as leis de Kepler). Por fim, também a causa destes (gravitação universal) e a concordância empiricamente conhecida de todos os casos observados com o conjunto inteiro das hipóteses e suas conseqüências (…) forneceram a certeza completa.”

não se deve procurar nenhum primeiro empuxo para a força centrífuga, mas ela, nos planetas, conforme a hipótese de Kant e Laplace, é o resíduo da rotação originária do corpo central, de onde os planetas se separaram e esse corpo se contraiu, e ao qual o movimento é essencial: ele ainda possui rotação e vaga ao mesmo tempo no espaço sem fim, ou translada talvez em torno de um corpo central maior, invisível para nós. Essa visão concorda inteiramente com a conjetura dos astrônomos acerca de um sol central e também com o distanciamento observado de todo o nosso sistema solar, e talvez de toda a galáxia à qual pertence o nosso sol” Toda periferia tem um centro, e o centro mesmo é uma periferia de outro centro maior e no entanto mais ignoto.

9.3 A FÍSICA

Ah, se não se fosse tão estúpido a ponto de se ver quase que paralisado por conta dos grandes fenômenos! Assim como, erradamente, criaram uma alma para o cérebro, deveriam, seguindo o exemplo, ter explicado a digestão por uma alma no estômago, a vegetação por uma alma na planta, a afinidade química por uma alma nos reagentes, aliás, até a queda de uma pedra pela alma da pedra.”

sempre restarão forças originárias; sempre restará, como resíduo insolúvel, um conteúdo do fenômeno que não pode ser remetido a sua forma; sempre restará, portanto, algo não mais explanável por outra coisa senão, e em conformidade com, o princípio de razão.

A altura a que as ciências naturais se alçaram em nosso tempo ridiculariza todos os séculos passados, e este é um píncaro que a humanidade atinge pela primeira vez. Mas não importa quão majestosos sejam os avanços que a física (entendida no amplo sentido dos antigos) nos possa proporcionar, nem o menor dos passos foi dado no caminho de uma metafísica, assim como um avião jamais obterá proporcionalmente mais espaço cúbico (volume) por ser maior longitudinalmente. E não é só: mesmo que o homem viajasse por todos os planetas e estrelas fixas, ainda nem por isso ter-se-ia aproximado um passo dessa metafísica. É justamente o caso contrário: o de que quão maiores forem os avanços na física mais sentiremos a necessidade de uma metafísica.

Somente se nos privarmos à força dessa primária e simples informação [de que tudo tem uma causa] podemos por um breve período nos maravilharmos com o processo de nossas próprias ações corpóreas como um milagre, quer seja, o de que entre o ato da vontade e a ação do corpo não há, realmente, conexão causal, posto que são diretamente idênticos, sua aparente diferença residindo na simples circunstância de que, aqui, o que é um e o mesmo é apreendido por nós como 2 modos diferentes de conhecimento, o externo e o interno [movimento material x intenção].”

Na Alemanha, os ensinamentos de Kant preveniram a continuidade irrestrita das absurdidades da física atomística e puramente mecânica; muito embora no presente mais imediato essas concepções prevaleçam por aqui, isto é conseqüência da frivolidade, opacidade, crueza e tontice reintroduzidas por Hegel em nosso meio.”

O materialismo inevitavelmente se converte em atomismo; como já aconteceu em sua infância nas mãos de Leucipo e Demócrito, e vem acontecendo novamente na sua segunda infância, causada pela idade; com os franceses porque eles nunca chegaram à filosofia kantiana, e com os alemães porque eles a esqueceram. E esse movimento é levado muito além nessa segunda infância. Não só corpos sólidos são ditos como consistindo de átomos, mas até os líquidos, a água, e depois o ar, os gases, não, mesmo a luz, que, dizem as teorias materialistas, consiste em ondulações de um éter completamente hipotético, impassível de prova mesmo pelo dogmatismo empiricista. Segundo eles a luz consistiria de átomos, explicando-se as diferentes cores pela rapidez variável dessas ondulações. Essa é uma hipótese científica que, como com a velha teoria das 7 cores de Newton, começa a partir de uma analogia com a música, inteiramente arbitrária e violentamente levada adiante.”

CRÍTICA AOS NEOMATERIALISTAS OU MATERIALISTAS MECANICISTAS E DETERMINISTAS (Schopenhauer nunca chegou a conhecer o Marxismo): “Diferentes movimentos perpétuos são então atribuídos a todos os átomos, rotações, vibrações, &c., de acordo com a função de cada qual; da mesma forma todo átomo tem sua atmosfera ou éter, ou então algo mais, e tudo que for necessário para dar plausibilidade à teoria é posteriormente acrescentado. As inventividades da filosofia da natureza de Schelling e seus discípulos eram, pelo menos, engenhosas, altivas, ou no mínimo sagazes; mas estes, [refere-se aos materialistas ruins de sua época] pelo contrário, são desajeitados, insípidos, reles e estranhos; há agora a legítima produção de mentes que são, acima de tudo, incapazes de conceber qualquer outra realidade que não a de uma matéria fabulosa, sem-qualidade. Essa matéria é um objeto absoluto, a saber, um objeto sem sujeito. Em segundo lugar, esses neo-materialistas não pensam em nenhuma outra atividade que não seja movimento e impacto: esses dois, e somente esses dois, são-lhes compreensíveis. Que tudo possa ser reduzido a movimento e impacto é sua afirmação a priori; é a coisa-em-si deles.” “Para eles o curso do mundo é como o de um relógio depois que o relojoeiro montou todas as peças e lhe deu corda, isto é, aqueceu-o, estimulou-o, tornou-o frenético. Daí que, deste ponto de vista artificial e incontestável, vemos o universo convertido em mera máquina ou engrenagem, cujo propósito nos é insondável. Mas ainda que, mesmo sem justificativas palpáveis para isso, aliás, no fundo, a despeito de toda o caráter concebível da coisa e de se a imaginar regida perfeitamente por leis físicas, ainda que alguém assumisse a seu bel prazer um primeiro começo, nada seria por isso essencialmente modificado. Pois a primeira condição das coisas, arbitrariamente estabelecida, por óbvio, determinaria de antemão e automaticamente, fixando-os irrevogavelmente – dos mínimos detalhes ao todo do sistema –, todos os estados sucedâneos.” Não deixaria de ser um postulado totalmente correto – tirante que não se aplica, evidentemente, à natureza humana que é a da responsabilidade pela própria existência! Ou seja: se a estética pudesse viver sem a ética e vice-versa, até que estes toscos materialistas poderiam ser sábios; no mundo como ele é, entretanto, são apenas uns parvos.

Se um insight direto dos trabalhos da natureza nos fosse possível, forçosamente reconheceríamos que o espanto e admiração provocados pela teleologia são análogos aos sentimentos experimentados pelo selvagem descrito por Kant em sua explicação do cômico e do riso na Crítica da faculdade do juízo. O selvagem em questão, quando viu espuma jorrar de uma garrafa de cerveja recém-aberta, disse assim: Não é que eu esteja espantado pelo jeito como esta espuma saiu da garrafa; estou espantado que qualquer um consiga colocá-la aí dentro!Não podemos responder como o que existe, existe; apenas confessar que existem e conformarmo-nos.

9.4 A BIOLOGIA

Tampouco a explanação fisiológica da vida vegetativa (functiones naturales, vitales), por mais longe que se vá, pode suprimir a verdade de que toda vida animal a se desenvolver nesses moldes é ela mesma fenômeno da Vontade. De modo geral, como foi elucidado antes, cada explanação etiológica só pode fornecer a posição necessariamente determinada no espaço e no tempo de um fenômeno particular, seu aparecimento necessário conforme uma regra fixa. Mas por essa via a essência íntima do fenômeno permanece sempre infundada, sendo pressuposta por qualquer explanação etiológica, e apenas indicada pelo nome força, lei natural ou, caso se trate de ações, caráter, vontade.”

O cão está para o homem como a taça de vidro está para a taça de metal, e é por isso que o cão é-nos tão querido: dá-nos imenso prazer perceber nele todas essas inclinações e emoções que nós mesmos, em nosso cotidiano, escondemos e disfarçamos tão bem de nossos iguais; e exibidas, o que é mais, de modo tão simples e franco por cada exemplar diante de seu dono.”

a opinião, tão afetada e forçada em nossos dias, de que há vida no que não é organizado, aliás no globo em si mesmo, e de que, também, o sistema planetário inteiro seria um organismo, é inteiramente inadmissível.” Curioso, porém: atende-se ao pré-requisito estabelecido por Schopenhauer para seres organizados da manutenção da forma (circular, cíclica), com mudança constante de material, isto é, sol, cometas, asteróides e planetas não estão quimicamente congelados no tempo e mantêm entre si uma certa homeostase ‘individual’ e ‘sistemática’. Poder-se-ia objetar que o núcleo da terra ou do sol não poderiam se manter com uma simples troca atômica (mudança de material), mas poderá ser que as constantes mudanças na superfície da terra e da lua – para citarmos só dois corpos celestes – não afetam sua existência? Na verdade essa questão não faz sentido justamente por não se tratar de vida – forma-conteúdo são unos na transformação climática que está acontecendo, p.ex..

Para muitos filósofos de baixa qualidade, toda teleologia é ao mesmo tempo uma teologia, e a cada instância de finalidade reconhecida na natureza, em vez de pensar e aprender a compreendê-la, eles prorrompem no seu grito infantilizado, ‘Propósito! Propósito!’, começam a usar os refrões da velha e sempre subsistente filosofia de comadronas (o ápice do pensamento domesticado) e se tornam surdos a qualquer argumento da razão, como, p.ex., o grande Hume já lhes tinha lançado antes mesmo de eles nascerem.” Traduzindo este parágrafo para uma linguagem mais direta e acessível: se é para fazer metafísica de baixa qualidade, o melhor mesmo é seguir em investigações empíricas sobre a natureza, sem tecer nenhuma hipótese maior que as próprias pernas.

Por que o indivíduo existe seria respondido de forma clara; mas por que existe a espécie mesma? Essa é uma pergunta que a natureza, quando considerada de forma meramente objetiva, não pode responder.”

Devo aqui expressar a minha opinião de que não há pele de cor branca natural no homem. Originalmente ele só pode ter tido pele negra ou parda, como nossos ancestrais os hindus. Um homem branco nunca nasceu do útero da Mãe-Natureza; não há o que chamam de ‘raça branca’. Todo homem branco de hoje é resultado do desbotamento gradual da cor, de um clareamento artificial de gerações. (…) Os ciganos, uma raça indiana que migrou à Europa há não mais do que 400 anos, demonstram o estado de transição entre a compleição dos hindus e a nossa. Nos impulsos de procriação, a natureza que fala no homem deseja o retorno dos cabelos negros e dos olhos marrons, que são o fenótipo primitivo.”

10. A MEDICINA

Não está ao nosso alcance ensinar e aprender in abstracto uma Fisionômica, porque as nuances são aqui tão sutis que conceito algum tem flexibilidade para lhes corresponder. Conseqüentemente, o saber abstrato está para elas como uma imagem de mosaico está para um quadro de VAN DER WERF ou DENNER.” Gall e Lavater como imbecis altamente intuitivos que creram poder ensinar algo inócuo e amorfo – sobre formas! – em calhamaços… Sua sensação de que “ninguém houve de semelhante antes de mim” induziu-os ao erro de se crerem gênios, mas tão-só lidavam com algo que não era passível de ser ensinado, e ninguém intuitivo como eles quis ser tão temerário.

Por isso sou da opinião de que a [ciência] fisionômica não pode avançar com segurança a não ser até o estabelecimento de algumas regras muito gerais, como p.ex. estas: na testa e nos olhos pode-se ler o que há de intelectual numa pessoa, já na boca e na metade inferior da face o que há de ético, as manifestações da vontade. Testa e olhos se explicitam reciprocamente: tomados isoladamente são compreensíveis apenas pela metade. O gênio nunca é sem uma testa alta, larga, belamente arqueada, mas a recíproca amiúde não é verdadeira. O espírito pode ser inferido de um semblante espirituoso tanto mais seguramente quanto mais feia for a face, e, de um semblante estúpido pode-se inferir tanto mais seguramente a estupidez quanto mais bela for a face; porque a beleza, enquanto correspondência com o tipo da espécie, já porta em e por si a expressão da clareza espiritual, o contrário ocorrendo com a fealdade, etc.” Varg Vikernes possui uma face estúpida quando jovem; depois, uma expressão austera, que no entanto nos ludibria (feiúra encobridora), posto que ele não é um sábio (confirmação da regra).

A sensibilidade em si mesma é totalmente incapaz de contrair um músculo sequer. Isso só pode ser realizado pelo próprio músculo, e sua capacidade para realizá-lo é chamada irritabilidade, i.e., suscetibilidade ao estímulo.” “a Vontade é o substrato metafísico da irritabilidade do músculo”

Ultimamente, a perspectiva fisiológica tem, finalmente, prevalecido na Patologia. Segundo esta, doenças são em si um processo curativo da natureza, que esta última introduz a fim de remover, superando suas causas, uma desordem que de alguma forma inoculou-se no organismo. Na batalha decisiva, a crise, esse processo regenerador é ou vitorioso, reconquistando a saúde para o organismo, ou derrotado.” “Por outro lado, que a vontade¹ seja ela própria a enfermidade, como afirmou Brandis repetidas vezes em sua obra Über die Anwendung der Kälte, [Sobre o emprego do frio (para a cura das doenças)] que citei na 1ª parte do meu ensaio Sobre a Vontade na Natureza, isso não passa de um grande mal-entendido.”

¹ Entendo que se esteja empregando o termo aqui no sentido mais fisiológico da coisa, i.e., temperamento ou disposição do paciente, daí a tradução pela letra minúscula.

As reflexões de Bichat e as minhas apóiam-se reciprocamente: sua obra é o comentário fisiológico da minha; e a minha é o comentário filosófico da dele. Seria melhor para o leitor isolado de qualquer um de nós que lesse o outro, para melhor entender cada qual.” “Como anatomista e fisiologista ele principia pelo objetivo, i.e., a consciência de outras coisas; eu, como filósofo, principio pelo subjetivo, a auto-consciência.”

um corpo desajeitado e atrapalhado indica pensamentos desajeitados e atrapalhados, e será visto como sinal de estupidez tanto em indivíduos quanto no caráter geral das nações, tanto como a ausência de autocontrole e a vacuidade do olhar. Outro sintoma do estado fisiológico em questão (a falta de inteligência) é o fato corrente de que muitas pessoas, ao dialogarem em movimento, se vêem obrigadas a parar no meio do passeio sempre que a conversação com um outro, que siga caminhando normalmente, comece a estabelecer múltiplas conexões e entrelaçamentos temáticos; o cérebro destes primeiros, tão limitado, assim que se vê premido a juntar pensamentos abstratos de ordem não tão mesquinha, vê-se sem reservas energéticas e tem de usar também o poder de concentração que lhe era necessário a fim de manter os membros em livre movimentação, isto é, a motricidade nervosa do tolo tem de se dedicar à conversa, uma vez que no mundo das pessoas que vivem mergulhadas nas aparências o que há de mais profundo para elas ainda está muito perto da superfície mais elementar, é tudo uma coisa só. [!!]As pessoas que não conhecem o – ou nunca fixaram o olhar no – abismo.

10.1 CONTRIBUIÇÕES À PSIQUIATRIA (FISIOLOGIA DO GÊNIO)

Que veementes sofrimentos espirituais ou terríveis e inesperados eventos com freqüência ocasionam a loucura, explano-o da seguinte maneira. Todo sofrimento desse tipo está sempre limitado, enquanto acontecimento real, ao presente. Nesse sentido, é sempre transitório e, assim, nunca excessivamente grave.” “quando um tal desgosto, um tal saber doloroso, ou pensamento, é tão atormentador que se torna absolutamente insuportável e o indivíduo poderia sucumbir a ele, a natureza assim angustiada recorre à LOUCURA como último meio de salvação da vida.” “Como exemplo considere-se o furioso Ajax, o rei Lear e Ofélia.”

um pulso enérgico e até mesmo, de acordo com Bichat, um pescoço enxuto, são pré-requisito para atividades de ordem superior no cérebro. (…) Mas o oposto do acima também ocorre: desejos veementes, caráter afetado e violento, tudo isso aliado a um baixo intelecto, i.e., cérebro pequeno de má conformação num crânio não obstante largo. Este é um fenômeno tão comum quanto repulsivo: podemos compará-lo à aparência da beterraba.”

A ESTUPIDIFICAÇÃO DO SEU PRINCIPAL SUCESSOR (HEBETUDE RETARDADA): “mediante o esforço repetitivo nosso intelecto se afadiga até a completa estupefação, se torna exausto, como uma pilha voltaica depois de sucessivos choques. Sendo assim, todo labor mental contínuo demanda pausas e descanso; de outra forma a estupidez e a incapacidade seguem, a princípio, é claro, apenas temporariamente; mas se esse descanso é persistentemente negligenciado ao intelecto, ele tornar-se-á excessiva e ininterruptamente cansado, e a conseqüência é uma deterioração permanente, que num homem já velho passa por completa incapacidade, infantilidade, imbecilidade, e finalmente loucura. Esta não deve ser atribuída à idade, em e por si mesma, mas a esforços cerebrais demasiados, tiranicamente longos e incessantes, no caso de sobrevir no fim da vida. Essa é a razão de Swift ter terminado louco, de Kant se ter tornado infantil, de Walter Scott, mas também Wordsworth, Southey e muita minorum gentium [gente pequena, anônimos] acabarem como tolos ineptos. Goethe permaneceu até o fim lúcido, vigoroso e de mente muito ativa, porque ele, que nunca deixou de ser um homem do mundo e um cortesão, nunca transformou suas ocupações em compulsão. O mesmo pode-se dizer positivamente de Wieland e Kuebel, este último vivo até os 91, e também de Voltaire. Tudo que acabei de dizer prova quão subordinado e material, e que mera ferramenta, o intelecto é. É por isso que seu cultivo requer, pela terça parte da vida, sua suspensão no estado do sono, i.e., o repouso do cérebro, do qual o intelecto é mera função, tanto que não existe intelecto sem cérebro apesar de poder existir o contrário, além do estômago necessariamente preceder a digestão, ou o corpo preceder suas impulsões, de modo que em idade avançada não só o corpo como os instintos se debilitam e decaem. A Vontade, por outro lado, como a coisa-em-si, nunca é lerda, é absolutamente incansável, sua atividade é sua essência, nunca deixa de desejar, e quando, durante o sono profundo, abandona o intelecto, e assim não pode agir exteriormente por motivos compreensíveis, é ativa como a força vital, preocupa-se sem cessar com a economia interna do organismo e, enquanto vis naturae medicatrix (vontade natural regeneradora), trata de pôr em ordem as irregularidades que nele vicejavam.”

Supostamente chegamos ao ápice das condições físicas e mentais ao redor do trigésimo aniversário, por conta da dependência que temos da pressão do sangue e do efeito da pulsação sobre o cérebro, época em que também passa a haver a predominância do sistema arterial sobre o venoso, produzindo a maior elasticidade das fibras cerebrais, sendo que ainda por cima nesta etapa não declinamos em relação ao sistema genital despertado na adolescência. Já por volta do 35º ano, uma leve diminuição da energia física do cérebro se torna perceptível, e o sistema venoso voltando a se tornar preponderante, bem como ocorrendo um relativo endurecimento da consistência do tecido cerebral, tudo isso – que é ainda mais notável no sujeito sedentário que não exercita o corpo, no sujeito que não utiliza as faculdades mentais com constância, no sujeito que não aprende com experiências ou não atravessa muitas experiências, no sujeito que não acumula conhecimento, no sujeito que não cultiva uma habilidade de caráter holístico, coisas que como que contrabalançam todas essas perdas – pode ainda decair de modo gradual e pouco acentuado até uma idade muito avançada. Em suma, é o cérebro similar a um instrumento que vai se desgastando aos poucos, e a velocidade do desgaste depende daquele que o utiliza.”

Montaigne diz de si mesmo que sempre foi um dorminhoco. Que passou uma larga parte de sua vida dormindo, e que na velhice ainda dormia de 8 a 9 horas por noite (III, capítulo 13). Descartes, segundo consta, também era um grande dorminhoco (Baillet, Vie de Descartes, 1693, p. 288). Kant se permitia 7 horas de sono somente, mas era tão difícil para ele despertar que acabou ordenando a seu mordomo que o forçasse, contra sua vontade, sem ouvir qualquer objeção sua de manhã; só assim para conseguir ficar de pé (Jachmann, Immanuel Kant, p. 162). Isso se explica pela razão de que quanto mais um homem é desperto, quer seja, quão mais clara e ativa é sua consciência, maior é sua necessidade de sono, tanto em qualidade quanto em quantidade. Naturezas pensantes ou árduos exercitadores de trabalhos cerebrais devem reservar para seu organismo mais tempo para regenerar as energias. Que um exercício muscular continuado também nos deixa sonolentos pode ser explicado pelo fato de que o cérebro, através da medula oblongata, a medula espinhal e os nervos motores, distribui o estímulo aos músculos, gerando sua irritabilidade, e dessa forma, prolongando-se o esforço, exaure sua força. A fadiga observada nos braços e pernas tem, portanto, origem no cérebro; a dor que essas partes ‘sentem’ é em realidade experimentada pelo cérebro, conectado aos nervos motores tanto quanto aos nervos dos sentidos.”

No sonambulismo magnético a consciência é duplicada: 2 correntes de pensamento, cada uma auto-suficiente, mas um tanto diferentes uma da outra, surgem; a consciência desperta nada sabe da sonambúlica. Mas o temperamento e o caráter são idênticos em ambas, eles são invariáveis no indivíduo; ambas as personalidades exprimem as mesmas inclinações e aversões. A função pode até estar duplicada, mas não a natureza essencial.” À luz do que os otimistas da protopsiquiatria e da primeira psiquiatria dinâmica do séc. XIX afirmavam, Sch. se mostra, novamente, pelo menos meio século à frente de seu tempo neste assunto (magnetismo animal). Janet o corrobora por inteiro em seu Automatismo psicológico.

A Vontade em si está presente em todo o organismo, já que este é meramente sua forma visível; o sistema nervoso existe em todas as partes meramente para o propósito de possibilitar o direcionamento da ação adjudicando-se o controle, como se o corpo servisse à Vontade como um espelho, para que esta veja aquilo que executa, assim como nós usamos um espelho para nos barbearmos.”

OS TESTARUDOS: “O cérebro desses seres deve ter uma conformação muito original em relação aos outros. Seu desenvolvimento é, na comparação, descomunal, em magnitude física tanto quanto em características espirituais. O cérebro do gênio é particularmente largo e alto. Na outra mão, sua profundidade será inferior, e o cerebrum preponderará de forma anormal em proporção ao cerebellum(…) Mas nosso conhecimento não é ainda suficiente para determinar as relações das partes com o todo no cérebro com exatidão, embora reconheçamos facilmente aquela forma craniana que indica inteligência elevada e nobreza.² (…) decerto que a proporção quantitativa da matéria branca para a matéria cinzenta tem influência decisiva, o que, lamentavelmente, não podemos especificar mais no momento.³ O estudo post-mortem do corpo de Byron (apud Medwin) demonstrou que em seu caso a matéria branca estava em uma proporção desusadamente superior comparada com a matéria cinza; constatou-se, também, que o cérebro pesava 2,72kg.” O que é matéria cinzenta num mundo de ruído branco? O que é matéria branca num mundo poluído e cinzento?

¹ Essencialmente Schopenhauer postula uma preponderância muito maior dos setores cerebrais ligados à inteligência e emoção que do setor ligado ao trabalho muscular e regulação da postura. Se a anatomia cerebral continua tão simplista quanto em sua época (sem endeusar qualquer neurologia, mas creio que não vem a ser inteiramente o caso), podemos ter certeza de que nenhum gênio no futebol é um gênio no sentido filosófico aqui tratado, e todos possuem cerebelos bem avantajados!

² E essa ignorância das relações entre as partes do nosso sistema nervoso permanecem, 150 anos depois. Ninguém pode afirmar nada nessa área sem correr um grande risco de desmentido.

³ O engraçado é que a matéria cinzenta é popular e pelo visto cientificamente mais associada hoje ao que Sch. atribuía à matéria branca, cf. Wikipédia: “Enquanto a substância cinzenta (composta de neurônios) é primeiramente relacionada com processamento e cognição, a substância branca (composta de axônios mielíticos) modula a distribuição de ações potenciais, agindo como um reléa e coordenando a comunicação entre diferentes regiões cerebrais.” Mais um motivo, ironicamente, para o gênio ter realmente mais matéria branca, como se disse de Byron, e para Sch. estar errado quanto a sua tese da preponderância do intelecto, e não da vontade, no gênio (ver 12.5 para mais detalhes).

a “relé, s.m. Aparelho que retransmite o sinal que recebe, amplificando-o consideravelmente; Aparelho capaz de fazer com que uma energia menor [o cerebellum, invertendo o que Sch. disse, anormalmente maior no gênio] controle outra maior [o cerebrum].”

Mesmo a delicadeza da conformação nervosa no indivíduo não é suficiente para suscitar o fenômeno do gênio se a herança do pai não é adicionada,¹ um temperamento vívido e apaixonado, que se exibe somaticamente como energia transbordante – anormal – provinda do coração, e conseqüentemente da circulação do sangue, especialmente no que toca à irrigação da cabeça.”

¹ Schopenhauer tem a idéia fixa de que o gênio está estritamente associado ao caráter do masculino. Isso interfere com sua misoginia exacerbada, mais explorada num tópico à parte, o nº 13.

A condição descrita acima, i.e., a herança do temperamento paterno, porém num cérebro mal-organizado, dá vivacidade sem presença de espírito, acaloramento sem luz, gera pessoas irritáveis, homens de uma insuportável motricidade e petulância. Que em dois irmãos só um tenha gênio, e esse geralmente o mais velho, o caso de Kant, p.ex., é em primeiro lugar explicado pelo fato de que o pai estava na idade do vigor e da paixão somente à concepção do gênio.” Idiossincrasias schopenhauerianas sem qualquer fundamento.

11. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS

Quando concebemos uma hipótese, temos olhos de lince para qualquer dado que a confirme, e olhos de míope para qualquer coisa que a contradiga.”

Podemos considerar o ponto em que o entendimento faz a transição da mera sensação sobre a retina à causa dessa sensação como as fronteiras entre o mundo como vontade e o mundo como representação.”

11.1 A HISTÓRIA

As ciências propriamente classificatórias: zoologia, botânica, também a física e a química (na medida em que reduzem todo fazer-efeito inorgânico a poucas forças fundamentais), possuem o maior número de subordinações. A história, ao contrário, propriamente dizendo, não possui subordinação alguma, pois o universal nela consiste apenas na visão panorâmica dos principais períodos, dos quais, porém, não se podem deduzir eventos particulares – os quais estão subordinados só ao tempo e coordenados segundo o conceito. Conseqüentemente, a história, tomada em sentido estrito, é sem dúvida um saber, mas não uma ciência.”

A verdadeira sabedoria não é adquirida medindo-se o mundo ilimitado ou, o que seria mais pertinente, sobrevoando pessoalmente o espaço infinito, mas antes investigando qualquer coisa em particular, procurando conhecer e compreender perfeitamente a sua essência verdadeira e própria.” Quem não entende a ausência-de-fim do momento presente não pode ser historiador.

Também a experiência e a história ensinam a conhecer o homem; contudo, mais freqüentemente OS homens e não O homem”

Agora vemos como também os historiadores antigos seguiam o preceito de Winckelmann de que o retrato deve ser o ideal do indivíduo (…) Já os novos historiadores, diferentemente, salvo raras exceções, apresentam na maioria das vezes apenas ‘um barril de entulhos e inutilidades, e quando muito uma ação principal de Estado’.”

É errado afirmar que as autobiografias são cheias de engodo e dissimulação. A mentira é em toda parte possível, mas talvez em nenhum outro lugar é mais difícil do que justamente na autobiografia.”

Verificamos que as 3 raças de homem que, tanto em traços fisiológicos como lingüísticos, são indubitavelmente independentes em suas origens, quer seja, os caucasianos, os mongóis e o etíopes, encontram-se em casa apenas no Velho Mundo. A América é povoada pela raça mongol misturada e climaticamente modificada, que com toda a probabilidade veio da Ásia.”

A história será mais interessante quão mais especializada for sua narração, mas assim perde em credibilidade, pois adquire ares de romance.”

Ao passo em que a história nos ensina que a cada ocasião algo mais ocorreu, a filosofia tenta convencer o sujeito da constatação única de que todos os tempos e lugares foram, são e serão exatamente os mesmos.”

Histórias construtivas, guiadas por um otimismo e idéia de raça ou povo como fins em si, sempre se consumam num Estado gordo, rico e confortável, com uma constituição bem-regulada, boa justiça e polícia, artes úteis, indústrias integradas ao social e, sobretudo, numa atmosfera de perfeição intelectual. Esse quadro não é ruim para uma ficção: o bom ficcionista ou teleologista sabe que a moral permanece essencialmente inalterável.”

Aquele que leu Heródoto já estudou história o bastante, do ponto de vista filosófico. Tudo que forjará a história dos próximos séculos já está lá: os esforços, ações, sofrimentos, e o destino da raça humana.”

A história deve ser vista como a razão, ou a consciência reflexiva, da raça humana, e ocupa o lugar de uma autoconsciência imediata comum a todos, de modo que só através dela a raça humana vem a ser um todo, vem a ser humanidade.”

Da mesma forma, o que a linguagem é para a razão dos indivíduos, como condição indispensável de seu uso, a escrita é para a razão da coletividade humana; porque só depois da escrita é que sua existência real começa, como a existência de cada um principia com a aquisição da linguagem. Escrever serve para restaurar a unidade da consciência coletiva, que é constantemente interrompida pela morte, e portanto é fragmentária. Assim, o pensamento do antepassado é pensado pelo seu descendente remoto. A escrita é o remédio para a cisão da humanidade e da consciência dessa humanidade em um número infinito de individualidades efêmeras, e é também, portanto, um clamor contra o próprio tempo, que sempre favorece o esquecimento. E não só a escrita: para completar essa memória, devemos prestar atenção nos monumentos de pedra, que em grande parte são mais antigos que aquela. Quem acreditaria, não fossem os grandes monumentos, que houve um tempo em que, a um custo incalculável, alguns poucos indivíduos mobilizaram com seu poder uma multidão de milhares por tantos anos a fim de construir as pirâmides do Egito, monolitos, tumbas rochosas, obeliscos, templos e outras construções que sobreviveram milênios? Comparadas a essa magnitude temporal, quão mesquinha não é a vida do indivíduo, insuficiente em si mesma para ver o início e o fim de uma obra desse vulto? Por gerações sem conta os faraós mantiveram de pé o fim ostensivo que tinham em mente, usando a ignorância da maioria como meio. E que fim era esse? Falar a seus descendentes remotos, conectar-se a eles, estabelecer, a sua maneira, a unidade da consciência da humanidade. Os edifícios dos hindus, dos egípcios, mesmo dos gregos e romanos, foram calculados para durar milhares de anos, porque do alto de sua cultura elevada eles enxergavam um horizonte mais amplo. Já as edificações da Idade Média e dos tempos modernos só tem sua função imediata em vista, e não foram erguidas para durar mais que alguns séculos, no máximo. Em parte, confessemos, isso se deve já ao fato de o homem depois da Antiguidade depositar mais confiança na difusão da escrita para cumprir o papel desse elo histórico de gerações. Desde o nascimento da arte da imprensa, isso ganha uma proeminência extraordinária. Não é dizer que morreu o desejo de, através da arquitetura contemporânea, preservar um legado, falar com a posteridade. É sempre uma desgraça quando um grande monumento é destruído ou desfigurado para servir a fins utilitários vis. Monumentos da escrita têm menos a temer dos elementos, em comparação com os bárbaros.¹ Os egípcios bem quiseram combinar ambas as formas (arquitetura + escritura), pois supriram suas construções com hieróglifos, ou melhor, adicionaram mesmo pinturas em caso de que os hieróglifos não pudessem mais ser decriptados.”

¹ Antecipa brilhantemente o nazismo, a época neo-inquisitorial em que se queimaram pilhas de livros. Ou seja: temos menos a temer de tsunamis e terremotos que do próprio lobo do homem.

A história está para a poesia como a pintura de retratos está para a pintura histórica, pois a história dá o verdadeiro no particular, a poesia no universal.”

11.2 O DIREITO

O conceito de injustiça – sua negação da justiça, conceito originariamente MORAL – torna-se JURÍDICO pela mudança do ponto de partida do lado ativo para o passivo, ou seja, por inversão. Isso, ao lado da doutrina do direito de Kant, a qual, do imperativo categórico, deduz falsamente a fundação do Estado como um dever moral, deu origem aqui e ali, nos novos tempos, ao erro bastante esquisito e grosseiro de que o Estado seria uma instituição para o fomento da moralidade [e não seu contrário!] e que teria se originado graças aos contínuos esforços em promover essa moralidade, sendo, portanto, orientado contra o egoísmo. [quando obviamente estabelece um poder político concentrado onde antes havia de facto uma política e uma governança em alguma medida altruístas]“Mais disparatado ainda é o teorema de que o Estado seria condição da liberdade em sentido moral e, com isso, da própria existência da moralidade.”

Kant faz a afirmação fundamentalmente falsa de que, exteriormente ao Estado, não há direito algum de propriedade. Só que, em conformidade com a nossa dedução recém-feita, há sim propriedade no Estado de natureza, lastreada em direito perfeitamente natural, i.e., moral, o qual não pode ser violado sem injustiça, podendo pois ser defendido sem injustiça. Por outro lado, e isto também é certo, fora do Estado não há DIREITO PENAL. Todo direito de punir é estabelecido exclusivamente pela lei positiva, que, ANTES do delito mesmo, determinou uma punição para ele e cuja ameaça, como contra-motivo, deve sobrepor-se a todo possível motivo que conduz ao delito. Essa lei positiva deve ser vista como reconhecida e sancionada por todos os cidadãos do Estado. Ela, portanto, funda-se sobre um contrato comum, a cujo cumprimento os membros do Estado estão obrigados em todas as circunstâncias. Destarte, deve-se, de um lado, infligir a punição ou, de outro, recebê-la. Destarte, a aceitação de uma punição é algo que pode ser imposto pelo direito. De toda essa cadeia se segue que o imediato OBJETIVO DA PUNIÇÃO num caso particular é CUMPRIR A LEI COMO UM CONTRATO. Por sua vez, o único objetivo da LEI é IMPEDIR o menosprezo dos direitos alheios, pois, para que cada um seja protegido do sofrimento da injustiça, unem-se todos em Estado, renunciando à prática da injustiça e assumindo o fardo da manutenção dele.”

Retaliação do mal, com o mal sem ulterior finalidade, não é moralmente, nem de qualquer outra maneira, justificável, porque inexiste um fundamento da razão para tal, e a jus talionis estabelecida como um princípio independente e último do direito penal carece de sentido. Por conseguinte, a teoria kantiana da punição, concebida como retaliação pela vontade de retaliação, é uma visão totalmente infundada, perversa. No entanto, seus vestígios sempre se fazem presentes nos escritos dos jurisconsultos, na forma de perífrases imponentes, verborragia oca, como aquela de que, pela punição, o delito é expiado ou neutralizado ou suprimido e coisas semelhantes.”

11.3 SOBRE A EVOLUÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS LÍNGUAS: SUMA DEPRECIAÇÃO DO HOMEM ALEMÃO

A necessidade mais imediata de se aprender os idiomas antigos se liga aos arcaicos termini technici, e eles estão cada vez sob maior perigo de negligência mediante o uso de línguas contemporâneas nas investigações eruditas. Se efetivamente esse aprendizado [do latim e do grego] vier a caducar, se o espírito dos antigos, indissociável de suas línguas, desaparecer da educação liberal, toda essa rudeza, insipidez e vulgaridade tomarão posse completa da literatura. As obras dos antigos são a estrela-guia de todo esforço literário ou artístico; se estas obras desaparecem, a literatura e a arte vão junto. Hoje mesmo somos testemunha da miséria e puerilidade de estilo da grande maioria dos escritores – e parte disso se justifica pelo fato de essa geração nunca ter escrito em latim. Uma das maiores utilidades do estudo dos antigos é nos resguardar da verbosidade; os antigos não medem esforços para escrever de modo conciso e calculado. O erro básico dos modernos é a prolixidade, o que os escritores da atualidade começam a tentar disfarçar cortando cada vez mais letras e sílabas e inventando abreviaturas que se tornam lugares-comuns. Sendo assim, é um imperativo empreender o estudo dos antigos por toda a nossa vida, muito embora depois de um tempo as horas dedicados a esses autores possam diminuir bastante. Os antigos sabiam dessa verdade: não se deve escrever como se fala. Os modernos, por outro lado, não têm sequer vergonha de imprimir aulas e congressos que ministram! O estudo dos autores clássicos é muito convenientemente chamado de estudos nas Humanidades, porque através deles o aluno, antes de tudo, torna-se novamente homem, pois ingressa naquele mundo que era ainda livre das absurdidades da idade média e do romantismo, que vieram a penetrar tão fundo na população européia que mesmo na atualidade [meados do século XIX] qualquer recém-nascido já nasce soterrado por esses escombros (preconceitos). Nossa primeira obrigação é nos livrar de todo esse lixo para voltarmos a sermos homens. Jamais pensemos que nossa sabedoria moderna poderá um dia fazer as vezes dessa peculiar iniciação na condição humana; não nascemos, como os gregos e romanos, livres, desacorrentados, filhos diretos da natureza. O que primeiro somos? Filhos e herdeiros da cavernícola era medieval e sua loucura, suas pregações infames, e também da cavalaria, essa coisa meio-brutal, meio-infantil. E apesar de vermos o romantismo e o medievalismo caminhando lentamente para seu esgotamento, é mister notar que o homem moderno não se ergue sobre os próprios pés. Sem a escola dos antigos nossa literatura degenerará em fofoca vulgar e filisteísmo inócuo. Tudo isso me leva ao bem-intencionado conselho de pôr termo de vez a essa mania germanófila tão condenável.”

no lugar de Untersuchung agora se escreve Untersuch; [investigação] pior ainda, no lugar de allmälig, mälig; [gradualmente – as grafias em voga são allmähllich ou mähllich, até mais longas!] em vez de beständig, ständig. [incessante, remanescente, constante, perpétuo]¹ No lugar de beinahe [quase], nahe [perto]. Ora, se um francês começasse a escrever près no lugar de presque, [perto no lugar de quase], ou se um inglês escrevesse most [mais] em vez de almost [quase], seriam objeto de ridículo; mas na Alemanha quem quer que faça esse tipo de supressão passa por original. Nossos químicos já escrevem löslich [solúvel] e unlöslich [insolúvel] no lugar de unauflöslich, [indissolúvel ou irreconciliável/inconciliável] e se os gramáticos não quebrarem suas juntas e articulações eles roubarão da língua uma valiosa palavra. Nós, cadarços, e também conglomerados dos quais o cimento é amolecido, bem como qualquer coisa análoga, são löslich [desatados, afrouxados, quando esta palavra era exclusiva para esta conotação]; mas aquilo que é auflöslich, [dissolúvel]² ao contrário, é tudo que desaparece num líquido, como o sal na água. Auflösen [dissolver, derreter, desintegrar] é o terminus ad hoc, [termo técnico, importado da ciência cosmopolita européia] que diz isso e nada mais, precisando um conceito. Nossos agudos improvisadores da língua, porém (…) por coerência e contigüidade, seriam obrigados a fazer de lösen sinônimo ou substituto de ablösen [aliviar, abrandar, até substituir ou revezar, e guardar], auslösen, [liberar, causar, lançar] einlösen, [resgatar, honrar, redimir]³ etc. Neste andar da carruagem, a língua se tornará de uma uniformidade boçal e estéril. Lembremos, contudo, que empobrecer o idioma em uma só palavra significa, ao mesmo tempo, tornar o pensamento da nação mais pobre em um conceito inteiro. Essa é, apesar de tudo, a tendência dos esforços conjuntos de quase qualquer autor dos últimos 10 ou 20 anos. O que demonstrei com a ajuda de um caso poderia ser corroborado por cem mais, e essa abjeta economia de sílabas se dissemina como uma doença. Os malditos desgraçados contam mesmo as letras, e não hesitam em mutilar uma palavra, ou usar outra num falso sentido, sempre que assim puderem ganhar 2 caracteres. Aquele incapaz de novos pensamentos irá trazer ao menos algumas novas palavras ao mercado, e todo desperdiçador de tinta ainda ousa considerar sua vocação melhorar a língua! Os jornalistas são os mais desavergonhados; os jornais, devido à natureza trivial de seus conteúdos, possuem, logicamente, os maiores públicos; de fato um público que na maioria das vezes lê jornais e apenas jornais. E através dos jornais cria-se a mais nefanda ameaça à língua. Eu recomendaria, portanto, que se submetesse essa classe profissional a uma CENSURA ORTOGRÁFICA, ou que pelo menos pagassem uma multa por cada palavra estrambótica ou mutilada. Afinal, o que é que pode ser mais descabido do que essas mudanças na língua procederem das camadas mais baixas da literatura? A língua, em especial uma língua, relativamente falando, original como a alemã, é a herança mais valiosa de uma nação, sendo ao mesmo tempo uma obra de arte excessivamente complicada, facilmente danificável, e impossível de ser restaurada – um caso clássico de noli me tangere. [não-me-toque, i.e., o princípio daquilo que não deve ser mexido se isso puder ser evitado, sob pena de acabar estragando a coisa] Outras nações já passaram pelo mesmo, demonstrando grande compaixão por seus idiomas, ainda que fossem idiomas ou dialetos muito menos singulares que o alemão. A língua de Dante e de Petrarca difere em ninharias do italiano vigente; Montaigne é bastante legível ainda hoje, assim como Shakespeare, até em suas edições mais remotas. Para o cidadão alemão é melhor ter palavras mais longas em sua boca, uma vez que ele pensa devagar, e as palavras compridas dão-lhe tempo para refletir. Esse estado dominante da economia lingüística dos alemães se exibe em fenômenos ainda mais característicos. Por exemplo: em completa oposição à lógica e à gramática, o alemão usa o imperfeito no lugar do perfeito e do mais-que-perfeito; o verbo auxiliar não sai de seus bolsos; prefere o ablativo ao genitivo; unicamente para omitir uma ou duas partículas lógicas elaboram-se sentenças tão intrincadas que é necessário reler 3 vezes para se entender; é só o papel, e não o tempo do leitor, que os escrevinhadores se importam em poupar. Em nomes próprios, como é a maneira dos hotentotes, [comentário com matiz racista de Schopenhauer, se referindo a um povo africano] não se dignam a indicar o caso pela inflexão do próprio substantivo ou pela desinência do artigo: que o leitor o adivinhe! Mas, ah!, o alemão tem ainda uma predileção toda especial por contrair a vogal dupla e suprimir o h, que é sempre pronunciado, essas letras sagradas para a prosódia [entonação]

¹ A bem da verdade, as formas com prefixos ou afixos, as mais longas, ainda são dicionarizadas. O estrago não foi tão considerável quanto Schopenhauer previa. No português, uma mudança ortográfica vulgarizadora análoga poderia ser: de (fazer uma) investigação, termo “erudito”, para (dar uma) investigada (coloquial).

² Hoje, com efeito, unlöslich possui apenas o significado químico (in)solúvel, mas lösen possui tanto o químico quanto o de desatar um nó (embora haja variados sinônimos, como binden e zubinden), ao passo que auflöslich caiu em completo desuso. Para comparar com uma mudança em português correlata que suprima afixos e morfemas mas mantenha a palavra na mesma ordem simbólica, poderíamos citar indissolúvel e dissolúvel, onde o -dis- é facultativo, e eu já havia sublinhado no texto principal. Curiosamente, na nossa língua a semântica de (dis)solver também guarda relação com o ato de (des)atar, que associamos imediatamente a cadarço ou nó; mas, no caso, usamos o primeiro apenas para operações abstratas (resolver, solucionar um problema; quando muito, podemos desatar um nó górdio, figura de linguagem).

³ Hoje redimir pode ser expresso em alemão tanto com ablösen quanto com einlösen. Digamos que o einlösen é mais pertinente a contextos como honrar ou redimir uma dívida ou – no uso arcaico que se preservou – uma mulher, uma virgem, honrá-la, etc., casando-se com ela, p.ex..

Redigir Literatur no lugar do correto Litteratur é também muito benquisto, pois salva uma letra. Em defesa desse procedimento, o particípio do verbo linere é citado como raiz da palavra. [esse termo saiu de uso] Ocorre que linere significa difamar; por uma estranha coincidência, a nova grafia pode muito bem ser acertada para dar conta da maior parte da impressão de livros dos alemães; assim distingue-se mais facilmente uma rara Litteratur de uma muito prolífica e interminável Literatur.” [!!!] Hoje, Litteratur desapareceu do léxico…

A fim de escrever com concisão, um homem deve melhorar seu estilo e drenar todo falatório e tagarelice, o que dispensará cortes de sílabas e letras em virtude do custo do papel. Mas escrever tantas páginas inúteis, tantos artigos inúteis, tantos livros inúteis, e depois querer compensar o desperdício de matéria e de tempo às custas de sílabas e letras inocentes – isso é que é o superlativo do que na língua inglesa chamam de <being penny wise and pound foolish>: avaro com centavos e ninharias, extremamente perdulário no que realmente importa e é o olho da cara.”

É de se lamentar a ausência de uma Academia Germânica para cuidar da língua contra o pedestrismo literário, especialmente numa era em que mesmo os ignaros das línguas antigas se aventuram a empregar as prensas.”

Toda vez que iniciamos o aprendizado de uma língua nova, temos de repetir todo o processo do zero. Mas se aprendemos uma língua para o uso passivo e não o ativo – isto é, unicamente para ler, mas não para falar, como, p.ex., muitos de nós aprendem o grego – a conexão é unidimensional, pois as concepções ocorrem em nós juntas com as palavras; na outra mão, a palavra nem sempre nos ocorre junto com a concepção. Isso acontece em miniatura quando aprendemos novos vocábulos numa língua que já dominamos, particularmente com nomes de lugares e pessoas.”

12. SCHOPENHAUER E A ESTÉTICA: APERFEIÇOADOR DE KANT

Aquele conhecimento profundo, puro e verdadeiro da essência do mundo se torna um fim em si para o artista, que se detém nele. Eis porque um tal conhecimento não se torna para ele um quietivo da Vontade¹

¹ Seria o desejável. Mas é assim de fato com a classe artística? Ou não seria antes o caso da exceção?

O quanto não sofreu Schopenhauer, que não foi santo nem poeta (músico, pintor…), apenas filósofo sem coroa! Sua norma, a Vontade, também não foi acolhida pelas futuras constituições dos homens…

O que é nobre e sábio raramente consegue fazer sua aparição ou encontra eficácia e eco; mas o absurdo e o perverso no domínio do pensamento, o rasteiro e de mau gosto na esfera da arte, o mau e fraudulento na esfera dos atos, realmente afirmam sua supremacia, obstados apenas por pequenas interrupções. Ao contrário, o insigne de todo tipo não passa, sempre, de uma exceção, um caso entre milhões: por conseguinte, se porventura tiver se anunciado numa obra duradoura, ela permanece subseqüentemente isolada após ter sobrevivido ao rancor de seus contemporâneos, sendo conservada como uma espécie de meteorito vindo de uma outra ordem de coisas, diferente da aqui imperante.”

A boa vontade é, em moralidade, tudo; mas na arte não é nada.”

A filosofia está para a arte como o vinho para as uvas.” A filosofia descobre o cerne da aparência. O contrário também poderia ser afirmado sem que a veritas cedesse em 1 milímetro para o erro. Cristo era mais artista que filósofo. Carpinteiro. O dá-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo da Estética: Dá-me uvas boas o bastante e meus pés saberão amassá-las numa boa bebida que fermentarei.

Na série de artes expostas por mim, a arquitetura e a música são os dois extremos da escala.”

12.1 ARQUITETURA

a luta entre gravidade e rigidez é propriamente o único tema estético da bela arquitetura.” “A nossa alegria numa semelhante obra seria de súbito bastante diminuída se nos fosse revelado que o material de construção é pedra-pomes, pois assim ela apareceria como uma espécie de construção ilusória. O mesmo efeito seria produzido pela informação de que se trata apenas de um edifício de madeira, quando até então pensávamos ser de pedra, precisamente porque isso doravante muda, altera a relação entre rigidez e gravidade e, com isso, a significação e a necessidade de todas as partes”

Todo o exposto demonstra precisamente que a arquitetura faz efeito não apenas matemática mas também dinamicamente, e que aquilo a falar-nos por ela não é meramente a forma e a simetria, mas antes as forças fundamentais da natureza, as Idéias primeiras, graus mais baixos de objetividade da Vontade.”

Se alguém pudesse trazer um grego antigo para diante de nossas mais celebradas catedrais góticas, o que ele lhe diria? — βάρβαρος!” Aqui a língua portuguesa (senão muitas outras!) dá espaço para um belo trocadilho: barbaroi!, i.e., bárbaros! Que um edifício ou qualquer outra coisa seja bárbaro poder-se-ia entender como elogio. Que livro maravilhoso, a caracterização do herói ficou bárbara! A despeito disso, o grego em questão só quis mesmo depreciar nosso estilo arquitetônico forasteiro e irracional diante do cânone clássico. Isto lá é arte?!

12.2 ESCULTURA

Ele imprime no mármore duro a beleza da forma que a natureza malogrou em milhares de tentativas, coloca-a diante dela e lhe brada: ‘Eis o que querias dizer!’. Para em seguida ouvir a concordância do conhecedor: ‘Era isso mesmo!’. Só assim pôde o gênio grego descobrir o tipo arquetípico da figura humana e estabelecê-lo como cânone da escultura.”

Que Laocoonte, no famoso grupo de esculturas, não grite, é algo manifesto. A estranheza geral e sempre repetida em face disso deve ser atribuída a que, na sua situação, todos nós gritaríamos: e assim também o exige a natureza. Pois, no caso da dor física mais intensa e do súbito aparecimento da maior das angústias corporais, toda reflexão que poderia conduzir a uma resignação silenciosa é subitamente reprimida da consciência e a natureza se alivia pelo grito, exprimindo assim a dor e a angústia, ao mesmo tempo em que invoca alguém salvador e espanta o agressor. Já Winckelmann sentia falta da expressão do grito. No entanto, na medida em que procurava uma justificativa para o artista, transformou, propriamente dizendo, Laocoonte num estóico, o qual considerava inadequado à sua dignidade gritar secundum naturam, e assim acrescentar à própria dor a coerção inútil de evitar a sua manifestação. Em conseqüência, W. vê em Lao. ‘o espírito de um grande homem posto à prova, um mártir procurando suprimir e reter em si mesmo a expressão do sentimento: ele não irrompe em sonoros gritos, como o faz em Virgílio, mas somente emite gemidos lamentosos’ (…) Esta opinião é por sua vez criticada por Lessing (…) no lugar do fundamento psicológico, ele coloca o fundamento puramente estético, ou seja, que a beleza, princípio da arte antiga, não admite a expressão do grito. Outro argumento por ele aduzido, de que um estado completamente passageiro e incapaz de qualquer duração não pode ser exposto numa obra de arte imóvel, tem contra si centenas de exemplos de figuras maravilhosas, captadas em movimentos inteiramente fugidios, dançando, lutando, correndo etc. Goethe mesmo, em seu estudo sobre Lao., que abre os Propileus (p. 8), considera a escolha de um semelhante momento passageiro absolutamente necessária.” “Sobre o palco Laocoonte obrigatoriamente tinha de gritar. Também Sófocles faz Filoctetes gritar: de fato, nos palcos antigos ele efetivamente devia gritar. (…) um grito pintado ou destituído de voz seria ainda mais risível do que música pintada” O grito pode ser desenhado como onda; além disso já existe música pintada, acreditem!

na escultura o drapejado é em certa medida o que na pintura é o escorço: ambos são alusões, mas não simbólicas, e sim tais que, se bem-executadas, compelem imediatamente o entendimento a intuir o aludido, como se ele realmente tivesse sido dado.”

A escultura grega apela à intuição, pelo que é ESTÉTICA. Já a escultura indiana apela ao conceito, pelo que é SIMBÓLICA.”

A escultura moderna, o que quer que realize, ainda é análoga à poesia moderna em latim, e, como esta, é uma filha da imitação, nascida de reminiscências. Se tenta ser original, cai no nonsense, especialmente quando toma o mau caminho de se conformar à natureza [crítica às esculturas realista e naturalista] em vez de às proporções clássicas dos gregos.”

12.3 PINTURA

DA GULA AO PORNÔ: “Frutas pintadas ainda são aceitáveis, visto que, como um desenvolvimento tardio de flores, e pela sua forma e cor, oferecem-se como um belo produto natural, sem que se seja obrigado a pensar na sua comestibilidade. Mas, infelizmente, encontramos com freqüência, pintadas com naturalidade ilusória, iguarias preparadas e servidas, ostras, arenques, lagostas, pães amanteigados, cerveja, vinho, etc.; tudo isso é bastante repreensível. – Na pintura de gênero e na escultura o excitante consiste nas suas figuras nuas, cujo posicionamento, semipanejamento e todo o modo de execução são calculados para despertar a lubricidade do espectador, pelo que a pura consideração estética é de imediato suprimida e a obra se posta contra a finalidade da arte.”

Alguma vez a natureza produziu um homem perfeitamente belo em todas as suas partes? – Opinou-se que o artista tem de estudar conjuntamente as muitas partes belas isoladas distribuídas por muitos homens e delas compor um todo belo. Eis uma opinião disparatada. (…) de onde deve o artista reconhecer que precisamente estas formas isoladas são belas e não as outras? – Também vemos até onde foram (…) os antigos pintores alemães. Considerem-se suas figuras nuas. – Conhecimento algum do belo é possível de maneira puramente a posteriori.”

A PINTURA NÃO NECESSITA SER HISTÓRICO-CRISTÃ: “Indivíduo algum ou ação alguma podem ser sem-significado [o quanto isso não contrasta com o teor do livro 4!] (…) Eis por que nenhum evento da vida humana deve ser excluído da pintura. Em conseqüência, é-se muito injusto com os maravilhosos pintores da escola neerlandesa ao apreciar somente suas habilidades técnicas, desprezando-os no resto, alegando-se que, na maioria das vezes, só expõem objetos da vida cotidiana, enquanto se consideram como significativos, ao contrário, somente os eventos da história universal ou bíblica.” “Até mesmo a fugacidade dos momentos que a arte fixou em tais obras (hoje em dia denominadas pinturas de gênero) desperta uma leve e específica comoção: pois, fixar o mundo fugaz (em constante transformação) em imagens duradouras de eventos particulares a fazerem as vezes do todo é uma realização da arte da pintura pela qual esta parece trazer o tempo mesmo ao repouso, na medida em que eleva o indivíduo à Idéia de sua espécie.” “é em geral uma grande infelicidade que o povo cuja cultura deveria servir de base para a nossa não seja o indiano nem o grego, ou mesmo o romano, mas justamente esse povo judeu; o que foi nefasto em especial para os pintores geniais da Itália, nos séc. XV e XVI, arbitrariamente restritos a uma esfera limitada de temas, na maioria das vezes mesquinharias de todo tipo. Pois o Novo Testamento, em sua parte histórica, é para a pintura tão desfavorável quanto o Antigo, e a história subseqüente dos mártires e Padres da Igreja é um tema mais infeliz ainda.”

TISCHBEIN, pintor filosófico ou o filósofo que pinta. A metade superior de um seu desenho representa mulheres cujos filhos estão sendo raptados, mulheres que, em diferentes grupos e posições, expressam variada e profundamente a dor materna, angústia, desespero; a parte inferior mostra, em agrupamento e ordenação inteiramente iguais, ovelhas, das quais as crias também são retiradas: de forma que a cada cabeça e a cada posição humana da metade superior do desenho corresponde, na metade inferior, um análogo animal, com o que se vê distintamente em que moldes a dor possível na abafada consciência animal se relaciona com o devastador tormento unicamente possível pela distinção do conhecimento, pela claridade de consciência.”

Diante de um quadro, como diante de um príncipe, todos devem aguardar, de pé, o que ele dirá, se é que dirá alguma coisa.”

A escultura parece quadrar melhor como a afirmação, a pintura como a negação da vontade de vida. Esse ponto de vista seria autodemonstrável a partir do fato de a escultura ser a arte dos antigos por excelência, enquanto a pintura tem sido até aqui a arte da era cristã.” Agora nem mesmo a vontade de morrer se manifesta – em suspenso num ecrã nem frio nem quente,diria Marshall McLuhan…

12.4 POESIA E TEATRO

Assim como o químico combina 2 fluidos perfeitamente claros e transparentes e dessa combinação resulta um precipitado sólido, também o poeta, a partir da universalidade transparente e abstrata dos conceitos, sabe combiná-los e obter um precipitado concreto, individual, a representação intuitiva.”

a crítica e a sátira, sem nenhuma condescendência, deveriam açoitar os poetas medíocres (…) Pois, se até mesmo a torpeza de um imbecil deixou irado o brando Deus das musas, a ponto de dilacerar Mársias, não vejo onde a poesia medíocre possa basear sua pretensão à tolerância.”

O puro e simples historiador, que trabalha exclusivamente conforme os dados, assemelha-se a alguém que, sem conhecimento algum da matemática, investiga e mede por traços a proporção das figuras encontradas casualmente; com isso o estabelecimento dessas medidas encontradas empiricamente está todo ele sujeito aos erros das figuras assinaladas. O poeta, ao contrário, assemelha-se ao matemático que constrói aquelas relações a priori, na pura intuição, expressando-as não como a figura efetivamente assinalada as possui, mas como as mesmas são na Idéia e que o desenho deve tornar sensível.”

Embora nas artes apenas o gênio autêntico possa realizar algo de bom, parece que unicamente a poesia lírica constitui uma exceção, pois até homens no todo não tão eminentes podem, às vezes, mediante forte estímulo proveniente do exterior e um entusiasmo momentâneo, elevar suas faculdades espirituais acima de sua medida comum, e assim produzir uma bela canção.” “Reproduzem-se na poesia lírica do genuíno poeta o íntimo da humanidade inteira e tudo o que milhões de homens passados, presentes e futuros sentiram e sentirão nas mesmas situações”

Justamente por isso o jovem se prende tanto ao lado intuitivo e exterior das coisas; justamente por isso se inclina à poesia lírica e, só quando se torna adulto, à dramática. Podemos pensar o ancião no máximo como poeta épico, semelhante a Ossian e Homero, pois narrar pertence ao caráter de quem é idoso.”

O jovem que foi iniciado na poesia antes que na própria realidade passa a desejar desta última o que só a primeira pode dar; essa é a principal fonte do desconforto que oprime o peito dos jovens talentosos.”

ninguém pode prescrever ao poeta o dever de ser nobre e sublime, moralista, pio, cristão, isso ou aquilo, muito menos censurá-lo por ter este e não outro caráter. O poeta é o espelho da humanidade, e traz à consciência dela o que ela sente e pratica.”

Os poetas conduzem seus heróis por milhares de dificuldades e perigos até o fim almejado; porém, assim que este é alcançado, de imediato deixam a cortina cair, pois a única coisa ainda a ser mostrada seria que o fim glorioso no qual o herói esperava encontrar a felicidade foi em realidade um ludibrio, de modo que após atingi-lo não se encontra num estado melhor que o anterior.”

a genialidade propriamente dita só serve para conquistas teóricas, é só para isso que liga o gênio, que, por isso mesmo, não se impacienta na hora de aguardar o tempo certo para lançar suas idéias e para obter o reconhecimento (muitas vezes, póstumo). Quanto à ocasião para meditar e avançar em seu trabalho, o gênio oportunamente escolhe os momentos de repouso, em que nenhuma comoção o atinge, nenhuma onda afeta a superfície lisa do lago que é sua mente, um espelho que reflete perfeitamente a possibilidade da compreensão do mundo.¹ (…) O Torquato Tasso de Goethe é inteiramente redigido deste ponto de vista. (…) em confirmação deste pressuposto, vemos como em todas as eras grandes generais e ministros, os tipos eficientes e práticos, aparecem, sempre que meras condições externas se mostram favoráveis. Grandes poetas e filósofos, por outro lado, só surgem realmente de séculos em séculos.”

¹ Hoje isso seria impraticável no Brasil.

Quão mais corretamente, quão mais estritamente de acordo com as leis da natureza seus personagens são apresentados, maior é sua fama; daí que Shakespeare se encontre no topo.”

repetida, mas variada e distintamente, a pergunta atravessa o pensar como um relâmpago, O que é tudo isso?, ou então, Como tudo isso está configurado? A 1ª questão, se se mantém continuamente presente na cabeça, desenvolve o filósofo; a outra, reiteração após reiteração, nas mesmas condições, forja o artista ou poeta.”

Minha própria experiência de muitos anos me ditou a opinião de que a loucura ocorre proporcionalmente, com mais freqüência, entre os atores. Quão mal eles não empregam sua memória! Diariamente eles têm de aprender um novo texto ou recordar um antigo; mas esses textos não possuem conexão nenhuma entre si, são aliás contraditórios e contrastantes um com o outro, e toda noite o ator se esforça por esquecer dele mesmo por inteiro e por ser uma pessoa bastante diferente. Esse tipo de coisa pavimenta o caminho da loucura.”

as artes plásticas e pictóricas não são indispensáveis: nações inteiras – p.ex. os povos muçulmanos – não as têm, mas nenhum povo é sem música e poesia.

O melhor reconhece a si mesmo como melhor uma vez que ele contempla quão superficial é a visão dos outros, quanto a sua se encontra além daquela, muito além do que os outros são capazes de reproduzir, porque quem não produz, muito menos poderia reproduzir. Se hipoteticamente o poeta superior enxergasse os poetas superficiais tão mal quanto ele mesmo é enxergado por eles, era mister que o poeta superior desesperasse; sendo necessário um homem extraordinário para fazer-lhe justiça, é de lei que os poetas de baixa extração poderão estimá-lo tão pouco quanto ele poderá estimar poetastros. É preciso que ele viva longamente baseado apenas em auto-aprovação antes que o mundo o enxergue e o aprove. Enquanto esse dia não chega, na praça pública ele é despido mesmo do selo de auto-aprovação, porque a sociedade requer modéstia. Mas é tão impossível que aquele que tem mérito – e que sabe quanto ele custa – seja cego ao mérito quanto que um homem de 1,80m não se dê conta de que é mais alto que a multidão.” “Horácio, Lucrécio, Ovídio e praticamente todos os antigos falaram de si com altivez, assim como Dante, Shakespeare, Bacon de Verulam e tantos outros. Que um homem possa ser grandioso sem nisso reparar é uma absurdidade de que só uma mente irremediavelmente incapaz poderia se convencer” “mérito e modéstia nada têm em comum, salvo a primeira letra.”

Se tivéssemos acesso à oficina dos poetas, verificaríamos que o pensamento é posto à frente da rima dez vezes para cada vez que a rima tem a prevalência”

Assim que uma última sílaba recebeu um som equivalente em verso posterior, seu efeito está exaurido; a terceira recorrência da mesma nota seria meramente uma segunda rima que atinge acidentalmente o mesmo som, mas sem sublinhar o efeito; o terceiro verso se conecta aos dois preexistentes, mas não ajuda a elevar ou criar impressão. Isso porque a primeira nota não soa antes de ser repetida, mas quando é de novo repetida não volta a soar: seria um pleonasmo estético que isso acontecesse. Sonetos, terza rima [terceira rima] e oitavas [ottava rima] são muitas vezes penosas e torturantes de se ler graças à redundância do efeito. Não valem o que se sacrifica para obter as rimas. Que o grande gênio poético supere ocasionalmente até a limitação dessas formas, continuando a se mover com sutileza e graça, só prova que um gênio é gênio, mas não é uma carta de recomendação dessas formas em si, porque elas continuam a ser, a despeito dos grandes poetas, difíceis e ineficazes.” “Sendo assim, vejo como prova de bom gosto, e não como evidência de ignorância, que Shakespeare em seus sonetos tenha atribuído rimas diferentes a cada quadra. De qualquer forma, seu efeito acústico não diminui por isso, e o pensamento, em troca, obtém assim muito mais ressonância do que poderia com a preservação e reprise das palavras à la española.”

Quando a poesia romântica transfere suas cenas para a Grécia ou a Roma antigas ela perde a concretude e o detalhe, se torna insuficiente e fragmentária, abstrata, generalista, sem individuação. (…) Só Shakespeare, em suas peças de época, é que está livre desta crítica. Sem hesitar, ele apresentou, sob nomes greco-romanos, ingleses de seu próprio tempo.”

AS TRÊS PRATELEIRAS DOS ANIMADORES DE PERSONAGENS: “Os poetas de maior calibre são como ventríloquos, em que ora o herói, ora a donzela, ora o antagonista são apresentados sucessivamente com as mais variadas cores, todos de forma convincente. Isso se vê em Shakespeare e Goethe. Os poetas de segunda safra transformam o protagonista num alter ego próprio. Esse é o proceder de Byron. Nele e nos seus semelhantes os personagens secundários são insípidos, borrões. Já no poeta medíocre, nenhum personagem escapa dessa sina.”

Somos capazes de detectar a qualidade do todo de uma obra literária lendo não mais do que algumas páginas. (…) Com apenas uma amostra sentimos o ritmo, a flexibilidade e a leveza do autor de gênio, pressentimos com pouco material a que elevação sua mente pode chegar em seu máximo. Mas, na outra mão, também captamos instantaneamente o enfado, a rigidez, a tolice e o pesadume de uma pena. Assim como a língua é a expressão do intelecto de uma nação, o estilo vem [a] ser a expressão mais imediata do intelecto de um autor, mais até que sua fisiognomonia. Deixamos um livro de lado quando percebemos que através de suas páginas tudo que atingimos é uma região mais obscura que a nossa mesma, a menos que nosso objetivo seja unicamente nos instruir de fatos ali relatados; jamais de pensamentos.”

12.5 METAFÍSICA DO GÊNIO

nossa consciência tem dois lados; uma metade é a consciência de nós próprios, que é a Vontade; a outra metade é a consciência das outras coisas, ou seja, primariamente conhecimento, mediante a percepção, do mundo externo, a apreensão dos objetos.” Isso já havia sido dito com outras palavras no livro – o que ocorre é que, neste contexto, que é a Estética e o processo de criação, o artista e sua obra se tornam indistinguíveis (Consciência máxima! Objetividade, se já existiu alguma). Só se voltam a separar no momento da crítica: autor de um lado, obra do outro. A crítica imparcial bem-sucedida é o exercício da subjetividade do logos. Neste ínterim, portanto, não há que se falar em autoconsciência como sinônimo da Vontade.

Só apreendemos o mundo de forma puramente objetiva quando não mais sabemos que a ele pertencemos; e todas as coisas parecem mais e mais belas à medida que delas e somente delas somos conscientes, e quanto menos somos conscientes de nós próprios.” Está correto se se refere puramente ao processo da crítica da arte, com alguns ajustes – Sinal trocado: de forma puramente SUBJETIVA quanto mais somos conscientes de nós próprios (o crítico apreende a obra como algo estranho, sujeito x objeto, esqueceu que a criação do artista, sua objetividade, está em ser o objeto enquanto o objeto é consciência, na fusão dos pólos). Propriamente falando, o artista não julga o que é ou não é o belo, pois se torna provisoriamente o próprio belo. Como pode a beleza argumentar intelectualmente sobre a beleza? Ela apenas é. Narciso não se reconhece ao espelho, está menos consciente de si, pode julgar seu reflexo (o outro) como belo. Narciso é o crítico – quem está desinteressado de si está interessado no outro (a obra). Nele, sujeito e objeto estão divorciados, Narciso não é a imagem de Narciso. O artista é todo consciência-de-si, ele e a obra são cegos à outridade, entendem apenas os reflexos (o espelho que reflete a si próprios), estão fechados em si numa subjetividade infinita – mas como não há outro, apenas mesmidade, identidade, trata-se da OBJETIVIDADE PERFEITA E AUTO-SUFICIENTE DO QUE É IGUAL A SI MESMO. Narciso, o crítico, se afoga porque carece, busca o complemento, a beleza (Narciso não é a beleza, ele é inconsciente de si, seu corpo não está em consideração a não ser como outro, infinitamente separado por um abismo). O reflexo (a obra) não quer nada. Sujeito e objeto aqui são um, o mundo. O exterior e o interior simultâneo. O Ser. Não há logos, só recursividade tautológica. Vênus é. O amor é cego e no entanto não deseja enxergar (interagir com o exterior). O amor é o processo de criação. O amor está na boca do mundo, é discursado pelos loucos da subjetividade irrestrita. Só neste sentido, o amor é a Poesia (subjetividade) e a crítica é a Verdade (objetiva). Homero descreve o mundo; a verdade desmistifica-o. A verdade é a verdade dos homens, discurso, sempre carente da serena objetividade muda e inacessível da beleza.

Goethe compreendeu esta antítese, e por isso sua autobiografia se chama Poesia & Verdade. Poesia é a sua obra, verdade o indivíduo biografado. Por ser uma obra, versando sobre a obra e a crítica, é Poesia, como foram antes seus poemas que não falavam de poemas, mas uma poesia sem objeto, inacabada. Por ser uma crítica, prosando sobre a crítica e a obra, é Verdade, verdade clínica e impessoal de sua vida. Beleza deficitária, crítica consumada. Tentativa de uma síntese impossível a não ser dentro da obra de arte que é o artista enquanto indivíduo. O jeito do belo ver, elogiar, participar – a possibilidade da crítica ser bela e definitiva.

Sch. se contradiz – e muito – em estética! Se o objetivo é o instinto da espécie, é óbvio que o artista terá mais instinto que o plebeu – mas Sch. vê a recepção da obra como algo objetivo, e não o inverso, ao mesmo tempo em que nele o plebeu tem mais instinto, e menos autoconsciência. Sua teoria está de ponta-cabeça.

só o gênio é capaz de um esquecimento completo da própria pessoa e de suas relações; segue-se que a GENIALIDADE nada é senão a OBJETIVIDADE mais perfeita, ou seja, orientação objetiva do espírito, em oposição à subjetiva que vai de par com a própria pessoa, i.e., com a [própria] vontade.” “como diz Goethe, fixar em pensamentos duradouros o que aparece oscilante no fenômeno.” “claro olho cósmico” No entanto, continua confuso e ambivalente. Quando quer, joga a Vontade para o fenômeno, com mediação da IDÉIA. Schopenhauer troca objetividade e subjetividade o tempo todo nas suas definições da genialidade.

excedente de conhecimento livre”

purificado de Vontade, [Mas o abandono da razão é o contrário!] espelho claro da essência do mundoDaí se explica a vivacidade que beira a inquietude,¹ em indivíduos geniais, na medida em que o presente quase nunca lhes basta, já que não preenche a sua consciência. Daí resulta aquela tendência ao desassossego, aquela procura incansável por novos objetos dignos de consideração, o anseio quase nunca satisfeito por seres que lhes sejam semelhantes e que os ombreiem e com os quais possa se comunicar. Já o filho comum da terra, ao contrário, plenamente satisfeito com o presente comum, absorve-se nele e em toda parte encontra o seu igual, possuindo aquele conforto especial na vida cotidiana que é negado ao gênio.”

¹ Aquele que cessa de desejar – que corta o fluxo do tempo, na obra de arte, tornando-se OBJETIVO – torna-se vivaz? Como explicar esse tipo de contradição schopenhaueriana?!

ETNÓGRAFOS DOS MORTOS: “Portanto, a fantasia põe o gênio na condição de, a partir do pouco que chegou a sua apercepção efetiva, construir todo o resto e assim deixar desfilar diante de si quase todas as imagens possíveis da vida. (…) o gênio precisa da fantasia para ver nas coisas não o que a natureza efetivamente formou, mas o que se esforçava para formar, mas que, devido à luta de suas formas entre si, não pôde levar a bom termo.” Uma teoria do gênio correta encaixada no molde errado (sua “Vontade” kantiana).

há grandes espaços intermédios no qual (sic) o indivíduo de gênio, tanto no que diz respeito aos méritos quanto às carências, em muito se aproxima do indivíduo comum.” “o fazer-efeito de um ser supra-humano diferente do próprio indivíduo e que apenas periodicamente se apossa dele. A aversão do gênio em direcionar sua atenção ao conteúdo do princípio de razão mostra-se primeiro em referência ao fundamento de ser, enquanto aversão à matemática, cuja consideração segue as formas mais gerais do fenômeno, espaço e tempo”

a impressão do presente é bastante poderosa sobre o gênio, arrasta-o para o irrefletido, o afeto, a paixão.” “ele julga e narra de maneira extremamente objetiva [subjetiva, sincera] aquilo que diz respeito aos seus próprios interesses, sem ocultar o que seria prudente ocultar (…) inclinam-se a monólogos e podem em geral mostrar muitas fraquezas que de fato os aproximam da loucura.” “todo aquele que conheceu as Idéias eternas nas coisas efêmeras aparece como louco.”

ele vê em toda parte o extremo, e, justamente por isso, o seu agir atinge extremos. Ele não consegue encontrar a justa medida, falta-lhe a fleuma (…) O gênio conhece as Idéias perfeitamente, mas não os indivíduos. Eis por que, como já se observou, um poeta pode conhecer profunda e essencialmente O ser humano, porém de maneira muito ruim OS homens. O gênio, pois, é facilmente enganado e se torna um joguete nas mãos de astutos.”

DE-KANT-AÇÃO: “Que a Idéia se nos apresente mais facilmente a partir da obra de arte do que imediatamente a partir da natureza ou da efetividade, isso se deve ao fato de o artista, que conheceu só a Idéia e não mais a efetividade, também ter reproduzido puramente em sua obra a Idéia, separada da realidade efetiva com todas as suas contingências perturbadoras. O artista nos permite olhar para o mundo mediante os seus olhos. Que ele possua tais olhos a desvelar-lhe o essencial das coisas, independentemente de suas relações, eis aí precisamente o dom do gênio, o que lhe é inato. E, ademais, que ele esteja em condições de também nos emprestar esse dom, como se pusesse em nós os seus olhos, eis aí o adquirido, a técnica da arte.”

(N.T.) “para diferenciar Sch. de Kant, que opera uma ‘transição’ (Übergang) definitiva entre o belo e o sublime no capítulo 23 da Crítica da faculdade de juízo. (…) Como dito linhas antes pelo autor, o sentimento do sublime em sua determinação fundamental (Idéia intuída) é ‘uno’ com o do belo, distinguindo-se deste apenas pelo ‘acréscimo’ do elevar-se do contemplador para além da relação conhecida como desfavorável do objeto com a Vontade. Tanto é que Sch. falará mais adiante do ‘sublime no belo’ (Erhabenen am Schönen). Com isso, o termo gradação funcionou melhor porque indica os graus seqüenciais em que suavemente o belo e o sublime se confundem de acordo com o estado estético em que se está, sem porém distinguirem-se em natureza.”

ANTI-GORE: “se reconheceu desde sempre que o excitante negativo (repugnante) é inadmissível na arte, na qual até mesmo o feio é suportável, desde que não repugnante, e seja posto em lugar adequado

O fato de todos reconhecermos a beleza, caso a vejamos, sendo que no caso do artista autêntico isso ocorre com uma tal clareza que ele a mostra como nunca se vira e, por conseguinte, supera a natureza com sua exposição, tudo isso é apenas possível devido ao fato de que a Vontade – cuja objetivação adequada em seu grau mais elevado deve aqui ser descoberta e julgada – SOMOS NÓS MESMOS.”

A possibilidade de uma tal antecipação a priori do belo no artista, bem como o seu reconhecimento a posteriori no espectador, reside no fato de ambos serem o mesmo em-si da natureza, a Vontade que se objetiva. Pois, como disse Empédocles, apenas pelo igual é o igual reconhecido; apenas a natureza pode entender a si mesma; apenas a natureza pode aprofundar-se em si. E também apenas pelo espírito é o espírito compreendido.”

O CONCEITO é (…) alcançável e apreensível (…) comunicável por palavras sem ulterior determinação, esgotável por inteiro em sua definição.¹ A IDÉIA (…) é absolutamente intuitiva (…) nunca sendo conhecida pelo simples indivíduo enquanto tal (…) [mas pelo] puro sujeito do conhecimento (…) alcançável apenas pelo gênio, em seguida por aquele que (…) está numa disposição genial. (…) a medida do seu próprio valor intelectual.”

¹ Subordinado ao espaço-tempo.

O conceito é a medida do homem;

A Idéia a medida de deus. Deus em Platão como a perfeição humana.

A verdadeira e única fonte de qualquer obra de arte é a Idéia” “Justamente porque a Idéia é e permanece intuitiva, o artista não está consciente in abstracto da intenção e do fim de sua obra” “não pode relatar sua atividade” “Por sua vez, imitadores, maneiristas, imitatores, servum pecus procedem na arte a partir do conceito.” “Na medida em que sugam o seu alimento de obras alheias, assemelham-se a plantas parasitas; também se assemelham aos pólipos, que assumem as cores daquilo de que se apropriam.” “Só o gênio, contrariamente, é comparável a um corpo orgânico que assimila, transforma e produz.” “a elevada formação do gênio jamais prejudica a sua originalidade. (…) tais obras maneiristas encontram com freqüência, e rapidamente, a aprovação sonora dos contemporâneos (…) Contudo, após alguns anos, tais obras já são inapreciáveis, visto que (…) mudaram.”

tenho de naturalmente rejeitar essa e outras semelhantes colocações de Winckelmann sobre a metafísica do belo propriamente dita, embora de resto o respeite muito. Por aí se nota como se pode ter a maior receptividade para o belo da arte, e ter o juízo mais correto sobre as obras artísticas sem no entanto estar em condição de oferecer uma descrição abstrata, propriamente filosófica, de sua essência.”

numa carta (…) ao contrário da conversação, perde-se a medida da impressão que se provocaria sobre outrem. O destinatário de uma carta a perscruta de modo sereno e numa disposição alheia à do remetente, a lê repetidas vezes, em diferentes ocasiões, podendo facilmente desmascarar a intenção secreta. Conhece-se melhor e mais fácil um autor, também como homem, a partir de seu livro, pois todas aquelas condições fazem efeito na escritura de um livro de modo ainda mais vigoroso e constante.”

PODERIA SER AO MESMO TEMPO A CRÍTICA DEFINITIVA E UMA TOLERÂNCIA QUANTO À EXISTÊNCIA DA PSICANÁLISE, ESSA PSICOLOGIA DO MEDÍOCRE COTIDIANO: “As ciências empíricas perseguidas como fim em si e sem qualquer tendência filosófica são como um rosto sem olhos. Elas são, entretanto, uma ocupação válida para homens de boa capacidade que contudo não são homens excelentes. Para as mentes superiores, esse tipo de investigação minuciosa e irrelevante seria mesmo uma perturbação e um incômodo.”

Uma elevada capacidade mental sempre foi olhada como um dom da natureza ou dos deuses; por essa razão essa capacidade foi chamada Gaben [talento em alemão], Begabung [idem], ingenii dotes [mais uma vez o mesmo significado, no latim], dádiva (um homem ‘gifted’ de ‘gift’, presente, prêmio, doação, em inglês [em português diríamos dadivoso, superdotado]), de modo que se via e se vê o portador de tal capacidade como alguém diferente do homem mesmo, alguém que apenas cumpre um destino, graças a um favor emanando de fora ou de cima.” “todas as religiões prometem um prêmio [mas não no sentido de presente, e sim de recompensa, i.e., algo que não vem gratuitamente] após a morte, i.e., na vida eterna, pela sublimidade no campo da vontade durante a vida (a Vontade está associada ao coração), mas nenhuma gratifica, em si, o ser bom da cabeça ou sábio. A virtude, mundanamente entendida, espera sua recompensa nesse mundo mesmo; a prudência outrossim; já o gênio, a genialidade, em lugar algum (nem neste mundo, nem no próximo); o gênio é sua própria recompensa. A vontade é considerada a metade eterna do ser humano, o intelecto a metade perecível e temporal.”

Qualidades brilhantes do espírito conquistam admiração, porém nunca afeição; esta se encontra reservada para a moral, as qualidades do caráter.”

O FUNESTO DESTINO DE LISA SIMPSON: “Nossos anos escolares podem ser comparados àqueles da vida futura, na maioria dos casos, como os dumb shows entre-atos de algumas das tragédias de Shakespeare se comparam à peça mesma: esses espetáculos desempenhados por bobos da côrte apenas com mímica antecipam, para quem prestar atenção, muitos dos diálogos e acontecimentos da peça principal, que nada mais é que nossa vida futura. § Porém, isso não quer dizer que seja possível, por quaisquer meios, prognosticar, da mesma forma, o futuro das capacidades intelectuais do homem pela sua inteligência quando garoto; ao contrário, via de regra os ingenia praecocia [gênios precoces], meninos-prodígios, acabam como uns cabeças-ocas. Já o gênio costuma ser, na infância, lento em suas concepções, e compreende com dificuldade, justamente porque compreende profundamente.”

devido ao fato de que toda ansiedade provém da vontade, e o conhecimento, ao revés, é indolor e sereno para si mesmo, o gênio adquire sobrancelhas desdenhosas e altaneiras, conjugadas com um olhar límpido, perscrutador, parte do rosto que não está subjugada à vontade e seus caprichos, aquela aparência de magnanimidade, de uma serenidade quase sobrenatural que de tempos em tempos deixa-se observar na sua plenitude, e que contrasta poderosamente com a melancolia de todas as demais feições do gênioespecialmente com sua boca, totalmente subordinada à vontade.”

¹ DA SERIEDADE DO SUPERIOR: Chamada pelo normalman de “seriedade”. Mas o que acontece é que o gênio é ansioso em total desproporção com sua vida pessoal comezinha. Sua ansiedade transborda das criações artísticas para a vida pessoal. O estúpido e bobo leva uma vida incontáveis vezes mais serena; é claro que ele se aparvalha diante das menores tontices, que duram pouco, mas talvez não reconheça um perigo real, hegemônico e duradouro. A nova onda fascista veio nos provar isso. Nossa serenidade não é extra-mundana, mas muito, muito profana e imanente. Quando até o que assenta e está na base do próprio cotidiano das massas demonstra fissuras e rachaduras, vivemos do despertar ao adormecer intranqüilos, farejando alguma coisa. Para o normalman, tudo vai bem, ou o que vai mal não deve gerar mais inquietação do que o necessário (geralmente, a autopreservação no seu sentido mais tosco e materialista, a vantagem nos ‘pequenos negócios’). A polarização entre as forças democráticas e reativas e o fascismo opressor, que é vista com bons olhos e sinal de pujança pelo gênio (afinal o fascismo está sendo contrabalançado), desagrada essas pessoinhas sem bússola do real. No fim, não é como Sch. diz, que o gênio tem mais intelecto e menos volição que o normal ou medíocre, mas ele possui mais a ambos; ainda que proporcionalmente possam estar mais injetados do dito intelecto: têm MAIS vontade e muito mais intelecto. A condição do gênio é impassível de intuição ou pressentimento, empatia, pelo normie – os medianos tateiam, deduzem, podem acertar em cheio como podem bater na lua querendo aterrissar em Marte, a margem de erro nessas análises é a mais ampla e dilatada possível, seu método para detectarem os verdadeiros gênios é completamente caótico…

Mas mesmo o homem de grande entendimento e razão, que se pode chamar sem erro de sábio, é ainda muito diferente do gênio, e nesse tocante: que seu intelecto retém uma tendência prática, se preocupa com a escolha dos melhores meios e fins, destarte conserva-se a serviço da vontade, e conseguintemente está ocupado de um modo que é coerente de alto a baixo com sua natureza. A seriedade firme e prática da vida que os romanos denominam gravitas [gravidade, reverência] pressupõe que o intelecto jamais abandone o serviço da vontade a fim de vadiar em recantos distantes que não concernem à vontade. Desta feita, o sábio não admite essa separação entre vontade e intelecto que é a condição do gênio.” Nenhum povo defendeu jamais os gênios. Que os romanos fossem de uma moral pró-genialidade seria paradoxal – mas sim, eles eram bastante graves! Acerca dos erros grifados em verde, creio não precisar me estender muito: Schopenhauer sempre inverte a compreensão da vontade como seria necessário “flagrá-la”: o gênio é aquele que exatamente se funde com a vontade, de modo que nem conduz nem é conduzido, é outra coisa, despersonaliza-se. Não sabe, a rigor, o que é razão e intelecto enquanto é genial. E, o mais importante, o sábio, por uma limitação congênita, sempre separa o que deveria estar unido: o que ele não admite verdadeiramente é a união entre vontade e intelecção. O sábio sem gênio “está ocupado de um modo que é coerente de alto a baixo com sua natureza”: mas sua natureza é a de desrespeitar a sua vontade, sobrevalorizando a razão, espezinhando o sentimento. Não se trata aqui de negar o pathos tipicamente romano; mas este pathos se chama gravitas, não genialidade. Os recantos distantes da vida prática são o habitat insuspeito da Vontade que dirige e é dirigida pelo gênio.

Para o gênio, suas pinturas, poemas ou pensamentos são um fim; para os outros (imitadores ou observadores), um meio. Os últimos só vêem pela frente seus próprios negócios, por isso sabem muito bem como avançá-los, bajulando seus contemporâneos, servindo suas necessidades e atendendo seus humores. Sendo assim, esses outros, os normais e vulgares, vivem em sua maioria nas circunstâncias mais felizes; o primeiro, o gênio, o mais das vezes em condições miseráveis. Ele sacrifica seu bem-estar pessoal a fim de atender seu fim objetivo; e ele não pode agir ao contrário, porque toda sua seriedade e gravidade aí repousam. Os normais, seus opostos extremos, agem ao avesso; portanto, estes últimos são pequenos, mas o gênio é grande. O trabalho do gênio é atemporal, mas seu reconhecimento costuma advir apenas na posteridade: ele vive e morre como comum, em seu próprio tempo. De forma geral, só é um grande homem aquele que, em seu trabalho, prático ou teórico, não procura tirar vantagens para si mesmo, mas persegue tão-somente seu final objetivo (desinteressado).”

Portanto, esse predicado altivo pertence somente ao herói genuíno e ao gênio: contrariamente à natureza humana, estes espécimes nunca buscaram o próprio sucesso, nunca viveram para si mesmos, mas para todos, para a humanidade. E tanto como a matemática das populações obriga que a maioria seja constantemente pequena, jamais podendo aspirar à grandeza, a natureza proíbe a ocorrência contrária: a de alguém que pudesse ser constantemente grande, grande a cada momento, o que é impossível—

Porque todo homem é feito de barro,

E o costume é sempre sua nutriz.”

<Quem quer que tenha nascido com um talento, para um talento, sempre encontra nele a mais bela das existências>, diz Goethe. Quando olhamos para as vidas de grandes homens dos tempos passados, não pensamos <Ó, quão feliz deve ele estar agora, por ser ainda admirado entre nós após tanto tempo!>, mas sim: <Quão feliz deve ele ter sido no imediato fruir de sua mente, cujos traços continuam a ressuscitar ao longo dos séculos!>. Não na fama em si, mas naquilo que ele sabe que atingiu (e que originou sua fama), recai o valor que ele próprio – e portanto a humanidade póstuma – se atribuiu. Este é o íntimo prazer que compensa o sofrimento material desta raça de crianças imortais que existem em todos os tempos.”

A afinidade entre gênio e loucura, tão amiúde observada, depende primariamente daquela separação do intelecto da vontade que é essencial ao gênio, porém contrária à natureza.¹ Mas tal separação em si não indica que o gênio esteja acompanhado de uma menor intensidade de vontade. Ora, o gênio é instantaneamente reconhecido por um caráter apaixonado e veemente; mas a pessoa de excelência prática, o homem de ação, apresenta meramente o tanto de intelecto exigido por uma vontade enérgica, enquanto que a maioria massacrante dos homens carece mesmo disso; já o gênio consiste numa superabundância completamente anormal de intelecto, pelo menos em relação ao que é preciso para o uso da vontade. Baseado nessa discrepância, o homem de obras genuínas é mil vezes mais raro que o homem de ação.² É essa superfluidade anômala de intelecto que torna o gênio preponderante em suas faculdades intelectuais e liberto da vontade.³ Desenraizado daquilo que é sua origem, [a origem do homem nos instintos volitivos] ele pode exercer sua atividade com todo seu vigor e elasticidade; daí nascem todas as criações do gênio.”

¹ A impressão de loucura deriva de ver alguém que age com grandeza sem que o intelecto seja sua força-motriz. Nada mais louco que a Vontade se realizando plenamente em algo tão frágil e passageiro como o mero indivíduo. O intelecto se mantém no caminho da constância. O gênio, o artista, se despersonalizam, sobretudo da ótica do exageradamente sábio. Na próxima frase Schopenhauer parece se dar conta de seu erro primário e remedeia a afirmação.

² Aqui podemos afirmar com segurança: Napoleão foi um homem de ação, não um gênio. O gênio “não se dá bem com o seu presente”, e não se trata de mera circunstância ou azar: quão maior sua genialidade, mais essa desavença é exigida como autêntica medida do seu grau supino de genialidade.

³ Eu encaro como o homem prático aquele que se divorcia da Vontade e cujo comportamento se tornou uma quimera fictícia (tratando o fenomênico como se fosse o real fundamental – só aqui é que haveríamos de falar em loucura). O gênio, o superabundante em intelecto se compararmos com seu estoque de vontade, é aquele, no entanto, que nunca separa os galhos e a copa das suas raízes instintuais: ele é exatamente o que a natureza projeta para a raça superior de homens. É uma pena que, enxergando tão longe, sendo tão sutil durante grande parte de seu percurso, Schopenhauer não perceba algo comparativamente tão simples e seja tão grosseiro em suas conclusões cabais: o gênio só pode estar enraizado o mais profundamente na Vontade e ser a completa afirmação apaixonada do mundo mesmo! O desinteresse e o ascetismo nada têm que ver com o gênio, são duas faces da mesma moeda: do homem prático, que ignora o rizoma da existência, e do homem que ‘desistiu do mundo’, entregue à abstração vazia e ao miscitismo! Ninguém que se opõe a sua natureza e que corta seus vínculos com suas próprias origens (fica sem raiz, sem vínculo, sem origem) pode chegar longe num mundo em que realizar-se é justamente estar no mundo com o máximo ímpeto e densidade!

Árvores muito altas e bonitas não dão frutos; as árvores que dão fruto são pequenas, feias, mutiladas. A rosa do jardim cultivado não dá rosas; a rosa pequena, selvagem, quase sem cheiro, é que dá muitos botões e perpetua. Os edifícios mais bonitos não são os mais úteis; um templo não é uma moradia. Um homem de raros e elevados dons compelido a consumir-se em negócios comezinhos e cotidianos, para os quais os homens mais ordinários seriam muito mais aptos, é como um vaso caríssimo decorado de belíssimas pinturas usado como um recipiente comum de cozinha”

NOSSO TUDO OU NADA EXASPERANTE DE CADA DIA (QUE NUNCA É O ÚLTIMO, A DESPEITO DAS APARÊNCIAS): “O gênio é, acima de tudo, o servo de dois mestres (…) freqüentemente ele conturba a vontade, o que significa que o indivíduo com dom se torna mais ou menos inútil para a vida, isto é, em sua conduta se assemelha a um louco, de acordo com o homem vulgar. Devido a seu conhecimento muito elevado, tenderá a enxergar mais o universal que o particular; mas acontece que a Vontade exige o conhecimento aplicado ao particular. [ERRO CRASO: a Vontade já é esse particular, ela busca o universal, a vontade-para-o-poder, engrandecer-se.] Ocasionalmente, no entanto, assim que uma brecha se oferece, todo esse conhecimento anomalamente excessivo se dirige com todo o ímpeto [veja que o conhecimento não tem ímpeto – isso significa que é a Vontade que se expressa mediante a faculdade da sabedoria] às circunstâncias, [o particular] às misérias da vontade e da vida, [a Vontade se volta para si mesma como num espelho] com a aptidão para apreendê-las assaz vìvidamente, bem até demais, para observar tudo em cores muito nítidas, em cores tão claras que ofuscam, e de uma forma temerariamente exagerada, de onde se constata que o indivíduo genial recai ora num extremo, ora noutro.” A pulga que vira um elefante ou a síndrome de Alice ou de Mario Bros. (encolhe e engrandece várias vezes num só dia).

A SOCIEDADE DOS MEUS MELHORES AMIGOS MORTOS: “A todo o dito resta acrescer que o gênio vive essencialmente só. É demasiado raro encontrar o tipo, ainda mais na companhia dos outros homens, que o acham, e por ele mesmo são considerados, muito diferente(s) e aparte. (…) O gênio não está adaptado a conversações: os vulgares terão tão pouco prazer nele e em sua superioridade opressiva quanto este invulgar terá com os homens. (…) Para que o gênio entabule relações com um igual, via de regra, tem de agir indiretamente, consumindo as obras que os gênios do passado legaram.”

O homem talentoso é aquele que acerta com facilidade o centro do alvo que o franco-atirador normalmente não consegue atingir; o homem de gênio é aquele que acerta centros de alvos que os franco-atiradores não conseguem sequer enxergar. O gênio só é conhecido por vias indiretas, e tarde demais; ainda assim, só crê no gênio quem dá fé e confia nos relatos dos homens, pois que vendo a coisa por si mesmo o homem vulgar nada teria de mais a falar, nada perceberia de extraordinário.”

em muitos estudantes¹ uma tendência puramente intelectual e uma excentricidade sugestiva do gênio é inconfundível. Mas a natureza retoma a sua marcha; [os instintos reacionários voltam a contrabalançar a natureza excessivamente intelectual que ameaça aflorar no indivíduo] eles assumem a forma de crisálida [o desenvolvimento intelectual sofre uma pausa – período de latência] e a antiga inclinação reaparece na idade adulta, transformando-os em filisteus encarnados,² o que nos choca quando os reencontramos mais tarde na vida.”

¹ Significa que por mais que muitos alunos pareçam promissores e realmente exibam o temperamento do gênio, o número efetivo de gênios na idade adulta é mínimo.

² O emprego da expressão “incarnate Philistines” no texto que traduzi soa estranho aqui, pois não combina com o teor da frase. Philistine tem necessariamente uma conotação jocosa, e no entanto Schopenhauer quer se referir aos eruditos sob uma luz de decência! Ou Sch. quer dizer que esse “retorno do intelecto” é muito defasado na maioria dos homens? I.e., surpreendemo-nos de um completo asinino (filisteu) aos 30 ter se tornado finalmente alguém ponderado aos 50? Porém isso não faz nenhum sentido, não é realista! Sendo este o caso, entretanto, deveríamos ler assim o final da frase: …transformando-os, quando não passavam de filisteus encarnados, o que nos choca….

O entendimento, a habilidade técnica e a rotina devem preencher as frestas que a concepção e inspiração do gênio deixou para trás, e deve misturar com estas todo tipo de obra suplementar necessária como cimento das únicas partes real e genuinamente brilhantes. Isso explica por que em todas as obras, excetuando-se apenas as obras-primas perfeitas dos maiores mestres de todos os tempos (como, p.ex., o Hamlet, o Fausto, a ópera de Don Juan), notamos a mescla com qualquer coisa de insípido e enfadonho, que em alguma medida prejudica a fruição do todo. Provas vivas são o Messias [obra musical], Gerusamme liberata [outra composição sonora], mesmo O Paraíso Perdido e a Eneida; e Horácio já havia feito a observação contundente: Quandoque dormitat bonus Homerus [Às vezes até o bom Homero dormita].¹ Mas que assim seja é conseqüência das limitações das capacidades humanas em geral.”

¹ Em inglês o trecho dá azo a um excelente trocadilho: even good Homer sleeps/slips. Dorme (no ponto); desliza, vacila.

12.6 MÚSICA, O PALIATIVO FINAL

uma bela arte permaneceu excluída de nossa consideração e tinha de permanecê-lo, visto que, no encadeamento sistemático de nossa exposição, não havia lugar apropriado para ela. Trata-se da música.” “linguagem universal, cuja distinção ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo” “a alegoria interior com a qual o íntimo mais fundo de nosso ser é trazido à linguagem.”

o ponto de comparação da música com o mundo, a maneira pela qual a primeira está para este como cópia ou repetição, encontra-se profundamente oculto. A música foi praticada em todos os tempos sem se poder dar uma resposta a tal indagação. Ficou-se satisfeito em compreendê-la imediatamente, renunciando-se a uma concepção abstrata dessa compreensão imediata.”

ABSURDIDADE: “a música, visto que ultrapassa as Idéias e também é completamente independente do mundo fenomênico, ignorando-o por inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não houvesse mundo [!!!!] – algo que não pode ser dito acerca das demais artes. De fato, a música é uma tão IMEDIATA objetivação e cópia de toda a VONTADE, como o mundo mesmo o é, sim, como as Idéias o são, cuja aparição multifacetada constitui o mundo das coisas particulares.¹ A música, portanto, de modo algum é semelhante às outras artes, ou seja, cópia de Idéias, mas CÓPIA DA VONTADE MESMA, [acaba de se contradizer de novo!] cuja objetidade também são as Idéias. Justamente por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência.”

¹ Se suas Idéias são para significar Vontade, perdem o sentido. Na realidade ressuscitar, malversando, Platão (nestes casos específicos do texto schopenhaueriano) só prejudica a compreensão moderna da Filosofia clássica e desvaloriza o próprio filosofar contemporâneo. Se há diferença, ela é não-concorde ao próprio sistema schopenhaueriano e, mesmo se não fosse, nunca é explicada pelo autor.

O desvio da correção aritmética dos intervalos mediante um temperamento qualquer, ou produzida pelo tipo escolhido de tom, é análogo ao desvio do indivíduo do tipo da espécie. Sim, as dissonâncias impuras que não formam nenhum intervalo determinado são comparáveis aos abortos monstruosos situados entre duas espécies animais, ou entre homem e animal.” Isso seria verdade para a música clássica, mas não para a música do século XX (o sobressair da dissonância).

O ÚLTIMO METAFÍSICO DO TOM: “Somente a MELODIA tem conexão intencional e plenamente significativa do começo ao fim. Ela narra a história da Vontade iluminada pela clareza de consciência, cuja impressão na efetividade é a série de seus atos. Porém, a melodia diz mais: narra a história mais secreta da Vontade, pinta cada agitação, cada esforço, cada movimento seu, tudo o que a razão resume sob o vasto e negativo conceito de sentimento”

A invenção da melodia, a revelação nela de todos os mistérios mais profundos do querer e sentir humanos, é a obra do gênio, cuja atuação aqui, mais do que em qualquer outra atividade, se dá longe de qualquer reflexão e intencionalidade consciente, e poderia chamar-se uma inspiração. Aqui o conceito é infrutífero, como na arte em geral. O compositor manifesta a essência mais íntima do mundo, expressa a sabedoria mais profunda, numa linguagem não-compreensível por sua razão: como um sonâmbulo magnético fornece informações sobre coisas das quais, desperto, não tem conceito algum. No compositor, mais do que em qualquer outro criador, o homem é completamente separado e distinto do artista. Mesmo na explanação dessa arte maravilhosa o conceito mostra a sua indigência e limites.”

Quanto ao número inesgotável de possíveis melodias, corresponde ao inesgotável da natureza na diversidade de seus indivíduos, fisionomias e decursos de vida. A passagem de uma tonalidade para outra completamente diferente, quando a conexão com a anterior é no todo interrompida, compara-se à morte, na medida em que nesta o indivíduo finda. No entanto, a Vontade que nele apareceu existe tanto quanto antes, aparecendo num outro indivíduo, cuja consciência, todavia, não possui ligação alguma com a de seu antecessor.”

A música exprime não esta ou aquela alegria singular e determinada, esta ou aquela aflição, ou dor, ou espanto, ou júbilo, ou regozijo, ou tranqüilidade de ânimo, mas eles MESMOS, i.e., a Alegria, a Aflição, a Dor, o Espanto, o Júbilo, o Regozijo, a Tranqüilidade de Ânimo, em certa medida in abstracto, o essencial deles, sem acessórios, portanto também sem os seus motivos.” “Essa é a origem do canto com palavras e, por fim, da ópera – que justamente por isso nunca devem abandonar a sua posição subordinada para se tornarem a coisa principal, fazendo da música mero meio de sua expressão, o que se constitui num grande equívoco e numa absurdez perversa.” Prelúdio d’O Caso Wagner.

Tão seguramente como a música, longe de ser mero acessório da poesia, é uma arte independente, não só independente mas a mais poderosa de todas as artes, e por conseguinte alcança seus fins inteiramente com seus próprios recursos, tão seguramente quanto isto, é possível dizer que a música não necessita das palavras das letras ou da ação de uma ópera, que são acréscimos opcionais.”

Com respeito à superioridade da música em relação a seus elementos subordinados na forma da atuação dos atores-músicos na ópera e letra da canção, e porque a música está para o libretto e a ação como o universal para o particular, como a regra para o exemplo, seria aconselhável que o libretto fosse escrito para a música e não a música composta para o libretto. No entanto, o método costumeiro (o segundo) existe porque as palavras e ações contidas no libretto conduzem o compositor, de qualquer maneira, às afetações da vontade que estão em seu imo, e despertam nele os sentimentos a ser exprimidos pela composição; agem, portanto, como meios excitantes da imaginação musical.” Atualidade total, na era das trilhas sonoras encomendadas.

Que seja possível a relação entre uma composição e uma exposição intuitiva reside no fato de as duas serem apenas expressões diversas da mesma essência íntima do mundo. Quando uma tal relação de fato está presente [é que] o compositor soube expressar na linguagem universal da música os estímulos da Vontade constitutivos do núcleo de um evento: então a melodia da canção, a música da ópera são plenamente expressivos. A analogia encontrada pelo compositor entre aquelas duas (…) tem de provir do conhecimento imediato da essência do mundo, inconsciente para a sua razão, e não pode (…) ser imitação intermediada por conceitos. Do contrário a música não expressa a essência íntima, a Vontade mesma, mas apenas imita de maneira inadequada o seu fenômeno. Isto o faz toda música imitativa propriamente dita: p.ex., As estações, de Haydn, também muitas passagens de sua Criação, em que fenômenos do mundo intuitivo são imediatamente imitados. Também é o caso de todas as peças de batalha. Tudo isso deve ser por completo rejeitado.”

a seriedade que lhe é essencial, a excluir por completo o risível do seu domínio próprio e imediato, explica-se pelo fato de seu objeto não ser a representação, exclusivamente em relação à qual o engano e o risível são possíveis” “Quão plena de sentido e de significação é a linguagem musical, testemunham-no até mesmo os sinais de repetição, junto com o da capo [do início em italiano], que seriam insuportáveis nas obras escritas com palavras. Na música, entretanto, são bastante apropriados e benéficos, pois, para apreendê-la completamente, tem-se de ouvi-la duas vezes.” Ou 200 ou 2000…

Observe que na música de ópera o pathos transmitido é sempre o mesmo, não importa se o tema teatral é a desavença entre Agamemnon e Aquiles ou numa simples família burguesa. O material suplementar é irrelevante. Como Deus vê apenas o coração dos homens, a música vê e é apenas a vontade e as paixões ocultas por detrás das aparências. Desse modo, até diante das bufonarias da ópera cômica a música verdadeira preserva sua beleza, pureza e sublimidade essenciais. Na música não existe absurdo. A significância séria e profunda de nossa existência paira sobre toda a farsa e a interminável miséria da vida humana.”

Se considerarmos a música puramente instrumental, uma sinfonia de Beethoven nos apresenta a maior das confusões, mas que não deixa de estar baseada na mais perfeita ordem, o mais veemente conflito, que é transformado no instante seguinte na mais bela concórdia. É rerum concordia discors, um quadro perfeito e verdadeiro da natureza do mundo, que flui num labirinto ilimitado de incontáveis formas, que mediante constante destruição executa uma constante reparação.” “como um mundo espiritual sem matéria”¹ “É claro que enquanto ouvimos temos a tendência se representar a música em carne e ossos e prestar-lhe uma roupagem concreta, ver através dos ouvidos cenas da vida e da natureza. Geralmente, porém, isso não é sequer requisitado para a compreensão e fruição da música, consistindo apenas em adição estranha e arbitrária inevitável dada a natureza dos sentidos.”

¹ O verdadeiro sentido de sublimação. Esqueça a psicanálise!

a música nunca nos causa tristeza verdadeira. Mesmo em suas tensões mais melancólicas, ainda é prazerosa, e com muito deleite ouvimos em sua linguagem a história secreta de nossa vontade, com todas as suas emoções e esforços, seus variegados prolongamentos, obstáculos e misérias. Em contraste, quando, na realidade e seus terrores, é a nossa vontade mesma que é afetada e atormentada, não em sua história, mas no momento atual, quando não se trata mais de tons e relações numéricas, nós mesmos somos as cordas tensas e vibrantes que são esticadas, o que é sem dúvida doloroso.”

Em regiões setentrionais, cuja vida está sujeita a condições árduas, especialmente entre os russos, a menor da escala musical prevalece, mesmo na música de igreja. Allegro in minor é característica da música francesa; é como se alguém dançasse com sapato apertado.”

13. A FAMOSA MISOGINIA SCHOPENHAUERIANA

ABSURDO FINALISMO… “A causa eficiente que se demonstra nas configurações animais também é válida para a barba no homem; a finalidade dela é, eu suponho, ocultar os signos patognômicos¹ rapidamente alternantes na expressão humana, que traem qualquer movimento da mente. Esses signos são principalmente visíveis no entorno da boca; desta feita, a natureza, i.e., o organismo humano mesmo – de forma a minimizar suas perdas, escondendo do olho penetrante do adversário essas alterações sutis, cuja percepção seria muito perigosa nos atos de barganha ou em situações-limite – trata de fazer crescer pêlos na região, o que se traduz pelo completo desenvolvimento da barba no homem adulto (outro índice de que homo homini lupus, o homem é o lobo do homem). As mulheres, ao contrário, podem dispensar essa ‘vantagem natural’; pois sua dissimulação e autodominío das feições são inatos.” Menos nas lusitanas…

¹ Normalmente a palavra faria referência a sintomas mórbidos reconhecíveis por um especialista; neste caso, Schopenhauer emprega o prefixo pathos, que é o mesmo de patologia, para designar expressamente os afetos e as emoções, a variabilidade do caráter humano e as expressões faciais que as acompanham, e que acabam por involuntariamente nos trair. Perguntem aos jogadores de pôquer!

Falta de inteligência não prejudica uma mulher aos olhos de um homem. De fato, uma fêmea extraordinariamente bem-dotada mentalmente, ou mesmo uma gênia, provavelmente gerarão repulsa no homem, por serem anomalias.”

CONTRA O SAPIOSSEXUALISMO, HAHAHA! “É uma pretensão vã e absurda quando as mulheres afirmam que estão apaixonadas pelo cérebro de um homem, ou isso é sincero mas não passa de uma mania de uma natureza degenerada.”

Os homens não têm seus instintos sexuais e amorosos determinados pelo caráter da mulher; daí haver tantos Sócrates com esposas iguais Xantipas. Alguns exemplos são Shakespeare, Albrecht Dürer, Byron.

14. RESÍDUOS: AFORISMOS, PASSAGENS DIFÍCEIS DE CLASSIFICAR, CONSOLAÇÕES OU INVECTIVAS CONTRA FILÓSOFOS OU PERSONALIDADES MENORES

é tão reduzido o verdadeiro público de um autêntico filósofo que mesmo os discípulos que o compreendem só aparecem de séculos em séculos.”

todo evento ou obra, sufocados em gérmen, ainda têm a infinitude inteiramente aberta para o seu retorno.”

Apenas a significação interior vale na arte, a exterior vale na história. Ambas são completamente independentes uma da outra, podem aparecer juntas, mas também sozinhas.”

Que é afinal a modéstia senão a fingida humildade por meio da qual, num mundo povoado de inveja, pede-se perdão pelas excelências e méritos próprios àqueles que não os possuem?”

VIOLÊNCIA ou ASTÚCIA, os quais, em termos morais, são em essência a mesma coisa.”

Quem se recusa a mostrar ao andarilho o caminho correto não pratica injustiça; mas quem lhe aponta o caminho errado, pratica-a.”

O gozo da prática da injustiça num indivíduo é sempre menor que a dor ao sofrer a injustiça de outrem” Isso é tão sintético que poderia ter salvado Kant de escrever sua tortuosa Crítica da Razão Prática!

assim como de maneira bastante engenhosa se denominou o historiador um profeta às avessas, o legislador é um moralista às avessas.”

Todo amor puro e verdadeiro é compaixão. Todo amor que não é compaixão é amor-próprio.” “Até mesmo a amizade autêntica é sempre uma mescla de amor-próprio e compaixão” “O CHORO é COMPAIXÃO CONSIGO MESMO ou, a compaixão que retorna ao seu ponto de partida.” “sente-se que quem ainda pode chorar também tem de ser necessariamente capaz de amar”

Embora a idade e a doença tivessem transformado a vida dele num tormento e, através do desamparo, um fardo pesado para o filho, ainda assim a morte [do pai] é chorada intensamente.”

A verdadeira filosofia deve ser sempre idealista; de fato, deve sê-lo se quiser ser tão-só uma filosofia honesta, ainda que falsa.”

Jacobi, em sua doutrina de que a realidade do mundo exterior é assumida com base na fé, é exatamente <o realista transcendental que se faz passar por idealista empírico> tão censurado por Kant em sua Crítica da Razão Pura

Fichte não deve ser mencionado em minha obra: ele não merece um lugar entre os verdadeiros filósofos; entre aqueles eleitos da humanidade que, com honestidade profunda, buscam não coisas pessoais, mas a verdade; aqueles, portanto, que não devem ser confundidos com outros, os que, sob essa pretensão, só se importam com miudezas egocêntricas e a própria carreira. (…) Mas quem quer que nomeie esse tal Fichte ao lado de Kant – e falando sério! – demonstra que não tem a menor noção de quem é Kant e o que ele representa.” Essa espetada é sem disfarces direcionada a Hegel, este nivelador universal!

Materialismo é a filosofia do sujeito que se esquece de levar em consideração a si mesmo.”

Chega a ser comovente como, desprovidos tanto da profundidade dos alemães como da honestidade dos ingleses, os filósofos franceses distorcem e reviram o pobre material da sensação daqui e dali, buscando incrementar sua importância, a fim de elaborar os fenômenos profundamente significativos do mundo da percepção e do pensamento.”

Poderemos nos chamar de civilização somente quando nossos ouvidos puderem viver desprotegidos sem danos, quando não for mais <direito adquirido> de cada um perturbar a paz de consciência e a tranqüilidade de quem caminha na rua através de uma infinidade de sons como assovios, berros, relinchos, marteladas, o estalar de chicotes, latidos, etc., etc. (…) Algo mais sobre este assunto é dito no 13º capítulo do segundo volume do ParergaSim, amigo, eu me lembro muito bem! Quem estiver interessado (são passagens bem divertidas!), basta clicar em https://seclusao.art.blog/2017/05/30/o-pessimismo-de-arthur-schopenhauer/ e digitar Lichtenberg na busca (ctrl + F).

SÓ SEI QUE NADA (ESPERO DE) SEI(TAS): “se pudéssemos com firmeza persuadir 3 homens de que o sol não é a causa da luz do dia, seria de se esperar que logo essa nova convicção se tornaria generalizada.”

Inferir é fácil, julgar é complicado. Falsas inferências são raras, falsos julgamentos se dão o tempo todo.”

Quanto mais um homem é capaz de uma seriedade integral, mais, também, ele pode rir de coração.”

A ironia é objetiva, isto é, direcionada sempre ao outro; mas o humor (o cômico) é subjetivo, i.e., existe primariamente apenas para si mesmo. É por essa razão que as obras-primas da ironia estão entre os antigos, mas as obras-primos do humor se acham entre os modernos.

Falar diretamente dos corpos parece aos filósofos contemporâneos excessivamente vulgar; daí que eles digam <ser>, que juram soar melhor”

GERENTE-GERAL DA FIRMA: “o filósofo deve pesquisar em todos os campos do conhecimento, e inclusive, até certos limites, estar familiarizado em cada um. Segue daí que aquele conhecimento completo que só pode mesmo ser adquirido pelo estudo do detalhe está-lhe necessariamente interdito. (…) o filósofo pode ser comparado ao maestro: deve saber a natureza e o uso de todos os instrumentos da orquestra, sem embargo não seria proveitoso saber tocar todos, nem mesmo um deles como um perito ou virtuoso. O especialista é como Penélope semi-viúva à espera, que cose só para descoser. Tanto faz seus dias, o que importa é Odisseu. Ele irá ligar os pontos e dar utilidade ao trabalho da carne, ao alfinete e ao vestido.

em si mesmas, as matemáticas deixam a mente exatamente onde elas a encontraram (…) mesmo Descartes, muito melhor matemático do que filósofo, considerava a matemática de segunda ordem, ideal para cultivar a atenção e controlar a superexcitação dos nervos”

Se tivermos lido um livro de anedotas, digamos, 50 anedotas, e depois deixamos o livro de lado, imediatamente depois da leitura pode ser que sejamos incapazes de lembrar de cor uma única anedota. (…) O mesmo com qualquer tipo de leitura. Nossa conexão com o que aprendemos lendo depende de nossas linhas de pensamento, no contexto adequado. Aprender a fundo uma língua significa fortalecer essas conexões.”

O PROBLEMA DE DAR AULAS OU FALAR EM UMA CONFERÊNCIA, AINDA MAIS QUANDO NÃO SE É UM ESPECIALISTA: “Ocasiões suscitam pensamentos; pensamentos suscitam ocasiões apenas às vezes. Se nos propomos a fazer algo num momento determinado, isso só pode se dar perfeitamente se 1) ou não pensamos em nada até a chegada deste momento, 2) ou se nesse momento determinado nós somos lembrados do pensamento por algum símbolo, com que está associado, seja uma impressão externa plantada previamente [que tal uma simples anotação?] ou um pensamento que é de novo suscitado de forma natural. [um aluno que através de uma questão recupera nossa memória]

Toda manhã quando despertamos nossa consciência é uma tabula rasa, que, no entanto, logo se enche de novo. (…) até o ponto em que tudo que nos ocupava na véspera (ontem) lá de novo está.”

algumas vezes não podemos mais nos lembrar, de manhãzinha, de uma melodia que na noite passada grudou em nossa cabeça a ponto de nausear-nos.” Mas às vezes é o oposto: acordamos ouvindo distintamente um estribilho que, estamos seguros, não nos havia ocorrido meses a fio!

A consciência é meramente a superfície de nossa mente, da qual, igual a Terra, não conhecemos as profundezas, só mesmo a crosta.”

Nossa auto-consciência tem, não o espaço, mas somente o tempo como forma. Não pensamos em três dimensões, como percebemos o mundo, mas só em uma, isto é, numa linha, sem largura ou profundidade. Essa é a fonte da maior das imperfeições essenciais do nosso intelecto.” Alguém que não dormisse seria alguém cuja linha reta do raciocínio e da consciência se tornou uma forca (uma corda que se torce sobre si mesma e asfixia nossa própria consciência).

após longa e ininterrupta reflexão sobre um mesmo tema nosso raciocínio se torna gradualmente confuso e estúpido, e termina em completo estupor. Desta feita, após um certo intervalo, que, é claro, varia de indivíduo a indivíduo, devemos nos interromper e abandonar nossa meditação ou deliberação antes de resolvê-la, e nos dar certa paz e relaxamento. Mesmo que se trate de um problema crucial e muito pessoal; ou se elimina essa perturbação da mente ainda que temporariamente, por mais opressiva que seja a ansiedade em torno dela, e nos engajamos nalguma distração indiferente e banal, ou…” “Porque quando retomarmos o fio do problema, refletiremos sobre a coisa de uma outra maneira, como se fosse todo um assunto novo. Entraremos no cerne da problemática muito mais rápido e de um outro ponto de vista, desconectado das primeiras impressões de excitação e repulsa que os pensamentos já haviam percorrido, mais distanciados dos fatos. Nossa vontade aprecia tudo de outro ângulo.” “a mesma coisa, por sinal, nos parece diferente pela manhã, à tarde, à noite, ao meio-dia, noutro dia… às vezes muito diferente”

Em geral, ocupações teóricas tornam nossa mente inábil para negócios privados, e vice-versa.”

quando o grau de cultura é mais ou menos o mesmo, a conversação entre um homem de grande intelecto e um homem ordinário é como a jornada de dois homens caminhando lado a lado, um deles cavalgando um cavalo muito fogoso, o outro indo a pé. Logo se torna incômodo para ambos continuar a travar conhecimento. Após certa duração de tempo, impossível mesmo. Porque por um breve intervalo o cavaleiro pode apear de sua montaria e acompanhar o outro na caminhada, se bem que até mesmo a impaciência de seu animal lhe dará muito que fazer!”

Não há meio-termo entre o desejo e a renúncia.”

Entre os modernos, aquele que vive DA filosofia é, via de regra, salvo raríssimas exceções, o extremo oposto daquele que vive PARA a filosofia, a ponto deste ser o antípoda secreto e irreconciliável daquele. (…) E assim com os discípulos dos grandes filósofos: aquele que em vida passou despercebido, em penúria e sem jamais colher os frutos de sua grandeza, após a morte vê-se reabilitado perante a sociedade, o que é o exato oposto dos tais <renomados professores> [seria Hegel a grande exceção?]. Porém, uma vez que o filósofo deixa um legado, as novas gerações se tornam verdadeiros parasitas: herdeiros sem mérito, rebaixam sua filosofia a seu próprio patamar mesquinho e perpetuam o ciclo da gentalha, vivendo DO seu mestre, e não PARA ele. Que Kant tenha podido viver DA e PARA a filosofia dependeu da mais rara eventualidade de que, pela primeira vez desde os imperadores Antonino e Juliano, um filósofo subira ao trono. Só mesmo sob a proteção de um tal monarca a Crítica da Razão Pura poderia ter visto a luz do dia. Mal morreu o Kaiser e Kant, ainda no meio de sua carreira, foi tomado de apreensão. Como um ex-súdito de um governante sucedido por inimigos poderosos, Kant viu-se na posição de modificar, expurgar e espoliar sua obra-prima na 2ª edição, e ainda assim quase perdera o direito de lecionar e de publicar; o que o salvou foi que Campe de Brunswick¹ se tornou seu mecenas, e Kant ganhou o posto de tutor de sua família.”

¹ Nada sei a respeito dessa figura. Até seu nome parece estar transliterado errado.

Sobre si mesmo todos sabem diretamente, sobre todos os demaisindiretamente. Nisso consistindo o problema.” Ou nem mesmo a si diretamente…

O intelecto é de fato um confidente da Vontade, mas um confidente a quem não se conta tudo.” “O intelecto fica cansado; a Vontade, nunca.”

De 10 coisas que nos importunam, 9 seriam incapazes de fazê-lo se as entendêssemos integralmente em suas causas e, destarte, conhecêssemos sua necessidade e verdadeira natureza; mas o faríamos muito mais amiúde se as tomássemos como objeto de reflexão antes de fazermos delas objeto de ira e indignação.”

Aquele sem frieza e presença de espírito só sabe o que deveria ter feito ou dito quando a oportunidade já passou.”

é muito mais fortuito nascer poeta que filósofo.”

Às vezes, por causa de uma interrupção, é inteiramente impossível retomar o fio de meu pensamento de instantes atrás, ou tentar rememorar, p.ex., de que notícia acabei de me inteirar. Acontece que, se o problema em questão tinha de qualquer ângulo o menor e mais distante interesse pessoal, a sensação que nos é deixada é conservada pela Vontade. Mesmo que não lembre o conteúdo, estou perfeitamente consciente do quanto aquilo em que meditava ou de que obtive conhecimento me afetava, agradável ou desagradavelmente, e quase posso dar com a maneira com a qual isso interagia comigo, i.e., se me envergonhava, gerava puramente ansiedade, me irritava ou me deprimia, ou então produzia o oposto dessas afeições. Quer dizer que a mera relação da coisa com minha Vontade é retida na memória mesmo após a coisa em si [sem hífen aqui: a coisa ela mesma, qualquer coisa, conteúdo banal ou de somenos importância metafisicamente falando, i.e., não é o noumeno de Kant!] ter se dissipado, e esse fato se torna a principal pista que nos conduz de volta àquela coisa.”

assim que a mente escapa do disparate da infância, cai nas ciladas de inumeráveis erros, preconceitos e quimeras, algumas vezes até mais absurdos e toscos que os da infância, sendo que agora a mente possui a qualidade de perseverar muito mais nestes erros, até que finalmente a experiência acumulada começa a remover um por um desses preconceitos, sendo que muitos deles desaparecem sem que nos demos conta. Isso demora muitos anos para se suceder, de modo que em muitas legislações adquire-se a chamada maioridade no vigésimo aniversário – mas a maturidade consumada, os anos da discrição, só muito raramente dá as caras antes do quadragésimo aniversário.”

todo esse mundo objetivo, tão vasto e ilimitado em espaço, tão infinito em tempo, tão insondável em sua perfeição, é, na verdade, só determinado movimento ou afeição provinda de uma comparativamente muito escassa matéria cinzenta confinada a um crânio.”

Podemos chamar o instinto de um caráter ou personalidade que é para além de todas as medidas unidimensional e achatado. Vide os insetos: eles são quase que o perfeito exemplo de sonâmbulos naturais (despidos de toda e qualquer individualidade).”

Só na aparência os homens são puxados pelo que vai adiante; na realidade eles são empurrados pelo que vai atrás; não é a vida¹ que os tenta a continuar, mas a necessidade que os impele para a frente.”

¹ Entender como esperança.

nenhum homem de mente sóbria pode sonhar em ser um gênio.”

Decerto que o que um homem adquire em experiência e conhecimento até a idade da puberdade é, tomado como um todo, mais do que tudo que ele futuramente aprenderá, por mais que ele chegue a uma grande erudição; porque aquele conhecimento inicial é o fundamento de todo o conhecimento posterior.”

No geral eu recomendo a todos que queiram se familiarizar com minha filosofia ler cada linha que já escrevi. Eu não sou um escritor volumoso,¹ fabricador de compêndios, não lucro com minha filosofia, meus escritos não almejam à aprovação de um ministro de Estado; em suma, não sou alguém sob a influência de fins materiais.”

¹ Mentira! Estou há anos tentando ler sua obra completa, camarada!!

Juventude sem beleza tem sempre ainda um charme; beleza sem juventude nenhum.”

o sono é um dos irmãos da morte; já o desmaio é seu irmão gêmeo.”

TUDO VAI FICAR BEM: “Mesmo à morte violenta é impossível ser dolorosa, já que até ferimentos graves não são sentidos senão algum tempo depois, amiúde não antes de que a própria vítima observe seus sinais exteriores. Se esses ferimentos levam rapidamente à morte, a consciência se esvai antes da descoberta; se os ferimentos conduzem lentamente à morte, trata-se de desfecho idêntico ao de outras doenças. Todos aqueles que perderam a consciência debaixo d’água, ou asfixiados pela fumaça, ou numa tentativa mal-sucedida de enforcamento, são conhecidos por haverem relatado não sentir a mínima dor.”

Só o homem carrega consigo em conceitos abstratos a certeza de sua morte, embora a mesma só o angustie muito raramente, em momentos particulares, quando uma ocasião a presentifica à fantasia. Contra a voz poderosa da natureza a reflexão pouco pode.” “Ninguém tem uma convicção realmente vívida da certeza da própria morte, pois, do contrário, não poderia haver diferença tão grande entre sua disposição e a do criminoso condenado.” “a consciência interna (…) evita (…) o envenenamento da vida do ser racional pelo pensamento sobre a morte, já que tal consciência é a base daquele ânimo vital que conserva cada vivente e o capacita a continuar vivendo serenamente, como se não existisse morte” “Todavia, nada impede que, quando a morte entre em cena para o indivíduo no particular e na efetividade, ou apenas na fantasia, ele tenha então de encará-la nos olhos, sendo assim assaltado pelo medo” “às vezes enfrentamos a dor mais terrível só para escapar da morte por mais alguns instantes

Uma consideração sobre “HISTÓRIA DAS IDÉIAS 3: SCHOPENHAUER: MULTIFACETAS”

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