PLATÃO CONTRA OS HERACLÍTICOS (maus discípulos de Heráclito)

HERÁCLITO E O CONHECIMENTO:

O conflito aparente entre os fragmentos e o testemunho de Platão

Ana Flaksman, PUC-Rio

A raiz da palavra logos, leg-, implica basicamente os sentidos de ‘colher’ e ‘selecionar’. … Esse grupo de significados seria ao menos tão primário quanto as acepções de ‘enunciado’ ou ‘discurso’. Outro desenvolvimento levaria aos sentidos de ‘fórmula’, ‘plano’, ou ‘lei’. (Confrontar o sumário de significados apresentado por G.S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments, p. 38.) E haveria ainda mais sentidos correntes do termo logos no tempo de Heráclito, tais como ‘valor’, ‘reputação’, ‘fama’, ‘causa’, ‘motivo’, ‘argumento’ e ‘a verdade sobre uma questão’. (Cfr. W.K.C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, I, pp. 420-24.)”

(*) “Nesta tese, utilizarei a numeração e a edição dos fragmentos de Heráclito estabelecidas por Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, bem como utilizarei a tradução dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Heráclito: Fragmentos Contextualizados (RJ, Difel, 2002).”


Deste logos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo este logos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações, tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados, como esquecem o que fazem dormindo.”

frag. 1


não é fácil definir se Heráclito teria afirmado que o logos é sempre ou que os homens são sempre ignorantes.” Na verdade é patente que o ‘sempre’ se refere ao logos.


É uma regra geral que uma composição escrita deva ser fácil de ler e portanto fácil de transmitir. Isso não pode ocorrer onde há muitas palavras ou expressões conectivas, ou onde a pontuação é difícil, como nos escritos de Heráclito.”

O falso universalista Aristóteles. A vida é difícil, meu caro lógico!


(*) “Vale sublinhar que a tradição literária da historie jônica costumava fazer referência ao próprio discurso na apresentação das obras. Cf. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus, pp. 66-7.”

Embora sendo o logos comum, a massa vive como se tivesse um pensamento (phronesin) particular.”


Não pensam (phroneousi) tais coisas aqueles que as encontram (enkyrseuousin), nem mesmo quando aprendidas (mathontes) as reconhecem (ginoskousin), mas a si mesmos lhes parece (dokeousi).”

frag. 17


O verbo ‘encontram’, como indicam muitos autores, sugere o contato físico e, portanto, a apreensão sensível resultante desse tipo de contato. Já o termo ‘aprendidas’, que também aparece nos fragmentos 55 e 40, sugere não apenas uma apreensão sensível, mas um entendimento dela derivado. Esse entendimento, no entanto, não significa necessariamente uma compreensão efetiva do logos. Portanto, por mais que os homens sintam e aprendam coisas, não conseguem reconhecê-las. Eles não pensam adequadamente as coisas que encontram, mas formam uma opinião sobre elas, produzindo um entendimento que não é consoante com a compreensão do logos.”

Em Homero, a psyche é a força vital dos homens, é aquilo que os anima, que os mantém vivos.” “[Mas] Homero … se refere antes à psyche dos mortos que à p. dos vivos.”

Bruno Snell, A Descoberta do Espírito, 1975 (1992).

O thymos seria responsável por suscitar os movimentos e as reações, e estaria referido às emoções, enquanto o noos seria responsável por receber impressões, guardar imagens e conhecer, estando referido não propriamente ao esforço com vista ao conhecimento, mas simplesmente a insights momentâneos, à percepção que inclui a ocorrência espontânea de um entendimento.”

Na lírica, os poetas surgem pela 1ª vez como personalidades, falam de si, de seus sentimentos pessoais, de conflitos entre emoções.”


Sicut aranae, ait, stans in medio talae sentit quam cito musca aliquem filum suum corrumpit itaque illuc celeriter currit quase de fili perfectione dolens, sic hominis anima aliqua parte corporis laesa, illuc festine meat, quasi impatiens laesionis corporis, cui firme et proportionaliter iuncta est.”4

Assim como a aranha no centro da teia logo sente quando uma mosca rompe qualquer fio de sua teia, e, deste modo, corre pressurosa para lá, como se temesse pela integridade do fio, também a alma do homem, lesada qualquer parte do corpo, dirige-se rapidamente para lá, como se não suportasse a lesão do corpo a que está unida firme e proporcionalmente.” 4

frag. 67a


Se as interpretações sobre a noção de psyche baseadas no fragmento 67a não são unânimes, visto que o fragmento é considerado dúbio ou inautêntico por alguns autores, a idéia de que Heráclito desenha uma analogia entre o papel do fogo no cosmo e o da psyche no homem é um ponto sobre o qual há consenso geral.”

se, de um lado, o fogo se transforma de algum modo, pois possui a dinâmica do apagar-se e acender-se, de outro, sua dinâmica se dá segundo medidas, explicitando assim o caráter ordenado da diversidade do cosmo.” Grifo meu.


Para as almas, tornar-se água é morte; para a água, tornar-se terra é morte; mas da terra nasce água, da água, alma.”

frag. 36


Quando a psyche for úmida, isso implicará sempre, para o homem, uma perda proporcional de vitalidade, de autocontrole e de inteligência.”

O homem, quando bêbado, é levado por uma criança impúbere, trôpego, não notando para onde anda, tendo úmida a alma.”

A embriaguez é um estado de reduzidos autocontrole, atenção e discernimento.” Há embriaguez e há embriaguez.


Não havia nenhuma necessidade de distinguir a percepção sensível de uma outra faculdade cognitiva, como p.ex. o julgamento, o pensamento ou a razão, e a experiência sensível era tomada como a espécie única e suficiente de cognição.(*)

(*) Wilcox argumenta que, se de um lado a Odisséia apresenta o tema do engano e do reconhecimento, e cria uma distinção entre ‘percepção em geral’ e ‘conhecimento’, de outro, tanto o engano quanto o conhecimento são concebidos como tipos de percepção, e a aquisição do conhecimento (ou a falta dele) é sempre condicionada externamente, por aquilo que alguém encontra e vê. P.ex., o disfarce de uma pessoa produz engano, enquanto a verdadeira aparência de uma pessoa produz reconhecimento. Cf. J. Wilcox, The Origins of Epistemology, p. 133.”


A intervenção e a inspiração divinas constituem a concessão, feita pelos deuses e pelas Musas, de informações ou poderes que fazem com que os homens – poetas, sacerdotes ou adivinhos – passem a conhecer o que está para além de sua experiência ordinária.” Perfeita objetividade do conhecimento poético.

a possibilidade do conhecimento é posta em dúvida assim que a distinção entre a aparência de uma coisa e sua verdadeira natureza é aplicada” O mesmo erro que séculos depois cometeria Hume, de forma muito grosseira. Aqui mal se pode chamar a situação de divórcio entre essência e aparência, ainda, de erro.

podemos dizer que Heráclito faz entrar em colapso a distinção entre a extrema limitação e a onisciência divina, distinção esta em que um certo ‘pessimismo’ e ‘ceticismo’ tradicionais se haviam baseado.”


(*) “O termo physis, que só aparece uma vez em Homero e nenhuma em Hesíodo, será encontrado em mais de 200 passagens dos fragmentos dos pré-socráticos. Cf. Henrique G. Murachco, ‘O Conceito de Physis em Homero, Heródoto e nos Pré-Socráticos’, Hypnos (SP, Educ/Palas Athena, ano 1, n. 2, 1996), pp. 11-22.”

Ciência natural: o estudo do vir a ser.

Em Heráclito, segundo Conche (Héraclite: Fragments), a interpretação de physis é quase que oposta: o estudo da essência das coisas do mundo: “Mas esse autor também lembra, com toda razão, que, embora a idéia de devir possa não estar em 1º plano em todos os frags. de Heráclito onde o termo physis é mencionado, há frags. – como o 123, ‘Natureza ama ocultar-se’ –, em que physis claramente acentua a noção de um dinamismo constituinte, e não a idéia de uma essência ou constituição fixa ou fixada.”


Harmonia inaparente mais forte que a aparente”

Frag. 54, já antecipando-se em muito ao decadente princípio da não-contradição aristotélico e seu esgotamento, ou seja, antecipando-se a nós próprios em nossa necessidade de ultrapassar o luto pela crise da razão em tempos sombrios e pós-modernos.


no Teeteto, não importava muito para Platão o fato de Heráclito poder ser seu aliado contra o relativismo de Protágoras, pois o que interessava realmente a Platão era que um aspecto da filosofia heraclítica, a saber, o seu mobilismo, servia para fundamentar o relativismo de Protágoras, podendo ser identificado como a fonte, ou uma das fontes, desse relativismo.”

NIETZSCHE’S SELF-EVALUATION AS THE DESTINY OF PHILOSOPHY AND HUMANITY (Ecce Homo, ‘Why I Am a Destiny 1’) – Werner Stegmaier, Univ. de Greifswald, 2010. (trad. Lisa Marie Anderson)

No philosopher before Nietzsche spoke in this way; none declared himself the destiny of philosophy and of humanity. We must confront even this unheard-of claim and ask why he spoke in this way.” “Martin Heidegger especially insisted upon this; he saw Ecce Homo not as the ‘apotheosis of uninhibited self-presentation and boundless self-mirroring’ nor as ‘the harbinger of erupting madness’, nor even simply as a ‘biography’, but rather in fact as ‘a <destiny>, the destiny not of an individual but of the history of the era of modern times, of the end of the West.’ (Nietzsche. Vols. III/IV, ed. David Farrell Krell, San Francisco: Harper & Row, 1987, p. 3).”

Rodolphe Gasché, ‘Autobiography as Gestalt: Nietzsche’s Ecce Homo’, in Daniel O’Hara, ed., Why Nietzsche Now? (Bloomington 1985), 271-290.

Peter Sloterdijk confirms Nietzsche’s ‘<selfishness>’ (45) or ‘<megalomania>’ (40), both of which he places in quotation marks: ‘The light values of Nietzsche’s most exposed statements about himself are so excessive that even the most benevolent and freethinking readers, even those who, in their intoxication, are agreeable to him, avert their eyes at these moments’ (40). But Sloterdijk also legitimizes this selfishness in describing ‘the event of Nietzsche as a catastrophe in the history of language’ (8) and his ‘obscene abundance of self-praise’ as the unleashing of the ‘eulogistic power of language’ or of ‘speaking well [Gutreden]’ – of speaking well not for Nietzsche’s own sake, but in order to overcome the ressentiment-laden ‘speaking-poorly-systems [Schlechtrede-Systeme]’ of metaphysics and morality (28f.). Sloterdijk writes that Nietzsche pursued ‘the revaluation of all embarrassments [Peinlichkeiten]’ with the ‘cynicism’ of a Diogenes of Sinope (46) and offered his readers a new innocence of extravagant speaking well through the ‘gift-giving virtue’ [virtude dadivosa, bela expressão] with which he has his Zarathustra speak (51). Of course, in the end Sloterdijk counts Nietzsche only as a ‘trend designer’ of the ‘individualistic wave’, as a ‘life-style-brand’: ‘Only a fool, only a poet, only an ad writer’ (54, 57). And not a philosopher? Peter Sloterdijk, Über die Verbesserung der guten Nachricht. Nietzsches fünftes ‘Evangelium’. Rede zum 100. Todestag von Friedrich Nietzsche, gehalten in Weimar am 25. August 2000 (Frankfurt 2001).

But this claim could also be ironic – in the sense of Socrates, whose assertion that he knew nothing could likewise only appear presumptuous in the face of his superior knowledge. Yet only under the protection of this presumption could Socrates question his interlocutors in such a presumptuous way as he did, thereby exposing all their knowledge as groundless. With irony he approached even the Oracle of the god of Delphi, which proclaimed destinies and had proclaimed that no one was wiser that Socrates – a proclamation that Socrates did not accept, as one generally would a divine oracle, but rather steadfastly set out to test.”

With this double presumption, which cost him his life, he became the destiny of philosophy and of humanity and attained world-historical importance with his ‘world-historical irony’, as Nietzsche calls it (EH, WA 4).”

By raising himself up, with world-historical irony, to the level of a divine standard, Nietzsche exposes the putatively divine standards as human ones.”

O CARAÇO DO ANGU: “Nietzsche’s thought cannot be measured by the standards it calls into question. Therefore one has to rely, as an experiment, on Nietzsche’s own standards. But these standards are, for their part, not readily grasped.”

PERFEITO ESPELHO DE PLATÃO: “Only this practice, as extensive and time-consuming as it is, guarantees a methodological analysis of Nietzsche’s philosophy that satisfies his methodological demand that his writings be read ‘slowly’ in their own contexts, without prematurely extracting general ‘lessons’ from them.”

Alexander Nehamas remarks that irony, which in Socrates’ case consists of saying <too little,> functions for him just as hyperbole, which is saying <too much,> functions for Nietzsche.’” Nehamas, Nietzsche: Life as Literature, (Cambridge, Mass./London 1985), 26.

Nietzsche speaks of ‘destiny’ [Schicksal] in his writings several hundred times. Here he uses the word in the title of the section but not in its first aphorism itself; there he uses the words ‘fate’ [Loos] and ‘calamity’ [Verhängniss].”

to that end I must first go down deeper than ever I descended—deeper into pain than ever I descended, down into its blackest flood. Thus my destiny wants it. Well, I am ready.”

“‘destiny’ is a concept that we make for ourselves out of an unforeseeable and inalterable occurrence, in order to identify (and sometimes also to personify) the unidentifiable.” “in consciously unleashing the unforeseeable and inalterable, one can also ‘play destiny’ and thus ‘be destiny’ for someone or something.”

According to its usual concept, a destiny is unwilled, ‘imposed’. To will one’s destiny is thus to make yet another paradox of the already paradoxical concept of destiny.” “That is why Nietzsche has Zarathustra call destiny an ‘experience’, something that can be experienced but not comprehended [begriffen].”

To be sovereign is to be able to make something that one wills out of anything that happens. And those who will their destinies can also themselves function as destinies: they arrive ‘like destiny, without cause, reason, consideration, or pretext; they appear as lightning appears, too terrible, too sudden, too convincing, too “different” even to be hated’.”

In the aphorism Ecce Homo, Why I Am a Destiny 1, which comprises little more than a page (in the KSA edition [Kaufmann in English]), Nietzsche orients all the major themes of Western philosophy (destiny, religion, truth and politics) toward one vanishing point: himself and his revaluation of all values.”

if one does not want to succumb to destiny, one must be hard and inexorable like destiny – by accepting that which is beyond his control as his own will”

I find it necessary to wash my hands after I have come into contact with religious people”

Abluções cotidianas.

I contradict as has never been contradicted before and am nevertheless the opposite of a No-saying spirit.”

only beginning with me are there hopes again.”

For when truth enters into a fight with the lies of millennia, we shall have upheavals, a convulsion of earthquakes, a moving of mountains and valleys, the like of which has never been dreamed of. The concept of politics will have merged entirely with a war of spirits; all power structures of the old society will have been exploded into the air”

Still so far…

Aforismo nº 1 dividido em 22 seções.


[1]

the word ‘lot’ [Los] emphasizes that which is random and uncontainable.”

straw


But prophets (at least those of the Hebrew Bible) do not foretell destinies so much as they primarily ‘see’ – despite the resistance of common foolishness – and then proclaim what has already happened (in the case of the biblical prophets, primarily the turning away of the chosen people from God) and what the consequences must be.”

Fritz Bamberger, eds., Die Lehren des Judentums nach den Quellen, 3 vols (Munich/Darmstadt 1999)

It was and is his lot to be both an unheard and an unheard-of prophet, and he reveals this lot in the preliminary sections of Ecce Homo through a genealogy of his thought, from the random circumstances that came together to form his inevitable and necessary destiny, his destiny to be, with his ‘uncovering’, a ‘destiny of humanity’.”

[2]

apparent certainty”

whether he will become a destiny in the future depends on whether others recognize him as a destiny”

It is dependent upon their future ‘memory’ of his ‘name’, upon whether individuals remember his name so that it lives on; the memory of others is his destiny.”

A name, for its part, is a generally used sign for an individual; it is given by others before the individual himself can speak or say ‘I’.” E depois vêm os epítetos: O Filósofo do Martelo, A Dinamite Humana, Cila, O Grande, o Cínico, o Breve, etc….

Even the name, then, is a destiny that one makes his own.” Even our dead parents (dead inside us, dead to us).

Keith Ansell-Pearson & Howard Caygill, ‘On the Fate of the New Nietzsche,’ Ansell-Pearson and Caygill, eds., The Fate of the New Nietzsche (Aldershot 1993) 1-11:1. These are always supposed to be different Nietzsches, and yet also the true, only justified Nietzsches – or, in Zarathustra’s language, the ‘last’ Nietzsches. Nietzsche’s philosophy (and all ‘identities’, even that of the human being) is ‘mistaken’ at the very moment one wants to ‘determine’ it. Nietzsche opened EH with the adjuration: ‘Hear me! For I am such and such a person. Above all, do not mistake me for someone else’ (EH, Preface 1); perhaps he also designed EH as a kind of test for his readers, that they should mistake him and thus compromise themselves – using the notorious ‘self-parody’ that mocks all attempts to ascribe to him a true ‘self’. Daniel W. Conway, ‘Nietzsche’s Doppelgänger: Affirmation and Resentment in Ecce Homo’, The Fate of the New Nietzsche 55-78. Conway’s pugnacious essay targets the idolatry that he believes Alexander Nehamas and Richard Rorty [ora, ora!] have committed with Nietzsche and especially with Ecce Homo, which he thoroughly excoriates.”


Que moral você tem para…?

Mas que moral?, é a primeira questão.


Derrida quotes EH, Why I Am A Destiny 1 in its entirety – in the context of the extent to which the ‘great politics’ with which the aphorism ends is implicated in the politics of the National Socialists who, fairly or not, invoked Nietzsche (31f.).” Cada um com seu presente.

Habermas calls Nietzsche the ‘turning point’ that has turned the ‘discourse of modernity’, with the ‘goal of exploding modernity’s husk of reason’.” O problema é que Habermas enxerga isto com maus olhos! Como pode dialogar um homem que perdeu sua sombra?

Aquele que sempre tinha uma adversão – Aberman


Nietzsche critiqued the metaphysical concept of reason … but also developed a new, quite differentiated concept of reason, which has yet to be explored in its contexts by Nietzsche researchers. For a critique of Lukács’s Nietzsche-critique, see Henning Ottmann, ‘Anti-Lukács. Eine Kritik der Nietzsche-Kritik von Georg Lukács,’ Nietzsche-Studien 13 (1984), 570-586, and Ottmann, Philosophie und Politik bei Nietzsche (Berlin/New York 1999), 429-433.

one only remembers that which one wants to remember or is compelled to remember. And Nietzsche aims at such a compulsion: with the aphorism in question he wants to ensure that his name will be remembered, will have to be remembered, that we cannot forget what was written in this name.” Se todos os séculos fossem pessoas, aliás, garotinhas com mesada do papai (moe concept), o XX seria um misto de spoiled brat com zero cents no bolso: séc. mais pobre, a despeito de si mesmo – era seu destino: teve pais ruins que viveram tempos melhores, eis tudo. O fato de eu ter nascido e sido feliz naquele século já é uma redenção, ou podemos dizer que ele durou apenas 87 anos.

[3]

o something tremendous

Habermas judges Nietzsche to be just as dangerous as Nietzsche judged himself to be.” Ele não sabia brincar!

When Kant conceived his ‘Critique’ of reason he was still very much certain that reason, though it had overstepped its bounds in the course of millennia and thus been merely ‘groping about’ among unprovable metaphysical belief systems, could be brought to the ‘secure course of a science’ through a secure measuring of its bounds.” Era então como poder um jardineco. Agora é preciso levar a mão de fora – e também a de dentro…

Here reason was still the authority for a critique of itself, and as such also above experience and thus capable of a priori knowledge independent of temporal or personal circumstances.” Um verdadeiro jogo de sires!

the critique of reason had arrived at a crisis and now demanded a reorientation from the ground up, especially in Europe, which had believed so firmly in one, timeless reason. But as Nietzsche noted in his Lenzer Heide note, this reorientation would lead initially to a massive disorientation, to the liberation of forces that can, in their desperation, only destroy and thus also want to destroy; and this ‘crisis’ would erupt in a ‘paroxysm’, a ‘blind raging’ ‘of nihilism and delight in destruction’.” Esperar algo mais brando seria esperar a revolução comunista sem a ditadura do proletariado – esperar a encenação de uma nova farsa européia.

The ‘dangerous consequences’ became a prophecy: the world wars, totalitarianisms, genocides and terrorisms that characterized the twentieth century could be understood (at least in part) as the outcomes of the intellectual crisis that had befallen the fundamental convictions of European thought, in particular the conviction in the beneficial effects of a reason that was common to all.”

[4] Nietzsche becomes a pop star

The dynamite metaphor, in opposition to the concept of a man, has held an extremely strong fascination for Nietzsche’s interpreters – especially for Sarah Kofman, whose whole interpretation of Ecce Homo comes under the title ‘Explosion’. [tão jurássico diante de Baudrillard!] She understands the Nietzsche revealed here precisely as a sudden explosion of long-accumulated forces, and she says herself Nietzsche’s text explodes tenacious, forceful interpretations. This is how she justifies his outlandishness (‘Bien compris, tout cela n’a vraiment rien de fou …’). Explosion I: De l’‘Ecce Homo’ de Nietzsche (Paris 1992), 21.” Seulement feu.

Even the idea of the ‘equality of souls before God’ was, as Nietzsche says in The Antichrist 62, an ‘explosive of a concept which eventually became revolution, modern idea, and the principle of decline of the whole order of society – [was] Christian dynamite’.”

[5]

A bullsola de Nie.: certamente apontando para um norte hiperbóreo inusitado, sozinho no labirinto com o Minotauro! Tem que ter colhões – e fundadores de religiões são eunucos.

A revaluation of all values like the one Nietzsche proclaims had to trigger a strong impetus for new religions – an impetus that we are also experiencing today.” E que época modorrenta essa das turning tables que nada viram! Metafísica da capotada. Trezentos e sessenta inúteis graus de inércia.


MELTDOWN

I found religion! (double sense)

I founded and I found.

But if I founded… triple sense!

Will find and will found and will found… a fond creed.


Philosophers operate in dangerous proximity to founders of religion, only philosophers are less successful.” Síndrome de Licurgo.


Pythagoras and Plato […] had souls and talents that fitted them so obviously for the role of religious founders that one can scarcely marvel enough that they should have failed. Yet all they managed to found were sects.”

Fico feliz em saber!


“‘None of the great Greek philosophers was a leader of the people: attempted most consistently by Empedocles (after Pythagoras), but also not with pure philosophy, but instead with a mythicized version of it. Others reject the people from the outset (Heraclitus). Others have a wholly refined circle of educated people as their public (Anaxagoras). Socrates displays the strongest democratic-demagogic tendency: the result is the establishment of sects, in other words, counterevidence. How could lesser philosophers ever be successful where philosophers of this sort were not? It is not possible to base a popular culture on philosophy. Thus, with regard to culture, philosophy never can have primary, but always only secondary, significance. How is it significant?”

Em fragmentos apenas recentemente publicados (provavelmente também da época de Gaia Ciência). Se considerarmos que os memes são uma religião, temos o Zizekismo – ji-jequismo, de ‘jeca’.

Nietzsche also has Zarathustra make an attempt with disciples – and fail.” No final, os animais são os únicos que permanecem fiéis (duplo sentido).

Infiel!


[6]

Only here does he use the formula ‘affairs of the rabble’ [Pöbel-Affairen]. No decent person wants to be the rabble – Nietzsche least of all.” Não cultivar a mesma religião que o lumpeNproletariado! Na gramática, quem fala mais alto, o português ou o alemão?

But the scholar too is a ‘rabble man’, who because of his ‘faith in his superiority … treats the religious man as an inferior and lower type that he has outgrown, leaving it behind, beneath him’ (Beyond Good and Evil)¹”

¹ Jamais um livro (EH) foi um bricolage tão perfeito da obra de alguém. Não uma suma que só acrescenta, mas que realmente resume, comprime. Engenharia suprema, e de espantar Kubitschek (obra de poucos dias, duas mãos). É certo que a dívida externa de Nie. (sua falta de saúde) mais que decuplicou como resultado…

In philosophy too there is the rabble, people who follow the prevailing truths and valuations in order to find approval and acclamation.” Rabble everywhere.

[7]

Quem nunca teve um amigo crente que atire a primeira pedra! clean attire

[8]

To be evil is to do evil things to others, to do something that they believe harms them; to be malicious, on the other hand, is to remind others of what evil could be within them that they do not admit: a malicious person brings others to enlightenment about themselves.” Interessante. True nature post-pure malice: Gon x Killua.

“‘I think’ can easily indicate ‘I believe’ in German; in this case Nietzsche’s sentence would mean: ‘I believe I am too malicious to believe in myself’.”

it assures the self to oneself and renders the self unsure at the same time.”

On the other hand, ‘I think’ was precisely the signal for the modern Enlightenment, the call with which Descartes initiated it, so that no belief could go untested.” I think therefore I am too malicious. I am too malicious therefore I think.

Never to speak to the masses is never to speak with masses, but only doubts.


For an enlightener, there is no certainty beyond this belief. Nietzsche’s phrasing is malicious in that it ironically allows for both readings, and only both of them together allow us to see what Nietzsche ‘wants’: to believe in his powers of enlightenment without ever being able to be sure of them.” Therefore he wants what he wants or he does not want (because he also has his fanatics).

Nietzsche pays homage in Ecce Homo to Voltaire’s noble manner of enlightenment, to his ‘war without powder and smoke, without warlike poses, without pathos and strained limbs. […] One error after another is coolly placed on ice; the ideal is not refuted—it freezes to death.—Here, for example, <the genius> freezes to death; at the next corner, <the saint>; under a huge icicle, <the hero>; in the end, <faith>, so-called <conviction>; <pity> also cools down considerably—and almost everywhere <the thing in itself> freezes to death’ (EH, HH 1). See also HH II, WS 237.” E é óbvio que o herói-santo-autopiedoso congelado é Rousseau. Impossível pensar num Voltaire rosa na sala sem evocar o elefante da moral (V.xR.)…

[9]

In the published text, ‘fanatic’ and ‘prophet’ have been contracted to ‘founder of a religion’, and ‘holy man’ replaces ‘god’: thus Nietzsche raises the ‘fanatic’ to the level of a ‘founder of a religion’ and pulls ‘god’ back to the level of a ‘holy man’.”

Heinrich Köselitz pronounced Nietzsche ‘holy’ at his graveside; Alfred Kubin called Nietzsche ‘truly – our Christ’. Elisabeth Förster-Nietzsche tried unsuccessfully to have a mausoleum in the shape of an Egyptian pyramid erected for her brother on the Chasté peninsula near Sils-Maria; she was successful in establishing the Nietzsche archive she founded in Weimar as a cultic site and a place of pilgrimage. [mais uma instância repulsiva da irmã divinizadora do irmão, Lisbeth Artemisia – ver “NOTA SOBRE DISCUSSÕES (SAUDÁVEIS) EM TRADUÇÃO!” em https://seclusao.org/2023/12/21/depois-de-desligar-o-videogame-o-supercompendio-de-final-fantasy-viii/#]”

George’s disciple Ernst Bertram (Nietzsche. Versuch einer Mythologie, Berlin 1918) wanted to immortalize Nietzsche as a tragic hero. And countless half-moral, half-religious ‘movements’ have invoked Nietzsche, including vegetarianism,¹ feminism¹ and Zionism.¹ Indeed, this kind of thing has happened to no other philosopher to date.”

¹ Mas se não é o tríplice cúmulo do absurdo – venerar um “deus” misógino, onívoro depreciativo de quem não comia carne e mais que tudo deprecador do Estado!

[10]

A buffoon is malicious without being taken seriously. His malice does not offend, but is enjoyed.” Mestre Trágico do Existir, early icon do blog.

the holy man constrains one to an either-or. [Kierk.] But one is free before the buffoon; one can believe him one time and then laugh at him another time. This is the freedom that is important to Nietzsche, given the seriousness of the ‘destiny’ of the ‘task’ that he has taken on as his destiny.”

[11]

The tension of this text – the loftiest in Nietzsche’s oeuvre – is now heightened to the extreme, evincing the agitation, passion and anger of a great prophet and thereby calling into question all objectivity. Nietzsche is now writing, speaking, breathlessly: with ellipses (‘…’), as if there were not enough time to utter the words; with insertions (parentheses), as if interrupting himself; with breaks marked by dashes (‘—’), as if there were no space for logical conjunctions.”

According to Schlaffer, a literary scholar, Nietzsche’s style is responsible for the unfettering of German prose and, consequently, of German history: ‘Such an energy of language and style intensified the meaning of German literature at the beginning of the modernist period, but also intensified the confusion of German intelligence and the catastrophe of German politics’ (12f.). What must the condition of an intelligence and a politics have been, that they were so confused by a literary style?” Hahahaha!

[12]

In John’s Gospel (14:6) Christ said of himself: ‘I am the way and the truth and the life’. Nietzsche does not say ‘I am the truth’ but rather ‘the truth speaks out of me’

The other side of the truth is either the unintentional error or the intentional lie. The unintentional or intentional ‘mendaciousness’ of a holy man – or of a man who is believed to be holy, even if he is a philosopher – lies in the exclusion of the alternative that is always possible.”

[13]

This revaluation cannot itself be a truth in the traditional sense, but rather only a ‘formula’.”

Indeed Nietzsche insinuates autobiographical material more than he narrates it, and the little that he does narrate (which Samuel compiles on the basis of a control text that Montinari has rendered obsolete) he also pointedly stylizes and puts into riddles: ‘I am, to express it in the form of a riddle, already dead as my father, while as my mother I am still living and becoming old.’ EH, Why I Am So Wise 1.” “If EH is an autobiography, then it is, as Sarah Kofman notes in her interpretation, one that radically subverts the ‘<genre> autobiographique’, including the self (‘autos’), life (‘bios’) and writing (‘graphein’), as well as their alleged simple unity.”

[14]

A genius is simply someone who, in his own hardship, rather randomly finds new and far reaching possibilities for others (see HH I 231).”

Thus genius is more a matter of destiny than of merit. The genius does not even hold in his hands impact of the forces that are stored up in him; it is rather circumstances and the age that set off this impact”

[15]

Nietzsche’s use of the term ‘decency’, like that of ‘destiny’, ‘rabble’, and ‘fear’, is shot through with an astonishing revaluation, which I cannot trace here. Again the revaluation is directed toward himself, toward that which he calls ‘intellectual integrity’ and does not find to a similar degree in anyone else.”

[16]

He has nothing more than this opposition, his personal opposition to the moral opposition of truth and lie that has reigned in European thought for millennia. Millennia are Nietzsche’s philosophical measure of time: he has in mind primarily the two millennia that have passed since the founding of philosophy and Christianity, but also the fact that Europe must ‘cast its goals millennia hence’, that it stands under the ‘compulsion to great politics’ (BGE 208). This is the measure of time that measures up to his revaluation.”

[17]

One does not bother to contradict them anymore, but rather stumbles into opposition to them by living differently, experiencing differently, thinking differently. Nietzsche approaches metaphysical oppositions from the place that their millennia-old cult has most staunchly excluded: experience.” Experiências não-replicáveis em laboratório. For Philistines demise!

[18]

Where someone stands in relation to himself, how someone deceives himself, whether he persists in dealing with himself unequivocally, — whether he can bear himself or finds it necessary to have an <ideal> … The idealist smells bad to me…”

Espólio


Nostrils are the olfactory organs of horses: Nietzsche is likely alluding to Plato’s famous myth of the soul as a chariot (Phaedrus, 246 a-b), in which reason directs the horses but is also dragged along by them.”

[19]

Não diga não

refluxo é um crime gástrico

hediondo die-o’-niza

[20]

glad tidings”

[21]

amen como ainda uma vez

[22] EPÍLOGO-PRÓLOGO

The event of the ‘revaluation of all values’ will surpass everything that has been; the painful struggle in philosophy, science, morality and religion will transcend those realms and shock even the common orientation from the ground up. In this crisis Christian morality, as dogmatized by the Greeks, will manifest its deep rootedness in the thought of Europeans and will thus determine the politics whose most extreme means is war. But wars over values will no longer be mere struggles for power, [o que é ‘poder’?] which can be ended by dynasties or nations as easily as they were incited, but rather ‘war[s] of spirits’ with and over truths, morals, religions – in short, ideologies, which creep and spread for a long time and then suddenly make an explosive impact. They are, as the twentieth century sufficiently demonstrated, the most

dangerous dynamite, further and literally employed by terrorism in the twenty-first century, as well.” O terrorismo é passivo-reativo. Pode durar mil anos. Mas aqui repito o que disse na análise do livro de Dugin: ele acertou só que do avesso: o liberalismo (cristianismo, a essa altura) morreu, e a guerra travada é entre fascismo e socialismo – o fascismo no entanto é natimorto, é a anti-vida. Essa é a lenta história que estamos prestigiando, ainda no prólogo do prólogo… Que este fosse o ponto cego de Nietzsche – enxergar o socialismo como movimento do lumpenproletariado – era inevitável…

“‘And if you cannot be saints of knowledge, at least be its warriors’ (Z I, On War and Warriors).” Idealismo, porém são. Nem parece idealismo.

As his notes in the margin of EH show, Nietzsche does not take sides with peoples or nations, estates or classes, even less with races. Instead he wants to ‘found a party of life, strong enough for great politics’ (Nachlass December 1888 – early January 1889, 25[1], KSA 13, 637f.” “It is ‘madness’, for Nietzsche, that wars among dynasties or nations would ‘put elites of strength and youth and power before the cannons’ (ibid., 25[15], KSA 13, 645”


I honestly think it possible to bring order to the whole absurd situation of Europe by means of a kind of world-historical laughter, without even a drop of blood having to flow. In other words: the Journal des Débats is enough …”

(Nietzsche to Jean Bourdeau, presumably January 1, 1889, KSB 8, No. 1232, p. 570)


According to Balke, Nietzsche is only drawing the consequences from that which Michel Foucault would call ‘biopolitics’, and which had been immanent in European politics for ages, as Peter Sloterdijk then pointed out.” Foucault está sendo superestimado nesse panorama.


Now wars are no longer waged in the name of a sovereign who must be defended; they are waged on behalf of the existence of everyone.”

Michel Foucault, The History of Sexuality, Vol. 1

ok! posso rever meu juízo sobre F….


But this is not a manifesto for the killing of the disabled and certainly not for the murder of European Jews. The National Socialists, with their nationalism, socialism and anti-Semitism, would have been an abomination to Nietzsche” What socialism? In the name? Stupidity of a high level. O nome ‘socialismo’ foi o que permitiu a Hitler vencer as eleições em 1932. E só essa função exerceu no regime nazista.


I know nothing that would be more opposed to the noble meaning of my task than this execrable incitement to the egoism of a nation [Volk] or a race that now lays claim to the name ‘great politics’; I have no words to express my contempt for the intellectual standard that now, in the form of the German Reich Chancellor and with the Prussian officer-attitudes of the Hohenzollern house, believes itself called to be the ruler of the history of humanity […]. There is more dynamite between heaven and earth than is dreamt of by these bloodstained idiots…”

(Nachlass 1888/89, 25[6]2, KSA 13, 640f.).


OVERMAN IS GREAT MAN: “Nietzsche used the phrase ‘great politics’ early on, at first (and ironically) for the new German Empire. In his later work ‘great’ means not that which towers over other things, but rather that which is not negated by its opposition, does not perish by it, but rather can make it fruitful for himself and grow from it. In this way the ‘great reason of the body’ makes the ‘little reason’, pure reason, its ‘instrument and toy’ (Z I, On the Despisers of the Body); a ‘great health’ can ‘give itself up’ to grave sickness and thus become more robust (GS 382); ‘the great life’ itself lives off of war (TI, Morality as Anti-Nature 3); ‘great tolerance’ can, with ‘magnanimous self-mastery’, [deixar os fracos viverem, embora confinados e tornados inofensivos – o ideal para um mundo em que bolsominions insistam em nascer] tolerate intolerance and grow from it (AC 38); and ‘great style’ can unite the highest pathos with sobriety and cheer (EH, Why I Write Such Good Books 4). In this sense, ‘great politics’ is a politics that includes that which is usually opposed to it: spirit, in the form of morality, religion, science, philosophy, or ‘a war of spirits’. In his alarming ‘promemoria’ to ‘great politics’, written at the turn from 1888 to 1889, Nietzsche is still concerned with a politics of war ‘not between nation and nation’ and ‘not between classes’, but rather ‘straight through all absurd accidents of nation, class, race, profession, upbringing, education: a war as between rise and fall, between the will to life and vengefulness against life, between integrity and treacherous mendacity…’Insisto em que a classe proletária madura é a classe que representa a vida. E outra coisa: a Europa não ressurgirá das cinzas. N. foi o primeiro pós-europeu, como Platão o último pré-europeu significativo.

Nietzsche’s title Ecce Homo, which appears 3 times in his work might also recall the traditional ceremony of the ‘Ecce’ in Schulpforta, the memorial ceremony for deceased professors and alumni on the day before the final Sunday of the liturgical year, which clearly had a deep impact on its participants. Pupils and teachers sang ‘Ecce quomodo moritur justus’. According to numerous reports, the ceremony made such an impression on the students that they automatically connected the ‘Ecce’ to their own deaths. Even the National Socialists preserved the ‘Ecce’ ceremony when they turned Schulpforte into a ‘National Political Institute of Education’ in 1935. See Reiner Bohley, Die Christlichkeit einer Schule: Schulpforte zur Schulzeit Nietzsches, ed. Kai Agthe (Jena/Quedlinburg 2007), 135-8. Nietzsche experienced 5 general and 7 special ‘Ecce’ ceremonies, which he mentions primarily in his letters: see, for example, Nietzsche to Franziska Nietzsche, August 20, 1860, KSB 1, No. 169, p. 120. Thus, with his Ecce Homo, he could have been (again, ironically?) singing his own death song. In ‘Joke, Cunning, and Revenge’, the ‘Prelude in German Rhymes’ to The Gay Science, he included a poem, modelled after Goethe, called ‘Ecce homo’:

Yes! I know from where I came!

Ever hungry like a flame,

I consume myself and glow.

Light grows all that I conceive,

Ashes everything I leave:

Flame I am assuredly’

(No. 62)

But he also knows that ‘some wretched loafer of a moralist’ can ‘paint himself on the wall’ as the image of the human ‘and comment, <Ecce homo!> (TI, Morality as Anti-Nature 6). And he ultimately titled the genealogy of his ‘destiny’ Ecce Homo – which earns him the charge of ‘duplicity’ and ‘resentment’ from Conway (‘Nietzsche’s Doppelgänger’, 63-6).”

* * *

Paul supported the Christian truth of love, so that he could spread it around the world, through the Greek truth of the universal; Paul’s successors retained the Greek truth in the name of the Christian truth, so that both truths, despite their very different origins, found stability in each other for millennia. If the absolute value of this Greek-Christian truth has now become unbelievable, then the ‘tasks’ of giving to humanity new values and the ‘hopes’ that rest upon them fall, according to Nietzsche, back to individuals with the power to do so, a power that must match or even exceed that of Socrates and Jesus of Nazareth. Nietzsche tried to give form to such power in his Zarathustra, the figure of an individual person with a proven ‘courage to stand alone’ and to be ‘lonely’ even and especially in his thought. Moreover, Nietzsche placed his philosophy under the ‘concept of Dionysus’, the god who unites in himself all oppositions in which humans arrange their world and thus brings them into motion ever anew, against the desire to solidify them as much as possible so as to achieve a lasting stability.

Thus can one take even this unheard-of aphorism philosophically seriously and at its word.”

A INTERPRETAÇÃO EVOLUTIVA DE WERNER JAEGER DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES: Uma análise crítica – Guilherme Cecílio

In: ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, edição v. 10, n. 20, 2016.


só pouco a pouco teria Aristóteles conseguido distanciar-se do platonismo e alcançar um pensamento maduro e original.”

Urmetaphysik X Spätmetaphysik

para que uma obra seja verdadeira e completamente unitária, não basta que ela seja autêntica.”


A pergunta “onde termina a física – e a biologia, na também – e começa a metafísica” faz sentido sobretudo quando o assunto é o Estagirita!

Assim como Heidegger pergunta o que é o ser?, temos o direito de perguntar, face a determinados “pergaminhos”: o que é um livro? o que é a obra?


todo estudo posterior a 1923 é uma tomada de posição a favor ou contra a tese de Jaeger.”

A principal razão de não se ter até agora procurado estudar o desenvolvimento intelectual de Aristóteles é, em suma, a ideia escolástica de sua filosofia como um sistema estático de conceitos.” J., sempre em laranja agora

Thomas Case, ‘Aristotle’, 1910 (1996). (artigo da enciclopédia britânica)


É ilógico, meu caro Watson!

O quê?

O princípio elementar da não-contradição!


A HAGIOGRAFIA DE UM PAGÃO: “Partindo das informações contidas nas diversas Vidas de Aristóteles, a meta do intérprete era reconstruir a história espiritual do Estagirita, desde o período acadêmico até seus últimos anos.”

as contradições e duplicações textuais – Dubletten – são o primeiro passo para que se reconstrua a história por trás de um texto.”

De Philosophia como seu primeiro grande livro (abortado).


Então quando foi mestre de Alexandre ele era ainda um “aluno”?

Desviar de Platão, no entanto, é sempre regredir. Melhor ter ficado à sombra luminosa.


teoria revisionista do suprassensível”


Se houvera logrado êxito, Heidegger não teria precisado publicar nada.

O bizarro elo da ontologia aristotélica à astronomia.


(*) “Stephen Menn disponibilizou no site da Humboldt-Universität zu Berlin uma primeira versão de sua obra ainda não publicada em mídia impressa, The Aim and the Argument of Aristotle’s Metaphysics.”

(*) “ao folhear qualquer introdução ao pensamento de Aristóteles e até mesmo estudos especificamente voltados à Metafísica, é comum encontrar esse tipo de afirmação.” Engraçado, podia jurar que era o contrário: livros-didáticos ou interpretações rasas ou panorâmicas citam a Metafísica como magnum opus indelevelmente unitária. Mas sem dúvida cogitar uma unidade tão absoluta neste tratado em Ar. e argumentar que Nietzsche “só escreveu dois livros propriamente ditos” é o que há de mais espúrio em termos de filosofastros!


Não se pode emendar dois sonetos tão desafinados!

Os filósofos são ótimos, o que estraga são os editores e os fãs!


Penélope Aristóteles, a cosedora.

De niilista a baconiano.

Aporistóteles

Quando Aristóteles Chorou


Aristóteles não resolveu a tensão entre ontologia e teologia porque tal tensão seria, de fato, insolúvel.”

cada esfera especial conserva seu caráter de tentativa e indagação, que não encontra jamais satisfação na forma exterior de uma construção perfeita e impecável, mas está sempre se corrigindo e aperfeiçoando” Qualquer semelhança com seu mestre não é mera coincidência.

Pierre Aubenque, Le problème de l’être chez Aristote, 1962.

(*) “a ontologia é um projeto que jamais se conclui: seria impossível apreender completamente o ser, pois quando se tenta fazê-lo, o máximo que se atinge é o ente. Tal tese, de claro sabor heideggeriano, conjuga-se no pensamento do estudioso francês com um severo juízo acerca da teologia.”

Descortinar-se-ia a verdadeira face de Aristóteles: o filósofo do perene questionar, do revisionismo honesto.” Mas isso ainda é demasiado véu de Maia! Não basta ser honesto, se ser revisionista da perfeição é hediondo. O mesmo vale para o marxismo (Marx//Platão).

MUITO ALÉM DO CIDADÃO JAEGER: “O primeiro a adotar o método evolutivo e aplicá-lo à Metafísica, atingindo, porém, resultados opostos aos de Jaeger, foi Hans von Arnim. (…) Relevantes são também as interpretações de Emilio Oggioni, Paul Gohlke, Max Wundt e Josef Zürcher” Todos entre os 1920 e os 50. Cf. Reale, 2008: “A componente teológica é, para todos, completa ou parcialmente representante do espírito platônico; mas, para Jaeger, o platonismo é o ponto de partida do qual Aristóteles tende a se distanciar; para Gohlke e Wundt, o platonismo é a linha de chegada, no sentido de uma meditada recuperação; para Oggioni, tratar-se-ia de um retorno ao platonismo, contra a tendência, mais autenticamente aristotélica, em direção ao empirismo crítico. [p. 7] Ou seja: uma dupla Odisséia, círculo perfeito.


Podem os analíticos ingleses avaliar o inapreciável (ontologias)?


(*) “Talvez o melhor exemplo dos extremos atingidos pelos defensores do método histórico-genético seja a fantasiosa interpretação de Josef Zürcher. Este autor defendeu que o corpus contém, sim, fortes sinais de evolução; essa seria, contudo, a evolução não de Aristóteles, mas a de Teofrasto! O Estagirita teria se mantido platônico durante toda sua carreira, ao passo que Teofrasto teria evoluído de uma postura platônica ao empirismo radical. O discípulo teria editado a obra de seu mestre, justapondo seus próprios escritos aos textos compostos por Aristóteles.” Daria uma boa novela. E Eco devia ter sido seu autor.

Jaeger serviu-se dessa tese geral como fio condutor para empreender uma ‘restauração’ do corpus: ele julgou ser capaz de datar, ao menos aproximativamente, não só cada obra de Aristóteles, mas até mesmo seções do que tradicionalmente se considerara como sendo uma única obra.”


Aristóteles é o Xenofonte de Platão, diz uma fonte estrangeira (maybe Daily Mirror?).


os textos que dariam testemunho do período puramente platônico da evolução filosófica do Estagirita estariam praticamente restritos às chamadas obras exotéricas, as quais, como se sabe, ou se perderam totalmente ou só nos chegaram de modo extremamente fragmentário.” Hipótese bastante conhecida.

Antes de tudo, é preciso reconhecer que a tese de Jaeger revigorou enormemente o estudo das obras exotéricas de Aristóteles, estudo que vêm produzindo excelentes resultados.” Migalhas, migalhas, migalhas…


Tão diferente de si mesmo que chega a ser idêntico!

Foi Aristóteles jamais discípulo de Platão?

Platão existiu?!


CAUSA MORTIS PEAK NONFICTION: O problema com Ar., agora falando sério, tanto quanto eu o compreendo, é que ele não compreendeu a teoria das idéias. Portanto, opor-se ou não opor-se a elas é o de menos. Quiçá eu não tenha compreendido Aristóteles, no entanto – mas, questão de lógica, se compreendi Platão, compreendi Aristóteles, pois Platão é o summum bonum da epistemologia – se não compreendi Aristóteles, é verdade que me enganei com Platão?!

Teresa Oñate y Zubía (2001, p. 65) chega ao extremo de sugerir que o modo como Jaeger descreve a dicotomia ‘platônico’–‘aristotélico’ reproduziria uma perspectiva renascentista do conflito entre os dois filósofos, a saber, a visão que representa Platão, por um lado, como o filósofo da transcendência, do espírito religioso, e Aristóteles, por outro, como o filósofo da imanência, o campeão do espírito laico e científico, visão que foi imortalizada no celebérrimo afresco da Escola de Atenas, no qual Platão figura apontando para o céu e Aristóteles para a terra.” Eram os renascentistas (deuses) escolásticos? Sabiam voar? Flutuar, ao menos?


Na Ética, vai de Buda a Maquiavel. Queda pura, diria Heid.

O dia que a transcendência for um fardo estaremos todos perdidos (insustentável leveza do Untermensch).


Não tratar como caricatura quem trata os outros como caricatura.


ao falar de um estágio ‘platônico’ e outro ‘genuinamente aristotélico’, Jaeger sub-repticiamente reintroduz a noção de sistema, pois cada um destes estágios teria uma unidade de pensamento tal que os faz merecer, em nossa opinião, o título de pequeno sistema. (…) Jaeger flerta, assim, com um círculo interpretativo assaz vicioso.”

O método histórico-genético, para ser verdadeiramente histórico, deveria construir-se sobre dados de fato incontroversos, sobre datas seguras e bem provadas; ao invés, umas e outros faltam completamente” R. De acordo! É por isso que a filologia é uma merda!

Mas, como se sabe, as referências cruzadas também são, em última instância, inconfiáveis, visto que, por vezes, elas operam nos dois sentidos: o texto α contém uma frase do tipo “como dissemos em β”, o que parece ser um sinal de que β seja o texto mais antigo dos dois; mas às vezes encontra-se em β o mesmo tipo de remissão a α, o que, pela mesma lógica, sugeriria que α seria anterior a β, despedaçando assim a coerência da tentativa de determinar a ordem de composição dos tratados aristotélicos com auxílio das referências cruzadas.” Aristrollteles. Tell, troll!

Liaisons hyper-dangeureuses

À procura do meu Urblog.


(*) Cf. Décarie, 1972 “se Aristóteles acrescenta uma nota para corrigir uma opinião que ele não mais aceita, não pode ele simplesmente eliminar as passagens que dela guardam quaisquer resquícios? Se ele não o faz, é porque ele aceita o que se crê serem os estágios antigos e recentes de seu pensamento.” Até isso é suposição. Gostamos dos “filhos” que superamos… Já outros queimam obras-primas insuperáveis… Exemplo vivo são as minhas Teorias Supremas (de um adolescente sem mestre) à venda aqui.

YOU CHOOSE, REGARDING THE SEASON: “a uns parecerá mais crível que Aristóteles tenha sido um platônico em sua juventude, a outros será mais verossímil que ele tenha sido um anti-platônico.” See a son, see a sun.

o método jaegeriano tende fortemente a optar pela solução cronológica para ‘solucionar’ (supostas) inconsistências, ao invés de tentar resolvê-las filosoficamente, ou melhor, ao invés de tentar mostrar como Aristóteles teria resolvido o problema (ou, no mínimo, como uma solução poderia ser licitamente extraída de sua filosofia).” Quem o lê e não conhece, pode pensar que J. era um tolo. Porém sua Paideia é ainda inigualável em termos de compreender Platão, e se há método “histórico-genético” ali, é sua suprema evolução (pun superintended²). Mas enfim, sobre Jaeger’s Aristotle, tudo volta à moda, basta esperar.

…apesar de todas as críticas, o valor de Jaeger como filólogo é inegável.”

Metafísica, cujos ‘livros sobre a substância’ – Substanzbücher –, isto é, ΖΗΘ (os quais, como vimos, foram eleitos por Jaeger como o paradigma do ‘Aristóteles maduro’), têm recebido, há quase um século, a maior parte da atenção por parte da crítica especializada, ao passo que seções cruciais da obra, tais como Metaph. Α, Β, E e Λ, têm sido consideravelmente negligenciadas.” Convenhamos: Metafísica é um mau livro. Faríamos bem em lê-lo menos, ele todo.


Edição recomendada, se um dia eu não tiver o que fazer: ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Tradução para o Português de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2005. 2º v.

Minha edição, à propos, é uma de bolso da Gradifco (espanhol).

Ainda falta o livro maduro de Jaeger sobre A. para eu ler, de toda maneira (11 anos depois deste primeiro).

P.S.: Esse Menn parece bom mesmo! (Só que 8 anos depois parece que o livro ainda não foi publicado!) https://www.philosophie.hu-berlin.de/de/lehrbereiche/antike/mitarbeiter/menn/contents

Para quando eu melhorar meu italiano: OGGIONI, Emilio. La filosofia prima di Aristotele: Saggio di ricostruzione e di interpretazione. Milano: Vita e Pensiero,1939.

* * *

Moral da estória: estou mais confortável apenas transcrevendo Plínio o Velho, o maior copista de Aristóteles que jamais existiu – fazendo de mim um plagiário consciente e informado dos conhecimentos botânicos e zoológicos de Ari!

THE UPANISHADS TRANSLATED by Swami Paramananda. (Vol I), 3rd edition, 1919.

INTRODUCTION

The Upanishads represent the loftiest heights of ancient Indo-Aryan thought and culture.” “the final goal of wisdom”

Because these teachings were usually given in the stillness of some distant retreat, where the noises of the world could not disturb the tranquility of the contemplative life, they are known also as Aranyakas, Forest Books.”

t a t

t w a m

a s i

This oneness of Soul and God lies at the very root of all Vedic thought”

The first introduction of the Upanishads to the Western world was through a translation into Persian made in the 17th century. More than a century later the distinguished French scholar, Anquetil Duperron, brought a copy of the manuscript from Persia to France and translated it into French and Latin, publishing only the Latin text. Despite the distortions which must have resulted from transmission through 2 alien languages, the light of the thought still shone with such brightness that it drew from Schopenhauer the fervent words: How entirely does the Oupnekhat breath throughout the holy spirit of the Vedas! How is everyone who by a diligent study of its Persian Latin has become familiar with that incomparable book, stirred by that spirit to the very depth of his Soul!

The acess to the Vedas by means of the Upanishads is in my eyes the greatest privilege which this still young century (1818) may claim before all previous centuries.”

free from particulars, simple, universal”

Thoreau

But a mere translation (…) is not sufficient to make the Up. accessible to the Occidental mind.”

Modern words are round, ancient words are square, and we may as well hope to solve the quadrature of the circle as to express adequately the ancient thought of the Vedas in modern English.”

Max Müller

W/o a commentary it is practically impossible to understand either the spirit or the meaning of the Up.”

Until our mind is withdrawn from the varied distractions and agitations of worldly affairs, we cannot enter into the spirit of higher religious study.”

ISA-UPANISHAD

Om! (…) from the Invisible Whole comes forth the visible whole. (…) the Whole remains unaltered.”

(*) “The indefinite term That is used in the Upanishads to designate the Invisible-Absolute, because no word or name can fully define It.”

the phenomenal and the Absolute are inseparable. All existence is in the Absolute”

Do not covet the wealth of any man.”

As we gain the light of wisdom, we cease to cling to the unrealities of this world”

He who is rich in the knowledge of the Self does not covet external power or possession.”

If one should desire to live in this world 100 years, one should live performing karma (righteous deeds).”

right action (Karma-Nishta) Self-knowledge (Gnana-Nishta) (às vezes transcrito como inana ou iñaña.

After leaving their bodies, they who have killed the Self [o Self, em maiúscula, é uma mesma identidade universal, diferente do ego individual, o Um] go the worlds of the As[h]uras, covered with blinding ignorance.”

(*) “The idea of rising to bright regions as a reward for well-doers, and of falling into realms of darkness as a punishment for evil-doers is common to all great religions. But Vedanta claims that this condition of heaven and hell is only temporary. Because our actions, being finite, can produce only a finite result.”

(*) “the immortal Soul cannot be destroyed, only obscured. (…) Those who serve the flesh and neglect the Atman or the real Self, are not able to perceive the effulgent and indestructible nature of the Soul (…) the only hell is absence of knowledge. (…) he who clings to the perishable body and regards it as his true Self must experience death many times.”

(*) “Grief and delusion rest upon a belief in diversity, which leads to competition and all forms of selfishness.”

They fall into blind darkness who worship Avidya (ignorance and delusion); they fall, as it were, into greater darkness who worship Vidya (knowledge). [sabedoria mundana, não-sabia, em realidade, apenas acúmulo de dados]

By Vidya one end is attained; by Avidya, another. Thus we have heard from the wise men who taught this.”

He who knows at the same time both Vidya and Avidya…”

Da hubris a queda é mais feia.

Não basta ter obras sem fé, nem fé sem obras.

They fall into blind darkness who worship the Unmanifested [o que não existe, ou o Self de uma forma errada] and they fall into greater darkness who worship the manifested [mundo empírico].

By the worship of the Unmanifested one end is attained; by the worship of the manifested, another. Thus we have heard from the wise men who taught us this.

He who knows at the same time both the Unmanifested (the cause of manifestation) and the destructible or manifested, he crosses over death through knowledge of the destructible and attains immortality through knowledge of the First Cause (Unmanifested).”

(*) “The wise men declare that he who worships in a one-sided way, whether the visible or the invisible, does not reach the highest goal. Only he who has a co-ordinated understanding of both the visible and the invisible, of matter and spirit, of activity and that which is behind activity, conquers Nature and thus overcomes death. By work, by making the mind steady and by following the prescribed rules (…) a man gains wisdom. By the light of that wisdom he is able to perceive the Invisible Cause in all visible forms. Therefore the wise man sees Him in every manifested form. They who have a true conception of God are never separated from Him. They exist in Him and He in them.”

The face of Truth is hidden by a golden disk. O Pushan [invisível]! Uncover Thy face, that I, the worshipper of Truth, may behold Thee.” Há um infinito de diferença entre devotos de qualquer coisa e devotos da Verdade. Este devoto é o investigador de Platão.

O Pushan! O Sun, sole traveller of the heavens, controller of all, son of Prajapati, withdraw Thy rays and gather up Thy burning effulgence. Now through Thy Grace I behold Thy blessed and glorious form. [o invisível] The Purusha [=Pushan] who dwells within Thee, I am He.”

(*) “Here the sun, who is the giver of all light, is used as the symbol of the Infinite, giver of all wisdom.” Chave da transcendência. “…[in order] that his eyes, no longer blinded by them, may behold the Truth.” Agora compreende-se o Um. “…there is no difference [anymore] between himself and the Supreme Truth…”

May my life-breath go to the all-pervading and immortal Prana, and let this body be burned to ashes. Om!” Três vezes a expressão “lembra-te”…

(*) “Seek not fleeting results as the reward of thy actions, O mind! Strive only for the Imperishable. This Mantram or text is often chanted at the hour of death to remind one of the perishable nature of the body and the eternal nature of the Soul.” Só precisa lembrar aquele que hesita. Todo estribilho é música. Removeram o que havia de musical do Novo Testamento. “A morte é como trocar de roupa.”

(*) “This Upanishad is called Isa-Vasya-Up., that which gives Brahma-Vidya or knowledge of the All-pervading Deity.” “Whatever we see (…) it is all That.” Manifesto contra a sabedoria fragmentária, ou melhor, o conhecimento fragmentário, a anti-sabedoria.

Quando Rafael está triste, quando Rafael está raivoso, deixa Rafael estar. Ele é Rafael, fenômeno e aparência. Ele não é Ele. Tu! Tu não és Rafael, lembra-te! Rafael é uma roupa cada vez mais gasta que vestes. Mas é ainda uma linda roupa, se precisas de alguma para o frio ou para o sol não te queimar! Tu estás triste porque és, também, Rafael, mas tu não estás na condição humana, porque estás sereno quando Rafael está visivelmente triste. Deixa Rafael com suas limitações, isto também é Brahman. Que ele se amargure, é possível; que te amargures com ele, isso não seria propício, se fôra sequer possível!

(*) “He alone can love. … birthless, deathless… untainted by sin and sorrow.” “Transcending death means realizing the difference between body and Soul and identifying oneself with the Soul.” Ler esse trecho com a máxima literalidade possível. Está no parágrafo com (*), significa que é do comentador. Não é o texto direto do Veda, que precisa ser interpretado. A interpretação exata foi entregue em vermelho.

(*) “we no longer identify our self with the body which dies and we do not die with the body.”

(*) “Self-knowledge has always been the theme of the Sages; and the Upanishads deal especially with the knowledge of the Self and also with the knowledge of God, because there is no difference”

(*) “That which comes out of the Infinite Whole must also be infinite; hence the Self is infinite.” Princípio ou axioma da transcendentalidade. Da Filosofia e da Religião Verdadeiras. Hoceanomem

KATHA-UPANISHAD

(O principal.)

(*) “The K.U. is probably the most widely known of all the U. It was early translated into Persian and through this rendering first made its way into Europe. Later Raja Ram Mohun Roy brought out an English version. It has since appeared in various languages (…) Sir Edwin Arnold popularized it by his metrical rendering under the name of The Secret of Death, and Ralph Waldo Emerson gives its story in brief at the close of his essay on Immortality.”

(*) “Some authorities declare it to belong to the Yajur-Veda, others to the Sama-Veda. The story [though] is first suggested in the Rig-Veda” O Upanishad perfeito e onipresente.

(*) “nor has any meaning been found for the name Katha.”

(A transcrição quase completa será dada em outro post em preparo para o Seclusão. Já há, no entanto, farto material interpretativo deste Upanishad no índice temático.)

(*) “his son Nachiketas, although probably a lad about 12 years of age, observed how worthless were the animals which his father was offering. His heart at once became filled with Shraddha. There is no English word which can convey the meaning of this Sanskrit term. It is more than mere faith. [Mais que salto da fé; mais que Kierkegaard; é o salto do Todo, que abole as contradições e restabelece o Um. É simplesmente O salto.]

As a boy of tender age, Nachi. had no right to question his father’s action; yet, impelled by the sudden awakening of his higher nature, he could not but reflect: ‘…If he has vowed to give all his possessions, then he must also give me….’

Ele pede três vezes ao pai para ser incluído no sacrifício (dessa forma: A quem o senhor me dará?). A interpretação é que o pai se faz de surdo duas vezes. Tudo se desenrola implicitamente. O humano comum não pode resistir pela terceira vez. Mesmo arquétipo da negação de Pedro na bíblia. Excede as forças e a compreensão do indivíduo.

(*) “Although he realized that his father’s harsh reply was only the expression of a momentary outburst of anger; yet he believed that greater harm might befall his father, if his word was not kept. Therefore he sought to strengthen his father’s resolution by reminding him of the transitory condition of life.”

(*) “…but Yama was absent and the boy waited without food or drink for 3 days.” A Morte estava ausente e o garoto não comeu nem bebeu por três dias. Alegoria.

(*) “When Yama returned, therefore, one of the members of his household anxiously informed him of Nachi.’s presence and begged him to bring water to wash his feet, this being always the first service to an arriving guest.” Mesmo um deus lava os pés de um brâmane. Jesus Cristo lavou os pés de um ser humano comum; o que isto quer dizer? A pergunta é retórica.

(*) “Verses XVI-XVIII are regarded by many as an interpolation, which would account for certain obscurities and repetitions in them.” Mais uma lei ou axioma do transcendental, com referência ao livro sagrado: ele é o mais evidente que pode ser (ao menos em nível exotérico; seu esoterismo ou conteúdo não-manifesto é outra coisa), e o mais econômico nesta missão. Interpolações acontecem com qualquer material, é inevitável. O conteúdo ou a doutrina podem ser transcendentais, mas necessitam do suporte material e aparente como qualquer outra coisa a mais reles. São estes os versos apontados como inautênticos: “The great-souled Yama, being well pleased, said to him: [MORTE (YAMA)] I give thee now another boon. This fire shall be named after thee. Take also this garland of many colors. [com efeito não faz parte da versão que li alhures] / He who performs this Nachiketa fire-sacrifice 3 times, being united with the 3 (mother, father and teacher), and who fulfills the 3-fold duty (study of the Vedas, sacrifice and alms-giving) [o Veda verdadeiro prescinde da parte ritual] crosses over birth and death. Knowing this worshipful shining fire, born of Brahman, and realizing Him, he attains eternal peace. [Uma escolha ‘infeliz’ de palavra, se posso dizê-lo: estar-com-Brahman não quer dizer estar em eterna paz, que é a degeneração vulgar e cristã, <a pregação que quer ser ouvida pelos sofredores>, uma mentira.] / He who knows the 3-fold Nachiketa fire [repet. inecessária] and performs the Nach. fire-sacrifice with 3-fold knowledge, having cast off the fetters of death and being beyond grief, he rejoices in the realm of heaven. [nada acrescentou]

(*) “‘Even wise men cannot understand it and thou art a mere lad. Take, rather, long life, wealth, whatever will give thee happiness on the mortal plane.’’Todo ‘escolhido’ é severamente testado ou mesmo tentado (mais um arquétipo). Ademais, este trecho comprova que a afirmação anterior sobre felicidade eterna era uma interpolação. Às vezes a curiosidade ressuscita o gato egípcio!

(*) “There are many in the world who, puffed up with intellectual conceit, believe that they are capable of guiding others. But although they may possess a certain amount of worldly wisdom, they are devoid of deeper understanding; therefore all that they say merely increases doubt and confusion in the minds of those who hear them. Hence they are likened to blind men leading the blind.”

(*) “What is meant by realization? It means knowledge based on direct perception. In India often the best teachers have no learning, but their character is so shining that every one learns merely by coming in contact with them. (…) the conveying of spiritual teaching does not depend upon words only. It is the life … which counts. (…) but even with such a teacher, the knowledge of the Self cannot be gained unless the heart of the disciple is open and ready for the Truth.”

(*) “Only he who has been able to perceive the Self directly, through the unfoldment of his higher nature, can proclaim what It actually is” Somos herdeiros da significativa palavra Platão. “It is too subtle to be reached by argument.” Refutação direta de todas as escolas sofistas e de oratória. Até mesmo do método socrático sem algo a mais, em última instância. Não significa que Sócrates fosse um sofista: mas quase todos em seu lugar o seriam. É irrelevante se Sócrates seria o autor original da teoria das Idéias ou não: de todo modo, ele foi um bom professor para Platão.

(*) “The aspirant must first hear about the Truth from an enlightened teacher; (1) next he must reflect upon what he has heard; (2) then by constant practice of discrimination and meditation he realizes it (3)” A compreensão do princípio da reminiscência necessita de um gatilho externo, mas em todas as épocas e lugares há gatilhos eternos. Eu tive o meu professor. Um livro em especial.

(*) “What name can man give to God? (…) Yet it is very difficult for mortals to think or speak of anything without calling it by a definite name. Knowing this, the Sages gave to the Supreme the name A-U-M, which stands as the root of all language. The first letter ‘A’ is the mother-sound, being the natural sound uttered by every creature when the throat is opened, and no sound can be made without opening the throat. The last letter ‘M’, spoken by closing the lips, terminates all articulation. As one carries the sound from the throat to the lips, it passes through the sound ‘U’. These 3 sounds therefore cover the whole field of possible articulate sound. Their combination is called the Akshara or the imperishable word, the Sound-Brahman or the Word-God, because it is the most universal name which can be given to the Supreme. Hence it must be the word which was ‘in the beginning’ and corresponds to the logos of Christian theology. It is because of the all-embracing significance of this name that it is used so universally in the Vedic Scriptures to designate the Absolute.”

(*) “Although this Atman dwells in the heart of every living being, yet It is not perceived by ordinary mortals because of Its subtlety. It cannot be perceived by the senses; a finer spiritual sight is required. (…) It is subtler than the subtle, because It is the invisible essence of every thing”

(*) “The Brahmanas stand for spiritual strength, the Kshatriyas for physical strength, yet both are overpowered by His mightiness. Life and death alike are food for Him.”

(*) “The Seers of Truth, [nosso eu mais nobre, alto e mais perto do astro-rei, atemporal, o inconsciente] as well as householders who follow the path of rituals and outer forms with the hope of enjoying the fruits of their good deeds, [nosso eu mais plebeu, abaixado, soterrado mas não profundo, a quem é vedada a luz, na caverna, vítima da tirania absoluta do tempo, a consciência banal] both proclaim that the Higher Self is like a light and the lower self like a shadow. When the Truth shines clearly in the heart of the knower, then he surmounts the apparent duality of his nature and becomes convinced that there is but One, and that all outer manifestations are nothing but reflections or projections of that One.”

(*) “He is manifested as the Lord of sacrifice for those who follow the path of ritual. He is the unmanifested, eternal, universal Supreme Being for those who follow the path of wisdom. (…) It is believed by many that these 2 opening verses were a latter interpolation. [May we be able to learn that Nachiketa fire-sacrifice, / which is a bridge for those who perform sacrifice. – a vertente exotérica do hinduísmo foi uma criação póstuma à ‘revelação originária’.]

(*) “Only through similes can some idea of It be conveyed. That is the reason why all the great Teachers of the world have so often taught in the form of parables. So here the Ruler of Death represents the Self as the lord of this chariot of the body. The intellect or discriminative faculty is the driver, [o passageiro é o senhor; o cocheiro é um mero intermediário] who controls this wild horses of the senses by holding firmly the reins of the mind. [ainda sendo um intermediário ‘reles’, comparado ao oceano primitivo dos instintos, representado pelos animais selvagens, este cocheiro é um domesticador] The roads in which these horses travel are made up of all the external objects which attract or repel the senses: [ainda esses cavalos, mesmo se deixados em seu puro instinto, são vida, superior ao inanimado, e ao mesmo tempo pressupondo-o: como haveria de haver vida sem a não-vida em suas imediações? mas o contrário ‘faz sentido’ em nossa abstração, porque o inanimado, a aparência, em sua significação, é já completo, nem sequer deseja ou caminha-para-algo; porém, numa segunda análise mais detida, o objeto sem sujeito não existe, porque um senhor sem súditos é inconcebível, é fora do natural; tampouco precede a vida, como diria Darwin, bem sabe a hermenêutica e a fenomenologia de a partir do fim do século XIX no Ocidente.] – the sense of smelling follows the path of sweet odors, the sense of seeing the way of beautiful sights. Thus each sense, unless restrained by the discriminative faculty, seeks to go out towards its special objects. [ao contrário das pedras, sempre iguais a si mesmas] When the Self is joined with body, mind and senses, It is called the intelligent enjoyer; because It is the one who wills, feels, perceives and does everything.”

(*) “A driver must possess first a thorough knowledge of the road; next he must understand how to handle the reins and control his horses. Then will he drive safely to his destination. (…) the abode” Isso é puro Heidegger.

(*) “Over the mind the determinative faculty exercises power; this determinative faculty is governed by the Individual Self; beyond this Self is the undifferentiated creative energy known as Avyaktam; [Este trecho me deixou confuso em minha primeira leitura do Katha: parecia espúrio; não sabia que a doutrina tinha um termo exato para tal ‘força indiferenciada’ – por um lado, traçaria um paralelo entre o Um ou Brahma[n] com a vontade de potência de Nietzsche; mas seguindo essa hierarquia, teríamos de mudar o avatar do Self e achar um outro nesta filosofia, porque a ‘vontade não-livre’ deste filósofo é ainda mais perfeita para tomar o lugar do termo Avyaktam; e é bastante provável que ele não tenha tido acesso a essa literatura, ou seja, chegou a esta noção de forma independente do seu conhecimento orientalista parcial.] and above this is the Purusha or Supreme Self. [Esse trecho é demasiado e desnecessariamente confuso – a introdução daquele primeiro Self como sinônimo de apenas um eu atômico, no contexto hindu, me parece supérflua ou precipitada. Além disso, o Avyaktam já guarda parentesco com a idéia do Ser Supremo o suficiente, também me parecendo dispensável (ou se retira o 1º termo ou o 2º termo nessa ‘cadeia improvisada de 3’).] Then there is nothing higher. [Auto-evidente.] That is the goal, the Highest Abode of Peace and Bliss.” Esse trecho, creio eu, foi malversado por dezenas de milhões de intérpretes por milênios, tendo se estabelecido um absurdo culto ao Nada por conta da expressão utilizada, de que no topo nada está, (não) está nada. E acredito mesmo que toda a doutrina do nirvana budista proceda desse mal-entendido metafísico tremendo. Nesta tradução: “…beyond the Purusha there is nothing. That is the end,…” O mesmo problema, como antecipei, acontece versos acima: “beyond the mind is the intellect…” Mente e intelecto tornam a metáfora da carroça do próprio non plus ultra do nobre (o próprio Sol) com um cocheiro e seus cavalos na estrada excessivamente complicada, e sobrepõem-se como qualificativos do mesmo objeto (o intelecto é a própria mente, tem a mesma hierarquia que a mente em relação aos sentidos e pulsões, está tudo coordenado por ela, é um dualismo que nada acrescenta à comunicação). Estes parágrafos IX e X da terceira parte do poema Katha não são bons.

(*) “Then the mind must be brought under the control of the discriminative faculty (…) The discriminative faculty in turn must be controlled by the higher individual intelligence and this must be governed wholly by the Supreme…” Faculdade que emana da própria mente. Tudo isto poderia ser evitado com um poema mais condensado! Não há qualquer base, tampouco, para mais uma enumeração irrelevante na segunda parte: é até mais que isso, é um contra-senso, porque a faculdade da discriminação já foi posta no parágrafo acima como superior ao intelecto! Volto a acreditar em algum tipo de interpolação de um poema original puro e objetivo; ou ao menos mantenho que esta passagem poderia ser muito melhor e mais clara. E, na verdade, após o esclarecimento sobre a morada, instância-termo, tudo o mais se torna apenas reiterativo e dispensável. Essa é uma lição que até o hinduísmo (escrita mais antiga expondo o transcendental), bem como nossos filósofos, precisam aprender: a economia da lição! Saber onde pôr o ponto final e começar o silêncio, princípio aliás bramânico (alguns diriam, wittgensteiniano!).

(*) [Even so pure a]…boy had thought that there was a place where he could stay and become immortal. But Yama shows him that immortality is a state of consciousness and is not gained so long as man clings to name and form, or to perishable objects. What dies? Form. Therefore the formful man dies; but not that which dwells within. Although inconceivably subtle, the Sages have always made an effort through similes and analogies to give some idea of this inner Self or the God within. [E em alguns momentos, pelo que se vê, faltou-lhes tato e exageraram!] …too subtle for ordinary perception, but not beyond the range of purified vision.” Mas é um mito que detentores de uma percepção meramente ordinária possam desenvolver uma visão purificada, neste sentido transcendental. Segurem-se, que ainda falta a quarta e última seção do Katha! Minha decisão de não postar aqui o poema inteiro, só os comentários, acabou sendo a melhor possível.

(*) “But the wise, who see deeper into the nature of things, are no longer deluded by the charm of the phenomenal world and do not seek for permanent happiness among its passing enjoyments.”

(*) “‘He who knows Aditi, who rises with Prana (the Life Principle), existent in all the Devas; who, having entered into the heart, abides there; and who was born from the elements – this verily is That.’ § This verse is somewhat obscure and seems like an interpolated amplification of the preceding verse.”

(*) “Even physical science has come to recognize that cause and effect are but 2 aspects of one manifestation of energy. He who fails to see this, being engrossed in the visible only, goes from death to death; because he clings to external forms which are perishable.”

(*) “‘the size of a thumb.’ This refers really to the heart, which in shape may be likened to a thumb. [?]

E eis que existe uma parte CINCO, que com certeza eu não li noutro livro-comentário dos Vedas, que talvez tenha considerado desimportante. Vou, desta forma, citar trechos se julgar necessário.

(*) “This human body is called a city with 11 gates, where the eternal unborn Spirit dwells. These gates are the 2 eyes, 2 ears, 2 nostrils, the mouth, the navel, the 2 lower apertures, and the imperceptible opening at the top of the head. The Self or Atman holds the position of ruler in this city”

He is the guest dwelling in the house. He dwells in man. He dwells in those greater than man.” Morada. Aluguel. Hospedeiro. Proprietário.

He it is who sends the Prana [como acima, <sopro vital>] upward and throws the breath downward.”

When this Atman goes out of the body, what remains then? This is verily That.

No mortal lives by the incoming breath or by the outgoing breath (Apana, morte, exalação, expiração¹), but he lives by another on which these two depend.”

¹ Daquele que morre nós dizemos: expirou. Expirou seu prazo terreno.

(*) “The sun is called the eye of the world because it reveals all objects. As the sun may shine on the most impure objects, yet remain uncontaminated by it, so the Divine Self within is not touched by the impurity or suffering of the physical form in which it dwells, the Self being beyond all bodily limitations.”

This is That. How am I to know It? Does It shine by Its own light or does It shine by reflected light?

(*) “the tree of creation [Samsara-Vriksha, árvore do mundo] (…) Heat and cold, pleasure and pain, birth and death, and all the shifting conditions of the mortal realm – these are the branches (…) There is nothing beyond [the roots of the world-tree].”

From fear of Him the fire burns, from fear of Him the sun shines. From fear of Him Indra and Vayu and Death, the 5th, speed forth.

(*) (…) He is likened to an upraised thunderbolt, because of the impartial and inevitable nature of His law, which all powers great or small, must obey absolutely.”

(*) “As soon as a man acquires knowledge of the Supreme, he is liberated” Trecho polêmico. Há que definer “conhecimento” nesse sentido.

(*) “It is only be developing one’s highest consciousness here in this life that perfect God-vision can be attained.” Complemento bem-vindo, se entendermos que consciência e inconsciência já chegaram a um estágio indiferenciado.

(*) “…the restless mind and the intellect: all must be indrawn and quieted. The state of equilibrium thus attained is called the highest state, because all the forces of one’s being become united and focused; and this inevitably leads to supersensuous vision.”

This firm holding back of the senses is what is known as YOGA. Then one should become watchful, for Yoga comes and goes.

(*) Yoga literally means to unite the lower self with the Higher Self, the object with the subject, the worshipper with God. (…) When this is accomplished through constant practice of concentration and meditation, the union takes place of its own accord. But it may be lost again, unless one is watchful.

KENA-UPANISHAD

Kena: aquele que dirige.

(*) “Among the Up., it is one of the most analytical and metaphysical, its purpose being to lead the mind from the gross to the subtle, from effect to cause.”

* * *

Muito trabalho perdido graças à merda do computador da CAPES. Mas para retomar o recenseamento sem maiores frustrações devo dizer que em geral as páginas até esta não são muito importantes. Estamos agora no Mandaka-Up., último dos 4 traduzidos nesta obra.

* * *

The sage said to him: There are 2 kinds of knowledge to be known, so are we told by the knowers of Brahman – higher knowledge and lower knowledge.

Lower knowledge consists of the Rig-Veda, Yajur-Veda, Sama-Veda, Atharva-Veda, phonetics, ceremonial, grammar, etymology, metre, astronomy. Higher knowledge is that by which the Imperishable is know.”

KALI (dark), Karali (terrific), Manojava (swift as thought), Sulohita (very red), Sudhumravarna (deep purple), Sphulingini (sparkling) Viswaruchi (universal light) are the 7 flaming tongues of fire.”

But all these sacrifices are inferior and ephemeral. The ignorant who regard them as the highest good and delight in them, again and again, come under the dominion of old age and death.”

OM! PEACE! PEACE! PEACE!

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO – Paulo Freire. Ou como diríamos após o vendaval fascista: A ESCOLA DO BOM PARTIDO! Ou: POR QUE FILÓSOFOS NÃO SÃO APRECIADOS EM SUA TERRA NATAL. Ou ainda: ANTROPOLOGIA DA PEDAGOGIA.

Ed. Paz e Terra, 1970 (23ª reimpressão).

LEGENDA

Conteúdo do autor original “”: sempre entre aspas

Colchetes []: quando faço observações dentro das aspas

Cor vermelha, grifos: mais importante

Cor verde: raciocínios perniciosos (normalmente, citação de autores ou realizadores da opressão)

Cor azul: meus comentários quando fora de colchetes

PREFÁCIO (Ou: resumo de Ser e Tempo) – Ernani Maria Fiori

Uma cultura tecida com a trama da dominação, por mais generosos que sejam os propósitos de seus educadores, é barreira cerrada às possibilidades educacionais dos que se situam nas subculturas dos proletários e marginais.”

A pedagogia do oprimido é, pois, liberadora de ambos, do oprimido e do opressor.”

o processo em que a vida como biologia passa a ser vida como biografia. (Ortega)”

a pedagogia faz-se antropologia.” “contínua recriação de um mundo que, ao mesmo tempo, obstaculiza e provoca o esforço de superação liberadora da consciência humana. A antropologia acaba por exigir e comandar uma política.”

círculo de cultura” “Como unir consciências autênticas quando cada consciência implica uma cisão com o mundo do outro? Pois cultura é crítica. Toda cultura, todo círculo de cultura, é uma crítica de culturas e outros círculos culturais.(*)”

(Sobre a alfabetização): “não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo.”

objetivação das palavras geradoras”

Pensar o mundo é julgá-lo; e a experiência dos círculos de cultura mostra que o alfabetizando, ao começar a escrever livremente, não copia palavras, mas expressa juízos.” “o alfabetizando (…) vai assumindo, gradualmente, a consciência de testemunha de uma história de que se sabe autor.”

testemunha responsável por (terminologia mais explorada no último capítulo)

a empresa educativa, que não é senão aprendizagem permanente desse esforço de totalização – jamais acabada – através do qual o homem tenta abraçar-se inteiramente na plenitude de sua forma.” “Mas, para isto, para assumir responsavelmente sua missão de homem, há de aprender a dizer a sua palavra, pois, com ela, constitui a si mesmo e a comunhão humana em que se constitui”

Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo, num círculo de cultura, diante de uma situação representada em quadro: ‘Gosto de discutir sobre isto porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não vejo. Agora sim, observo como vivo’. § A consciência é essa misteriosa e contraditória capacidade que tem o homem de distanciar-se das coisas para fazê-las presentes, imediatamente presentes.”

Trajeto Schopenhauer-Heidegger: presença não é representação, mas (condição de) apresentação.” Demiurgia antropomórfica. Quem não tem um presente, em que é livre, não vive, não é homem.

e o coito de suas respostas mede-se por sua maior ou menor adaptação: naturaliza-se.” Naturaliza-se: anti-culturaliza-se (mas toda cultura é ‘natural’).

coisas desafios

limitação (dogma da liberdade relativa) não é aprisionamento ou confinamento. Mas a condição de possibilidade da existência livre e original.

consciência do além-limite” (além-animal)

transubstanciação do meio físico”

o homem não se naturaliza, humaniza (culturaliza) o mundo (a natureza).”

hominização”

adaptar: processo estacionário, dado – o revolucionário não se adapta, transgride.

hominizar: processo dinâmico, criação

a interrogação nunca é pergunta exclusivamente especulativa: [a pedagogia inútil e livresca de hoje] no processo de totalização da consciência é sempre provocação que a incita a totalizar-se. O mundo é espetáculo, [observação passiva] mas sobretudo convocação. [chamada a subir ao palco]

PENSAR OU AGIR? PENSAR & AGIR: “Se a consciência se distancia do mundo e o objetiva, é porque sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva.”

a distância é a condição da presença.” Não há zero distância ou presença absoluta. Por outro lado, nada está infinitamente distante ou é irrecuperável. Quem não se vê de fora, se objetificando em exercício abstrato, não compreende a própria existência.

(*)(Retomada do dilema introdutório:) “Se cada consciência tivesse o seu mundo, as consciências se desencontrariam em mundos diferentes e separados – seriam mônadas incomunicáveis.”

convergência das intenções”

Infelizmente, convergimos até com fascistas.

As consciências não são comunicantes porque se comunicam; mas comunicam-se porque comunicantes. A intersubjetivação das consciências é tão originária quanto sua mundanidade ou sua subjetividade.” Trocando em miúdos para o pedagogês-sem-filosofês: Antes de existir o eu, já existia o nós.

Na intersubjetivação, as consciências também se põem como consciências de um certo mundo comum e, nesse mundo, se opõem como consciência de si e consciência do outro. Comunicamo-nos na oposição” Não há espaço para solipsismos.

A solidão – não o isolamento – só se mantém enquanto renova e revigora as condições do diálogo. [A solidão é como o distanciar-se a fim de estar verdadeiramente presente.]

O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele é relacional; e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes ‘admiram’ [esta palavra, ainda veremos, tem conotação afirmativa em Freire] um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele co[-]incidem; nele põem-se e opõem-se. Vimos que, assim, a consciência se existencia e busca perfazer-se.”

Todo quartel é um quadrante errado (isolado) da existência.

Então, o mundo da consciência não é criação, [divina, destino] mas sim, elaboração humana. Esse mundo não se constitui na contemplação, [diferente de admiração, acima] mas no trabalho.”

o espetáculo, em verdade, é compromisso.” O espetáculo é o mundo admirado do qual pode-se escolher ou vir a participar. Esse é o compromisso, uma escolha consciente. “Reencontrar-se como sujeito e liberar-se é todo o sentido do compromisso histórico.”

Em diálogo circular, [dialético, não-repetitivo, mas recursivo] intersubjetivando-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora. Todos juntos, em círculo, [representa a igualdade entre os participantes da proposta pedagógica – todos estão a igual distância do centro comum] e em colaboração, reelaboram o mundo e, ao reconstruí-lo, apercebem-se de que, embora construído também por eles, esse mundo não é verdadeiramente para eles. Humanizado por eles, esse mundo não os humaniza. As mãos que o fazem não são as que o dominam. [falta de controle sobre o produto do próprio trabalho] Destinado a liberá-los como sujeitos, escraviza-os como objetos.”

não se davam conta de que também eram presença que presentifica um mundo que não é de ninguém, porque originariamente é de todos.”

Como todo bom método pedagógico, [o método Paulo Freire] não pretende ser método de ensino, mas sim de aprendizagemRecomendo consultar os termos na internet, mas um rápido resumo: método de ensino – educação tradicional, professor como protagonista, ênfase no conteúdo, ‘cápsulas de saber’, contextualizadas ou não com os estudantes; método de aprendizagem – mais moderno, se preocupa com o que se passa com o aluno após a transmissão do saber, enfatiza conteúdos importantes para o contexto do aluno, a denúncia de que o método de ensino, antigo, era a perpetuação de uma necessidade de decorar conteúdos sem-sentido, aprender por aprender, e ainda pior: aprender por um tempo curto, pois inútil na ‘vida real’. Podemos grosso modo dizer, ainda: a aprendizagem é um meio para um fim; o ensino enquanto método pedagógico já é um fim em si mesmo.

A cultura marca o aparecimento do homem no largo processo da evolução cósmica. A essência humana existencia-se, autodesvelando-se como história. Mas essa consciência histórica, objetivando-se reflexivamente, surpreende-se a si mesma, passa a dizer-se, torna-se consciência historiadora: o homem é levado a escrever sua história. Alfabetizar-se é aprender a ler essa palavra escrita em que a cultura se diz e, dizendo-se criticamente, deixa de ser repetição intemporal do que passou, para temporalizar-se, para conscientizar sua temporalidade constituinte, que é anúncio e promessa do que há de vir.” O educar não faz sentido se não é agente transformador dos educandos.

HORA DO DITADO (DITADURA DO DITO): “Ensinar a ler as palavras ditas e ditadas é uma forma de mistifìcar as consciências, despersonalizando-as na repetição – é a técnica da propaganda massificadora.” Ditado, prática comum dos primeiros níveis da escola fundamental: o pior exemplo do método de ensino, sem aprendizagem. Exemplo extremo: Aprendi a escrever lápis, mas talvez nem saiba o que é um lápis e para quê serve (ironicamente, usando o lápis para escrever lápis).

Aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e também toda a antropologia.” Lápis, acima, não é a sua palavra, mas uma palavra despida de sentido, porque despida de contexto. A alfabetização verdadeira vem depois, quando se formulam enunciados, expressando visões de mundo.

A palavra pessoal, criadora, pois a palavra repetida é monólogo das consciências que perderam sua identidade, isoladas, imersas na multidão anônima e submissas a um destino que lhes é imposto e que não são capazes de superar, com a decisão de um projeto.” Palavra repetida me lembra: coral de igreja: os anjinhos que não sabem o que lêem. Mas lêem e capricham na leitura. Recebem aplausos do padre.

O enfrentamento com o mundo é ameaça e risco. O homem substitui o envoltório protetor do meio natural por um mundo que o provoca e desafia. Num comportamento ambíguo, enquanto ensaia o domínio técnico desse mundo, tenta voltar a seu seio, imergir nele, enleando-se na indistinção entre palavra e coisa.¹ A palavra, primitivamente, é mito. Interior ao mito e condição sua, o ‘logos’ humano vai conquistando primazia, com a inteligência das mãos que transformam o mundo.”²

¹ O descompasso entre as maiores maravilhas tecnológicas e ainda o mesmo primitivismo de sempre na pedagogia: a maioria dos homens pensa que palavras e coisas são atributos absolutos, já dados desde que o mundo é mundo, e que não foram criadas pelo próprio homem.

² De certa forma, a alfabetização-para-o-mundo (o método Freire) é apenas a repetição, em nível individual, da história conhecida da cultura: como viemos das trevas para nos tornarmos seres ativos, culturas, civilizações. E para que continuemos sendo ativos, é necessário repetir o processo, que nunca se fará por si mesmo. Nada do que foi conquistado no passado garante o presente do homem, que afinal não é o mesmo indivíduo que dominou o fogo e que filosofou na Grécia. Mas agora temos uma dimensão histórica que aquele mesmo homem, tão esclarecido, ainda não possuía.

A narração do mito, no entanto, objetivando o mundo mítico e entrevendo o seu conteúdo racional, acaba por devolver à consciência a autonomia da palavra, distinta das coisas que ela significa e transforma.” O mito, como ponto de origem do saber, não é mal em si mesmo; e sim uma má utilização do mito para falsear a realidade. Somos intérpretes de mitos.

a cultura letrada é um epifenômeno [instrumento] da cultura, que, atualizando sua reflexividade virtual, encontra na palavra escrita uma maneira mais firme e definida de dizer-se, isto é, de existenciar-se discursivamente na ‘práxis’ histórica. Podemos conceber a ultrapassagem da cultura letrada: o que, em todo caso, ficará, é o sentido profundo que ela manifesta: escrever e não conservar e repetir a palavra dita, mas dizê-la com a força reflexiva que sua autonomia lhe dá – a força ingênita que a faz instauradora do mundo da consciência, criadora da cultura.” Diferente de todas as toneladas de teses e papers de hoje, meras repetições analfabetas de um mundo velho. Ernani, ao dizer “Podemos conceber a ultrapassagem da cultura letrada”, além de lembrar que existe uma cultura popular (mesmo escrita), pode estar falando do cinema ou das comunicações audiovisuais em geral, hoje imperantes. Tudo isso é ainda logos (razão e palavra), no entanto.

a sua palavra humana imita a palavra divina” Ainda estamos muito aquém. Circundados por escravos que são todo-orgulho (me refiro aos acadêmicos e seu monopólio sobre o saber). E são acadêmicos cada vez piores (basta olhar para os séculos passados).

Aos que constroem juntos o mundo humano, compete assumirem a responsabilidade de dar-lhe direção.” “então conscientizar é politizar. E a cultura popular se traduz por política popular; não há cultura do Povo, sem política do Povo.”

[Paulo Freire] Não absorve o político no pedagógico, mas também não põe inimizade entre educação e política. Distingue-as, sim, mas na unidade do mesmo movimento em que o homem se historiciza e busca reencontrar-se, [outro motivo de falar-se de círculo] isto é, busca ser livre. Não tem a ingenuidade de supor que a educação, só ela, decidirá dos rumos da história, mas tem, contudo, a coragem suficiente para afirmar que a educação verdadeira conscientiza as contradições do mundo humano, sejam estruturais, superestruturais ou inter-estruturais, contradições que impelem o homem a ir adiante. As contradições conscientizadas não lhe dão mais descanso, tornam insuportável a acomodação.” O homem que aprendeu a problematizar o mundo não se é mais mero macaco, autômato desesperado e agitado, que pula de galho em galho, estruturalmente correlato, i.e., no tédio da existência, só sabe ir de um extremo ao outro, procurando um sentido absoluto que jamais encontrará (comentário dedicado a um fascista que cruzou meu caminho, que mascaro sob um inteligente apelido para evitar processinhos: Acefaloísio).

Um método pedagógico de conscientização alcança as últimas fronteiras do humano. E como o homem sempre se excede, o método também o acompanha.”

Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer têm condições para trabalhar, os dominadores mantêm o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detêm e a recusam aos demais é um difícil mas imprescindível aprendizado – é a ‘pedagogia do oprimido’.” A missão da minha geração é ser o pesadelo número 1 da mídia tradicional. Propagar a verdade.

Santiago, 1957

PRIMEIRAS PALAVRAS (agora sim Paulo Freire em pessoa entra em cena!)

As páginas que se seguem e que propomos como uma introdução à Pedagogia do Oprimido são o resultado de nossas observações nestes 5 anos de exílio. Observações que se vêm juntando às que fizemos no Brasil.” “Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. Daí que seja doloroso observar que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu contrário, isto é, a radicalização do revolucionário.”

o sectário de direita que, no nosso ensaio anterior, chamamos de ‘sectário de nascença’ pretende frear o processo, ‘domesticar’ o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também porque o homem de esquerda, ao sectarizar-se, se equivoca totalmente na sua interpretação ‘dialética’ da realidade, da história, deixando-se cair em posições fundamentalmente fatalistas.”

Santiago, 1968 [significa que esteve exilado já antes da ditadura militar – um forte indício de que seu trabalho incomodava e muito; ou seja, de que estava no bom caminho.]

CAPÍTULO 1. JUSTIFICATIVA DA “PEDAGOGIA DO OPRIMIDO”

Reconhecemos a amplitude do tema que propomos tratar neste ensaio, com o qual pretendemos, em certo aspecto, aprofundar alguns pontos discutidos em nosso trabalho anterior Educação como Prática da Liberdade. Daí que o consideremos como mera introdução

A desumanização, que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero.”

A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos.”

A ‘ordem’ social injusta é a fonte geradora, permanente, desta ‘generosidade’ que se nutre da morte, do desalento e da miséria.”

[os oprimidos-não-conscientes do verdadeiro problema dialético da opressão] querem a reforma agrária, não para libertar-se, mas para passar a ter terra e, com esta, tornar-se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados. Raros são os camponeses que, ao serem ‘promovidos’ a capatazes, não se tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo.” O Movimento dos Sem Terra está informado desta contradição.

A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam.”

Não basta saber-se numa relação dialética com o opressor – seu contrário antagônico – descobrindo, por exemplo, que sem eles o opressor não existiria, (Hegel) para estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que se entreguem à práxis libertadora.”

Descobrir-se na posição de opressor, mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos. Solidarizar-se com estes é algo mais que prestar assistência a 30 ou a 100, mantendo-os atados, contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter a consciência de que explora e ‘racionalizar’ sua culpa paternalistamente. A solidariedade, exigindo de quem se solidariza, que ‘assuma’ a situação de com quem se solidarizou, é uma atitude radical.”

O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida.”

A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade.

Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar-lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da história (…) É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica homens sem mundo.”

O que Marx criticou, e cientificamente destruiu, não foi a subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo.” “Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na ‘inversão da práxis’, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens.”

Este é um dos problemas mais graves que se põem à libertação. É que a realidade opressora, ao constituir-se como um quase mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências.” Opressores que não se julgam opressores, oprimidos que se pensam – e favoravelmente! – opressores, ou ao menos não-oprimidos, ou ‘oprimidos conformados’.

Hay que hacer la opresión real todavia más opresiva añadiendo a aquella la consciencia de la opresión, haciendo la infamia todavia más infamante, al pregonarla.”

Marx e Engels, Sagrada Família

O NOVO ENSINO MÉDIO: “Por isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção crítica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro.”

A ‘racionalização’, como mecanismo de defesa, termina por identificar-se com o subjetivismo. Ao não negar o fato, mas distorcer suas verdades, a ‘racionalização’ ‘retira’ as bases objetivas do mesmo.” Diz o racionalista inautêntico: o problema da pedagogia existe e é profundo, está-aí. Mas é insolúvel. Não tem a ver com a luta de classes, precisamos propor ‘soluções pragmáticas’, etc., etc. Ao dizer que a educação anda mal e precisa melhorar, é tido superficialmente como um crítico do sistema, mas não avança no problema, estanca-o mesmo. Ou a educação sempre andará mal porque não é possível fazer nada a respeito, ou formulam-se soluções mirabolantes, eternamente fadadas ao fracasso, e não se modifica o discurso, e não cessa o ciclo de formulação de soluções mirabolantes.

« il doit, pour employer les mots de Marx, expliquer aux masses leur propre action non seulement afin d’assurer la continuité des expériences revolutionnaires du prolétariat, mais aussi d’activer consciemment le développement ultérieur de ces expériences. »

Lukács, Lenin

quê-fazer/quefazer X puro fazer

ação organizada dos oprimidos X ação alienada

Para nós, contudo, a questão não está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas sobre a sua ação. De qualquer forma, o dever que Lukács reconhece ao partido revolucionário de ‘explicar às massas a sua ação’ coincide com a exigência que fazemos da inserção crítica das massas na sua realidade através da práxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a si mesma.”

Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um ‘tratamento’ humanitarista,¹ para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua ‘promoção’. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção.

¹ ideologia (do) humanismo(ta) X ideologia (do) humanitarismo(ta)

práxis revolucionária X discurso liberal da meritocracia, demagogia

A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade, se apresenta como pedagogia do Homem. (…) Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão.”

Se, porém, a prática desta educação implica o poder político e se os oprimidos não o têm, como então realizar a pedagogia do oprimido antes da revolução?”

trabalhos educativos X educação sistemática

Trabalho de base, contínuo, implementando a conscientização paulatina dos oprimidos, que segundo Freire com o tempo e o sucesso da primeira etapa do trabalho de base passam a ser, já, ‘sujeitos em direção à libertação’, ex-oprimidos conscientes e emergentes, já capazes de co-conduzir o processo da luta, e não apenas submeter-se à inércia da pedagogia do opressor. X Tomar-o-poder-para-depois-revolucionar-a-educação (reforma vertical, de alto escalão, de cima para baixo)

tese-antítese-síntese em operação:

De: homens opressores vs. homens oprimidos… A: homens libertando-se.

A situação de opressão em que se ‘formam’, em que ‘realizam’ sua existência, os constitui nesta dualidade, na qual se encontram proibidos de ser. Basta, porém, que homens estejam sendo proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal proibição se verifica seja, em si mesma, uma violência. Violência real, não importa que, muitas vezes, adocicada pela falsa generosidade a que nos referimos, porque fere a ontológica e histórica vocação dos homens — a do ser mais.”

Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o resultado de uma violência? § Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se objetivamente, os constitui?”

Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro. § Inauguram o desamor (…) porque apenas se amam.

Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os ‘demitidos da vida’, os esfarrapados do mundo.”

Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a sua.”

Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua ‘generosidade’, são sempre os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme se situem, interna ou externamente, de ‘essa gente’ ou de ‘essa massa cega e invejosa’, ou de ‘selvagens’, ou de ‘nativos’, ou de ‘subversivos’, [os ‘favelados’] são sempre os oprimidos os que desamam. São sempre eles os ‘violentos’, os ‘bárbaros’, os ‘malvados’, os ‘ferozes’, quando reagem à violência dos opressores.” Veja a repetição dessa lógica agora em Gaza. “Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor.” “Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão.”

Os freios que os antigos oprimidos devem impor aos antigos opressores para que não voltem a oprimir não são opressão daqueles a estes. A opressão só existe quando se constitui em um ato proibitivo do ser mais dos homens. Por esta razão, estes freios, que são necessários, não significam, em si mesmos, que os oprimidos de ontem se tenham transformado nos opressores de hoje.” “Um ato que proíbe a restauração deste regime não pode ser comparado com o que o cria e o mantém; não pode ser comparado com aquele através do qual alguns homens negam às maiorias o direito de ser.”

SINAL VERMELHO: “No momento, porém, em que o novo poder se enrijece em ‘burocracia’ dominadora, se perde a dimensão humanista da luta e já não se pode falar em libertação.”

os opressores de ontem não se reconhecem em libertação. Pelo contrário, vão sentir-se como se realmente estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, ‘formados’ na experiência de opressores, tudo o que não seja o seu direito antigo de oprimir significa opressão a eles. Vão sentir-se, agora, na nova situação, como oprimidos porque, se antes podiam comer, vestir, calçar, educar-se, passear, ouvir Beethoven, enquanto milhões não comiam, não calçavam, não vestiam, não estudavam nem tampouco passeavam, quanto mais podiam ouvir Beethoven, qualquer restrição a tudo isto, em nome do direito de todos, lhes parece uma profunda violência a seu direito de pessoa. Direito de pessoa que, na situação anterior, não respeitava nos milhões de pessoas que sofriam e morriam de fome, de dor, de tristeza, de desesperança.”

HUMANOS ‘DIREITOS’ “É que, para eles, pessoa humana são apenas eles. Os outros, estes são ‘coisas’. Para eles, há um só direito — o seu direito de viverem em paz, ante o direito de sobreviverem, que talvez nem sequer reconheçam, mas somente admitam aos oprimidos. E isto ainda porque, afinal, é preciso que os oprimidos existam, para que eles existam e sejam ‘generosos’…” Pois quem irá esfregar suas roupas sujas?

Esta violência, como um processo, passa de geração a geração de opressores, que se vão fazendo legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima cria nos opressores uma consciência fortemente possessiva. Possessiva do mundo e dos homens. Fora da posse direta, concreta, material, do mundo e dos homens, os opressores não se podem entender a si mesmos. (…) A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu comando.

Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes é possível transformar tudo a seu poder de compra. Daí a sua concepção estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as coisas. E o lucro, seu objetivo principal.” Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem.”

humanização é apenas sua. A dos outros, dos seus contrários, se apresenta como subversão. Humanizar é, naturalmente, segundo seu ponto de vista, subverter, e não ser mais.”

Esta tendência dos opressores de inanimar tudo e todos, que se encontra em sua ânsia de posse, se identifica, indiscutivelmente, com a tendência sadista.” “O sadismo aparece, assim, como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor às avessas — um amor à morte e não à vida.”

Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção da ‘ordem’ opressora, com a qual manipulam e esmagam.”

DOS RICOS QUE VÃO PARA O CÉU: “Em face de tudo isto é que se coloca a nós mais um problema de importância inegável a ser observado no corpo destas considerações, que é o da adesão e consequente passagem que fazem representantes do polo opressor ao polo dos oprimidos. De sua adesão à luta destes por libertar-se.”

TODO FILANTROPO É BEM-INTENCIONADO, MAS NEM TODO BEM-INTENCIONADO É BEM-VINDO À LUTA: “Acontece, porém, que, ao passarem de exploradores (1) ou de espectadores indiferentes (2) ou de herdeiros da exploração (3)¹ — o que é uma conivência com ela — ao pólo dos explorados, quase sempre levam consigo, condicionados pela ‘cultura do silêncio’,(*) toda a marca de sua origem. Seus preconceitos. Suas deformações, entre estas, a desconfiança do povo. Desconfiança de que o povo seja capaz de pensar certo. De querer. De saber. § Deste modo, estão sempre correndo o risco de cair num outro tipo de generosidade, tão funesto quanto o que criticamos nos dominadores. (…) acreditam que devem ser os

fazedores da transformação.” O mito dos heróis escolhidos, de raiz aristocrata. Os reformadores não-dialéticos, liberais, da educação.

¹ Três subtipos da classe dominadora. O quarto subtipo seriam os traidores ou explorados voluntários. Paulo Freire citará Guevara na parte final da obra sobre a classe dos traidores.

(*) FREIRE, Ação cultural para a liberdade e outros escritos

crer no povo é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Um revolucionário se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do que por mil ações sem ela.” Serei eu mesmo revolucionário? A que ponto? Considero-me de uma elite intelectual privilegiada e incompreensível, impotente para participar positivamente das mudanças históricas? “Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável que se revejam constantemente. Esta adesão é de tal forma radical que não permite a quem a faz comportamentos ambíguos.”

Fazer esta adesão e considerar-se proprietário do saber revolucionário, que deve, desta maneira, ser doado ou imposto ao povo, é manter-se como era antes.” Nem Marx era proprietário do marxismo, e o sabia – e este é um aspecto intencionalmente ou não esquecido por toda a crítica ao marxismo. Se o povo não pode atuar livremente, ainda não estão dadas as condições da revolução (momento 1 de 2 em Paulo Freire). Stalin surgiu cedo demais, teve de impor para subsistir; se surgira mais tarde, não seria um Stalin, sendo genuinamente revolucionário.

Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco. § Aproximar-se dele, mas sentir, a cada passo, a cada dúvida, a cada expressão sua, uma espécie de susto, e pretender impor o seu status, é manter-se nostálgico de sua origem. § Daí que esta passagem deva ter o sentido profundo do renascer. Os que passam têm de assumir uma forma nova de estar sendo; já não podem atuar como atuavam; já não podem permanecer como estavam sendo.”

Daí que, quase sempre, enquanto não chegam a localizar o opressor concretamente, como também enquanto não cheguem a ser ‘consciência para si’, assumam atitudes fatalistas em face da situação concreta de opressão em que estão.”

O ‘SOFRIDO E FELIZ’ POVO BRASILEIRO (A MAIOR DAS MENTIRAS): “Este fatalismo, às vezes, dá a impressão, em análises superficiais, de docilidade, como caráter nacional, o que é um engano.”

FALAMOS SOBRE OS SÁDICOS ACIMA – AQUI APRESENTAMOS OS MASOQUISTAS: “Quase sempre este fatalismo está referido ao poder do destino ou da sina ou do fado — potências irremovíveis — ou a uma distorcida visão de Deus. Dentro do mundo mágico ou místico em que se encontra, a consciência oprimida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza, encontra no sofrimento, produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se Ele fosse o fazedor desta ‘desordem organizada’.”

violência horizontal com que agridem os próprios companheiros.” “Ao agredirem seus companheiros oprimidos estarão agredindo neles, indiretamente, o opressor também ‘hospedado’ neles e nos outros. Agridem, como opressores, o opressor nos oprimidos.”

O PROBLEMA DO LUMPENPROLETARIADO

uma irresistível atração pelo opressor.”

Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração.”

Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de ‘classe média’, cujo anseio é serem iguais ao ‘homem ilustre’ da chamada classe ‘superior’.”

Consciência colonizada: misto de repulsa e admiração pelo próprio colonizador (Memmi, The Colonizer and the Colonized. Boston: Beacon Press, 1967).

autodesvalia”:

De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua ‘incapacidade’.”

Não são poucos os camponeses que conhecemos em nossa experiência educativa que, após alguns momentos de discussão viva em torno de um tema que lhes é problemático, param de repente e dizem ao educador: ‘Desculpe, nós devíamos estar calados e o senhor falando. O senhor é o que sabe; nós, os que não sabemos.’

Muitas vezes insistem em que nenhuma diferença existe entre eles e o animal e, quando reconhecem alguma, é em vantagem do animal. ‘É mais livre do que nós’, dizem.

É impressionante, contudo, observar como, com as primeiras alterações numa situação opressora, se verifica uma transformação nesta autodesvalia.”

Diziam de nós que não produzíamos porque éramos borrachos, preguiçosos. Tudo mentira. Agora, que estamos sendo respeitados como homens, vamos mostrar a todos que nunca fomos borrachos, nem preguiçosos. Éramos explorados, isto sim” Camponês chileno

É preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do opressor para que, em si, vá operando-se convicção oposta à anterior. Enquanto isto não se verifica, continuarão abatidos, medrosos, esmagados.”

Enquanto para o opressor ‘ser é ter’, para o oprimido nos seus níveis mais baixos de percepção da relação de dominação ‘ser é depender (do senhor)’.

Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis.”

O que pode e deve variar, em função das condições históricas, em função do nível de percepção da realidade que tenham os oprimidos, é o conteúdo do diálogo. Substituí-lo pelo antidiálogo, sloganização, verticalidade e comunicados é pretender a libertação dos oprimidos com instrumentos da ‘domesticação’.” “É fazê-los cair no engodo populista e transformá-los em massa de manobra.”

Como ensinar quem não é ou não é mais a ser mais ou querer-ser-mais?

Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual.”

A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, ‘ação cultural’ para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles. A sua dependência emocional, fruto da situação concreta de dominação em que se acham e que gera também a sua visão inautêntica do mundo, não pode ser aproveitada a não ser pelo opressor. Este é que se serve desta dependência para criar mais dependência.”

Indo além do slogan popular mal-repercutido, pescar para o pobre e dar o peixe é pouquíssimo. Mas ensinar a pescar é ainda pouquíssimo, embora um pouco melhor. Criar, via diálogo, independência sem doação de pseudo-independência, ajudar a tornar um ser dependente em independente na ação e na teoria é o maior desafio do revolucionário.

se não é autolibertação — ninguém se liberta sozinho —, também não é libertação de uns feita por outros.” “É necessário que a liderança revolucionária descubra esta obviedade: que seu convencimento da necessidade de lutar, que constitui uma dimensão indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado por ninguém, se é autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, de reflexão e de ação. § Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou à crítica desta mesma situação e ao ímpeto de transformá-la.”

Se os líderes revolucionários de todos os tempos afirmam a necessidade do convencimento das massas oprimidas para que aceitem a luta pela libertação — o que de resto é óbvio —, reconhecem implicitamente o sentido pedagógico desta luta. Muitos, porém, talvez por preconceitos naturais e explicáveis contra a pedagogia, terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na ‘educação’ que serve ao opressor. Negam a ação pedagógica no processo de libertação, mas usam a propaganda para convencer…” A propaganda sempre vence, mas é uma vitória que dura pouco. Os melhores propagandistas e piores mantenedores de regime são os fascistas. Vivem de influxos e refluxos de ondas intermitentes.

Não basta que os homens não sejam escravos; [formais] se as condições sociais fomentam a existência de autômatos, o resultado não é o amor à vida, mas o amor à morte.” “Não podem comparecer à luta como quase-coisas para depois serem homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em que se destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é a posteriori. A luta por esta reconstrução começa no autorreconhecimento de homens destruídos.”

Notas do capítulo

Talvez dês esmolas. Mas de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?”

São Gregório de Nissa (330-395), Sermão contra os usurários

A verdade da consciência independente é (por coerência) a consciência da escravidão [e de que existem senhores e escravos].” Hegel [tradução minha do inglês]

La teoría materialista de que los hombres son producto de las circunstancias y de la educación, y de que, por tanto, los hombres modificados son producto de circunstancias distintas y de una educación distinta, olvida que las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres y que el proprio educador necesita ser educado.”

Marx, ‘Tercera Tesis sobre Feuerbach’

Recentemente, num país latino-americano, segundo depoimento que nos foi dado por sociólogo amigo, um grupo de camponeses, armados, se apoderou do latifúndio. Por motivos de ordem tática, se pensou em manter o proprietário como refém. Nenhum camponês, contudo, conseguiu dar guarda a ele. Só sua presença já os assustava. Possivelmente também a ação mesma de lutar contra o patrão lhes provocasse sentimento de culpa. O patrão, na verdade, estava ‘dentro’ deles…”

Desabafa sua ‘pena’ em casa, onde grita com os filhos, bate, desespera-se. Reclama da mulher. Acha tudo mal. Não desabafa sua ‘pena’ com o patrão porque considera um ser superior. Em muitos casos, o camponês desabafa sua ‘pena’ bebendo.”

Mais um camponês. Curiosamente acabo de ler um trecho muito parecido no livro de pseudo-literatura infantil (pois é para adultos) de Lewis Carroll, Sílvia e Bruno.

CAPÍTULO 2. A CONCEPÇÃO “BANCÁRIA” DA EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DA OPRESSÃO. SEUS PRESSUPOSTOS, SUA CRÍTICA

Há uma quase enfermidade da narração. A tônica da educação é preponderantemente esta — narrar, sempre narrar.” Se os bolsominions soubessem que seu maior algoz utiliza a expressão narrativa tantas vezes… capaz que se apaixonassem!

Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos, vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. (…) A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la.

Por isto mesmo é que uma das características desta educação dissertadora é a ‘sonoridade’ da palavra e não sua força transformadora. Quatro vezes quatro, dezesseis; Pará, capital Belém, que o educando fixa, memoriza, repete, sem perceber o que realmente significa quatro vezes quatro. O que verdadeiramente significa capital, na afirmação, Pará, capital Belém. Belém para o Pará e Pará para o Brasil.”

Quanto mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’, tanto melhores educandos serão.” “Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem.”

GENEALOGIA DO FICHAMENTO: “Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam.”

Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber.”

absolutização ou alienação da ignorância”

O PROFESSOR QUE SORRI AO ENTREGAR A PROVA CORRIGIDA ASSINALADA COM UM ZERO (“Fiz meu trabalho!”): “O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca.”

Os educandos, alienados, por sua vez, à maneira do escravo na dialética hegeliana, reconhecem em sua ignorância a razão da existência do educador, mas não chegam, nem sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador.”

c. o educador é o que pensa; os educandos, os pensados” Descartes diria: os educandos nem existem (são robôs).

o educador escolhe o conteúdo programático” Hoje nem isso: o tecnocrata fascista escolhe o conteúdo programático do educador. (escrito em 2022)

autoridade funcional” I’m a number, I’m a restrained man!

Não é de estranhar, pois, que nesta visão ‘bancária’ da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos.” São o(a)s caixas do dinheiro(conteúdo) alheio.

adaptar-se ingenuamente ao mundo”

ingenuidade X criticidade

passividade X atuação

autuado X sujeito do processo

ensino banal e ensino medíocre

no lugar dos nexos, os anexos, apensos inertes na mente decaída inutilizada.

os oprimidos recebem o nome simpático de ‘assistidos’.”

Estudante ou um outro poetastro sem valor?

Pó-e-traste (nosso alfa e nosso ômega com um violão no colo cantando nossas dores)

Os oprimidos, como casos individuais, são patologia da sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustá-los a ela, mudando-lhes a mentalidade de homens ineptos e preguiçosos.”

integrados (o que me lembra a sociologia chapa branca do séc. XX) X críticos

educa(n)dos bancários X trânsfugas, desertores, infelizes (sempre voluntários)

Ada deu o dedo ao urubu”

Como diria Macunaíma, o autômato é o capim que se corta a si mesmo.

É que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a ‘educação bancária’ pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação. Um educador humanista, revolucionário, não há de esperar esta possibilidade. Sua ação, identificando-se, desde logo, com a dos educandos, deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar autêntico e não no sentido da doação, da entrega do saber.”

…profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador.” Meu eu-filósofo rema contra isso, mas meu eu-artista abraça de toda a causa. O artista vencerá o pensador na ‘guerra intestina da arte contra a academia’ que se dá no seio do movimento revolucionário.

companheiro dos educandos” Descer do pedestal ou ampliar o pedestal para todos do recinto, eis a única questão. Uma kestão, não uma cuestão (gringuismo acéfalo).

Não sente no banquinho, e saia fazendo estardalhaço.

consciências-piscinas

sopa de letrinhas: pior que bóia fria de presídio, forçam a engolir o cardápio de palavras desconexas. – Toma tua refeição, aspirante-a-sábio!

FILHO-CONE: “Ah, como seu filho é educado – quietinho ele!”

Quem muito prescreve, um dia prescreve… Contradições auto-superadoras da língua…

controle de leitura”

necrofilia X biofilia (central no livro, décadas antes da moda sociológica da “necropolítica” como explicação do fenômeno Bolsonaro.)

El individuo necrófilo puede realizarse con un objeto — una flor o uma persona — únicamente si la posee

Fromm

A opressão, que é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida.” Necropolítica já descrita. O terror dos fascistas encontrar sua descrição num “autor morto” (justamente porque ele não está morto, mas influi no presente, isso o torna inimigo).

participação simbólica” O que eles não aturam é que um comun-ista é co-partícipe com-o-povo, não com Fulano ou Sicrano que “fez e aconteceu”, pintado de verde, amarelo, azul e branco. Todos se identificam com alguma coisa maior, algum movimento de homens; mas se este for um espelho autêntico (o que é difícil), é uma projeção ou associação válida, um modus vivendi digno.

manifestações populistas … líderes carismáticos … uso de sua potência”

Um líder ex-oprimido, não-formado na educação ‘bancária’, é uma manifestação popular, despida do ‘ista’ insultante. É ele que se vê no povo carente de atuação, vê como foi e o que eles podem vir a ser.

BORRACHA NOS ALUNOS E PROFESSORES: “…repressão feita em nome, inclusive, da liberdade e do estabelecimento da ordem e da paz social.”

Ao denunciá-la, não esperamos que as elites dominadoras renunciem à sua prática. Seria demasiado ingênuo esperá-lo.”

A sociedade revolucionária que mantenha a prática da educação ‘bancária’ ou se equivocou nesta manutenção ou se deixou ‘morder’ pela desconfiança e pela descrença nos homens.”

Disto, infelizmente, parece que nem sempre estão convencidos os que se inquietam pela causa da libertação. É que, envolvidos pelo clima gerador da concepção ‘bancária’ e sofrendo sua influência, não chegam a perceber o seu significado ou a sua força desumanizadora.” Um longo caminho pela frente.

consciência especializada”, espécie de oxímoro.

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.” Por assim dizer, eu sou um achado se achando.

em nome da ‘preservação da cultura e do conhecimento’, não há conhecimento, nem cultura, verdadeiros.”

Estes, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também.”

DA DOXA AO LOGOS

anestesia dentro dum mundo-cela X desvelamento-do-mundo

reconhecimento-que-engaja”

Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa.” Sejamos realistas aqui: enquanto o cristianismo não for mera curiosidade mórbida de pé de página na História da humanidade, este dia da educação libertadora não se concretizará nunca.

E quando o educador lhe disse: ‘Admitamos, absurdamente, que todos os homens do mundo morressem, mas ficasse a terra, ficassem as árvores, os pássaros, os animais, os rios, o mar, as estrelas, não seria tudo isto mundo?’ ‘Não!’, respondeu enfático, ‘faltaria quem dissesse Isto é mundo’. O camponês quis dizer, exatamente, que faltaria a consciência do mundo que, necessariamente, implica o mundo da consciência.” E no entanto para 99 de 100 camponeses estará lá deus todo-poderoso com seu mundo-coisa – e não só eles: talvez os ‘cientistas’, na mesma proporção!

visões de fundo” (Husserl, Ideas Pertaining to a Pure Phenomenology and to a Phenomenological Philosophy: General Introduction to a Pure Phenomenology, 3.ed, 1969)

O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se ‘destaca’ e assume o caráter de problemas, portanto, de desafio.” Infelizmente isso só diz respeito a uma nata de pensadores em todos os tempos. A pedagogia de Freire pode ser resumida como uma sistematização do que acontece com todo sábio por contingência: por que somos o que somos?

A primeira ‘assistencializa’; a segunda, criticiza.”

#offtopic “Eu sou o cartório!”, uma espécie de título de filme com impacto frasal, em que Will Smith não diz que é o homem ou a lenda, mas o único e genuíno cartório: o único de que emanam coisas AUTÊNTICAS.

diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. (…) Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana”

Sua ‘duração’ — no sentido bergsoniano do termo —, como processo, está no jogo dos contrários permanência-mudança.” Às vezes é mais um exibicionismo bibliográfico, ‘bancário’, infelizmente, e menos pedagogia revolucionária… Força seu ávido leitor a ler outros autores por décadas, tempo que levará para dele discordar, tempo que poderia ter sido mais bem-empregado. É preciso tomar cuidado com a hipertrofia da consciência histórico-revolucionária, no entanto, algo que ainda não estava muito presente nos autores que Freire estudou (mas estava presente em Nietzsche, p.ex.): se se vive sempre na dinâmica e na fluidez, pura e simples, tem-se um mundo tão destroçado e uma completa falta de formação do homem, idem ibidem, como se vê na educação imobilista. O rio escorre tanto que não se o vê passar, não se sente a água, nele não se toma banho nunca… Vertigem e náusea com pinta de sabedoria, cegas como Tirésias, mas inconscientes como um não-profeta. E tudo isso num livro introdutório de Freire!

A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se. E porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá-la [no bom sentido de objetivar].”

CURA vs. FATALISMO: “Seria, realmente, uma violência, como de fato é, que os homens, seres históricos e necessariamente inseridos num movimento de busca, com outros homens, não fossem o sujeito de seu próprio movimento.” Contanto que se esclareça, na verdade: não se trata realmente de um lado ou outro, mas a superação dessa contradição em algo impossível de nomear a não ser por ser-aí e ser-no-mundo, responsabilidade, liberdade sem má-fé, etc.

Não importam os meios usados para esta proibição [de ser sujeito da própria busca ou vida]. Fazê-los objetos é aliená-los de suas decisões, que são transferidas a outro ou a outros.” CICLO AVÔ-PAI-FILHO/PAI-FILHO-NETO: O pai idiota que ‘escolhe a carreira do filho’, sua extensão objetal. Filho-caminhonete, filho-contracheque. “Já que meu pai, escravo, me fez escravo e eu não quero me libertar, tu também escravo serás…”

Qual é a diferença entre uma abertura e uma fechadura? O olho de quem vê. O pathos de quem vê.

Ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os outros sejam.”

amenização X resolução

Notas do capítulo

Ao menos admite seu arcabouço teórico, i.e., sua falta de originalidade (ninguém “cria” na roda do saber, só repercute): “A concepção do saber, da concepção ‘bancária’, é, no fundo, o que Sartre (El hombre y las cosas, Buenos Aires: Losada, 1965) chamaria de concepção ‘digestiva’ ou ‘alimentícia’ do saber. Este é como se fosse o ‘alimento’ que o educador vai introduzindo nos educandos, numa espécie de tratamento de engorda…”

Em Ação cultural para a liberdade e outros escritos (op. cit.) discutimos mais amplamente este sentido profético e esperançoso da educação (ou ação cultural) problematizadora.”

CAPÍTULO 3. A DIALOGICIDADE: ESSÊNCIA DA EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE

A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreria, verbalismo, blá-blá-blá.”

Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.”

CONTRA A REVELAÇÃO (PARADIGMA MOSAICO): “ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais.”

Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem” Com fascista não se conversa.

Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com a pronúncia do mundo, nem a buscar a verdade, mas a impor a sua.”

A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens.”

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens.

Como ato de valentia, não pode ser piegas; como ato de liberdade, não pode ser pretexto para a manipulação, senão gerador de outros atos de liberdade. A não ser assim, não é amor.” Amor livre como redundância em si mesma.

Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo. Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante.”

Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros, meros ‘isto’, em quem não reconheço outros eu?”

DE CERTO MODO, ANTI-ZARATUSTRA: “Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua deterioração que devo evitar?”

DE CERTO MODO, PRÓ-ZARATUSTRA: “Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro e definho?”

Não há também diálogo se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. A fé nos homens é um dado a priori do diálogo.” “O homem dialógico tem fé nos homens antes de encontrar-se frente a frente com eles. Esta, contudo, não é uma ingênua fé.”

Esta possibilidade, [a da alienação] porém, em lugar de matar no homem dialógico a sua fé nos homens, aparece a ele, pelo contrário, como um desafio ao qual tem de responder.” “Este poder (…) Pode renascer. Pode constituir-se.”

QUANDO SACAR É UM VERBO TÃO BOM QUANTO DEPOSITAR, E NADA TEM QUE VER COM ARMAS: “Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é consequência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não provocasse este clima de confiança entre seus sujeitos. Por isto inexiste esta confiança na antidialogicidade da concepção ‘bancária’ da educação.”

A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo. Se falha esta confiança, é que falharam as condições discutidas anteriormente.” “A confiança implica o testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções. Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não coincide com os atos.” Derrocada do sonho americano, não mais praticado-no-real.

Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira.”

Não existe, tampouco, diálogo sem esperança. A esperança está na própria essência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca. Uma tal busca, como já vimos, não se faz no isolamento, mas na comunicação entre os homens — o que é impraticável numa situação de agressão. O desespero é uma espécie de silêncio, de recusa do mundo, de fuga.” “Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero.”

<Banha-se> permanentemente de temporalidade cujos riscos não teme. § Opõe-se ao pensar ingênuo, que vê o ‘tempo histórico como um peso, como uma estratificação das aquisições e experiências do passado’, de que resulta dever ser o presente algo normalizado e bem-comportado. § Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje normalizado.”

Para o pensar crítico, diria Pierre Furter, ‘a meta não será mais eliminar os riscos da temporalidade, agarrando-se ao espaço garantido, mas temporalizar o espaço. O universo não se revela a mim (diz ainda Furter) no espaço, impondo-me uma presença maciça a que só posso me adaptar, mas como um campo, um domínio, que vai tomando forma na medida de minha ação’.” O fim da luta clássica pelo espaço estanque (século XX).

O BOM PROFESSOR NÃO É O SUBPRODUTO DA SALA DE AULA (TABULA RASA): “Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o educador-educando se encontra com os educando-educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes.”

Para o ‘educador-bancário’, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele mesmo, organizando seu programa.

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição — um conjunto de informes a ser depositado nos educandos —, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada.”

Um dos equívocos de uma concepção ingênua do humanismo está em que, na ânsia de corporificar um modelo ideal de ‘bom homem’, se esquece da situação concreta, existencial, presente, dos homens mesmos. (Rousseau, apartado em sua floresta)” “Simplesmente, não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses, estes, de modo geral, imersos num contexto colonial quase umbilicalmente ligados ao mundo da natureza de que se sentem mais partes que transformadores, para, à maneira da concepção ‘bancária’, entregar-lhes ‘conhecimento’ ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos.” Educação dos sem-terra para os sem-terra, do indígena para os indígenas. E para mantê-los ligados às origens, não para embranquecê-los (duplo sentido, aliás).

COMO SER UM BOM HOKAGE: “Não seriam poucos os exemplos que poderiam ser citados, de planos, de natureza política ou simplesmente docente, que falharam porque os seus realizadores partiram de uma visão pessoal da realidade. Porque não levaram em conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seu programa, a não ser com puras incidências de sua ação.” O mesmo poderia ser dito do fundador da CAPES, por exemplo. Uma singularidade no espaço-tempo, sem continuidade.

ESCOLA COM SENHORIO (significado real de ‘SEM PARTIDO’): “Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada são os dominadores. Lamentavelmente, porém, neste ‘conto’ da verticalidade da programação, ‘conto’ da concepção ‘bancária’, caem muitas vezes lideranças revolucionárias, no seu empenho de obter a adesão do povo à ação revolucionária.”

Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem corresponder à sua visão do mundo, mas não necessariamente à do povo. § Esquecem-se de que o seu objetivo fundamental é lutar com o povo pela recuperação da humanidade roubada e não conquistar o povo. Este verbo não deve caber na sua linguagem, mas na do dominador. Ao revolucionário cabe libertar e libertar-se com o povo, não conquistá-lo.” Chega de Césares.

As elites dominadoras, na sua atuação política, são eficientes no uso da concepção ‘bancária’ (em que a conquista é um dos instrumentos) porque, na medida em que esta desenvolve uma ação apassivadora, coincide com o estado de ‘imersão’ da consciência oprimida.”

Afinal, o empenho dos humanistas não pode ser o de opor os seus slogans aos dos opressores, tendo como intermediários os oprimidos, como se fossem ‘hospedeiros’ dos slogans de uns e de outros.”

No sentido estrito, se qualquer conservador ou reacionário tivesse miolos, perceberia que Paulo Freire não é perigoso, ainda mais sendo lido por ignorantes (pessoas da própria direita), senão na hipótese muito remota (pouco provável no presente, ou no sentido de um futuro ainda distante) de que seu discurso fosse compreendido pela esquerda como um todo, principalmente quando ele diz, exatamente referendando, que ainda que fosse verdade a hipótese do <marxismo cultural> em nada revoluciona a educação, mas apenas perpetua o que ele já denominou como pedagogia do opressor-oprimido (grifos meus): “Por isto é que não podemos, a não ser ingenuamente, esperar resultados positivos de um programa, seja educativo num sentido mais técnico ou de ação política, se, desrespeitando a particular visão do mundo que tenha ou esteja tendo o povo, [0% educado em luta de classes] se constitui numa espécie de ‘invasão cultural’, [sinônimo de marxismo cultural neste contexto] ainda que feita com a melhor das intenções. Mas ‘invasão cultural’ sempre.”

Na prática, a esquerda não revolucionou a educação ou a formação do homem – a inclusão no sistema educacional dos antes excluídos não fá-los inverter os valores (Nietzsche), só cria mais carvão ou bucha de canhão (cannon fodder) para o querer-ser-burguês ou morrer tentando. Mensagem mais clara, impossível (e, sendo impossível, significa que o público de direita não entende o que está escrito, pois nesse caso, para ele, o texto precisaria ser mais claro; e mais claro que isso seria inautêntico ou já distorceria o conteúdo que se quer transmitir – é por isso que eles só podem ler o que Olavo pensa ser Freire, e não Freire mesmo).

pregar no deserto”

PEDALÍTICOS E POLIGOGOS: “Por isto mesmo é que, muitas vezes, educadores e políticos falam e não são entendidos. Sua linguagem não sintoniza com a situação concreta dos homens a quem falam. E sua fala é um discurso a mais, alienado e alienante.” Presencie qualquer reunião de governe e sinta este parágrafo na pele.

Podemos sequer enumerar 5 educadores-políticos ou políticos-educadores dos tempos modernos? Lenin, Mao, quem mais?… Figura também próxima ao filósofo-legislador do Zaratustra. É natural, e não chocante, a aparição de Nietzsche cada vez mais numerosa conforme nos aprofundemos na questão da formação do “novo” homem – como se um dia ele se opusesse à “doutrina” marxista, e não o contrário (apesar dos equívocos que ele alimentava sobre o ‘socialismo’, já que ele não só conheceu o ‘socialismo pré-marxista’, o mesmo que desconhecer em absoluto o socialismo)!… Até para que marxistas e nietzscheanos se congratulem pelos achados uns dos outros e pela “incrível coincidência” de objetivos, ao menos um século e meio da data em que escrevo terão se passado. Quanto mais que isto chegue ao vulgo… O tal “marxismo cultural”, se pudesse ser implantado, exigiria 500 anos para gerar qualquer fruto. Ainda estamos muito longe de vislumbrar este pomar do saber e da eliminação da opressão.

Antes de perguntar-nos o que é um ‘tema gerador’, cuja resposta nos aclarará o que é o ‘universo mínimo temático’, nos parece indispensável desenvolver algumas reflexões.”

Se o ‘tema gerador’ fosse uma hipótese que devesse ser comprovada, a investigação, primeiramente, não seria em torno dele, mas de sua existência ou não.”

por viver num presente esmagador, o animal é a-histórico.”

O mundo humano, que é histórico, se faz, para o ‘ser fechado em si’, mero suporte. Seu contorno não lhe é problemático, mas estimulante. Sua vida não é um correr riscos, uma vez que não os sabe correndo.”

Não pode, tampouco, saber-se destruído em vida” (o animal)

os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica.” Sujeito à má interpretação do rebotalho. No sentido aqui empregado, a frase sartreana “a existência precede a essência” não se aplica. A existência no sentido da hermenêutica exige a compreensão da história, não é algo de que bebês usufruam. O mais correto seria atualizar Sartre e dizer: “a vivência precede a existência”. Deixemos, no entanto, para não complicar demais as coisas, “essência” de fora neste momento. Existir é estar-na-história.

situações-limite”: limite intransponível no animal; apenas um limite temporário no devir humano.

percebidos destacados”: situações-limite que não conseguem ser transpostas. Nas palavras de Freire, “dimensões concretas e históricas de uma dada realidade”. A História como a conhecemos, “cristalizada”, a história acadêmica dada (fora do escopo marxista da determinação e criação da história – presente-futuro – pelo homem e do escopo da reinterpretação constante do próprio passado, que nunca é fixo ou rígido). São um desafio a ser enfrentado para aqueles que não sucumbem ao desespero (aqueles capazes da percepção crítica). Quem está em desespero recai na “aceitação dócil e passiva” dessa situação histórica.

A rigor, se o homem é ser-no-mundo, em Freire o animal é ser-no-suporte. O suporte é como uma coisa no mundo humano. O ser-no-suporte é incapaz de decisões. Já o mundo é o palco por excelência das decisões. Imaginar um homem que permanecesse se deslocando apenas numa esteira.

O próprio do animal, portanto, não é estar em relação com seu suporte — se estivesse, o suporte seria mundo —, mas adaptado a ele.”

este mundo não existiria, se este ser não existisse.”: sine qua non da hermenêutica ou fenomenologia.

Uma unidade epocal se caracteriza pelo conjunto de ideias, de concepções, esperanças, dúvidas, valores, desafios, em interação dialética com seus contrários, buscando plenitude. A representação concreta de muitas destas ideias, destes valores, destas concepções e esperanças, como também os obstáculos ao ser mais dos homens, constituem os temas da época.”

Desta forma, não há como surpreender os temas históricos isolados, soltos, desconectados, coisificados, parados, mas em relação dialética com outros, [suportes-no-mundo] seus opostos. Como também não há outro lugar para encontrá-los que não seja nas relações homens-mundo. O conjunto dos temas em interação constitui o ‘universo temático’ da época.”

O BRASIL VIVE ESSE ANTAGONISMO AGUDO NA SUA EXPRESSÃO MAIS APROFUNDADA DESDE 2002, E A ‘LUTA’ SEGUE EM CURSO: “Na medida em que se aprofunda o antagonismo entre os temas que são a expressão da realidade, há uma tendência para a mitificação da temática e da realidade mesma, o que, de modo geral, instaura um clima de ‘irracionalismo’ e de ‘sectarismo’.” No mundo, vemos a tão esperada transição de poder decorrente do declínio dos Estados Unidos (econômico-cultural), tornado claro apenas há poucos anos, após mais de duas décadas do Consenso de Washington e da interrupção temporária oficial da Guerra Fria. Rússia e China são os protagonistas da Nova Ordem Mundial. O Brasil se inserirá no lado oriental contra o imperialismo ianque.

Este clima ameaça esgotar os temas de sua significação mais profunda, pela possibilidade de retirar-lhes a conotação dinâmica que os caracteriza.” Meia dúzia de anos muito inócuos (2016-2022).

SÍNTESE DA CONDIÇÃO PÓS-MODERNA (QUE FINALMENTE APRESENTA RACHADURAS): “Neste caso, os temas se encontram encobertos pelas ‘situações-limite’, que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa senão adaptar-se. Desta forma, os homens não chegam a transcender as ‘situações-limite’ e a descobrir ou a divisar, mais além delas e em relação com elas, o inédito viável.” O freio-de-mão estava puxado desde o pós-guerra.

ALUSÃO DIRETA A SARTRE (O MAIS POPULAR DOS FENOMENÓLOGOS DE ESTIRPE BURGUESA, OU PELO MENOS REPRESENTANTES DO LIBERALISMO INDIVIDUALISTA): “No momento em que estes [homens] as percebem [às situações-limite] não mais como uma ‘fronteira entre o ser e o nada’,¹ mas como uma ‘fronteira entre o ser e o mais ser’, se fazem cada vez mais críticos na sua ação,² ligada àquela percepção.”

¹ Expressão (em Sartre) que é esvaziada de sentido: a rigor, não quer dizer nada; apenas que vivemos em perpétuo devir. Falta aí uma concepção esperançosa da estabilidade de valores nobres, como a Idéia em Platão. Tendência ao niilismo e ao absurdo.

² O que os olavistas ou “os idiotas no meio do caminho” chamariam de “perigo vermelho”. Bem vermelho – e inevitável! Não importa o nome que dêem. O homem está fadado à liberdade é uma frase famosa de Sartre, mas talvez interpretada na verve pessimista de sua época. A verdade é que o homem está fadado a nunca querer o nada, destarte ele agora quer alguma coisa, enjoou do nada, e só pode querer mais do ser, ser mais, como no jargão freireano.

O OLAVISMO: “A tendência então, dos primeiros, [os que servem, negam e freiam –porque até o senhor nega e freia o homem, e a si mesmo, ao não compreender a dialética do senhor-escravo] é vislumbrar no inédito viável, ainda como inédito viável, uma ‘situação-limite’ ameaçadora [Cuba, Venezuela, a União Soviética que vence a Guerra Fria, etc., ‘o Brasil que não queremos’, etc.] que, por isto mesmo, precisa não concretizar-se.” Defendem a pátria e a família cristã para que os radicais não mudem a ancestralidade primitiva dada desde o sempre.

a investigação da temática significativa”

Temas de caráter universal, contidos na unidade epocal mais ampla, que abarca toda uma gama de unidades e subunidades, continentais, regionais, nacionais etc., diversificadas entre si. Como tema fundamental desta unidade mais ampla, que poderemos chamar ‘nossa época’, se encontra, a nosso ver, o da libertação, que indica o seu contrário, o tema da dominação. É este tema angustiante que vem dando à nossa época o caráter antropológico a que fizemos referência anteriormente.” A descoberta do ser-no-mundo implica na tentativa da execução da tarefa da libertação.

O PROBLEMA DO TERCEIRO MUNDO (nomenclatura já em desuso pelas forças dominantes, pois ela escancara o problema): “Em círculos menos amplos, nos deparamos com temas e ‘situações-limite’, característicos de sociedades de um mesmo continente ou de continentes distintos, que têm nestes temas e nestas ‘situações-limite’ similitudes históricas.”

“‘situação-limite’ do subdesenvolvimento, ao qual está ligado o problema da dependência, é a fundamental característica do Terceiro Mundo.” Por incrível que pareça, citei o TERCEIRO MUNDO antes de ler essa passagem. Sinal de que Freire e eu estamos sintonizados. O momento em que o princípio da soberania de todos os povos passa a ser questionado pelas nações que não lideram a geopolítica.

Em círculo mais restrito, observaremos diversificações temáticas, dentro de uma mesma sociedade, em áreas e subáreas em que se divide, todas, contudo, em relação com o todo de que participam. (…) Em uma unidade nacional mesma, encontramos a contradição da ‘contemporaneidade do não-coetâneo’.” Os dois Brasis dentro do Brasil. As regiões norte e nordeste; o centro-oeste (capital do poder, porém agrário); o sul e sudeste, motores industrais, e no entanto¹ reacionários.

¹ Ou melhor: e por isso mesmo reacionários, pois vêem a possibilidade da perda relativa de influência no jogo total.

Nas subunidades referidas, os temas de caráter nacional podem ser ou deixar de ser captados em sua verdadeira significação, ou simplesmente podem ser sentidos. Às vezes, nem sequer são sentidos.” Desde Paulo Freire até o presente a subunidade temática é a mesma, mas a postura diante dela sofre flutuações. Os oprimidos intelectualizados sentem o problema ‘mais cedo’. As elites contra-atacam. O povo passa quase inconscientemente pela época (mesmo que continuamente oprimido, mais oprimido que o oprimido intelectualizado, inclusive, naturalizando sua própria opressão). Estamos no ponto em que há discussão aberta sobre essa temática; e os contrários ao desenvolvimento da luta contra a opressão negam o problema (literalmente o campo negacionista).

a existência de uma ‘situação-limite’ de opressão em que os homens se encontram mais imersos que emersos.” Virada (emersão > imersão): O “CHEGA DE POLARIZAÇÃO” midiático como mensagem desesperada dos donos do poder tentando “puxar o freio de mão” de uma situação ou desafio já lançados no horizonte: a polarização é inevitável, o crescimento da esquerda organizada diante da opressão a desencadeia.

faltando aos homens uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da mesma totalidade, não podem conhecê-la.” Discurso popular inócuo: não gosto de política; todos os políticos são corruptos; sou indiferente a quem está sazonalmente no poder, etc.

lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do contexto para, em seguida, separarem ou isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja cisão voltariam com mais claridade à totalidade analisada.” É o sociólogo (para citar o meu exemplo) que capta a realidade presente de modo crítico. O povo é um pólo passivo no presente. Não é ‘na escola’ que a sociologia (ou as humanidades) consegue(m) ‘abrir os olhos da população’, pois a sociologia (e as disciplinas-irmãs) está(ão) inscrita(s) ela(s) mesma(s) na educação bancária que combate. O marxismo é adverso ao conteudismo didático-pedagógico do modelo atual.

…insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo.” Negrito em ‘começa’!

se faz indispensável que a sua busca se realize através da abstração.” “A descodificação da situação existencial provoca esta postura normal, que implica um partir abstratamente até o concreto; que implica uma ida das partes ao todo e uma volta deste às partes, que implica um reconhecimento do sujeito no objeto (a situação existencial concreta)¹ e do objeto como situação em que está o sujeito.²”

¹ Sou um trabalhador/desempregado: faço parte de estatísticas.

² O capitalismo é criação do homem e inter-relação entre homens. Não é um sistema inerte e imutável.

cisão ou descrição da situação: “a tendência dos indivíduos é dar o passo da representação da situação (codificação) à situação concreta mesma em que e com que se encontram. § Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem a comportar-se em face de sua realidade objetiva da mesma forma, do que resulta que deixe de ser ela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio ao qual os homens têm que responder.”

percepção fatalista”, “percepção estática”, “percepção dinâmica” TEMAS GERADORES

Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue a expressar concretamente uma temática geradora, o que pode parecer inexistência de temas sugere, pelo contrário, a existência de um tema dramático: o tema do silêncio.” A resposta da maioria é a adaptação (mercado de trabalho, família, ‘despreocupação’ com o que está ‘em tese’ fora da ‘órbita individual’, que aliás é apenas um construto da visão de mundo individual). Por isso o praticante da práxis (pensamento e ação) é chamado pejorativamente de ativista ou militante. Quando na verdade o puro pensador ou o puro agitador seriam protótipos – se é que realizáveis – indesejáveis. O ativista – o crítico da esquerda, ‘progressista’ – é aquele que age sobre o mundo em postura e com caráter transformadores.

Poderá dizer-se que o fato de serem os homens do povo, tanto quanto os investigadores, sujeitos da busca de sua temática significativa, sacrifica a objetividade da investigação. Que os achados já não serão ‘puros’ porque terão sofrido uma interferência intrusa. No caso, em última análise, daqueles que são os maiores interessados — ou devem ser — em sua própria educação.

Isto revela uma consciência ingênua da investigação temática, para a qual os temas existiriam em sua pureza objetiva e original, fora dos homens, como se fossem coisas.” Estágio atual da luta de classes, confinada aos eruditos. Isso ainda é Francis Bacon (1561-1626)!

É através dos homens que se expressa a temática significativa e, ao expressar-se, num certo momento, pode já não ser, exatamente, o que antes era, desde que haja mudado sua percepção dos dados objetivos aos quais os temas se acham referidos.” É dessa forma que o átomo de Demócrito já não é o átomo de Niels-Bohr (Nobel de Física de 1922), i.e., o homem (o físico contemporâneo) não o enxerga como a menor unidade da matéria, mas como partícula dual (matéria e luz). Nesse “simples ato” (em verdade uma revolução epistemológica) o homem acaba de transformar a natureza; embora não tenha modificado de forma alguma a realidade ipsis literis (o átomo sempre foi dual), para ele agora o átomo é dual. Longe de ser uma curiosidade de pé de página, essa descoberta ajudou a reconfigurar as forças militares e ameaçou a vida na Terra num intervalo de poucas décadas.

Assim como não é possível — o que salientamos no início deste capítulo — elaborar um programa a ser doado ao povo, também não o é elaborar roteiros de pesquisa do universo temático a partir de pontos prefixados pelos investigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos da investigação.” Não existe o investigador social que investiga os fatos sociais (“os fatos sociais são coisas”, disse Durkheim, ultrapassado). Existimos “nós”, os homens. “Investigadores profissionais e povo, nesta operação simpática, que é a investigação do tema gerador, são ambos sujeitos deste processo.”

O investigador da temática significativa que, em nome da objetividade científica, transforma o orgânico em inorgânico, o que está sendo no que é, o vivo no morto, teme a mudança.” A decadência do Ocidente não deve ser combatida ou refreada, mas aprofundada, diz Nietzsche. Ela é sempre a aurora de novas culturas, mais frescas e arejadas.

Pensar que não se dá fora dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e sempre referido à realidade.” Antropologia: retorno aos homens. Mitologia: estudo dos enredos originários. Religião enquanto saber: reanimação do transcendental perdido no Ocidente. “A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar. E se seu pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se faz no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação.”

a inserção [contrário de imersão? Confesso que aqui P.F. se torna confuso…]é um estado maior que a emersão e resulta da conscientização da situação. É a própria consciência histórica.” A emersão sendo, portanto, apenas o início da compreensão crítica da história, ‘semi-consciência’ histórica…

Enquanto na prática ‘bancária’ da educação, antidialógica por essência, por isto, não-comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é ‘depositado’, se organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram seus temas geradores.”

A tarefa do educador dialógico é, trabalhando em equipe interdisciplinar este universo temático recolhido na investigação, [caráter coletivo totalmente ausente da escola hoje] devolvê-lo, como problema, não como dissertação, aos homens de quem recebeu.” Dissertação: algo referendado, exatamente como o Papa referenda qualquer decisão inferior de bispo.

Se, na etapa da alfabetização, a educação problematizadora e da comunicação busca e investiga a ‘palavra geradora’,¹ na pós-alfabetização, busca e investiga o tema gerador.”

¹ Referência exclusiva aos campos da lingüística e psicologia. Questão de somenos importância: métodos de alfabetização do homem ainda incapaz da codificação da linguagem escrita, levando em conta a cultura a que pertence o alfabetizado.

Que fazermos, por exemplo, se temos a responsabilidade de coordenar um plano de educação de adultos em uma área camponesa, que revele, inclusive, uma alta porcentagem de analfabetismo? O plano incluirá a alfabetização e a pós-alfabetização. Estaríamos, portanto, obrigados a realizar tanto a investigação das palavras geradoras quanto a dos temas geradores, à base de que teríamos o programa para uma e outra etapas do plano.”

MESMO CÓDIGO DE ÉTICA DA ETNOGRAFIA: “É que, neste encontro, os investigadores necessitam obter que um número significativo de pessoas aceite uma conversa informal com eles, em que lhes falarão dos objetivos de sua presença na área. Na qual dirão o porquê, o como e o para quê da investigação que pretendem realizar e que não podem fazê-lo se não se estabelece uma relação de simpatia e confiança mútuas.”

Uma série de informações sobre a vida na área, necessárias à sua compreensão, terá nestes voluntários [<tutores>, nativos] os seus recolhedores. Muito mais importante, contudo, que a coleta destes dados, é sua presença ativa na investigação.”

A maneira de conversar dos homens; a sua forma de ser. O seu comportamento no culto religioso, no trabalho. Vão registrando as expressões do povo; sua linguagem, suas palavras, sua sintaxe, que não é o mesmo que sua pronúncia defeituosa, mas a forma de construir seu pensamento.”

Esta descodificação ao vivo implica, necessariamente, que os investigadores, em sua fase, surpreendam a área em momentos distintos. É preciso que a visitem em horas de trabalho no campo; que assistam a reuniões de alguma associação popular, observando o procedimento de seus participantes, a linguagem usada, as relações entre diretoria e sócios; o papel que desempenham as mulheres, os jovens. É indispensável que a visitem em horas de lazer; que presenciem seus habitantes em atividades esportivas; que conversem com pessoas em suas casas, registrando manifestações em torno das relações marido-mulher, pais-filhos; afinal, que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para esta compreensão primeira da área.”

Poderíamos pensar que, nesta primeira etapa da investigação, ao se apropriarem, através de suas observações, dos núcleos centrais daquelas contradições, os investigadores já estariam capacitados para organizar o conteúdo programático da ação educativa. Realmente, se o conteúdo desta ação reflete as contradições, indiscutivelmente estará constituído da temática significativa da área.

Não tememos, inclusive, afirmar que a margem de acerto para a ação que se desenvolvesse a partir destes dados seria muito mais provável que a dos conteúdos resultantes das programações verticais.

Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual os investigadores se deixem seduzir.

Na verdade, o básico, a partir da inicial percepção deste núcleo de contradições, entre as quais estará incluída a principal da sociedade como uma unidade epocal maior, é estudar em que nível de percepção delas se encontram os indivíduos da área.

No fundo, estas contradições se encontram constituindo ‘situações-limite’, envolvendo temas e apontando tarefas.

Se os indivíduos se encontram aderidos a estas ‘situações-limite’, impossibilitados de ‘separar-se’ delas, o seu tema a elas referido será necessariamente o do fatalismo e a ‘tarefa’ a ele associada é a de quase não terem tarefa.” A velha tarefa de resignação (mortos por dentro)!

Por isto é que, embora as ‘situações-limite’ sejam realidades objetivas e estejam provocando necessidades nos indivíduos, se impõe investigar, com eles, a consciência que delas tenham.” Normalmente pessoas de um vilarejo pobre de um país com áreas menos pobres sonham em ‘ir embora’ do local; para eles isso é o ‘crescer na vida’…

Uma ‘situação-limite’, como realidade concreta, pode provocar em indivíduos de áreas diferentes, e até de subáreas de uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação programática para o seu desvelamento.

Daí que a preocupação básica dos investigadores deva centrar-se no conhecimento do que Goldmann chama de ‘consciência real’ (efetiva) e ‘consciência máxima possível’.

Real consciousness is the result of the multiple obstacles and deviations that the different factors of empirical reality put into opposition and submit for realization by this potential consciousness. Daí que, ao nível da ‘consciência real’, os homens se encontrem limitados na possibilidade de perceber mais além das ‘situações-limite’,

o que chamamos de ‘inédito viável’.” O inédito viável do ocidente por inteiro é o que todo o mundo precisa desvendar junto. O inédito viável de uma pequena comunidade pode quem sabe ser elucidada pelos moradores locais com a intermediação de investigadores aptos. Acima eu havia pensado no inédito viável global, como bom filósofo da crise!

Por isto é que, para nós, o ‘inédito viável’ (que não pode ser apreendido no nível da ‘consciência real’ ou efetiva [um só indivíduo, ou um grupo de forasteiros, ou a coletividade nativa deixada ‘sem iluminação’]) se concretiza na ‘ação editanda’, cuja viabilidade antes não era percebida.” Resultado do trabalho etnográfico bem-feito.

A ‘consciência possível’ parece poder identificar-se com o que Nicolaj chama de ‘soluções praticáveis despercebidas’ (nosso ‘inédito viável’), em oposição às ‘soluções praticáveis percebidas’ e às ‘soluções efetivamente realizadas’, [plano mais baixo] que correspondem [as duas últimas nomenclaturas] à ‘consciência real’.”

Esta é a razão por que o fato dos investigadores, na primeira etapa da investigação, terem chegado à apreensão mais ou menos aproximada do conjunto de contradições, não os autoriza [ainda] a pensar na estruturação do conteúdo programático da ação educativa. § Até então, esta visão é deles ainda, e não a dos indivíduos em face de sua realidade.”

A segunda fase da investigação começa precisamente quando os investigadores, com os dados que recolheram, chegam à apreensão daquele conjunto de contradições.”

Na medida em que as codificações (pintadas ou fotografadas e, em certos casos, preferencialmente fotografadas) são o objeto que, mediatizando os sujeitos descodificadores, se dá à sua análise crítica, sua preparação deve obedecer a certos princípios que são apenas os que norteiam a confecção das puras ajudas visuais.” Se eu fosse obrigado a desenhar, sairia uma obra de arte rupestre!

Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessariamente, devem representar situações conhecidas pelos indivíduos cuja temática se busca, o que as faz reconhecíveis por eles, possibilitando, desta forma, que nelas se reconheçam.

Não seria possível, nem no processo da investigação, nem nas primeiras fases do que a ele se segue, o da devolução da temática significativa como conteúdo programático, propor representações de realidades estranhas aos indivíduos.” Freire pede uma suspensão do juízo para que o investigador evite neste momento comparações entre sua própria realidade e a da comunidade que investiga.

NEM FALAR UM PORTUGUÊS TAXATIVO E BUROCRÁTICO DEMAIS, NEM GREGO! “Igualmente fundamental para a sua preparação é a condição de não poderem ter as codificações, [todos os produtos culturais sendo interpretados] de um lado, seu núcleo temático demasiado explícito; de outro, demasiado enigmático. No primeiro caso, correm o risco de transformar-se em codificações propagandísticas, em face das quais os indivíduos não têm outra descodificação a fazer, [Diretrizes do MEC: não! O MEC, a instância burocrática mais afastada, ‘não sabe de nada’ neste momento! Essa é a razão precípua de haver um investigador in loco fazendo o trabalho de base, i.e., construindo o conteúdo programático horizontalmente, previamente a uma suposta programática vertical/holística, digamos, de zonas rurais do país inteiro, ou de uma região inteira do país] senão a que se acha implícita nelas, de forma dirigida. [dirigir o investigado a confirmar suas próprias hipóteses, procedimento do ‘dominador’] No segundo, o risco de fazer-se um jogo de adivinhação ou ‘quebra-cabeça’.”

As codificações não são slogans, são objetos cognoscíveis” Slogans, termo publicitário, nasce da política: condensa idéias complexas em poucas palavras, sempre retóricas. Seria poluir toda a pesquisa.

as codificações, na organização de seus elementos constituintes, devem ser uma espécie de ‘leque temático’. Desta forma, na medida em que sobre elas os sujeitos descodificadores incidam sua reflexão crítica, irão ‘abrindo-se’ na direção de outros temas.” Os fascistas não gostam de leques, gostam de rolos compressores.

[Ora,] no processo da descodificação os indivíduos, exteriorizando sua temática, explicitam sua ‘consciência real’”

Na medida em que, ao fazê-lo, vão percebendo como atuavam ao viverem a situação analisada, chegam ao que chamamos antes de percepção da percepção anterior. § Ao terem a percepção de como antes percebiam, percebem diferentemente a realidade, e, ampliando o horizonte do perceber, mais facilmente vão surpreendendo, na sua ‘visão de fundo’,¹ as relações dialéticas entre uma dimensão e outra da realidade.”

¹ Visão de fundo, termo já usado anteriormente mas não citado nestes “melhores momentos” do livro, seria uma espécie de leitmotiv do indivíduo que conecta sua consciência real à capacidade de, via práxis, atingir uma consciência do inédito viável. A ação editanda de Freire nada mais é que esta práxis, no âmbito da pedagogia de campo (da pedagogia etnográfica, não conotando ‘campo’ vs. cidade, para esclarecer).

A nova percepção e o novo conhecimento, cuja formação já começa nesta etapa da investigação, se prolongam, sistematicamente, na implantação do plano educativo, transformando o ‘inédito viável’ na ‘ação editanda’, com a superação da ‘consciência real’ pela ‘consciência máxima possível’.” Consciência máxima possível não é uma expressão de Freire, mas podemos igualá-la, pelo menos num momento inicial ao inédito viável. Não gosto do sufixo –máxima possível porque não é possível (com o perdão do trocadilho!) determinar o impossível, a menos que sejamos oniscientes, ainda mais durante o desenrolar do processo.

Neste sentido, um jovem chileno, Gabriel Bode, que há mais de 2 anos trabalha com o método na etapa de pós-alfabetização, trouxe uma contribuição da mais alta importância. § Na sua experiência, observou que os camponeses somente se interessavam pela discussão quando a codificação dizia respeito, diretamente, a aspectos concretos de suas necessidades sentidas. Qualquer desvio na codificação, como qualquer tentativa do educador de orientar o diálogo, na descodificação, para outros rumos que não fossem os de suas necessidades sentidas, provocavam o seu silêncio e o seu indiferentismo.” O mais apressado dos filisteus (ou o europeu médio do séc. XVIII) diria: camponeses são animais incapazes do pensamento.

Por outro lado, observava que, embora a codificação se centrasse nas necessidades sentidas, os camponeses não conseguiam, no processo de sua análise, fixar-se, ordenadamente, na discussão, ‘perdendo-se’, não raras vezes, sem alcançar a síntese.” Quão genial não foi Dostoievsky em captar o espírito camponês russo em pleno séc. XIX!

Faltava-lhes, diremos nós, a percepção do ‘inédito viável’ mais além das ‘situações-limite’, geradoras de suas necessidades.” Mas isso é o óbvio: essa é a exceção da exceção, o nível mais alto da decodificação. O sujeito plenamente liberto da alienação.

Desta forma, [Gabriel Bode] resolveu experimentar a projeção simultânea de situações, e a maneira como desenvolveu seu experimento é que constitui a contribuição indiscutivelmente importante que trouxe.”

experimento bodiano (não confundir com bodiniano!):

1. codificação a mais simples (a 1ª realizada) da situação existencial do nativo.

2. após abrir o leque (com mais codificações), ele obtém um arcabouço que chama de codificações auxiliares. núcleo+periferia do “leque”

3. é pela ligação das codificações auxiliares que os sujeitos (os nativos) não perdem de vista a codificação nuclear ou simples, e continuam engajados no diálogo. atingem uma melhor percepção de sua situação existencial.

4. momento da síntese (espécie de aprimoramento do ‘leque’), feito pelo pesquisador com os nativos.

No fundo, o grande achado de Gabriel Bode está em que ele conseguiu propor à cognoscitividade dos indivíduos, através da dialeticidade entre a codificação ‘essencial’ e as ‘auxiliares’, o sentido da totalidade. Os indivíduos imersos na realidade, com a pura sensibilidade de suas necessidades, emergem dela e, assim, ganham a razão das necessidades.” Primeiro nível de abstração obtido com sucesso. Ainda é uma consciência real (nível mais baixo), mas mais fortalecida.

Preparadas as codificações, estudados pela equipe interdisciplinar todos os possíveis ângulos temáticos nelas contidos, iniciam os investigadores a terceira fase da investigação. Nesta, voltam à área para inaugurar os diálogos descodificadores, nos ‘círculos de investigação temática’.”

vão sendo gravadas as discussões que serão, no que se segue, analisadas pela equipe interdisciplinar.” Primeiro as fotos, agora os registros de áudio.

presença crítica de representantes do povo desde seu começo até sua fase final, a da análise da temática encontrada, que se prolonga na organização do conteúdo programático da ação educativa, como ação cultural libertadora.

A estas reuniões de descodificação nos ‘círculos de investigação temática’, além do investigador como coordenador auxiliar da descodificação, assistirão mais 2 especialistas — um psicólogo e um sociólogo — cuja tarefa é registrar as reações mais significativas ou aparentemente pouco significativas dos sujeitos descodificadores.”

os participantes do ‘círculo de investigação temática’ vão extrojetando, pela força catártica da metodologia, uma série de sentimentos, de opiniões, de si, do mundo e dos outros, que possivelmente não extrojetariam em circunstâncias diferentes.”

DISCURSO-FETICHE: “Numa das investigações realizadas em Santiago (esta infelizmente não concluída), ao discutir um grupo de indivíduos residentes num ‘cortiço’ (conventillo) uma cena em que apareciam um homem embriagado, que caminhava pela rua, e, em uma esquina, 3 jovens que conversavam, os participantes do círculo de investigação afirmavam que ‘aí apenas é produtivo e útil à nação o borracho que vem voltando para casa, depois do trabalho, em que ganha pouco, preocupado com a família, a cujas necessidades não pode atender. É o único trabalhador. É um trabalhador decente como nós, que também somos borrachos’.”

O interesse do investigador, o psiquiatra Patrício Lopes, a cujo trabalho fizemos referência no nosso ensaio anterior, era estudar aspectos do alcoolismo. Provavelmente, porém, não haveria conseguido estas respostas se se tivesse dirigido àqueles indivíduos com um roteiro de pesquisa elaborado por ele mesmo. Talvez, ao serem perguntados diretamente, negassem, até mesmo que tomavam, vez ou outra, o seu trago. Frente, porém, à codificação de uma situação existencial, reconhecível por eles e em que se reconheciam, em relação dialógica entre si e com o investigador, disseram o que realmente sentiam.

Há dois aspectos importantes nas declarações destes homens. De um lado, a relação expressa entre ganhar pouco, sentirem-se explorados, com um ‘salário que nunca alcança’, e se embriagarem. Embriagarem-se como uma espécie de fuga à realidade, como tentativa de superação da frustração do seu não-atuar. Uma solução, no fundo, autodestrutiva, necrófila. De outro, a necessidade de valorizar quem bebe. Era o ‘único útil à nação, porque trabalhava, enquanto os outros o que faziam era falar mal da vida alheia’.” Estima de alcoviteiro.

Imaginemos, agora, o insucesso de um educador do tipo que Niebuhr chama de ‘moralista’, que fosse fazer prédicas a esses homens contra o alcoolismo, [padrecos] apresentando-lhes como exemplo de virtude o que, para eles, não é manifestação de virtude.” J., a abstêmia religiosa até o fanatismo, seria massacrada nesta comunidade. E quem há de dizer quem no caso é mais cristão? Um dos cristãos? Dificilmente. É o mesmo que auto-declaração: eu posso me autodeclarar branco, pardo, amarelo – não é exatamente um indício de verdade!

Em outra experiência, de que participamos, esta, com camponeses, observamos que, durante toda a discussão de uma situação de trabalho no campo, a tônica do debate era sempre a reivindicação salarial e a necessidade de se unirem, de criarem seu sindicato para esta reivindicação, não para outra. Discutiram 3 situações neste encontro e a tônica foi sempre a mesma — reivindicação salarial e sindicato para atender a esta reivindicação. Imaginemos, agora, um educador que organizasse o seu programa ‘educativo’ [vertical, imposto a priori] para estes homens e, em lugar da discussão desta temática, lhes propusesse a leitura de textos que, certamente, chamaria de ‘sadios’, e nos quais se fala, angelicalmente, de que ‘a asa é da ave’.” Eu mesmo não entendi patavinas da referência!

E isto é o que se faz, em termos preponderantes, na ação educativa como na política, porque não se leva em conta que a dialogicidade da educação começa na investigação temática.” Textos de apoio que nada apoiam. Muletas fendidas.

A sua última etapa [quarta] se inicia quando os investigadores, terminadas as descodificações nos círculos, dão começo ao estudo sistemático e interdisciplinar de seus achados.”

Estes temas devem ser classificados num quadro geral de ciências, sem que isto signifique, contudo, que sejam vistos, na futura elaboração do programa, como fazendo parte de departamentos estanques.” Ou não chamariam um psicólogo e um sociólogo para a equipe.

O tema do desenvolvimento, por exemplo, ainda que situado no domínio da economia, não lhe é exclusivo.” Isso é o que nenhum doutor economista de Harvard está maduro para aceitar. Ele precisa ser submetido urgentemente à “educação problemática (crítica) pós-alfabetização” delineada por Paulo Freire.

os temas que foram captados dentro de uma totalidade jamais serão tratados esquematicamente. Seria uma lástima se, depois de investigados na riqueza de sua interpenetração com outros aspectos da realidade, ao serem ‘tratados’, [autocensurados] perdessem esta riqueza, esvaziando-se de sua força, na estreiteza dos especialismos.”

Feita a delimitação temática, caberá a cada especialista, dentro de seu campo, apresentar à equipe interdisciplinar o projeto de ‘redução’ de seu tema. No processo de ‘redução’ deste, o especialista busca os seus núcleos fundamentais que, constituindo-se em unidades de aprendizagem e estabelecendo uma sequência entre si, dão a visão geral do tema ‘reduzido’.”

Neste esforço de ‘redução’ da temática significativa, a equipe reconhecerá a necessidade de colocar alguns temas fundamentais que, não obstante, não foram sugeridos pelo povo, quando da investigação. (…) Se a programação educativa é dialógica, isto significa o direito que também têm os educadores-educandos de participar dela, incluindo temas não-sugeridos. A estes, por sua função, chamamos ‘temas dobradiça’.” Não precisa chamar de nada. Essas nomenclaturas excessivas e esquemáticas só atrapalham…

O conceito antropológico de cultura é um destes ‘temas dobradiça’, que prendem a concepção geral do mundo que o povo esteja tendo ao resto do programa. Esclarece, através de sua compreensão, o papel dos homens no mundo e com o mundo, como seres da transformação e não da adaptação.” A argamassa da ‘porra-toda’.

a escolha do canal visual, pictórico ou gráfico, depende não só da matéria a codificar, mas também dos indivíduos a quem se dirige. Se têm ou não experiência de leitura.”

Figuremos, entre outros, o tema do desenvolvimento. A equipe procuraria dois ou mais especialistas (economistas),¹ inclusive de escolas diferentes, e lhes falaria de seu trabalho, convidando-os a dar uma contribuição que seria a entrevista em linguagem acessível sobre tais pontos.”

¹ Um neoliberal e um não-neurodivergente, no caso. O primeiro dificilmente conseguiria traduzir suas abobrinhas em que nem ele mesmo acredita em ‘linguagem acessível’.

Se é um professor de universidade, ao declinar-se sua condição de professor universitário já se poderia discutir com o povo o que lhe parecem as universidades de seu país. Como as vê. O que delas espera. O grupo estaria sabendo que, após ouvir a entrevista, seria discutido o seu conteúdo, o qual passaria a funcionar como uma codificação auditiva. [não-autoritária sobre o contéudo programático, nem definitiva]

Do debate realizado, faria posteriormente a equipe um relatório ao especialista em torno de como o povo reagiu à sua palavra.” Prevejo os egos de vidro se estilhaçando… “Desta maneira, se estariam vinculando intelectuais, muitas vezes de boa vontade, mas, não-raro, alienados da realidade popular, a esta realidade. E se estaria também proporcionando ao povo conhecer e criticar o pensamento do intelectual.” O povo emitirá sempre comentários mais lúcidos. Será muito mais fácil a desalienação do povo do que a do economista de cátedra, cuja vida não mudará mesmo que participe voluntariamente (o que é utópico) de cem dessas experiências!

Como nas entrevistas gravadas, aqui também, antes de iniciar a leitura de artigo ou do capítulo do livro, se falaria de seu autor. Em seguida, se realizaria o debate em torno do conteúdo da leitura.”

Na linha do emprego destes recursos, parece-nos indispensável a análise do conteúdo dos editoriais da imprensa, a propósito de um mesmo acontecimento. Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo fato?” Mentira! No Brasil, todos os jornais se pronunciam em uníssono – e estão sempre errados!

PERIGOSÍSSIMO PARA O SISTEMA GLOBO! “Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, [creio que Freire escreveu antes da popularização da televisão nos lares] o faça não como mero paciente, como objeto dos ‘comunicados’ que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se.” O paradigma dos ‘comunicados’ permanece intocado nos podcasts de internet, infelizmente.

O primeiro trabalho dos educadores de base será a apresentação do programa geral da campanha a iniciar-se. Programa em que o povo se encontrará, de que não se sentirá estranho, pois que dele saiu.”

Como fazer, porém, no caso em que não se possa dispor dos recursos para esta prévia investigação temática, nos termos analisados?”

TUDO COMEÇA E TERMINA EM ANTROPOLOGIA… “Sejam homens camponeses ou urbanos, em programa de alfabetização ou de pós-alfabetização, o começo de suas discussões em busca de mais conhecer, no sentido instrumental do termo, é o debate deste conceito.”

Com a experiência que hoje temos, podemos afirmar que, bem-discutido o conceito de cultura, em todas ou em grande parte de suas dimensões, nos pode proporcionar vários aspectos de um programa educativo. Mas, além da captação, que diríamos quase indireta, de uma temática, na hipótese agora referida, podem os educadores, depois de alguns dias de relações horizontais com os participantes do ‘círculo de cultura’, perguntar-lhes diretamente:

Que outros temas ou assuntos poderíamos discutir além deste?

(…)

Admitamos que um dos membros do grupo diz: ‘Gostaria de discutir sobre o nacionalismo.’Assunção muito otimista! Esse termo, além de problemático (no sentido não-freireano!), dificilmente é evocado por pessoas ainda não-críticas, imersas na ‘realidade’ cotidiana.

(cont.)

“‘Muito bem (diria o educador, após registrar a sugestão, e acrescentaria): Que significa nacionalismo? Por que pode interessar-nos a discussão sobre o nacionalismo?’

É provável que, com a problematização da sugestão ao grupo, novos temas surjam. Assim, na medida em que todos vão se manifestando, o educador vai problematizando, uma a uma, as sugestões que nascem do grupo.”

Se, por exemplo, numa área em que funcionam 30 ‘círculos de cultura’, na mesma noite, todos os ‘coordenadores’ (educadores) procedem assim, terá a equipe central [um círculo de cultura ‘coordenador-geral’?] um rico material temático a estudar, dentro dos princípios descritos na primeira hipótese de investigação da temática significativa.” Não entendi a envergadura desses círculos de cultura. Estariam todos instalados no mesmo município? Ou um por município ou área? Pergunta quase retórica, já que Freire cita “numa área em que funcionam 30…” e depois arremata com “na mesma noite”. Mas é irreal imaginar sequer que tenhamos profissionais competentes em número para tal tarefa – por grande que seja o contingente de educadores de elite brasileiros. Território imenso – quase russo! E os ‘melhores’ estão provavelmente em outros vínculos empregatícios mais atrativos (o poder do Capital!), infelizmente…

O importante (…) é que (…) os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros.”

Ao contrário do Ensaio sobre a dádiva, aqui não é bom doar (enquanto educador): quem doa são os nativos, o professor é quem recebe o conteúdo programático (se seguir todos os passos acima).

Notas do capítulo (muitas referências bibliográficas)

(*) Sobre o “silêncio” como fracasso da educação crítica: “Não nos referimos, obviamente, ao silêncio das meditações profundas em que os homens, numa forma só aparente de sair do mundo, dele ‘afastando-se’ para ‘admirá-lo’ em sua globalidade, com ele, por isto, continuam. [‘a vida é bela’, mas só à distância, em muitos casos!] Daí que estas formas de recolhimento só sejam verdadeiras quando os homens nela se encontrem ‘molhados’ de realidade e não quando, significando um desprezo ao mundo, sejam maneiras de fugir dele, numa espécie de ‘esquizofrenia histórica’.” O lado anti-hindu de P.F.! Nota subscrita, porém, por Zaratustra.

(*) A AUTÊNTICA REVOLUÇÃO É UM PROJETO AMOROSO: “Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam na revolução, porque um ato criador e libertador, um ato de amor. Para nós, a revolução, que não se faz sem teoria da revolução, portanto, sem ciência, não tem nesta uma inconciliação com o amor. Pelo contrário, a revolução, que é feita pelos homens, o é em nome de sua humanização. Que leva os revolucionários a aderirem aos oprimidos, senão a condição desumanizada em que se acham estes?

Não é devido à deterioração a que se submete a palavra amor no mundo capitalista que a revolução vá deixar de ser amorosa, nem os revolucionários fazer silêncio de seu caráter biófilo. Guevara, ainda que tivesse salientado o ‘risco de parecer ridículo’, não temeu afirmá-lo. Déjeme decirle (declarou dirigindo-se a Carlos Quijano) a riesgo de parecer ridículo que el verdadero revolucionario es animado por fuertes sentimientos de amor. Es imposible pensar un revolucionario autentico, sin esta cualidad. Ernesto Guevara, Obra revolucionaria. México: Ediciones Era S.A., 1967, pp. 637-38.

(*) Pierre Furter, Educação e vida. Petrópolis: Vozes, 1966.

(*) « Em uma longa conversação com Malraux, declarou Mao: Vous savez que je proclame depuis longtemps: nous devons enseigner aux masses avec précision ce que nous avons reçu d’elles avec confusion. André Malraux, Anti-memoires. Paris: Gallimard, 1967, p. 531. Nesta afirmação de Mao está toda uma teoria dialógica de constituição do conteúdo programático da educação, que não pode ser elaborado a partir das finalidades do educador, do que lhe pareça ser o melhor para seus educandos.” E veja onde está a China hoje! E onde está o Brasil!

(*) “Pour établir une liaison avec les masses, nous devons conformer à leurs désirs. [Até mesmo quando Mao mais errou – na revolução cultural – a motivação de suas ações foi a mais nobre e popular possível] Dans tout travail pour les masses, nous devons partir de leurs besoins, et non de nos propres désirs, si louables soient-ils. Il arrive souvent que les masses aient objetivement besoin de telles ou telles transformations, mais que subjetivement, elles ne soient conscients de ce besoin, qu’elles n’aient ni la volonté ni le désir de les réaliser; dans ce cas, nous devons attendre avec patience; [e quem poderá acusar Mao de « mencheviquismo » ?] c’est seulement lorsque, à la suite de notre travail, les masses seront, dans leurs majorité, conscientes de la nécessité de ces transformations, lorsqu’elles auront la volonté et le désir de les faire aboutir, qu’on pourra les réaliser; sinon, l’on risque de se couper des masses. […] Deux principes doivent nous guider: premièrement, les besoins réels des masses et non les besoins nés de notre imagination; deuxièment, le désir librement exprimé par les masses, les resolutions qu’elles ont prises elles mêmes et non celles que nous prenons à leur place. Mao Tsé-Tung, ‘Le Front uni dans le travail culturel’, in Oeuvres choisies de Mao Tse-Toung. Pequim: Ed. du Peuple, 1966.Hmm, Mao me cai muito bem em francês. Depois desse par de declarações, estou disposto a adquirir sua obra nessa tradução!

(*) “é mais contraditório que homens verdadeiramente humanistas usem a prática ‘bancária’ da educação que homens de direita se empenhem num esforço de educação problematizadora. Na verdade é uma contradição meramente teórica. Estes são sempre mais coerentes — jamais aceitam uma pedagogia da problematização.” Nosso maior desafio é que a direita é sempre prejudicial. A esquerda é ora prejudicial, ora benéfica à própria esquerda. Somos uma minoria absoluta.

(*) “O prof. Álvaro Vieira Pinto analisa, com bastante lucidez, o problema das ‘situações-limite’, cujo conceito aproveita, esvaziando-o, porém, da dimensão pessimista que se encontra originariamente em Jaspers.” Normal!

(*) Karel Kosik, Dialética do concreto, 3ed., RJ: Paz e Terra, 1985.

(*) Hans Freyer, Teoría de la época actual, México: Fondo de Cultura Econ., 1958.

(*) O CAMPONÊS É NOSSO AMIGO METAFÍSICO, A CLASSE MÉDIA É O MAIOR DOS PROBLEMAS: “Esta forma de proceder se observa, não raramente, entre homens de classe média, ainda que diferentemente de como se manifesta entre camponeses. Seu medo da liberdade os leva a assumir mecanismos de defesa e, através de [ir]racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental e negam a realidade concreta. Em face de um problema cuja análise remete à visualização da ‘situação-limite’, cuja crítica lhes é incômoda, [a ascensão dos pobres, em resumo] sua tendência é ficar na periferia dos problemas, rechaçando toda tentativa de adentramento no núcleo mesmo da questão. Chegam, inclusive, a irritar-se quando se lhes chama a atenção para algo fundamental que explica o acidental ou o secundário, [ex: por que as cidades estão apinhadas de mendicantes] aos quais estão dando significação primordial.”

(*) Lucien Goldmann, The Human Sciences and Philosophy. Londres: The Chancer Press, 1969.

(*) André Nicolaj, Comportement économique et structures sociales. Paris: PUF, 1960.

(*) “Em cada ‘círculo de investigação’ deve haver um máximo de 20 pessoas, existindo tantos círculos quantos a soma de seus participantes atinja a da população da área ou da subárea em estudo.”

(*) EXPLICAÇÃO DA REDUÇÃO: “Na redução temática, que é a operação de ‘cisão’ dos temas enquanto totalidades, se buscam seus núcleos fundamentais, que são as suas parcialidades. Desta forma, ‘reduzir’ um tema é cindi-lo em suas partes para, voltando-se a ele como totalidade, melhor conhecê-lo.”

CAPÍTULO 4. A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA

Não é possível à liderança tomar os oprimidos como meros fazedores ou executores de suas determinações; como meros ativistas a quem negue a reflexão sobre o seu próprio fazer. Os oprimidos, tendo a ilusão de que atuam, na atuação da liderança, continuam manipulados exatamente por quem, por sua própria natureza, não pode fazê-lo. § Por isto, na medida em que a liderança nega a práxis verdadeira aos oprimidos, se esvazia, consequentemente, na sua.” Por uma <semi-ditadura do proletariado> ou uma <ditadura do semi-proletariado>?

Instala, com este proceder, uma contradição entre seu modo de atuar e os objetivos que pretende, ao não entender que, sem o diálogo com os oprimidos, não é possível práxis autêntica, nem para estes nem para ela.”

Na práxis revolucionária há uma unidade, em que a liderança — sem que isto signifique diminuição de sua responsabilidade coordenadora e, em certos momentos, diretora — não pode ter nas massas oprimidas o objeto de sua posse.”

admirar (quem admira termina por problematizar e criar) X adaptar-se

clima sectário”: “Do mesmo modo, uma liderança revolucionária, que não seja dialógica com as massas, ou mantém a ‘sombra’ do dominador ‘dentro’ de si e não é revolucionária, ou está redondamente equivocada e, presa de uma sectarização indiscutivelmente mórbida, também não é revolucionária.” Sectarização: corrosão do testemunho.

Se são levadas ao processo como seres ambíguos, metade elas mesmas, metade o opressor ‘hospedado’ nelas, e se chegam ao poder vivendo esta ambiguidade que a situação de opressão lhes impõe, terão, a nosso ver, simplesmente, a impressão de que chegaram ao poder.”

Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma exigência radical de toda revolução autêntica. Ela é revolução por isto. Dos golpes, seria uma ingenuidade esperar que estabelecessem diálogo com as massas oprimidas. Deles, o que se pode esperar é o engodo para legitimar-se ou a força que reprime.”

Se, na educação como situação gnosiológica, o ato cognoscente do sujeito educador (também educando) sobre o objeto cognoscível não morre, ou nele se esgota, porque, dialogicamente, se estende a outros sujeitos cognoscentes, de tal maneira que o objeto cognoscível se faz mediador da cognoscitividade dos dois, na teoria da ação revolucionária se dá o mesmo.”

Talvez se pense que, ao fazermos a defesa deste encontro dos homens no mundo para transformá-lo, que é o diálogo, estejamos caindo numa ingênua atitude, num idealismo subjetivista. § Não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os homens no mundo e com o mundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimem e classes oprimidas.”

Não há realidade histórica — mais outra obviedade — que não seja humana. Não há história sem homens, como não há uma história para os homens, mas uma história de homens que, feita por eles, também os faz, como disse Marx.”

Falsamente realistas seremos se acreditarmos que o ativismo, que não é ação verdadeira, é o caminho para a revolução.”

Por que não fenecem as elites dominadoras ao não pensarem com as massas? Exatamente porque estas são o seu contrário antagônico, a sua ‘razão’, na afirmação de Hegel já citada. Pensar com elas seria a superação de sua contradição. Pensar com elas significaria já não dominar.”

AUTOCONFISSÃO BURGUESA: “Por especial que pudesse ser em teoria o projeto de dar educação às classes trabalhadoras dos pobres, seria prejudicial para sua moral e sua felicidade; ensinaria a desprezar sua missão na vida, em lugar de fazer deles bons servos para a agricultura e outros empregos; em lugar de ensinar-lhes subordinação os faria rebeldes e refratários, como se pôs em evidência nos condados manufatureiros, habilitá-los-ia a ler folhetos sediciosos, livros perversos e publicações contra a cristandade; torná-los-ia insolentes para com seus superiores e, em poucos anos, se faria necessário à legislatura dirigir contra eles o braço forte do poder.” Mr. Giddy apud Niebuhr.

No fundo, o que o tal Mr. Giddy, citado por Niebuhr, queria, tanto quanto os de hoje, que não falam tão cínica e abertamente contra a educação popular, é que as massas não pensassem. Os Mr. Giddy de todas as épocas, enquanto classe opressora, ao não poderem pensar com as massas oprimidas, não podem deixar que elas pensem.”

ESTAMOS NUM HIATO ‘INTERESSANTE’ (EPISTEMOLOGICAMENTE FALANDO), AQUELE EM QUE OS OPRESSORES AINDA NÃO SABEM CAIR E OS REVOLUCIONÁRIOS NÃO SABEM SUBIR: “Não é o mesmo o que ocorre com a liderança revolucionária. Esta, ao não pensar com as massas, fenece. As massas são a sua matriz constituinte, não a incidência passiva de seu pensar.”

Enquanto o outro é um pensar de senhor, este é um pensar de companheiro. E só assim pode ser.” “Esta liderança, que emerge, ou se identifica com as massas populares, como oprimida também, ou não é revolucionária. § Assim é que, não pensar com elas para, imitando os dominadores, pensar simplesmente em torno delas, não se dando a seu pensar, é uma forma de desaparecer como liderança revolucionária.”

Enquanto, no processo opressor, as elites vivem da ‘morte em vida’ dos oprimidos e só na relação vertical entre elas e eles se autenticam, no processo revolucionário só há um caminho para a autenticidade da liderança que emerge: ‘morrer’ para reviver através dos oprimidos e com eles.

Na verdade, enquanto no primeiro é lícito dizer que alguém oprime alguém, no segundo, já não se pode afirmar que alguém liberta alguém, ou que alguém se liberta sozinho, mas os homens se libertam em comunhão.”

comunhão-com X esmagamento-dos

E o mundo não é um laboratório de anatomia nem os homens são cadáveres que devam ser estudados passivamente.” Infelizmente minha rotina é o sentir-me rato de laboratório.

O PROBLEMA DA ELITE <ANTI-SÓCRÁTICA>: “…deixar-se cair num dos mitos da ideologia opressora, o da absolutização da ignorância, que implica a existência de alguém que a decreta a alguém.”

MASTURBADORES HIERÁRQUICOS: “Quanto mais diz a palavra sem a palavra daqueles que estão proibidos de dizê-la, tanto mais exercita o poder e o gosto de mandar, de dirigir, de comandar. Já não pode viver se não tem alguém a quem dirija sua palavra de ordem.”

A liderança revolucionária (…) [n]ão tem sequer o direito de duvidar, por um momento, de que isto é mito. Não pode admitir, como liderança, que só ela sabe e que só ela pode saber — o que seria descrer das massas populares. Ainda quando seja legítimo reconhecer-se em um nível de saber revolucionário, em função de sua mesma consciência revolucionária, diferente do nível de conhecimento ingênuo das massas, não pode sobrepor-se a este, com o seu saber.”

Há os que pensam, às vezes, com boa intenção, mas equivocamente, ‘que sendo demorado o processo dialógico — o que não é verdade — se deve fazer a revolução sem comunicação, através dos comunicados’ e, depois de feita, então, se desenvolverá um amplo esforço educativo. ‘Mesmo porque’, continuam, ‘não é possível fazer educação antes da chegada ao poder. Educação libertadora’.”

Ao admitirem que não é possível uma forma de comportamento educativo-crítica antes da chegada ao poder por parte da liderança, negam o caráter pedagógico da revolução, como revolução cultural.” O problema da “revolução cultural” na China.

a chegada ao poder é apenas um momento, por mais decisivo que seja.”

Por isto é que, numa visão dinâmica e não estática da revolução, ela não tem um antes e um depois absolutos, de que a chegada ao poder seria o ponto de divisão.”

a contrarrevolução também é dos revolucionários que se tornam reacionários.”

MAO, On Contradictions’, in: Four Essays on Philosophy, 1968.

Gajo Petrovic, Marx in the Mid-Twentieth Century, 1967.

E, se não é possível o diálogo com as massas populares antes da chegada ao poder, porque falta a elas experiência do diálogo, também não lhes é possível chegar ao poder, porque lhes falta igualmente experiência dele. Precisamente porque defendemos uma dinâmica permanente no processo revolucionário, entendemos que é nesta dinâmica, na práxis das massas com a liderança revolucionária, que elas e seus líderes mais representativos aprenderão tanto o diálogo quanto o poder. Isto nos parece tão óbvio quanto dizer que um homem não aprende a nadar numa biblioteca, mas na água.

O diálogo com as massas não é concessão, nem presente, nem muito menos uma tática a ser usada, como a sloganização o é, para dominar. O diálogo, como encontro dos homens para a ‘pronúncia’ do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização.”

Destas considerações gerais, partamos, agora, para uma análise mais detida a propósito das teorias da ação antidialógica e dialógica.”

O primeiro caráter que nos parece poder ser surpreendido na ação antidialógica é a necessidade da conquista.” Gradação do paternalismo à tirania.

NAPOLEÃO NÃO PODERIA TER REVOLUCIONADO A EUROPA, COMO CÉSAR NÃO O FEZ COM ROMA: “O sujeito da conquista determina suas finalidades ao objeto conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído pelo conquistador. Este, por sua vez, imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser ambíguo.”

O desejo de conquista, talvez mais que o desejo, a necessidade da conquista, acompanha a ação antidialógica em todos os seus momentos.”

os opressores se esforçam por matar nos homens a sua condição de ‘ad-miradores’ do mundo.¹ Como não podem consegui-lo, em termos totais, é preciso, então, mitificar o mundo.”

¹ Ir ao encontro do mundo, até o.

MUNDO-VERDADE DO FALSO MOEDEIRO: “Daí que, na ação da conquista, não seja possível apresentar o mundo como problema, mas, pelo contrário, como algo dado, como algo estático, a que os homens se devem ajustar.”

A falsa ‘ad-miração’ não pode conduzir à verdadeira práxis”

O mito, por exemplo, de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade.”

O mito de que esta <ordem> respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de todo apreço.”

o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: ‘doce de banana e goiaba’ é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica.”

O mito do direito de todos à educação, quando o número de brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o dos que nelas conseguem permanecer é chocantemente irrisório.”

O mito da igualdade de classe, quando o <sabe com quem está falando?> é ainda uma pergunta dos nossos dias.”

O mito do heroísmo das classes opressoras, como mantenedoras da ordem que encarna a ‘civilização ocidental e cristã’, que elas defendem da ‘barbárie materialista’.”

O mito da propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana, desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores.”

Os conteúdos e os métodos da conquista variam historicamente, o que não varia, enquanto houver elite dominadora, é esta ânsia necrófila de oprimir.”

Na medida em que as minorias, submetendo as maiorias a seu domínio, as oprimem, dividi-las e mantê-las divididas são condição indispensável à continuidade de seu poder.” “Conceitos, como os de união, de organização, de luta, são timbrados, sem demora, como perigosos. E realmente o são – mas para os opressores.”

Estas formas focalistas de ação, intensificando o modo focalista de existência das massas oprimidas, sobretudo rurais, dificultam sua percepção crítica da realidade e as mantêm ilhadas da problemática dos homens oprimidos de outras áreas em relação dialética com a sua.” Por uma crítica à pedagogia estrita do campo. Insulamento das culturas indígenas a somente ‘eles mesmos’, etc.

AS <ESCOLAS DE LÍDERES>: “No momento em que, depois de retirados da comunidade, a ela voltam, com um instrumental que antes não tinham, ou usam este para melhor conduzir as consciências dominadas e imersas, ou se tornam estranhos à comunidade, ameaçando, assim, sua liderança.”

A harmonia viável e constatada só pode ser a dos opressores entre si. Estes, mesmo divergentes e, até em certas ocasiões, em luta por interesses de grupos, se unificam, imediatamente, ante uma ameaça à classe.”

Sua interferência nos sindicatos, favorecendo certos ‘representantes’ da classe dominada que, no fundo, são seus representantes, e não de seus companheiros; a ‘promoção’ de indivíduos que, revelando certo poder de liderança, podiam significar ameaça e que, ‘promovidos’, se tornam ‘amaciados’; a distribuição de benesses para uns e de dureza para outros, tudo são formas de dividir para manter a ‘ordem’ que

lhes interessa.” “A perda do emprego e o seu nome numa ‘lista negra’, que significa portas que se fecham a eles para novos empregos, são o mínimo que lhes pode suceder.”

Desta maneira, para dividir, os necrófilos se nomeiam a si mesmos biófilos e aos biófilos, de necrófilos. A história, contudo, se encarrega sempre de refazer estas ‘nomeações’. § Hoje, apesar de a alienação brasileira continuar chamando o Tiradentes de inconfidente e ao movimento libertador que encarnou, de Inconfidência, o herói nacional não é o que o chamou de bandido e o mandou enforcar e esquartejar, e espalhar pedaços de seu corpo sangrando pelas vilas assustadas, como exemplo. O herói é ele. A história rasgou o ‘título’ que lhe deram e reconheceu o seu gesto.”

E os pactos somente se dão quando estas [massas oprimidas], mesmo ingênuas, emergem no processo histórico e, com sua emersão, ameaçam as elites dominantes.”

Toda política de esquerda se apoia nas massas populares e depende de sua consciência. Se vier a confundi-la, perderá as raízes, pairará no ar à espera da queda inevitável, ainda quando possa ter, como no caso brasileiro, a ilusão de fazer a revolução pelo simples giro à volta do poder” Weffort, in: Política e revolução social no Brasil, 1965.

Daí que o populismo se constitua, como estilo de ação política, exatamente quando se instala o processo de emersão das massas em que elas passam a reivindicar sua participação, mesmo que ingenuamente.”

O PERIGO PARA O STATUS QUO CHAMADO LULA: “Somente quando o líder populista supera o seu caráter ambíguo e a natureza dual de sua ação e opta decididamente pelas massas, deixando assim de ser populista, renuncia à manipulação e se entrega ao trabalho revolucionário de organização. Neste momento, em lugar de mediador entre massas e elites, é contradição destas, o que leva as elites a arregimentar-se para freá-lo tão rapidamente quanto possam.”

Venho dizer que, neste momento, o governo ainda está desarmado de leis e de elementos concretos de ação imediata para a defesa da economia do povo. É preciso, pois, que o povo se organize, não só para defender seus próprios interesses, mas também para dar ao governo o ponto de apoio indispensável à realização dos seus propósitos. … Preciso de vossa união, preciso de que vos organizeis solidariamente em sindicatos; preciso que formeis um bloco forte e coeso ao lado do governo para que este possa dispor de toda a força de que necessita para resolver os vossos próprios problemas. Preciso de vossa união para que possa lutar contra os sabotadores, para que não fique prisioneiro dos interesses dos especuladores e dos gananciosos em prejuízo dos interesses do povo. … Chegou, por isto mesmo, a hora do governo apelar para os trabalhadores e dizer-lhes: uni-vos todos nos vossos sindicatos, como forças livres e organizadas. Na hora presente nenhum governo poderá subsistir ou dispor de força suficiente para as suas realizações se não contar com o apoio das organizações operárias.” Vargas, num 1º de maio. Recado claro, efetivamente.

Se Vargas não tivesse revelado, na sua última etapa de governo, uma inclinação tão ostensiva à organização das massas populares, consequentemente ligada a uma série de medidas que tomou no sentido da defesa dos interesses nacionais, possivelmente as elites reacionárias não tivessem chegado ao extremo a que chegaram. § Isto ocorre com qualquer líder populista ao aproximar-se, ainda que discretamente, das massas populares, não mais como exclusivo mediador das oligarquias, se estas dispõem de força para freá-lo. § Enquanto a ação do líder se mantém no domínio das forças paternalistas e sua extensão assistencialista, pode haver divergências acidentais entre ele e grupos oligárquicos feridos em seus interesses, dificilmente, porém, diferenças profundas.”

FILA DO OSSO, NUNCA MAIS: “Há, contudo, em toda esta assistencialização manipuladora, um momento de positividade. § É que os grupos assistidos vão sempre querendo indefinidamente mais e os indivíduos não-assistidos, vendo o exemplo dos que o são, passam a inquietar-se por serem assistidos também.”

HURRAH, USA! “Uma condição básica ao êxito da invasão cultural é o conhecimento por parte dos invadidos de sua inferioridade intrínseca.”

É preciso que o eu oprimido rompa esta quase ‘aderência’ ao tu opressor, dele ‘afastando-se’, para objetivá-lo, somente quando se reconhece criticamente em contradição com aquele.”

Renunciar ao ato invasor significa, de certa maneira, superar a dualidade em que se encontram — dominados por um lado; dominadores, por outro.”

O ‘medo da liberdade’, então, neles se instala. Durante todo esse processo traumático, sua tendência é, naturalmente, racionalizar o medo, com uma série de evasivas.

Este ‘medo da liberdade’, em técnicos que não chegaram sequer a fazer a descoberta de sua ação invasora, é maior ainda, quando se lhes fala do sentido desumanizante desta ação.”

Uma das educadoras do Full Circle, de Nova York, instituição que realiza um trabalho educativo de real valor, nos relatou o seguinte caso: ao problematizar uma situação codificada a um dos grupos das áreas pobres de Nova York que mostrava, na esquina de uma rua — a rua mesma em que se fazia a reunião —, uma grande quantidade de lixo, disse imediatamente um dos participantes: ‘Vejo uma rua da África ou da América Latina’.

E por que não de Nova York?’, perguntou a educadora.

Porque, afirmou, somos os Estados Unidos e aqui não pode haver isto.’

Este é um dos sérios problemas que a revolução tem de enfrentar na etapa em que chega ao poder.”

a formação técnico-científica não é antagônica à formação humanista dos homens, desde que ciência e tecnologia, na sociedade revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de sua humanização.”

Este poder burocrático, violentamente repressivo, por sua vez, pode ser explicado através do que Althusser [Pourx Marx] chama de ‘reativação de elementos antigos’, toda vez que circunstâncias especiais o favoreçam, na nova sociedade.”

sociedade ser-para-si X sociedade metropolitana (sociedade ser-para-outro, “invadida”)

Por tudo isto, é preciso não confundir desenvolvimento com modernização. Esta, sempre realizada induzidamente, ainda que alcance certas faixas da população da ‘sociedade-satélite’, no fundo interessa à sociedade metropolitana.

A sociedade simplesmente modernizada, mas não desenvolvida, continua dependente do centro externo, mesmo que assuma, por mera delegação, algumas áreas mínimas de decisão.” “Estamos convencidos de que, para aferirmos se uma sociedade se desenvolve ou não, devemos ultrapassar os critérios que se fixam na análise de seus índices per capita de ingresso que, ‘estatisticados’, não chegam sequer a expressar a verdade, bem como os que se centram no estudo de sua renda bruta. Parece-nos que o critério básico, primordial, está em sabermos se a sociedade é ou não um ‘ser para si’. Se não é, todos estes critérios indicarão sua modernização, mas não seu desenvolvimento.”

Superada a contradição, o que antes era mera transformação ‘assistencializadora’ em benefício, sobretudo, da matriz, se torna desenvolvimento verdadeiro, em benefício do ‘ser para si’.

Por tudo isto é que as soluções puramente reformistas que estas sociedades tentam, algumas delas chegando a assustar e até mesmo a apavorar a faixas mais reacionárias de suas elites, não chegam a resolver suas contradições.

Quase sempre, senão sempre, estas soluções reformistas são induzidas pela própria metrópole, como uma resposta nova que o processo histórico lhe impõe, no sentido de manter sua hegemonia.”

façamos as reformas, antes que as sociedades dependentes façam a revolução”

Queremos referir-nos ao momento de constituição da liderança revolucionária e algumas de suas consequências básicas, de caráter histórico e sociológico, para o processo revolucionário.”

Em um dado momento de sua experiência existencial, em certas condições históricas, estes, num ato de verdadeira solidariedade (pelo menos assim se deve esperar), renunciam à classe à qual pertencem e aderem aos oprimidos.” Cfr. Guzmán, Camilo, el cura guerrillero, 1967.

EM CASO DE ÊXITO INICIAL: “Há uma empatia quase imediata entre as massas e a liderança revolucionária. O compromisso entre elas se sela quase repentinamente. Sentem-se ambas, porque coirmanadas na mesma representatividade, contradição das elites dominadoras. § Daí em diante, o diálogo entre elas se instaura e dificilmente se rompe. Continua com a chegada ao poder, em que as massas realmente se sentem e sabem que estão.”

Lukács, Histoire et conscience de classe, 1960.

A liderança de Fidel Castro e de seus companheiros, na época chamados de ‘aventureiros irresponsáveis’ por muita gente, liderança eminentemente dialógica, se identificou com as massas submetidas a uma brutal violência, a da ditadura de Batista.

Com isto não queremos afirmar que esta adesão se deu tão facilmente. Exigiu o testemunho corajoso, a valentia de amar o povo e por ele sacrificar-se. Exigiu o testemunho da esperança nunca desfeita de recomeçar após cada desastre, animados pela vitória que, forjada por eles com o povo, não seria apenas deles, mas deles e do povo, ou deles enquanto povo.

Fidel polarizou pouco a pouco a adesão das massas que, além da objetiva situação de opressão em que estavam, já haviam, de certa maneira, começado, em função da experiência histórica, a romper sua ‘aderência’ com o opressor.”

Daí que Fidel jamais se haja feito contradição delas. Uma ou outra deserção, uma ou outra traição registradas por Guevara no seu Relatos de la Guerra Revolucionaria, em que se refere às muitas adesões também, eram de ser esperadas.”

Quase nunca, porém, a liderança revolucionária percebe que está sendo contradição das massas. § Realmente, é dolorosa esta percepção e, talvez por um mecanismo de defesa, ela resista em percebê-lo. § Afinal, não é fácil à liderança, que emerge por um gesto de adesão às massas oprimidas, reconhecer-se como contradição exatamente de com quem aderiu.”

Na hipótese em que as contradiz, ao buscar esta adesão e ao surpreender nelas um certo alheamento, uma certa desconfiança, pode tomar esta desconfiança e aquele alheamento como se fossem índices de uma natural incapacidade delas. (…) E, como precisa de sua adesão à luta para que possa haver revolução, mas desconfia das massas desconfiadas, se deixa tentar pelos mesmos procedimentos que a elite dominadora usa para oprimir.”

Em seu diário sobre a luta na Bolívia, o comandante Guevara se refere várias vezes à falta de participação camponesa, afirmando textualmente: ‘La mobilización campesina es inexistente, salvo en las tareas de información que molestan algo, pero no son muy rápidos ni eficientes; los podremos anular’. E em outro momento: ‘Falta completa de incorporación campesina aunque nos van perdiendo el miedo y se logra la admiración de les campesinos. Es una tarea lenta y paciente.’” Cfr. El diário de Che en Bolívia

Por esta razão é que afirmamos antes ser tão paradoxal que a elite dominadora problematize as relações homens-mundo aos oprimidos, quanto o é que a liderança revolucionária não o faça.”

(*) Buber, Yo y tú

(*) Mikel Dufrenne, Pour l’homme, 1968.

(*) John Gerassi, A invasão da América Latina, 1965.

o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu.”

O diálogo, que é sempre comunicação, funda a colaboração. Na teoria da ação dialógica, não há lugar para a conquista das massas aos ideais revolucionários, mas para a sua adesão.”

Adesão conquistada não é adesão porque é aderência do conquistado ao conquistador através da prescrição deste àquele.” “A adesão verdadeira é a coincidência livre de opções.”

A confiança das massas na liderança implica a confiança que esta tenha nelas. Esta confiança nas massas populares oprimidas, porém, não pode ser uma confiança ingênua. § A liderança (…) há de desconfiar, sempre desconfiar, da ambigüidade dos homens oprimidos. § Desconfiar dos homens oprimidos, não é, propriamente, desconfiar deles enquanto homens, mas desconfiar do opressor ‘hospedado’ neles. § Desta maneira, quando Guevara chama a atenção ao revolucionário para a ‘necessidade de desconfiar sempre — desconfiar do camponês que adere, do guia que indica os caminhos, desconfiar até de sua sombra’, não está rompendo a condição fundamental da teoria da ação dialógica. Está sendo, apenas, realista.”

a confiança, ainda que básica ao diálogo, não é um a priori deste, mas uma resultante do encontro em que os homens se tornam sujeitos da denúncia do mundo, para a sua transformação. § Daí que, enquanto os oprimidos sejam mais o opressor ‘dentro’ deles que eles mesmos, seu medo natural à liberdade pode levá-los à denúncia, não da realidade opressora, mas da liderança revolucionária.” Ah, gado brasileiro – que queres? Preferes não ter nem pão nem liberdade, és o último dos fachos! O amedrontado de Dostoievsky, ao menos, recusava a liberdade para devorar seu pão diário… Tu, brasileiro do século XXI, minoria recalcitrante, és o mais vil dos párias rastejantes, um famélico agrilhoado e de olhar cinza, incendiário que tem medo do próprio fogo. Inconscientemente, tens medo de sobreviver a uma guerra, a ter de posicionar-se nesse mundo frívolo – por isso aceitas (apressas-te a, em verdade) ir à Ucrânia ou Israel, pois preferes a morte a questionar-te a ti mesmo!

Algumas vezes, no seu relato, ao reconhecer a necessidade da punição ao que desertou para manter a coesão e a disciplina do grupo, reconhece também certas razões explicativas da deserção. Uma delas, diremos nós, talvez a mais importante, é a ambiguidade do ser do desertor.”

A guerrilha e o campesinato, continua, se iam fundindo numa só massa, sem que ninguém possa dizer em que momento se fez intimamente verídico o proclamado e fomos partes do campesinato.”

Veja-se como um líder como Guevara, que não subiu a Sierra com Fidel e seus companheiros à maneira de um jovem frustrado em busca de aventuras, reconhece que a sua ‘comunhão com o povo deixou de ser teoria para converter-se em parte definitiva de seu ser’ (no texto: nosso ser).”

Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma ‘morte em vida’. E a ‘morte em vida’ é exatamente a vida proibida de ser vida. Acreditamos não ser necessário sequer usar dados estatísticos para mostrar quantos, no Brasil e na América Latina em geral, são ‘mortos em vida’, são ‘sombras’ de gente, homens, mulheres, meninos, desesperançados e submetidos a uma permanente ‘guerra invisível’ em que o pouco de vida que lhes resta vai sendo devorado pela tuberculose, pela esquistossomose, pela diarréia infantil, por mil enfermidades da miséria, muitas das quais a alienação chama de ‘doenças tropicais’…”

(Parênteses não inteiramente fora de contexto, já que Freire cita muitos. Não sei de onde os latino-americanos tiraram que padres conduziriam qualquer revolução por aqui – ou que suas opiniões a respeito eram de relevo! Uma coisa de época, imagino…)

UNIR PARA NÃO CONQUISTAR, O PARADIGMA MAIS DIFÍCIL DA CIÊNCIA POLÍTICA ATÉ AQUI: “a liderança se obriga ao esforço incansável da união dos oprimidos entre si, e deles com ela, para a libertação.” Tem de ser muito corajoso para ser revolucionário num mundo em que as desistências são freqüentes, múltiplas e diárias. Os senhores só desonrariam nossas botas ao lambê-las.

Se, para a elite dominadora, lhe é fácil, ou pelo menos não tão difícil, a práxis opressora, já não é o mesmo o que se verifica com a liderança revolucionária, ao tentar a práxis libertadora. Enquanto a primeira conta com os instrumentos do poder, a segunda se encontra sob a força deste poder. A primeira se organiza a si mesma livremente e, mesmo quando tenha as suas divisões acidentais e momentâneas, se unifica rapidamente em face de qualquer ameaça a seus interesses fundamentais.” Viva a hubris dos fracos no poder; sem ela, nenhum episódio revolucionário teria se verificado na História, apesar da inevitabilidade da decadência burguesa. O que se deu em Cuba, na Rússia, na China são eventos grandiosos, milenares. A conjunção da mais impecável união proletária com erros e estupidezes daqueles no comando em cada nação. A obscenidade que é ter em mãos a máquina do Estado, só para… perdê-la! Lembra-me a capacidade de gestão de um adolescente sem apoio enfrentando adultos competentes e com a cabeça no lugar… Quem diria que poderia vencer?!

A própria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, ao fazê-lo ambíguo, emocionalmente instável, temeroso da liberdade, facilita a ação divisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a ação unificadora indispensável à prática libertadora. § Mais ainda, a situação objetiva de dominação é, em si mesma, uma situação divisória. Começa por dividir o eu oprimido na medida em que, mantendo-o numa posição de ‘aderência’ [pejorativo; apenas risca a superfície] à realidade, que se lhe afigura como algo todo-poderoso, esmagador, o aliena a entidades estranhas, explicadoras deste poder.” Como os imbecis do 8 de janeiro perderam qualquer noção dessa grandeza insondável do poder estatal… eis algo que me assombra, e deveria assombrar a teoria do conhecimento em si! Os multi-coloridos que bailaram sobre cacos de vidro… sentindo-se em Paris. Sim, tivemos nossa efêmera revanche, quando os fascistas não tinham mais o poder e então tiveram de se agitar como ovelhas a fim da mais vã tentativa de recuperá-lo! Não poderiam saber que era vã, é claro… Financiamento algum gera resultado sem organização, paixão, sabedoria.

Parte de seu eu se encontra na realidade a que se acha ‘aderido’, parte fora, na ou nas entidades estranhas, às quais responsabiliza pela força da realidade objetiva, frente à qual nada lhe é possível fazer. Daí que seja este, igualmente, um eu dividido entre o passado e o presente iguais e o futuro sem esperança que, no fundo, não existe.”

AGORA, AQUI & SEMPRE: “Um eu que não se reconhece sendo, por isto que não pode ter, no que ainda vem, a futuridade que deve construir na união com outros.”

É necessário desideologizar.” Janela de oportunidade e ao mesmo tempo o momento mais perigoso para os oprimidos. Intervalo entre ideologias que é o céu e inferno de nossas aspirações e frustrações.

Contra burguês, vote 16”: a sloganização risível de um movimento que se quer revolucionário. Revolução e horário político como antípodas perfeitos. “É que este, distorcendo a relação autêntica entre o sujeito e a realidade objetiva, divide também o cognoscitivo do afetivo e do ativo que, no fundo, são uma totalidade não-dicotomizável.” (Não sei por que P.F. grifou apenas dos do tripé – esses itálicos cognoscitivo e ativo não são meus! –, sendo conhecimento teórico e ação os eixos da práxis, deixando de fora – do sublinhado apenas, mas isso me causa estranhamento! –, no entanto, o afeto, as emoções, a razão real, por assim dizer.)

Propor a um camponês europeu, como um problema, a sua condição de homem, lhe parecerá, possivelmente, algo estranho. Já não é o mesmo fazê-lo a camponeses latino-americanos, cujo mundo, de modo geral, se ‘acaba’ nas fronteiras do latifúndio, [cada latifúndio uma pequena Europa, aliás] cujos gestos repetem, de certa maneira, os animais e as árvores e que, ‘imersos’ no tempo, não-raro se consideram iguais àqueles.” A verdade é que todos nós depositávamos fichas demais nos europeus. Está mais perto do que imaginávamos o total ocaso da Europa!

Ação cultural, cuja prática para conseguir a unidade dos oprimidos vai depender da experiência histórica e existencial que eles estejam tendo, nesta ou naquela estrutura.” Faltou a Paulo Freire ser um pouco mais anti-cristão. É isso o que a igreja faz com o passar dos séculos: torna trabalhadores em pedras.

De manipulação e progresso para ordem e progresso (no legítimo sentido da palavra ordem)

testemunho, esforço comum

anti-dirigismo

REGIONALISMO OU PONTO FOCAL NA ECLOSÃO DA REVOLUÇÃO QUE TEM DE SER POR NECESSIDADE GLOBAL: “Sendo históricas estas dimensões do testemunho, o dialógico, que é dialético, não pode importá-las simplesmente de outros contextos sem uma prévia análise do seu. A não ser assim, absolutiza o relativo e, mitificando-o, não pode escapar a alienação.” O britânico bem podia “copiar” Marx (apenas figurativamente, pois a práxis nunca copia),¹ mas os russos tiveram de adaptar o conteúdo crítico às próprias condições; como a Iugoslávia e demais países do Leste; como Cuba; como a China, ao romper com o Stalinismo. Como a própria Coréia do Norte, se se quiser pensá-la como projeto socialista-dinástico (um culto à personalidade à Soviética, porém com suas próprias características).

¹ Marx era alemão mas estudou principalmente o capitalismo inglês, o mais avançado em seu tempo de vida.

a existência como um risco permanente, a radicalização A radicalização se tornou o único caminho quando o “normal” é a deterioração climática do planeta e a ascensão de bilionários loucos desconexos de qualquer cosmovisão, brincando com a vida de bilhões de humanos. Não é mais necessária tanta coragem assim.

atu(r)ar[,] na massa[,] [é ignorar, relevar, insistir em quebrar] todos os seus defeitos.

Um testemunho que, em certo momento e em certas condições, não frutificou, não está impossibilitado de, amanhã, vir a frutificar.”

o diálogo revolucionário vicia. torna-se doloroso voltar à manipulação uma vez que se entende o processo. por isso é um ‘ato imparável’, e a soma de atos dos indivíduos revolucionários, e das massas aderentes, têm necessariamente de se perpetuar no tempo-espaço até sua realização. não existe o aborto final ou definitivo das tentativas pela classe dos opressores, que em dado momento ‘perde o trilho’, e cai como peças de dominó.

Como insinuado acima pelo lema da bandeira nacional, há ordem e há ordem (a ordem de quartel e a ordem das ruas, a ordem da morte em vida contra a ordem biófila): “Se, para a elite dominadora, a organização é a de si mesma, para a liderança revolucionária, a organização é a dela com as massas populares.”

disciplina & disciplina

anarquismo: fora de questão

a pronúncia inicial (talvez seja a denúncia, mas não estou seguro se apreendi os conceitos freireanos nesse grau de qualidade) sempre será proibida. e daí? o mundo é feito de pronúncias em sucessão. há pronúncias tão coletivas que amedrontam os maiores conglomerados de donos dos meios de produção.

diálogo não implica licenciosidades, exceções, procrastinações: dar “direitos demais” à massa, direitos que, enquanto agregado de homens, ela não tem, pois se justapõem aos interesses de classe.

A teoria dialógica da ação nega o autoritarismo como nega a licenciosidade. E, ao fazê-lo, afirma a autoridade e a liberdade.” Uma tática do neofascismo que se tornou clichê é associar toda organização revolucionária ao libertinismo ou à balbúrdia. Os fascistas podem se alongar muito neste tema, já que entendem como ninguém destes assuntos. Aliás, houve a apropriação para a própria causa do termo “libertário”, que antes descrevia um progressista radical (há 1, 2 séculos, em outros regiões do mundo). Hoje, e aqui, e nos EUA, libertário, libertarianismo, significa uma coisa só: Fascismo da iniciativa privada. Libertinagem no sentido mais imoral da pecúnia.

liberdade&autoridade, e não liberdade vs. autoridade

GENERAIS NÃO SABEM DISSO (nunca confiam plenamente em seus subordinados – nunca confiam em si mesmos, pois já foram ‘o subordinado’): “É por isto que a verdadeira autoridade não se afirma como tal na pura transferência, mas na delegação ou na adesão simpática.”

autoridade X autoritarismo

O pacto da pornochanchada é um indício de que o autoritarismo tupiniquim já estava molenga. O “pau duro” participava do “pão e circo” do povo, que se fingia de cego, mas os militares e seu abrandamento covarde não era menos dissimulado (‘deixai passar…’)

Em todo o corpo deste capítulo se encontra firmado, ora implícita, ora explicitamente, que toda ação cultural é sempre uma forma sistematizada e deliberada de ação que incide sobre a estrutura social, ora no sentido de mantê-la como está ou mais ou menos como está, ora no de transformá-la.”

A ação cultural ou está a serviço da dominação — consciente ou inconscientemente por parte de seus agentes — ou está a serviço da libertação dos homens.”

PRIMEIRAS RACHADURAS NA TORRE DOS <QUE MANDAM>: “Daí que estes, não aceitando jamais a transformação da estrutura, que supere as contradições antagônicas, aceitem as reformas que não atinjam seu poder de decisão

Enquanto, na invasão cultural, [o colonizador, externo ou não – pois o colonizador da mesma nacionalidade é apenas um alienígena que ganha a tarimba de ‘nacional’] os atores — que nem sequer necessitam de, pessoalmente, ir ao mundo invadido, [segue atualíssimo em 2023] sua ação é mediatizada cada vez mais pelos instrumentos tecnológicos — são sempre atores que se superpõem, com sua ação, aos espectadores, seus objetos; na síntese cultural, [revolucionária, não-alienígena] os atores se integram com os homens do povo, atores, também, da ação que ambos exercem sobre o mundo.”

expectadores de nós mesmos

Desta maneira, este modo de ação cultural, como ação histórica, se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante.” Só se pode destruir e criar a cultura culturalmente. “Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser também revolução cultural.”

Daí que não seja possível dividir, em dois, os momentos deste processo: o da investigação temática e o da ação como síntese cultural.” “Esta dicotomia implicaria que o primeiro seria todo ele um momento em que o povo estaria sendo estudado, analisado, investigado, como objeto passivo dos investigadores, o que é próprio da ação antidialógica. Deste modo, esta separação ingênua significaria que a ação, como síntese, partiria da ação como invasão.” O velho mote ‘o brasileiro precisa ser estudado’ (justo por quem… pela NASA!) se converte no muito mais salutar: ‘o brasileiro precisa ser o Sócrates de si mesmo e dos demais e se unir em um mesmo estrado (falando de palco, já que foram citados atores da revolução ou da contra-revolução, acima), em uma mesma classe, em igualdade, numa relação de-homem-para-homem’. Torna-te aquilo que tu és como um slogan (não-entendido pejorativamente) revolucionário – contra a intenção original de Nietzsche (pelo menos no que toca à forma dessa transvaloração).

Tornar implica de antemão conhecer; conhecer é fraco, implica resignar-se, se não houver um acréscimo à frase da sibila Conhece-te a ti mesmo. Para quê? Para perceber as próprias limitações, dir-se-ia num sentido epistemológico. Mas aqui se trata do saber dialético, da práxis, e este conhecer deveria ser já uma ação, ou seria sempre um autoconhecimento distorcido e individualista. Tornar-se quem se é como lema-resumo da luta de um povo é perfeito para conotar a luta revolucionária para inverter o quadro de opressor-oprimido. Quem é o homem senão aquele que pode modificar o próprio destino?

clima da criatividade”

O mito americano do alienígena (vida fora da Terra que nos visita ou invade) é um grito de socorro disfarçado: nem eles próprios se agüentam como dominadores. Claro, os alienígenas, na ficção (e onde mais, quando falamos aqui literalmente de seres extra-terrenos?), estão sempre em conluio com os poderosos, a Casa Branca, etc., confundem-se com eles. A ufologia é a última saída dos oprimidos da nação que menos aceita a revolução na superfície da Terra: uma nova religião recrudescedora dos males que intentaria de bom grado extirpar! Como esses sofredores inconscientes do dia-a-dia gostariam de ser abduzidos para não mais ter de servir de bucha de canhão ao governo americano! E isso que estamos falando do folclore do branco classe-média; o que dizer dos mais cruelmente afetados pelas políticas ianques fora de seu território, e dos negros? Eles são muito mais inteligentes, passaram por uma luta social de libertação racial antes. Não se apegam a ninharias, bobajadas hollywoodianescas. Porém, tudo isso não deixa de ser sintomático: os próprios “senhores da guerra” (Warlords) estão cansados de comandar as guerras… querem delegar essa difícil e árdua tarefa da manipulação constante a SERES EXÓTICOS, não-humanos (e daí que se identifiquem com eles: atualmente não passam de coisas, máquinas de destruição em massa, autômatos sem redenção).

Tudo, do topo (após a derrubada do opressor) à classe popular, incluindo aí a classe média, mais do que cooptável, termo chulo… conversível, termo mais sincero, pode ser integrado e sintetizado em prol da revolução… E também os camponeses, que consideramos a base. Mas a real base, a degradação humana que já não nos permite redimi-los como coisas-homens, o lumpenproletariado, este deve ser rechaçado ou controlado. Talvez seja um mal necessário e eterno. Mas ele é um fator de pura desagregação, e deve ser tratado como se trataria o opressor: impossível contorná-lo, dialogar com ele. Só resta o uso da força, neste caso preciso. A nova sociedade não é dos opressores antigos incapazes de se integrar, como não é da massa falida que jamais aderiria à revolução, que já tem o opressor dentro de seu coração, fincado até o dia de sua morte.

as suas crenças religiosas, [do povo] quase sempre sincréticas, o seu fatalismo, a sua reação rebelde.” Isto significa: passíveis de transformação (quanto ao credo religioso).

em nome do respeito [unilateral] à visão popular do mundo, respeito que realmente deve haver, terminaria a liderança revolucionária apassivada àquela visão.”

Se, em um dado momento histórico, a aspiração básica do povo não ultrapassa a reivindicação salarial, a nosso ver, a liderança pode cometer dois erros. (I) Restringir sua ação ao estímulo exclusivo desta reivindicação, (II) ou sobrepor-se a esta aspiração, propondo algo que está mais além dela. [inserção dum ‘além’ no mundo secular: um dia as contradições serão abolidas e o Estado autodissolvido – até lá, por favor agüentem, suportem a miséria]O povo quer salário e cultura já é uma boa frase: o povo quer salário, liberdade de escolha no consumo – e uma nova pedagogia, pois isto que é cultura, não a cultura alienada do opressor (ainda que no marco zero o povo não tenha ciência disso).

No primeiro caso, incorreria a liderança revolucionária no que chamamos de adaptação ou docilidade à aspiração popular. [neste caso, sujeito perpetuamente à perda instantânea do poder, provisório, pois nem venceu em definitivo os opressores como nem sequer conquistou a adesão genuína das massas – equilíbrio precário] No segundo, desrespeitando a aspiração do povo, cairia na invasão cultural [reiteração da dominação sob novos avatares].”

Ter a consciência crítica de que é preciso ser o proprietário de seu trabalho e de que ‘este constitui uma parte da pessoa humana’ e que a ‘pessoa humana não pode ser vendida nem vender-se’ é dar um passo mais além das soluções paliativas e enganosas.”

Parece-nos, contudo, que o fato de não termos tido uma experiência no campo revolucionário [no Brasil] não nos retira a possibilidade de uma reflexão sobre o tema.” Brasil XX (é daqui que Paulo Freire parte) – Alemanha XIX (foi daqui que Marx e Engels partiram).

L’AUTOMATISME PSYCHOLOGIQUE: Essai de psychologie expérimentale sur les formes inférieures de l’activité humaine, 1889. – Pierre Janet

índice (ctrl+F)

INTRODUCTION

PREMIÈRE PARTIE. AUTOMATISME TOTAL

1. LES PHÉNOMÈNES PSYCHOLOGIQUES ISOLÉS

1.1 DESCRIPTION DES PHÉNOMÈNES PROVOQUÉS PENDANT L’ÉTAT CATALEPTIQUE

1.2 INTERPRÉTATION MÉCANIQUE OU PHYSIQUE DE CES PHÉNOMÈNES

1.3 INTERPRETATIONS PSYCHOLOGIQUES. — LA CATALEPSIE ASSIMILÉE AU SOMNAMBULISME.

1.4 UNE FORME RUDIMENTAIRE DE LA CONSCIENCE. — LA SENSATION ET L’IMAGE ISOLÉES.

1.5 LA NATURE DE LA CONSCIENCE PENDANT LA CATALEPSIE

2. L’OUBLI ET LES DIVERSES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES

2.1 LES DIFFÉRENTS CARACTÈRES QUI ONT ÉTÉ PROPOSÉS POUR RECONNAÎTRE LE SOMNAMBULISME

2.2 CARACTÈRES ESSENTIELS DU SOMNAMBULISME : L’OUBLI AU RÉVEIL ET LA MÉMOIRE ALTERNANTE

2.3 VARIÉTÉS ET COMPLICATIONS DE LA MÉMOIRE ALTERNANTE

2.4 ÉTUDE SUR UNE CONDITION PARTICULIÈRE DE LA MÉMOIRE ET DE L’OUBLI DES IMAGES

2.5 UNE CONDITION DE LA MÉMOIRE ET DE L’OUBLI POUR LES PHÉNOMÈNES COMPLEXES

2.6 INTERPRÉTATION DE L’OUBLI AU RÉVEIL APRÈS LE SOMNAMBULISME

2.7 LES DIVERSES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES : MODIFICATIONS SPONTANÉES DE LA PERSONNALITÉ

2.8 LES DIVERSES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES. — LES CHANGEMENTS DE PERSONNALITÉ DANS LES SOMNAMBULISMES ARTIFICIELS.

2.9 IMPORTANCE RELATIVE DES DIVERSES EXISTENCES SIMULTANÉES

2.10 L’ANESTHÉSIE ET LA PARALYSIE

2.11 LES PARALYSIES ET LES CONTRACTURES EXPLIQUÉES PAR LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

2.12 CONCLUSION

3. LA SUGGESTION ET LE RÉTRÉCISSEMENT [RECOLHIMENTO] DU CHAMP DE LA CONSCIENCE

3.1 RÉSUMÉ HISTORIQUE DE LA THÉORIE DES SUGGESTIONS

3.2 DESCRIPTION DE QUELQUES PHÉNOMÈNES PSYCHOLOGIQUES PRODUITS PAR SUGGESTION

3.3 DIVERSES THÉORIES PSYCHOLOGIQUES SUR LA SUGGESTION

3.4 L’AMNÉSIE ET LA DISTRACTION

3.5 LE RÉTRÉCISSEMENT DU CHAMP DE LA CONSCIENCE

3.6 INTERPRÉTATION DES PHÉNOMÈNES DE SUGGESTION. – LE RÈGNE DES PERCEPTIONS.

3.7 CONCLUSION

DEUXIÈME PARTIE. AUTOMATISME PARTIEL

1. LES ACTES SUBCONSCIENTS

1.1 LES CATALEPSIES PARTIELLES

1.2 LA DISTRACTION ET LES ACTES SUBCONSCIENTS

1.3 LES SUGGESTIONS POSTHYPNOTIQUES. HISTORIQUE ET DESCRIPTION.

1.4 EXÉCUTION DES SUGGESTIONS PENDANT UN NOUVEL ÉTAT SOMNAMBULIQUE

1.5 EXÉCUTION SUBCONSCIENTE DES SUGGESTIONS POSTHYPNOTIQUES

1.6 CONCLUSION

2. LES ANESTHÉSIES ET LES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SIMULTANÉES

2.1 LES ANESTHÉSIES SYSTÉMATISÉES – HISTORIQUE

2.2 PERSISTANCE DE LA SENSATION MALGRÉ L’ANESTHÉSIE SYSTÉMATISÉE

2.3 ÉLECTIVITÉ OU ESTHÉSIE SYSTÉMATISÉE

2.4 ANESTHÉSIE COMPLÈTE OU ANESTHÉSIE NATURELLE DES HYSTÉRIQUES

2.5 DIFFÉRENTES HYPOTHÈSES RELATIVES AUX PHÉNOMÈNES D’ANESTHÉSIE

2.6 LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

2.7 LES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SIMULTANÉES

2.8 LES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SIMULTANÉES COMPARÉES AUX EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES

3. DIVERSES FORMES DE LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

3.1 LA BAGUETTE DIVINATOIRE. – LE PENDULE EXPLORATEUR. – LA LECTURE DE PENSÉES.

3.2 RÉSUMÉ HISTORIQUE DU SPIRITISME

3.3 HYPOTHÈSES RELATIVES AU SPIRITISME

3.4 LE SPIRITISME ET LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

3.5 COMPARAISON DES MÉDIUMS ET DES SOMNAMBULES

3.6 LA DUALITÉ CÉRÉBRALE COMME EXPLICATION DU SPIRITISME

3.7 DE LA FOLIE IMPULSIVE

3.8 LES IDÉES FIXES. – LES HALLUCINATIONS.

3.9 LES POSSESSIONS

4. LA FAIBLESSE ET LA FORCE MORALES

4.1 LA MISÈRE PSYCHOLOGIQUE

4.2 LES FORMES INFÉRIEURES DE L’ACTIVITÉ NORMALE

4.3 LE JUGEMENT ET LA VOLONTÉ

4.4 CONCLUSION

CONCLUSION (général)

APPENDICE

ÍNDICE DE OBRAS RECOMENDADAS, ORDENADAS PELA PRIORIDADE DA LEITURA

GLOSSAIRE (glossário francês)

INTRODUCTION

C’est l’activité humaine dans ses formes les plus simples, les plus rudimentaires, qui fera l’objet de cette étude.”

une poupée mécanique qui marche seule sera dite un automate, une pompe [bomba de ar] que l’on fait mouvoir à l’extérieur ne pourra pas en être un.” “Or, les premiers efforts de l’activité humaine ont précisément ces 2 caractères: ils sont provoqués et non pas crées par les impulsions extérieures; ils sortent du sujet lui-même, et cependant ils sont si réguliers qu’il ne peut être question à leur propos du libre arbitre réclamé par les facultés supérieures. Mais on ajoute ordinairement au mot automatique un autre sens que nous n’acceptons pas aussi volontiers. Une activité automatique est, pour quelques auteurs, non seulement une activité régulière et rigoureusement déterminée, mais encore une activité puremente mécanique et absolument sans conscience. Cette interprétations a été l’origine de confusions nombreuses, et beaucoup de philosophes se refusent à reconnaître dans l’esprit humain un automatisme, qui est cependant réel et sans lequel beaucoup de phénomènes sont inexplicables, parce qu’ils se figurent qu’admettre l’automatisme, c’est supprimer la conscience et réduire l’homme à un pur mécanisme d’élements étendus et insensibles. Nous croyons que l’on peut admettre simultanément et l’automatisme et la conscience, et par là donner satisfaction à ceux qui constatent dans l’homme une forme d’activité élémentaire tout à fait déterminée, comme celle d’un automate, et à ceux qui veulent conserver à l’homme, jusque dans ses actions les plus simples, la conscience et la sensibilité. En d’autres termes, il ne nous semble pas que, dans un être vivant, l’activité qui se manifeste au dehors par le mouvement puisse être séparée d’une certaine forme d’intelligence et de conscience qui l’accompagne au dedans, et notre but est de démontrer non seulement qu’il y a une activité humaine méritant le non d’automatique, mais encore qu’il est légitime de l’appeler un automatisme psychologique.

Les philosophes qui ont consideré l’activité comme un phénomène psychologique, mais qui ne l’ont examinée que dans ses manifestations les plus parfaites, l’ont séparée très nettement des autres phénomènes de l’esprit et l’ont considérée comme une faculté particulière distincte de l’intelligence et de la sensibilité.” Teoria do elo perdido : ver « solução » na conclusão.

L’unité et la systématisation nous semblent être le terme et non le point de départ de la pensée, et l’automatisme que nous étudions se manifeste souvent par des sentiments et des actions multiple et indépendantes les unes des autres, avant de céder la place à la volonté une et personnelle.”

Lange, Histoire du matérialisme, 1877, II.

Stuart Mill, quand il soutient contre Auguste Comte la légitimité d’une psychologie scientifique, ne répond pas que d’une manière embarrassée à cette difficulté” “Il faut admettre pour le moral ce grand principe universellement admis pour le physique depuis Claude Bernard, c’est que les lois de la maladie sont les mêmes que celles de la santé et qu’il n’y a dans celle-là que l’exagération ou la diminution de certains phénomènes qui se trouvaient déjà dans celle-ci. Si l’on connaissait bien les maladies mentales, il ne serait pas difficile d’étudier la psychologie normale.”

On ne fait de véritables expériences psychologiques que si l’on modifie artificiellement l’état de la conscience d’une personne d’une manière déterminée et calculée d’avance. Moreau de Tours, l’un des plus philosophes parmi les aliénistes, prétendit arriver à ce résultat au moyen de l’ivresse procurée par le haschich.¹ Tout en partageant ce désir d’expérimentation psychologique que Moreau est l’un des premiers à exprimer, je n’apprécie guère le procédé qu’il a employé. (…) j’aí trouvé que la perturbation physique causée par cette sustance était bien grave et bien dangereuse pour un assez maigre résultat psychologique.”

¹ Leitura fortemente indicada, apesar das críticas tecidas por Pierre Janet ao longo da obra, precursora em toda a psiquiatria.

Déjà Maine de Biran, l’un des précurseurs de la psychologie scientifique, dans ses nouvelles considérations sur le sommeil, les songes [daydreams] et le somnambulisme, insiste sur le parti que la psychologie pourrait tirer de l’étude de ces phénomènes”

Nous ne discuterons pas ici la réalité du somnambulisme ni le danger de la simulation”

Les sujets sur lesquels ces études ont été faite étaient presque tous, sauf des exceptions que nous signalerons, des femmes atteintes de maladies nerveuses plus ou moins graves, particulièrement de cette maladie très variable que l’on désigne sous le nom d’hystérie.”

Il est nécessaire de les suivre pendant longtemps et avec beaucoup d’attention, <de les étudier non pas un instant mais à toutes les phases de leur maladie> (Despine)¹ pour savoir exactement dans quelles circonstances et dans quelles conditions on expérimente. En suite, en raison même de leur mobilité, ils subissent très facilement toutes les influences extérieures et se modifient très rapidemente suivant les livres qu’on leur laisse lire ou les paroles que l’on prononce imprudemment devant eux.” “Il est également impossible de constater aucun fait naturel, si on les interroge en public, si on indique à des personnes présentes les expériences que l’on fait et les résultats que l’on attend. Il faut les étudier souvent et il faut toujours expérimenter seul”

¹ « La famille Despine, que l’on trouve également écrit sous les formes d’Espine, de Lepine, de Lespine, de l’Espine, est une ancienne famille savoyarde de notables, originaire des Bauges, dont la filiation est prouvée depuis le XVIe siècle. » wiki

Este é o Despine mais famoso, Prosper Pierre (ver seção BIBLIOGRAFIA).

PREMIÈRE PARTIE. AUTOMATISME TOTAL

1. LES PHÉNOMÈNES PSYCHOLOGIQUES ISOLÉS

Eh bien, l’expérience que rêvait Condillac et qu’il ne pouvait essayer, il nous est possible aujourd’hui de la réaliser presque complètament.” “C’est la maladie nerveuse désignée le plus souvent sous le nom de catalepsie qui nous procurera ces suppressions brusque et complètes, puis ces restaurations graduelles de la conscience dont nous voulons profiter pour nos expériences.”­

La catalepsie, dit Saint-Bourdin, un des premiers auteurs qui ait fait une étude précise de cette maladie, est une affection du cerveau, intermittente, apyrétique, caractérisé par la suspension de l’entendement et de la sensibilité et par l’aptitude des muscles à recevoir et à garder tous les degrés de la contraction qu’on leur donne.”

Il nous importera peu de savoir si tel ou tel trouble de la parole ou de l’écriture est produit par une tumeur, un foyer de ramollissement, un agent toxique. Les roues d’une montre, a dit Buzzard, peuvent aussi bien être errêtées par un cheveu que par un grain de sable, et le désordre qui surgit alors reste toujours le même, quelle que soit la cause qui l’ait produit.”

Ballet

Sans doute une personne atteinte de catalepsie n’aura pas la simplicité idéale de la statue de Condillac (…) Mais une expérience réele, quand même elle présenterait quelque obscurité, vaut 100x mieux qu’une théorie simple, mais imaginaire.”

1.1 DESCRIPTION DES PHÉNOMÈNES PROVOQUÉS PENDANT L’ÉTAT CATALEPTIQUE

Nous avons seulement recueilli la description de 2 crises naturelles, l’une observée à Paris à l’hôpital de la Pitié par mon frère Jules Janet,¹ l’autre qui a été produite par un coup de foudre sur un sujet que je connaissais, mais que je n’ai pas pu voir à ce moment. J’ai pu observer plus fréquemment des catalepsies artificielles, mais sur 3 sujets seulement.

[¹ Seu nome não está em vermelho porque sua contribuição é inexpressiva perto da do próprio Pierre, e se deu maciçamente em forma de artigos para revistas científicas.]

On pouvait quelquefois provoquer la catalepsie chez Lucie [histérica, ver mais detalhes no ANEXO ao final] en lui montrant brusquement une vive lumière de magnésium, ou bien en luis comprimant légèrement les yeux pendant le somnambulisme. La catalepsie survenait naturellement à de certains moments pendant le somnambulisme provoqué de Rose ou de Léonie.”

Jamais une personne normale ne reste plusieurs minutes sans aucun mouvement; quelques mouvements des mains, des paupières, des lèvres, quelques légers frémissements de la peau manifestent toujours l’activité de la pensée et le sentiment des choses extérieures.”

Les yeux eux-mêmes tout grands ouverts, sans aucun clignement des paupières, conservent avec fixité la même direction. En un mot, les mouvements de la vie organique, battements du pouls et respiration subsistent seuls, et tous les mouvements qui dépendent de la vie de relation et qui expriment la conscience sont supprimés. Si l’on n’intervient pas et surtout si on s’abstient de toucher le sujet, cet état persiste sans aucune modification pendant un temps plus ou moins long: on a vu des catalepsies naturelles durer des journées et des catalepsies artificielles se prolonger pendant plusieurs heures. Chez les sujets que j’ai pu étudier, cet état ne dure jamais longtemps et ne se prolonge pas plus d’un quart d’heure; il se modifie naturellement et cesse de présenter ce caractère de l’absolue inertie morale.”

a. “La continuation, la persistance de toutes les modifications que l’on peut produire dans l’état du sujet. – Si l’on touche les membres, on s’aperçoit qu’ils sont extrêmement mobiles et pour ainsi dire légers, qu’ils n’offrent aucune résistance et que l’on peut très facilement les déplacer. Si on les abandonne dans une position nouvelle, ils ne retombent pas suivant les lois de la pesanteur, ils restent absolument immobiles à la place où on les a laissés. Les bras, les jambes, la tête, le tronc du sujet peuvent êtres mis dans toutes les positions même les plus étranges; aussi a-t-on comparé tout naturellement ces sujets à des mannequins de peintre que l’on plie dans tous les sens. Le visage même chez Léonie est susceptible d’être modifié de cette façon: ouvre-t-on la bouche, lève-t-on ou baisse-t-on les sourcils, la figure, comme un masque de cire, se laisse modeler et conserve son expression nouvelle; chez l’autres, les muscles de l’abdomen eux mêmes gardent l’empreinte de la main (Paul Richer, Hystéro-épilepsie).”

au lieu de trembler, comme fait toujours et très rapidement le bras étendu d’un individu normal, les membres de ces personnes restent longtemps en l’air sans bouger; au lieu de produire una accélération et une modification du rythme respiratoire, comme cela arrive toujours chez l’homme normal, cette position fatigante du bras ne change en rien le mouvement lent de la poitrine. Ce n’est qu’au bout d’un temps assez long, une heure et plus, d’après certains auteurs, 20 ou 25 minutes, suivant les autres, que le bras commence à descendre à cause de la fatigue ou de l’usure musculaire, mais cette descente s’effectue très lentement et très réguliérement sans ces secousses et ces oscillations que l’on constate chez l’homme normal.”

« …Il luis parle, elle n’entend pas ; il la touche, elle ne paraît pas le sentir ; il lui lève un bras, le bras reste dans la position où il l’a mis; on dressa la malade debout, on pencha le col, on leva une jambe, tout garda la position donnée. »

« Chez d’autres malades, les corps est dans un tel état de rigidité que, si on les pousse, ils tombent sans changer d’attitude. » Chavo del 8.

b. « L’imitation ou la répétition.” “le sujet imite ordinairement avec sob bras gauche le mouvement que nous faisons avec le bras droit et ressemble à notre propre image dans un miroir. »

« écholalie ou parole en écho. »

c. « Généralisation ou expression des phénomènes. » « syncinésie »

d. « Association des états les uns avec les autres. » « Je mets les mains de Léonie dans l’attitude de la prière et la figure prend une expression extatique. »

« Si on fait entendre une musique gaie devant le sujet, il rit, puis se met à danser ; une musique triste le fait pleurer. »

« Si on lui met un crayon dans la main, elle fait le geste d’écrire, mais ne fait que des barres indéfiniment »

« Un cataleptique naturel, étudié par Forestier,¹ mangeait avec avidité (vorabat) tout ce qu’on lui mettait dans la bouche. »

¹ Não encontrado.

1.2 INTERPRÉTATION MÉCANIQUE OU PHYSIQUE DE CES PHÉNOMÈNES

« Ces femmes immobiles, pareilles à des statues, sans résistance d’aucune sorte et sans parole, pensent-elles encore, ont-elles encore quelque conscience qui les rapproche de nous ? Il est permis d’en douter et de se demander si la vie organique qui semble subsister seule ne suffirait pas pour expliquer tous les phénomènes constatés. C’est l’explication que l’on trouverait dans les ouvrages d’Haidenhain.¹ (…) C’est aussi à cette opinion que se rattacherait l’aliéniste anglais Maudsley. C’est enfin la doctrine que l’on trouve exprimée et défendue de la manière la plus complète dans les ouvrages du Dr. Despine. » « Comme notre but dans cet ouvrage, si nous ne sommes pas trop ambitieux, est précisément de démontrer le contraire, nous devons insister sur l’étude des opinions du Dr. Despine qui semblent arrêter notre travail dès le début. »

¹ Não encontrado!

« Prétendre qu’une personne qui parle, résoud des problèmes, manifeste spontanément des sympathies et des antipathies, agit à sa guise et résiste souvent à nos ordres, n’a pas plus de conscience qu’une poupée mécanique, c’est remonter bien en arrière de la célèbre théorie des animaux-machines de Descartes. Car la conscience d’une somnambule est bien plus évidente que la conscience d’un chien et personne ne doute aujourd’hui de la conscience d’un chien. Mais, appliquée aux états cataleptiques, cette théorie ne laisse pas d’avoir quelque force, et, comme il faut toujours mettre les théories que l’on veut discuter dans leur meilleur jour, c’est en nous plaçant à ce dernier point de vue que nous étudierons la thèse du Dr. Despine. Nous espérons montrer que, même dans ce dernier cas, ses arguments ne sont pas suffisamment démonstratifs et laissent le champ libre à d’autres suppositions. »

« La plupart des preuves sont tirées du fait de l’oubli qui caractérise les phénomènes du somnambulisme et surtout ceux de la catalepsie » « D’une pareille définition de la conscience il résulte que s’il y a des actes que le moi ne s’attribue pas à lui-même, qu’il ne reconnaît pas avoir faits, ces actes n’ont pas dû être conscients. »

« Or il n’est pas d’état après lequel cet oubli soit plus caractéristique qu’après l’état cataleptique. Des somnambules ont pu quelquefois conserver une partie des souvenirs de leurs actions; mais les cataleptiques se réveillent de leur accès convaincus qu’il ne s’est rien passé d’anormal. »

« Ce même caractère se retrouve chez les individus qui ont été soumis à des inhalations d’éther ou de chloroforme. Quelles que soient les paroles qu’ait prononcées le patient, ‘son moi, son être conscient n’avait point participé à tout ce qui s’était passé, car le malade, bientôt revenu à lui, affirmait n’avoir rien senti, ignorer complètement qu’il avait été opéré ou pansé, qu’il avait proféré les paroles et qu’il avait accompli les actes; les réactions violentes dont on lui parlait, ces divers phénomènes étaient donc purement automatiques.’ »

« Cet oubli serait inexplicable, dit Despine, quand il s’agit des somnambules. Soit, il faudra chercher les raisons de cet oubli, qui peut-être seront fort difficiles à trouver; mais, quand même on ne pourrait pas toujours l’expliquer, l’oubli d’une chose qui a été réellement consciente n’en est pas moins une chose possible et très souvent réelle. » Seria uma maravilha eu passar todo o meu expediente ‘inconsciente’, hehe!

« Si, comme le dit un auteur anglais, un lecteur du Times est tué brusquement après sa lecture, il n’aura certainement pas de mémoire, faut-il en conclure que toute sa lecture aura été sans conscience ? » HAHAHA !

« Mais admettons pour un moment, ce qui paraît inadmissible, que l’oubli soit une preuve suffisante de l’absolue inconscience, est-il bien certain qu’il n’existe aucune mémoire des phénomènes cataleptiques ? Il est vrai que, au moins pour les sujets que j’ai étudiés, il n’y a jamais de souvenir quand ils rentrent dans l’état que par convention on appelle état de veille ou état normal. Mais un certain souvenir se manifeste d’abord dans les catalepsies suivantes par l’habitude qu’acquiert rapidement le sujet de faire avec plus de perfection les actes qu’on lui fait faire plus souvent. Ensuite, et cela est plus important, il existe chez ces mêmes individus certains états psychologiques, certains somnambulismes, puisque c’est encore le nom convenu, où le sujet retrouve parfaitement le souvenir de la catalepsie. » « Il est vrai que cette mémoire ne se retrouve que dans des somnambulismes très profonds et si difficiles quelquefois à obtenir qu’on les a longtemps ignorés. Nous reprendrons plus tard l’étude de ces somnambulismes »

TÓPICO FRASAL DE TODO O LIVRO, DE CERTO MODO: « Ainsi donc le souvenir, s’il reparaissait dans l’état normal, serait une bonne preuve de la conscience; mais, puisqu’il reparaît dans un autre état, il n’est plus qu’une preuve de l’automatisme physique. Cela ne prouve-t-il pas que le souvenir n’est une preuve ni de la conscience ni de l’inconscience et qu’il faut chercher en dehors de la mémoire des indications sur l’état des cataleptiques. »

« ‘Un apoplectique frappé à mort, sans sortir du coma où il était plongé, prenait sa montre au chevet de son lit et faisait sonner l’heure avec l’air d’une profonde attention.’ Cette observation ne prouve pas grand’chose, car d’un côté cet individu, au moment où il fit cet acte, n’était pas encore mort, et avait peut-être (nul ne peut prouver le contraire) quelque reste de conscience et, d’autre part, comme il mourut peu de temps après, il ne put jamais dire s’il avait senti ou non ce qu’il faisait. Dans un chapitre très intéressant, l’auteur énumère tous les actes accomplis par une grenouille décapitée, un triton coupé en deux, par les tronçons [parte, segmento] de la mante religieuse, etc., et il montre sans cesse que ces actes ressemblent parfaitement à ceux que l’intelligence consciente commande dans d’autres cas par les mêmes appareils, mais qu’ils doivent être faits sans conscience maintenant, parce que l’organe nécessaire à la conscience a été enlevé. »

« ‘Ce pouvoir intelligent manifesté par le tronçon inférieur, ne saurait dériver d’un moi, d’un être se sentant être; autrement il y aurait 2 êtres séparés chez cet animal : un pour le tronçon supérieur, lequel peut agir avec intelligence, et l’autre pour le tronçon inférieur. Or, cela n’est pas admissible dans l’état actuel de la science.’ Nous répondrons : pourquoi donc cela est-il inadmissible ? L’unité absolue du moi est une conclusion métaphysique, vraie peut-être, mais qui doit résulter des faits et non pas s’imposer à eux. » Células têm alma ? He he he

« M. Despine insiste sur le caractère inconscient de l’habitude : ce n’est pas l’intelligence qui retient un morceau de musique et qui l’exécute consciemment; l’artiste doit avoir son morceau ‘dans les doigts, dans la bouche’. » « Je n’insisterai pas sur la description de ces actes inconscients empruntés à la vie normale : l’auteur en décrit les détails avec un véritable talent psychologique, d’autant plus curieux qu’il refuse à ces faits tout caractère psychologique. »

« Ainsi les phénomènes du souvenir, le réveil des idées sous l’influence de l’association sont incontestablement des résultats de l’habitude; ils s’accomplissent néanmoins avec conscience. » Excelente refutação involuntária da associação de palavras psicanalítica.

attention vs. conscience

(o velho estribilho)

« Il faudrait maintenant prouver que ces actes inconscients pour nous sont inconscients en eux-mêmes. »

« Buffon a attribué aux molécules organiques coordonnées dans le corps animal des espèces de sensations matérielles étrangères à la pensée et au moi. » « La discussion de toutes ces théories, peut-être aventureuses, serait inutile et nous entraînerait trop loin; mais leur énoncé suffît pour faire comprendre qu’un acte habituel ou même organique n’est pas nécessairement inconscient parce qu’il est ignoré de moi. »

TÃO ROTUNDO E AO MESMO TEMPO TÃO OBSCURO: « En réalité, nous ne connaissons jamais directement qu’une seule conscience, c’est la nôtre au moment où nous la sentons; toute autre conscience n’est connue que par une induction ou une supposition. Personne ne pourra jamais démontrer mathématiquement que la personne qui me parle n’est pas une poupée mécanique à langage articulé, et les cartésiens raisonnaient rigoureusement en disant d’un chien blessé ‘Cela crie et ne sent rien.’ » « Or, nous supposons ordinairement l’existence de la conscience d’après 2 signes, la parole et les actions intelligemment coordonnées. Le premier signe, la parole, est considéré comme le plus décisif, et cela est juste ; mais il n’est qu’un cas plus complexe et plus parfait du second, un ensemble de mouvements plus compliqués et plus intelligemment coordonnés que les autres »

« Les cataleptiques ne parlent pas, cela est vrai, et nous aurons plus tard à revenir sur ce fait important, mais ils agissent intelligemment. Si je mets sur le bras étendu d’une cataleptique un poids de 2 kilos, les muscles du bras et ceux de tout le corps se tendent pour que le bras supporte le poids sans fléchir. Si je lui mets dans les mains une aiguille, l’ensemble des mouvements se coordonne d’une autre manière que si je mets les mains en prière. »

« ‘Plusieurs actes fort compliqués, intelligents, atteignant un but parfaitement déterminé et varié suivant les circonstances, actes ressemblant exactement à ceux que le moi commande… peuvent être automatiques.’ Despine (c’est-à-dire ici inconscients). »

« L’homme, disait Maudsley, dans le même sens, ne serait pas une plus mauvaise machine intellectuelle sans la conscience qu’avec elle. » Herzen, Le cerveau et l’activité cérébrale, 1887.

« En un mot, la conscience n’est qu’un accessoire, un épiphénomène dont l’absence ne dérange rien. On a, je ne sais pourquoi, attribué cette théorie à M. Ribot, qui cependant, avec d’excellents arguments, avait protesté contre elle (Maladies de la personnalité). »

« Que veut-on dire quand on parle ‘des raisonnements de la moelle et de l’intelligence du cerveau’ ? Rien autre chose sinon qu’il y a une autre conscience que la nôtre dans la moelle ou dans le cerveau, car un raisonnement sans conscience n’a absolument aucun sens. » « Le fait de la conscience nous paraît au contraire fort important dans la série des phénomènes organiques : sa présence ou son absence, comme on le verra de plus en plus, modifie considérablement les choses. »

1.3 INTERPRETATIONS PSYCHOLOGIQUES. — LA CATALEPSIE ASSIMILÉE AU SOMNAMBULISME.

« Les actes accomplis pendant la catalepsie sont sous la dépendance des phénomènes psychologiques : voilà une proposition qui semble bien simple, mais qui est susceptible d’interprétations fort différentes. »

« Je ne parlerai pas d’une interprétation facile, qui fut de mode bien longtemps. Elle consistait à rattacher tous les faits qu’on ne comprenait pas à une simulation volontaire et parfaitement consciente. C’est une idée complètement fausse de croire qu’une maladie psychologique ou même imaginaire soit toujours une maladie simulée, et d’ailleurs la catalepsie est de tous les phénomènes anormaux celui qui peut le moins être simulé. Mais, sans rattacher la catalepsie à une intelligence complète calculant ses ruses, on peut l’expliquer par une demi-intelligence comprenant les pensées de l’opérateur, se rendant compte de ses actes, sans avoir la force de s’y opposer; en un mot, on peut rapprocher la catalepsie du somnambulisme et expliquer tous ces actes par la suggession. »

« Pour mettre un membre en catalepsie, il n’est pas nécessaire d’ouvrir les yeux du sujet, ni de le soumettre à une lumière vive ou à un bruit violent, comme cela se fait à la Salpêtrière; il suffit de lever ce membre, de le laisser quelque temps en l’air, au besoin d’affirmer que le membre ne peut plus être baissé; il reste en catalepsie suggestive : l’hypnotisé dont la volonté ou le pouvoir de résistance est affaibli conserve passivement l’attitude imprimée. »

Bernheim; cf. aussi Liébault

¹ Bernheim e Liébault já foram muito citados em posts anteriores de psiquiatria, principalmente Ellenberger, por isso não estão nesta BIBLIOGRAFIA de Janet, com exceção de 2 obras de Bernheim mais adiante, citadas nominalmente no livro.

« La catalepsie et le somnambulisme ne sont que des degrés l’un de l’autre, cela est incontestable, et nous verrons entre eux bien des intermédiaires » « Tâchons donc de préciser le degré où s’arrête la conscience des cataleptiques. » « Une somnambule n’exécute pas toujours le même acte de la même manière; elle le fait tantôt vite, tantôt lentement, tantôt avec bonne humeur, tantôt en protestant, tantôt d’une façon, tantôt d’une autre. Rien n’égale au contraire la régularité des cataleptiques : point de changement de caractère, point d’impressions extérieures qui les distraie ou les modifie; leurs gestes, leurs pas sont toujours mathématiquement les mêmes ; Léonie fera toujours le même nombre de pas en face et à droite pour aller communier, et elle se heurtera contre un mur sans avancer plutôt que de tourner à gauche. Une somnambule qui sera toujours capable d’adapter ses actes aux circonstances montre donc une tout autre intelligence. »

« le sujet ne sait pas parler. Il ne s’agit pas de la parole articulée qu’il possède quand il répète les sons dans l’écholalie, il s’agit du langage comme signe de la pensée. » Car, sinon, le perroquet saurait parler !

« Rose, dans certains sommeils profonds, avait la bouche plus ou moins paralysée, mais elle me répondait par un signe de la main qui voulait dire ‘oui’, ou un autre qui voulait dire ‘non’. Quand elle a un moment de catalepsie pendant la crise hystérique ou pendant le somnambulisme, elle ne me répond plus du tout par aucun signe, quoiqu’elle n’ait rien de paralysé, qu’elle puisse parler en écho ou répéter des gestes. »

« Peu importe d’ailleurs que l’on désigne l’état que j’ai décrit sous le nom de premier somnambulisme ou état de suggestibilité complète ; la seule chose importante, c’est de bien comprendre les modifications psychologiques des sujets dans cet état, car il n’y a absolument que des différences psychologiques pour distinguer tous les états. »

« Cette conscience est capable de sensations, mais incapable d’idées; capable d’entendre, mais incapable de comprendre. Il ne faudrait pas en conclure que l’on peut parler au hasard devant les cataleptiques sans aucun danger pour les expériences futures; elles peuvent retenir les paroles même sans les comprendre et si, comme nous le verrons plus tard, ce souvenir se réveille dans un état ultérieur plus intelligent, il sera alors compris et aura sa puissance suggestive. »

« Il résulte de ce fait que, tout en paraissant extrêmement inerte et docile, le sujet est en réalité peu maniable et obéit beaucoup plus à ses propres inspirations qu’à celles de l’opérateur. Si je montre Léonie jouant la scène de la communion que j’ai décrite, on croira qu’elle obéit à un commandement donné par moi. En réalité, je n’avais point commandé ni même prévu ce qu’elle allait faire, et la 1e fois j’en ai été fort surpris. Je sais maintenant par expérience qu’en mettant les mains de ce sujet dans une certaine position, puis en le laissant quelques minutes, je vais amener la scène de la communion. » « si je voulais (…) lui faire embrasser un crucifix avant la communion, je n’y réussirais point. » « je suis donc simple spectateur plutôt qu’acteur. »

« Aujourd’hui qu’il est de mode d’expliquer tout par la suggestion, comme autrefois par la simulation, on pourrait dire que tous ces caractères psychologiques de la catalepsie ont été appris au sujet qui a été dressé dans ce sens. Il serait dangereux de pousser à l’extrême ce raisonnement, qui deviendrait vite lui aussi une sorte d’argument paresseux. Mais il est juste d’en tenir compte; car, bien souvent sans doute, dans les milieux où les sujets sont nombreux et s’imitent les uns les autres, certains états réels chez un sujet ont pu être artificiels chez le second. Mais, pour les cas dont il s’agit ici, nous remarquerons que les sujets ne se connaissaient nullement les uns les autres et qu’il ne faut pourtant pas supposer les opérateurs assez naïfs pour avoir suggéré sans le savoir tous ces caractères positifs et négatifs de la catalepsie. »

« Je faisais un jour quelques expériences avec Lucie et une personne étrangères était présente : cette dernière circonstance me déplaisait fort, car il ne faut conserver avec soi que les personnes indispensables habituées à l’attitude qu’il faut avoir pendant des expériences de ce genre. Cette personne étrangère me posait sans cesse des questions fort embarrassantes; car, selon mon habitude, je ne voulais pas répondre devant le sujet; cependant un mot malheureux m’échappa: ‘Qu’est-ce que la catalepsie ? demandait-on. ‘C’est un état où le sujet demeure immobile et laisse les membres dans la position où on les met.’ À peine avais-je dit ces mots que j’en eus du regret : ‘Désormais, pensai-je, il sera juste de dire qu’elle fait de la catalepsie suggesitive, et je voulus vérifier de suite l’effet de mon imprudence. ‘Tenez, dis-je tout haut, quand je vais frapper dans mes mains, elle va tomber en catalepsie.’ Je frappe et voilà Lucie qui reste complètement immobile, les yeux grands ouverts : je soulève ses bras, ils restent en l’air, j’incline son corps, il demeure incliné. Etait-elle en catalepsie ? Il me fut facile de vérifier qu’aucun autre signe de la catalepsie, ni l’expression de la physionomie, ni l’imitation, ni l’écholalie ne pouvait être constaté, et surtout le sujet comprenait si bien la parole qu’il me suffît pour terminer l’affaire de lui dire : ‘C’est fini, tu n’es plus en catalepsie.’ Eh bien ! qu’on essaye d’arrêter une véritable attaque de catalepsie, comme Lucie elle-même en avait eu, mais très rarement, en disant simplement au sujet que c’est fini, et on verra quelle différence il y a entre cet état de docilité suggestive, forme du petit sommeil hypnotique, et l’accès cataleptique véritable, pendant lequel la pensée est ramenée à un état tout à fait rudimentaire et qui est une des formes de la grande attaque hystéro-épileptique. »

1.4 UNE FORME RUDIMENTAIRE DE LA CONSCIENCE. — LA SENSATION ET L’IMAGE ISOLÉES.

« Certains philosophes, à l’exemple des cartésiens, se sont représenté la conscience comme quelque chose d’invariable et d’immuable sans nuances et sans degrés. Pour Descartes, la pensée existait complète avec le doute, la réflexion, le raisonnement et le langage, ou bien n’existait pas du tout et se trouvait remplacée par le mécanisme pur et simple, par l’étendue et le mouvement. Leibniz au contraire, dans cette philosophie profonde, à laquelle aujourd’hui toutes les sciences physiques et morales semblent nous ramener, avait une toute autre conception de la conscience. Il admettait un nombre infini de degrés et certaines de ces formes lui semblaient tellement inférieures à la pensée normale ‘que les esprits humains étaient comme de petits dieux au prix d’elles’. C’est cette dernière théorie qu’il nous faut maintenant rappeler dans ses traits principaux, pour comprendre la possibilité des consciences inférieures et rudimentaires. Prenons la conscience humaine dans sa forme ordinaire et achevée et enlevons-lui successivement tous les perfectionnements qu’elle a acquis, mais qui ne lui sont pas essentiels. Tout le monde reconnaît qu’il faut séparer de la conscience vulgaire l’intelligence scientifique, cette faculté, qui existe chez tous les hommes à un degré plus ou moins élevé, d’expliquer et de comprendre les choses. »

« En effet, quand nous examinons les actions des autres hommes, nous sommes trop portés à leur prêter les idées et les raisonnements que nous faisons nous-mêmes pour interpréter leur conduite. Bien souvent nous croyons qu’un homme a agi avec intention, qu’il a calculé les conséquences de ses actions, qu’il a fait de ses idées un tout systématique relié par des rapports bien compris, tandis qu’en réalité cet individu a laissé ses pensées s’évoquer mécaniquement les unes les autres sans avoir saisi entre elles aucun rapport systématique. Il ne faut pas confondre la loi ou l’interprétation des faits de conscience telle que notre intelligence la trouve, ou croit la trouver, avec la conscience elle-même. Si les phénomènes de conscience présentés par un homme nous paraissent liés entre eux par des rapports de ressemblance, de différence ou de finalité, il ne faut pas en conclure qu’il y ait eu dans l’esprit de cet homme la conscience de la ressemblance, de la différence ou de la finalité. (Voir, à ce sujet, Rabier, Cours de philosophie, I, 74 et I, 254.)¹ C’est dans cette erreur que semblent tomber les philosophes anglais quand ils disent que toute conscience est la perception d’une différence. C’est aussi une exagération de ce genre que je reprocherais quelquefois aux travaux si intéressants de M. Paulhan, qui semble prêter à la conscience élémentaire les notions de finalité dont il se sert lui-même pour les interpréter. »

¹ Figura completamente apagada do conhecimento público!

« si nous sommes en présence des actes compliqués qu’accomplit Léonie quand je lui ai joint les mains, nous penserons, nous, qu’elle fait la communion et nous réunirons tous ces actes dans cette idée systématique que nous désignons par le mot ‘communion’; mais il n’est pas du tout prouvé qu’elle ait, elle, l’idée de la communion et qu’elle réunisse ses actions sous cette idée générale; il est bien plus vraisemblable qu’elle a des images qui s’évoquent les unes les autres, et rien de plus. »

« Il est certain, disait Reidqu’il n’y a point d’homme dans l’univers qui puisse concevoir ou croire que l’odeur existe en elle-même sans un esprit ou un sujet quelconque qui ait la faculté de sentir. »

¹ Em breve publicaremos uma obra completa do britânico Reid, traduzida do inglês, no Seclusão, nossa primeira tradução na íntegra. Schopenhauer também cita este desconhecido filósofo, situando-o acima de Hume na compreensão dos sentidos ou na descrição dos fenômenos (acepção schopenhaueriana); ou seja, ele é um precursor da fenomenologia.

TRECHO CONFUSO, ATÉ PORQUE, NESTE SENTIDO, REID DIFICILMENTE PODE SER CONSIDERADO UM FILÓSOFO METAFÍSICO, ESTANDO CONECTADO À TRADIÇÃO DO EMPIRISMO OU CETICISMO BRITÂNICO (MAS NO FINAL ENSAIAMOS UMA EXPLICAÇÃO):  « Si on se place au point de vue métaphysique, comme ces auteurs, si on cherche l’origine, la cause de la sensation, peut-être pensera-t-on, comme eux, qu’il n’y a pas de sensation sans une âme pour la produire et la connaître. Mais, si on se place à un point de vue exclusivement psychologique, si on considère le moi non plus comme un être et une cause, mais comme une certaine idée qui accompagne la plupart des phénomènes psychologiques, on sera forcé de penser qu’il y a des sensations sans moi, qu’il peut y avoir des phénomènes de vision, quoique cependant personne ne dise : ‘Je vois’. » Mas isso precisamente é ser metafísico, i.e., pejorativamente: idealista no sentido mais abstruso, escolástico, etc. Janet está se referindo ao ‘eu’ consciente clássico; Reid já tem conhecimento do inconsciente; é apenas necessário observar que “metafísico” para um filósofo é uma nobre denominação (um verdadeiro filósofo), para um psicólogo é proibitiva. Ora, Reid é quem vem na esteira de Locke, Hume E KANT, podendo já se contrapor ao empiricismo britânico como escola de pensamento viciado e solipsista. Deste ponto de vista, é um renascimento da metafísica, ou seja, realmente empírico, e não inocuamente empírico, como dantes. Janet também revitaliza o empírico e entende a metafísica tanto quanto Reid, Schopenhauer e eu, mas “toma partido” pela psicologia experimental, isso se vê em toda sua obra (toma sempre o cuidado de ‘não se exceder em filosofia’, embora devesse, sinceramente, fazê-lo). Tanto é assim que ele reconhece “métodos experimentais” diversos, sendo crítico de Wundt (mais abaixo).

Buffon, Discours sur la nature des animaux, 1839.

« Maine de Biran distingue 3 degrés dans le développement de l’intelligence et il les appelle : la vie animale, la vie humaine et la vie de l’esprit. Nous n’avons pas à nous occuper ici de la troisième existence ou de la vie de l’esprit, mais nous devons signaler le caractère qui distingue la vie animale de la vie humaine. »

« des effets internes appelés sensations animales, modes généraux de plaisir ou de douleur qui constituent l’existence de l’animal, lequel, pour exister et pour sentir ainsi, à son titre propre d’animal, n’a pas besoin de savoir qu’il existe ou d’apercevoir qu’il sent, c’est-à-dire d’avoir la conscience, l’idée de sensation, d’être une personne, un moi constitué un, simple, identique, restant le même quand la sensation passe et varie »

M. de Biran, Anthropologie

E no entanto os animais estavam certos o tempo todo!

« Entre la conscience complète et le mécanisme cartésien, il y a place pour des êtres qui ont la sensation sans conscience, sans moi capable de l’apercevoir. » Ibid.

Mas não o contrário (« consciência pura »).

« L’affection est ce qui reste d’une sensation complète quand on en sépare l’individualité personnelle ou le moi et avec lui toute forme de temps et d’espace, pour me servir de l’expression des Kantiens, tout sentiment de causalité externe ou interne, ou, dans le langage de Locke, quand l’idée de sensation se trouve réduite à la simple sensation sans idée d’aucune espèce, ou enfin, dans le point de vue de Condillac, quand la statue devient sensation sans être encore rien de plus [conceituação perfeita] Cet état affectif simple n’est pas une pure hypothèse; c’est un mode positif et complet dans son genre qui a formé dans l’origine notre existence tout entière et qui constitue celle d’une multitude d’êtres vivants de l’état desquels nous nous rapprochons toutes les fois que notre pensée intellectuelle s’affaiblit et se dégrade, que la pensée sommeille, que la volonté est nulle, [não grifo em verde porque discorde – embora não exista vontade nula, podemos dizer que o conceito é a esterilização de algo até sua pura racionalidade : este é o conceito filosófico de afecção – não é algo que possa ser sentido pelo indivíduo, mas é subjacente à nossa natureza] que le moi est comme absorbé dans les impressions sensibles, que la personne morale n’existe plus. [mera abstração, mas não que afecção caia no reino da hipótese: é um dado factual do Ser] »

M.B., Essai sur les fondements de la psychologie

« Il ne faut pas être trop étonné si ces passages de Maine de Biran s’appliquent exactement à l’état cataleptique. » Se a pessoa moral não mais existisse na catalepsia, como pôde Léonie ajoelhar-se fazendo mímica de prece? Não, não era uma prece real (sentimental), era repetição meramente vazia, mas ligada ao significado espiritual de uma prece, pois da religião e da moral jamais se subestima a importância (a não ser entre os Iluministas e seus derivados).

« Une sensation pour eux n’était rien si elle n’était pas jointe à la conscience de l’être qui l’éprouve. Cette discussion m’a fait voir combien j’étais encore loin de bien faire entendre mon point de vue. La théorie de Leibniz qui caractérise si bien cet état où la monade simplement vivante est réduite à des perceptions obscures, d’où elle s’élève aux aperceptions claires et à la conscience, [a-percepção : perceção sem linguagem ; percepção : descritível] me servirait d’introduction à l’exposition de ma doctrine qu’il me sera bien difficile de faire entendre. »

Id., Journal intime, 1877

« Qu’est-ce qu’une sensation qu’on ne sent pas ? Je demande à mon tour à quoi se rapporte cet on ? L’homme sent, il sait sa sensation parce qu’il est une personne identique permanente qui se distingue de ses sensations… L’animal ne sent pas, ne sait pas sa sensation parce qu’il n’est pas une personne constituée pour savoir ou apercevoir au dedans son existence individuelle. Il sent sans se savoir sentant, comme il vit sans se savoir vivant. »

O animal é o ser cândido: para ele, o domesticável, podemos mentir, sem medo de estarmos agindo mal: tudo vai ficar bem; pois para ele fica. E isso, como um bônus, alivia nossa angústia.

« Pendant la syncope, dit un auteur qui a pu étudier sur lui-même ce phénomène, c’est le néant psychique, absolu, l’absence totale de toute conscience, puis on commence à avoir un sentiment vague, illimité, infini, un sentiment d’existence en général sans aucune délimitation de sa propre individualité, sans la moindre trace d’une distinction quelconque entre le moi et le non-moi; on est alors une partie organique de la nature ayant conscience du fait de son existence, mais n’en ayant aucune du fait de son unité organique; on a, en deux mots, une conscience impersonnelle. »

Herzen, Le cerveau et l’activité cérébrale

« des sensations stupides »

1.5 LA NATURE DE LA CONSCIENCE PENDANT LA CATALEPSIE

« C’est précisément une conscience de ce genre, purement affective, réduite aux sensations et aux images, [o purement é decerto exagerado] sans aucune de ces liaisons, de ces idées de relation qui constituent la personnalité et les jugements, que nous croyons légitime de supposer pendant la catalepsie et les états analogues. » Eu diria que isso coaduna mais com a psicopatia aguda : tudo isso, inclusive com coordenação motora e funcionamento muscular normal, possibilitando atitudes como o homicídio.

« Ni le néant de la conscience et le pur mécanisme, ni la connaissance capable de comprendre et d’obéir ne nous paraissent ici vraisemblables; il s’agit au contraire d’une forme particulière de la conscience intermédiaire entre ces deux extrêmes. »

« Attendons encore quelques instants : si je parle maintenant et si je dis tout haut : ‘Lève le bras’, la bouche s’ouvre et répète comme un écho : ‘Lève le bras’. Quelques instants après cette période d’écholalie, le sujet ne répète plus les commandements, mais il les exécute, il lève le bras en réalité. Encore un moment et il me répond avec une vivacité croissante et une conscience qui semble de plus en plus complète. » Estado intermédio (na verdade o próprio histerismo e o sonambulismo são ‘estados intermédios’ sobrepostos entre si) entre a crise histérica e a sonambulia. Também chamado de estado de “síncope hipnótica”. « syncope hypnotique ou sommeil hystérique (peu importe le nom) »

« Je constatai en effet que chaque muscle pressé, même légèrement, se contractait immédiatement et isolément, puis se relâchait très vite. Il était possible d’étudier sur elle l’action isolée de tous les muscles du corps. C’était presque l’état léthargique décrit par M. Charcot, avec cette différence que la contraction musculaire ne persistait pas sous forme de contracture. » Critica o nome ‘letargia’, charcotiano, cuja acepção é de “death trance”: nem sequer guarda qualquer relação ou analogia próxima com a morte ou o rigor mortis.

« la léthargie naturelle présente bien quelquefois des contractures générales, mais ordinairement n’amène pas cette hyperexcitabilité neuromusculaire. »

Gilles de la Tourette, L’hypnotisme et les états analogues, 1887.

« La léthargie hypnotique me paraît être plutôt un degré de conscience élémentaire, une sensation musculaire si rudimentaire qu’elle reste tout à fait isolée et ne se généralise pas assez pour diriger le mouvement de tout un bras. Un troisième exemple sera plus net encore. Un caractère singulier de Léonie, c’est que tout changement d’état quel qu’il soit est toujours signalé par un soupir brusque, une sorte de petite convulsion respiratoire. » « J’avais cru utile autrefois de désigner cet état qui participait de la léthargie et de la catalepsie par un nom particulier. Mais cette nomenclature n’a pas en réalité grand avantage; on peut établir autant de degrés que l’on voudra dans ce réveil graduel de la conscience. »

« Chez Léonie, il y a 3 degrés de catalepsie avec les yeux fermés (…) Après ce dernier degré, les yeux s’ouvrent d’eux-mêmes, et il y a 4 formes de catalepsie avec les yeux ouverts. » Há quantas catalepsias se quiser que haja, é o que Janet diz no fundo.

1.6 NATURE DE LA CONSCIENCE PENDANT DES ÉTATS ANALOGUES À LA CATALEPSIE

« Lucie tourne toujours les yeux vers ses rideaux, et je me suis souvent demandé si elle aurait la même crise dans une chambre sans rideaux. Marie rêve d’incendie pendant sa crise, si elle survient pendant la nuit, et ne songe pas à l’incendie si la crise survient pendant le jour. C’est très probablement parce que la nuit elle voit une lampe allumée à peu de distance de son lit. Mais, dira-t-on, il est très difficile de transformer les poses d’une hystérique; elle semble ne pas vous sentir et ne pas vous voir. »

« il suffit de voir Léonie immobile, les mains jointes et les yeux levés au ciel pour comprendre ce que le moyen âge appelait une extatique. Les sainte Thérèse, les sainte Hildegarde, les Marie Chantai, les Catherine Emmerich et bien d’autres avaient tout simplement des attaques de catalepsie, pendant lesquelles les idées religieuses dominantes ou communiquées quelquefois au moment même de leur attaque donnaient à tout le corps une attitude harmonieuse et expressive. L’une prend la pose de l’Immaculée Conception; l’autre prend successivement toutes les attitudes représentées dans un chemin de la croix. L’étude la plus curieuse à ce point de vue est celle de Louise Lateau dont la description faite par le Dr. Lefèvre est résumée dans l’ouvrage du Dr. Despine. »

Luc Desages. De l’extase, 1866.

1.7 INTERPRÉTATION DES PHÉNOMÈNES PARTICULIERS DE LA CATALEPSIE

« Les forces physiques de la pesanteur tendraient à le faire tomber : il faut, en effet, une contraction délicatement systématisée de tous les muscles pour le maintenir. Qu’est-ce qui peut donner à ces contractions leur unité et leur persistance ? Je ne vois point d’autre réponse que celle-ci : c’est une sensation persistante. » « Cette sensation étant seule dans l’esprit n’a rencontré aucun phénomène antagoniste et réducteur, elle n’a pas disparu avec l’excitation productrice, elle a subsisté et elle dure encore. »

« Cette sensation kinesthésique eut-elle reproduire ou, dans le cas présent, maintenir l’attitude? C’est là ce qui est plus discuté. On établit d’ordinaire une grande distinction entre les phénomènes sensitifs et les phénomènes moteurs. La grande découverte de la différence entre les nerfs sensitifs et les nerfs moteurs amena la distinction moins certaine (si j’ose avoir une opinion sur ce sujet) des centres sensitifs et des centres moteurs, et celle-ci inspira le désir de trouver dans les phénomènes psychologiques une séparation analogue entre les phénomènes de sensibilité et les fonctions ou les phénomènes du mouvement. »

« On fit alors diverses suppositions : les uns, comme Wundt et M. Charcot, admirent qu’il y avait toujours une sensation de mouvement coïncidant avec l’émission de la force nerveuse et précédant tout mouvement; les autres, comme Bastian, considérant les sensations kinesthésiques comme absolument centripètes, venant exclusivement de l’extérieur, admirent ‘l’inconscience absolue de tous les courants centrifuges’ ou en général de tous les actes moteurs. Sans préjuger toutes les difficultés que soulève cette question et que nous rencontrerons peut-être plus tard, je crois que le phénomène cataleptique de la conservation des attitudes nous offre un cas simple ‘prérogatif’ où cette question des rapports entre la sensibilité et le mouvement est plus facile à étudier que dans aucun autre. »

« Pourquoi supposer 2 phénomènes qui se confondraient ? Nous devons nous représenter ici les choses de la manière la plus simple : l’excitation E produit la sensation kinesthésique SK, laquelle suffit pour produire à son tour le mouvement M. Il n’y a pas lieu de supposer d’autres intermédiaires. Dans ce cas simple, il n’y a plus lieu de soulever les difficultés dont parlait Bastian : nous n’avons pas à chercher si le phénomêne moteur a, oui ou non, une conscience distincte de celle du phénomène sensitif, puisque les 2 phénomènes ne forment qu’une seule et même chose. » « l’image kinesthésique, ne rencontrant aucun obstacle dans cet esprit qui est complètement vide, se prolonge tant que nous ne l’avons pas remplacée par une autre en déplaçant le bras. » « il n’y a pas de mouvement sans une sensation de mouvement et point de sensation ou même d’image de mouvement sans un mouvement. » 

« Les actes produits par imitation et par répétition vont nous faire avancer un peu plus dans l’étude du même problème. Au lieu de lever le bras du sujet, je lui montre mon bras levé et il met le sien lui-même dans une position identique. Ici, les phénomènes sensitifs (voir un mouvement) et les phénomènes moteurs (lever le bras) ne se confondent pas comme précédemment, et il semble naturel de les séparer. » « l’excitation visuelle E’ produite par mon mouvement amènerait la sensation visuelle SV, celle-ci éveillerait par association l’image de la sensation kinesthésique SK, qui était tout à l’heure éveillée directement, et cette image, d’après la loi précédente, amènerait le mouvement M auquel elle correspond. » « Est-ce que la sensation visuelle SV ne pourrait pas produire directement le mouvement M sans l’intervention d’aucune image musculaire? » « Cette hypothèse est confirmée par les recherches sur les hystériques anesthésiques dont nous parlerons plus tard. À mon avis, il est impossible d’expliquer comment ces personnes peuvent souvent conserver tous leurs mouvements malgré la perte absolue des sensations et même des images kinesthésiques, si l’on n’admet pas que le mouvement peut être produit directement par des images visuelles ou auditives. »

« Il y a, au point de vue du langage, des visuels, des auditifs, des moteurs, c’est-à-dire des individus qui, pour se représenter des paroles, emploient des images visuelles, auditives, motrices d’articulations ou motrices graphiques. Ces représentations jouent un grand rôle dans la parole elle-même et il existe des individus qui parlent avec le sens auditif, c’est-à-dire chez qui l’image auditive d’un mot suffit pour en amener la prononciation. Nous pouvons étendre cette théorie célèbre à tous les mouvements et dire que certains mouvements du bras ou de la jambe peuvent accompagner immédiatement l’image visuelle de ce mouvement sans image kinesthésique intermédiaire. » Conforme com Saussure e com os estudos contemporâneos sobre libras e surdos-mudos e aquisição da linguagem. Só faltou dizer que o cego que cresceu cego tem mais apetência para a aquisição da linguagem que o surdo/meramente gestual de nascença.

« Il est probable que, dans l’enfance, nous commençons tous par être ‘des moteurs’ agissant et pensant au moyen des images du sens musculaire. Plus tard seulement des images visuelles et auditives d’abord associées aux images motrices deviendraient prédominantes et pourraient seules produire le mouvement. Ce serait une application de ‘cette coordination, de cette synthèse psychique’ dont M. Paulhan a montré la nécessité, ce serait ‘une systématisation préétablie’ des phénomènes psychiques et des phénomènes organiques qui permettrait à toute image de jouer le rôle d’une image motrice. »

« Il faut donc généraliser notre loi précédente et dire de toute sensation et de toute image ce que nous avons dit du sens kinesthésique. Une image de mouvement dans la conscience se manifeste toujours, à l’extérieur, pour un témoin étranger, par un mouvement réel, et d’autre part cette image tend à durer, à persévérer dans son être et par conséquent amène la continuation du mouvement, tant qu’elle n’a pas été remplacée par quelque image nouvelle. »

« Hamilton¹ avait déjà compris d’une manière intéressante l’association des idées quand il disait : ‘Sont suggérées les unes par les autres les pensées qui auparavant ont fait partie d’un même tout, d’un même acte de connaissance.’ M. Taine considère de même les associations comme des renaissances partielles de totalités qui tendent à se reformer complètement. »

¹ Não localizado.

« La connaissance véritable, le jugement, les idées générales ne doivent pas être mêlées à ces phénomènes automatiques de la pensée rudimentaire. » « Les émotions désignées par le langage sous le nom de peur, colère, amour, etc., sont peu nombreuses et peu précises; mais leurs variétés doivent être en réalité innombrables et correspondre chez chaque individu à un ensemble déterminé d’images et de mouvements. C’est l’une de ces émotions très précises que nous faisons naître chez les cataleptiques et qui amène leurs expressions et leurs actes associés. »

« L’automatisme ne crée pas de synthèses nouvelles, il n’est que la manifestation des synthèses qui ont déjà été organisées à un moment où l’esprit était plus puissant. » « Nous n’avons vu jusqu’ici que l’association automatique la plus simple, qui suffît pour expliquer tous les phénomènes présentés par les sujets dans les états que nous venons de décrire. »

« Une des meilleures expressions qui puissent caractériser cet état a été proposée par M. Ochorowicz. La catalepsie était, disait-il, un état de monoïdéisme. ‘Certains sujets, capables de présenter ces 2 phases opposés d’a-ïdeïe (syncope hypnotique) et de polyïdeïe (somnambulisme), ne passent pas directement, ou tout au moins peuvent ne pas passer directement, de l’une à l’autre; ils s’arrêtent plus ou moins longtemps dans la phase monoïdéïque . . . C’est un cerveau qui concentre toute son action sur une seule idée unique, dominante, qui n’est contrebalancée par aucune autre.’ »

A ANALOGIA CEREBRAL DE HERZEN: « Le cerveau peut être comparé à une salle fournie d’un nombre immense de becs de gaz, mais éclairé seulement par un nombre relativement petit et relativement constant de becs allumés qui ne sont pas toujours les mêmes, au contraire, qui changent à chaque instant. A mesure que les uns s’éteignent, d’autres se rallument. Jamais ils ne sont tous allumés, de temps en temps ils seront tous éteints. » Eu só repararia que sempre há algum bujão de gás ativo enquanto o ser está vivo, ainda que em coma, p.ex.

Vemos, num contínuo, como algumas idéias são arquétipos sempre corretos do espírito humano, embora expressos de maneiras distintas e até, na aparência, antitéticas: No princípio era o verbo (Deus) – No princípio era a ação (Goethe). Tudo isso é apenas o devir necessário do cristianismo desde os remotos escritos judaicos da era de ouro aos desdobramentos psicológicos da cultura européia. O mesmo, em menor escala, para ângulos distintos da análise do mesmo fenômeno numa mesma geração, sintetizando perfeitamente um fato: O homem é a medida de todas as coisas – Deus é a medida de todas as coisas.

2. L’OUBLI ET LES DIVERSES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES

2.1 LES DIFFÉRENTS CARACTÈRES QUI ONT ÉTÉ PROPOSÉS POUR RECONNAÎTRE LE SOMNAMBULISME

« Cependant il est fort difficile de trouver un signe qui le caractérise d’une manière générale, et la plupart des caractères qui ont été ainsi désignés nous semblent insuffisants; en les passant en revue, nous verrons quelques caractères accessoires de cet état, mais il nous restera à en chercher le signe distinctif. »

« La plupart des anciens magnétiseurs considéraient l’insensibilité absolue de la peau comme étant la règle constante et le signe indubitable du somnambulisme. »

« Il n’y a pas de sommeil magnétique sans insensibilité complète du corps et des sens, de telle sorte que nous nous aiderons, pour la constatation du sommeil, de tout ce qui peut nous convaincre de cette insensibilité. »

Baragnon

« M. Dubois d’Amiens se plaint qu’on ne lui ait laissé faire pour vérifier le somnambulisme ‘qu’un simple tatouage à coups d’épingle sur la figure et sur les mains’. » « Eh bien, le procédé de M. Dubois n’aurait pas grand résultat si on l’appliquait aux somnambules que j’ai étudiées. La plupart de ces personnes, presque toutes, étaient déjà anesthésiques sur une partie plus ou moins considérable du corps avant tout sommeil hypnotique, dans leur état le plus normal. (…) au contraire, j’ai été amené, pour certaines d’entre elles et dans certains cas, à considérer le retour de la sensibilité comme une preuve du somnambulisme le plus profond. »

« l’absence complète de déglutition pendant certains états somnambuliques. » Baragnon

« Ce détail m’a frappé, car, chez une personne, chez Léonie, il est absolument constant. Elle n’a aucune déglutition pendant le somnambulisme et jamais je ne suis arrivé à lui faire avaler une goutte d’eau. » « Mais le phénomène, loin d’être caractéristique, est assez rare; la plupart des somnambules mangent et boivent sans aucune gêne dans leur sommeil. » « Rose n’était jamais aussi heureuse que lorsqu’elle déjeunait en somnambulisme. Il y a même des hystériques dysphagiques à l’état de veille, qui mangent assez facilement quand elles dorment, et c’est un détail qu’il est quelquefois utile de connaître. Mon frère a réussi à alimenter ainsi une femme hystérique qui, à cause de vomissements incoercibles, était près de mourir de faim. »

« La croyance populaire se représente, en général, les somnambules comme des personnes qui parlent en ayant les yeux fermés. Cette croyance résulte probablement de cette idée, en réalité assez fausse, que le somnambulisme est un sommeil : on répète aux somnambules qu’elles dorment, d’où elles concluent qu’elles doivent avoir les yeux fermés. » « C’est alors que M. Despine prétend que leur regard a toujours un caractère tout particulier et distinctif : les pupilles largement dilatées restent immobiles à l’action de la lumière; la conjonctive insensible ne sent pas le besoin d’être lubréfîée par les larmes, aussi le clignotement des paupières est supprimé ou fort rare. » « Il faut avouer que je n’aurais pas une pareille hardiesse ni une pareille conviction. § Sans doute, ce regard existe quelquefois, et M. Despine indique très bien dans quelle circonstance : lorsque la rétine est paralysée » « ce regard amaurotique [amaurose, a cegueira sem lesão física] a assez de ressemblance avec celui de l’individu qui est assez myope pour ne pouvoir distinguer aucun des objets environnants »

« D’après une opinion assez ancienne, que Maine de Biran lui-même a soutenue, le somnambule se conduirait toujours d’après ses rêves, d’après des hallucinations qui lui représentent les objets tels qu’il les connaît et non d’après de véritables sensations visuelles. » « J’ai envoyé plusieurs fois Lucie, en plein somnambulisme, parler à des personnes étrangères qui n’étaient pas prévenues et elle a toujours été prise pour une personne normale. »

« Sans doute, il y a, pour moi qui les connais bien, quelques traits caractéristiques et je n’aurais pas toujours besoin d’interroger leur sensibilité ou leur mémoire pour savoir dans quel état elles se trouvent : Marie est plus pâle en somnambulisme qu’à l’état de veille; Lucie, qui a plusieurs tics au visage quand elle est éveillée, a une figure calme et régulière dans le second état. Mais ce sont des signes individuels et de minime importance qui ne permettent pas de fonder une distinction scientifique. »

« En réalité, j’en suis maintenant convaincu, il n’y a pas de signe physique qui permette de reconnaitre si une femme est en somnambulisme ou si elle n’y est pas, et c’est s’avancer beaucoup que de prétendre reconnaître cet état au premier coup d’oeil. M. Despine soutenait que la psychologie n’a pas à s’occuper du somnambulisme et que la physiologie seule peut l’expliquer. Eh bien, loin de pouvoir l’expliquer, la physiologie ne peut même pas le reconnaître. »

À PROCURA DA ANALOGIA MAIS GROTESCA: « Le Dr. Carpenter parle de l’état de distraction du sujet hypnotisé. Il compare son état à la rêverie d’un poète devant un beau passage ou à la distraction d’un savant absorbé par la recherche d’un problème. [estado elogioso!] » « D’ailleurs Stanley-Hall (sic)¹ a pu dire au contraire que l’hypnose est une crampe [cãibra, depreciativo] de l’attention sur un objet. »

¹ Granville Stanley Hall (1846-1924), um dos maiores psicólogos americanos de todos os tempos.

« Léonie, quand on exige d’elle de l’attention pour des expériences délicates, demande de temps en temps un peu de récréation pour se reposer et pour s’amuser. »

« Bertrand, Braid¹ et surtout Bernheim ont cherché dans l’état de l’activité ou de la volonté la caractéristique du somnambulisme et ont constaté que le somnambule n’a pas de volonté personnelle, de spontanéité active et qu’il obéit à tous les ordres. »

¹ James Braid (1795-1860). Não confundir com o já citado Thomas Reid! A bibliografia deste polímata é complicada (muitos ensaios esparsos e reescritos), então faz-se recurso a um de seus sistematizadores póstumos, John Wilkinson. Idéia para o futuro (#offtopic): ESCREVER UM LIVRO COM MINIBIOGRAFIAS DE POLÍMATAS!

« rien n’est plus variable que l’état de la volonté dans le somnambulisme aussi bien que dans la veille. »

« Mais comment expliquer alors ces sujets qui, comme Rose, comme Lucie et bien d’autres, deviennent de plus en plus indépendants à mesure que le somnambulisme augmente de profondeur, et arrivent à un état où leur volonté est parfaitement normale, plus spontanée et plus indépendante qu’à l’état de veille ? »

2.2 CARACTÈRES ESSENTIELS DU SOMNAMBULISME : L’OUBLI AU RÉVEIL ET LA MÉMOIRE ALTERNANTE

« Or, dans toute la pathologie mentale, il n’y a pas de modification de la mémoire plus complexe et en même temps plus régulière que celle de la mémoire du somnambule. »

« On constate en effet régulièrement dans la pensée des individus qui, pour une raison ou pour une autre, ont eu des périodes de somnambulisme, 3 caractères ou 3 lois de la mémoire qui leur sont particuliers: L’oubli complet pendant l’état de veille normale de tout ce qui s’est passé pendant le somnambulisme; souvenir complet pendant un somnambulisme nouveau de tout ce qui s’est passé pendant les somnambulismes précédents; souvenir complet pendant le somnambulisme de tout ce qui s’est passé pendant la veille. La troisième loi présente peut être plus d’exceptions et d’irrégularités que les 2 autres, aussi dans cette étude, qui a surtout pour but de donner une idée générale du somnambulisme, insisterons-nous un peu moins sur elle. Mais les deux premières, malgré la diversité que présentent toujours des phénomènes aussi complexes, sont si générales et si importantes qu’elles peuvent être considérées comme le signe caractéristique de l’état somnambulique. § Le phénomène de l’oubli, au réveil, de tout ce qui s’est passé pendant le somnambulisme est si curieux et si frappant qu’il a été constaté dès les premières études de ce genre. »

« Ce caractère seul est constant et distingue essentiellement le somnambulisme. » Deleuze, Histoire critique du magnétisme animal, 1819. Muito cedo para fazer uma história crítica do magnetismo animal! – será que este antepassado de Gilles é outro precursor? « Il est inutile de multiplier ces citations que l’on pourrait emprunter à tous les écrivains aussi bien anciens que récents. »

« Si elle est endormie au milieu d’un acte ou d’une conversation, elle continue presque toujours au réveil son action ou ses paroles comme s’il n’y avait rien eu d’anormal : le somnambulisme, quelle qu’ait été sa durée, semble n’avoir pas existé et les 2 moments de la veille paraissent se rejoindre. Rose est restée 4 ½ jours en somnambulisme (nous voulions essayer de guérir ainsi une paralysie des jambes qui avait résisté à tous les autres procédés et nous avons d’ailleurs parfaitement réussi); mais, pendant ces 4 jours, elle parle à plusieurs personnes et reçoit même des visites. Au réveil elle a tout oublié, se trompe sur le jour de la semaine et croit être 4 jours en arrière. Il en est ainsi pour toutes les somnambules que j’ai pu voir, que leur état anormal soit court ou prolongé, que les événements soient insignifiants ou graves, l’oubli est toujours complet et absolu, c’est une page entièrement effacée dans leur vie. »

« Une autre somnambule, N., que j’ai endormi 2 fois, à un an d’intervalle, retrouva dans le second somnambulisme le souvenir minutieux de tout ce qu’elle avait fait dans le premier et me rappela des détails que j’avais moi-même complètement oubliés. Tous ceux qui ont endormi plusieurs fois la même personne ont remarqué ce phénomène aussi banal que singulier. Le second état possède ordinairement en plus le souvenir complet des actes et des idées de la veille normale : le sujet, pendant le somnambulisme, peut raconter ce qu’il a fait ou senti pendant la journée et connaît encore les mêmes personnes. Une seule fois j’ai assisté à un somnambulisme de Rose, differant accidentellement des autres, pendant lequel elle ne me reconnaissait plus et paraissait avoir oublié la plupart des événements arrivés depuis son séjour à l’hôpital. »

« Considérer cet état de la mémoire comme le caractère essentiel du somnambulisme, n’est-ce pas se fier à un signe facilement simulable et difficile à bien constater. Nous répondrons d’abord que jusqu’à présent on n’en possède pas de meilleur, ensuite que ce critérium est plus sûr qu’on ne le suppose. Contrairement à l’opinion générale, je considère les phénomènes psychologiques comme bien plus difficiles à simuler que les phénomènes physiques, et je crois qu’il serait plus aisé de jouer même une crise d’épilepsie que de feindre la folie pendant plusieurs jours devant un aliéniste. Pour le sujet qui nous occupe, il suffît d’un petit nombre de renseignements et d’un peu d’habitude pour simuler une contracture; il faudrait beaucoup d’intelligence, d’attention et de mémoire pour ne jamais confondre les souvenirs acquis pendant le somnambulisme et les souvenirs acquis pendant la veille et n’être jamais pris en défaut. » « il faut vérifier leurs souvenirs par leur conversation même, sans avoir l’air de les interroger directement. »

« On connaît aussi le rêveur de Despine qui, toutes les nuits, se vole à lui-même des pièces d’or et va toujours les cacher au même endroit. »

« Rose avait la mauvaise habitude d’injurier régulièrement une servante de l’hôpital à la fm de ses crises. Elle ne s’en souvenait plus après son réveil, et ne pouvait y croire quand on le lui disait. Cependant, à la crise suivante, elle reprenait ses injures au même point et insistait en criant : ‘J’ai eu bien raison de dire ceci et cela, c’était bien vrai’, et elle répétait tous les détails du délire précédent. » Sem traço de ironia, posso conceber por que pode ser tão arraigada a impressão do fanático de que um demônio ocupa o corpo do doente/possuído, afinal seria mesmo uma explicação satisfatória!

« On trouverait dans le travail de M. Myers de bons exemples, trop longs pour être rapportés ici, où un songe [daydream] est évidemment le souvenir d’un autre songe oublié pendant la veille. Ce qui me paraît plus curieux à rappeler et plus utile pour éclaircir ces problèmes de la mémoire, c’est que l’on a constaté des faits analogues pendant l’ivresse de l’opium et l’ivresse de l’alcool. Les faits sont surtout nets quand il s’agit de l’alcool; chacun sait qu’un homme ivre oublie au réveil ce qu’il a fait pendant l’ivresse. » O interessante é pensar na continuidade duma história todas as vezes que volto à ebriedade: o Rafael “brigão” da sexta à noite, split-personality em doses homeopáticas. Relembra as ofensas a sua honra como se, no lugar de 3 semanas, meia hora se houvesse passado! Pobre do So…. Se bem que dono de bar conhece a ‘raça’ com que lida na lide diária… Não é este Rafael que terá de ir ao médico, ao chaveiro ou ao posto de polícia depois, se perder algum documento ou se machucar, então ele é completamente indiferente a esses desdobramentos – eis o perigo supremo! Até fala, ao contrário do tipo ideal do bêbado, de forma mais fluente e incisiva… Porém, a despeito de toda a teatralidade, mantém-se um pacifista, ironia das ironias… Meu traço mais característico, até quando sou outro!

« J’ai eu quelquefois l’occasion de faire une petite expérience bien simple : on propose à un individu… trop gai… un bon moyen de prouver qu’il est resté dans son état normal, on lui indique un chiffre et on le prie d’en garder le souvenir pour le répéter le lendemain. En général, si l’ivresse était sérieuse, il serait absolument incapable le lendemain, malgré ses efforts, de retrouver le chiffre qu’on lui a dit. Mais je n’ai pas vérifié le retour de la mémoire dans une ivresse consécutive. » Sempre pedimos que façam um 4; mas é a primeira vez que vejo pedirem que digam um 4!

« et nous ne tarderons pas à voir qu’il y a en effet d’autres traits encore qui rapprochent l’ivresse du somnambulisme. » É um embebedamento dirigido e com guia.

« Cette mémoire nécessaire à l’exécution de la suggestion se présente sous les formes les plus variées, tantôt complètement consciente, tantôt ignorée par le sujet, tantôt elle envahit l’esprit subitement comme une impulsion dont il ignore l’origine, tantôt elle se développe lentement. »

« Si un sujet exécute une suggestion avec conscience et mémoire au moment où il l’exécute, il ne tarde pas, quelques instants après, à perdre complètement le souvenir non seulement du commandement, mais même de son exécution. »

« Il y a cependant naturellement une certaine mémoire persistante après les sommeils hypnotiques très légers, qui d’ailleurs se rapprochent beaucoup de la veille. »

« Un sujet hypnotisé pour la première fois se souvenait de tout, non seulement des actions qu’il avait faites, mais encore des sentiments de surprise qu’il avait eus en les faisant. Il semblait qu’il y eût deux moi, l’un regardant les actions involontaires de l’autre sans penser qu’il fût utile de les faire cesser. »

Edmund Gurney

« Pourquoi ne pas dire qu’il y a eu chez ces personnes des phénomènes suggestifs à l’état de veille, qu’ils n’ont point changé d’état pour avoir leurs bras ou leurs paupières paralysées, qu’ils ont simplement présenté quelques phénomènes inconscients et que le souvenir des autres s’est conservé tout naturellement ? »

« Que, dans bien des cas, surtout lorsqu’il s’agit d’un somnambulisme peu profond, il y ait lieu de rapprocher à bien des points de vue le sommeil hypnotique du sommeil normal, cela est tout à fait incontestable, mais que l’identité soit absolue et que les modifications de la mémoire ne soient pas bien plus considérables dans le cas du sommeil hypnotique, c’est ce que les faits ne permettent pas d’admettre. »

« Quand on réveille le sujet brusquement au milieu de l’accomplissement d’un acte suggéré, il en garde le souvenir comme d’un rêve. » « Lorsqu’un sujet est endormi pour la première fois, il a d’ordinaire un sommeil léger et il peut être réveillé brusquement; lorsqu’il est endormi souvent, il prend un sommeil profond dont il ne peut plus être tiré facilement. Tout au début de mes études sur Lucie, je pouvais facilement répéter l’expérience précédente; au bout de quelque temps, je ne pus y parvenir; car il fallait au moins une minute pour la réveiller, ce qui interrompait complètement l’acte somnambulique et ne laissait pas persister le souvenir. » « Le réveil difficile accompagne toujours le somnambulisme profond. »

« Même pour ceux-ci, il faut faire une remarque importante : le souvenir ainsi obtenu par le réveil brusque n’est pas de longue durée : il existe au moment même du réveil et on peut le saisir si on interroge le sujet à ce moment ; mais il disparaît peu à peu et ne laisse bientôt plus aucune trace dans la conscience. »

« En réalité, les états psychologiques sont continus et le sujet ne saute pas de l’un dans l’autre. Il y a une période posthypnotique qui se prolonge quelquefois assez longtemps après le réveil, et il est tout naturel que le souvenir du somnambulisme persiste quelque temps pendant cette période. »

« Au moyen âge, paraît-il, on considérait l’oubli après le somnambulisme comme un signe de sorcellerie : les malheureuses somnambules, par peur du bûcher, dit Bertrand, se suggéraient à elles-mêmes la conservation du souvenir et y réussissaient quelquefois. » Motivo da morte: o viajante no tempo viajou no tempo… para a Idade Média; e por isso foi queimado na fogueira.

« Aussi conservons-nous le caractère de l’oubli au réveil comme le signe le plus important de l’état somnambulique et persistons-nous à croire que, s’il fait complètement défaut, il y a eu suggestibilité à l’état de veille et non point somnambulisme. »

2.3 VARIÉTÉS ET COMPLICATIONS DE LA MÉMOIRE ALTERNANTE

« Le docteur Herbert Mayo cite un cas de quintuple mémoire : l’état normal du sujet était interrompu par 4 variétés d’états morbides dont il ne conservait pas le souvenir au réveil, mais chacun de ses états présentait une forme de mémoire qui lui était propre. »

« À l’exemple de M. Azam, nous dirons donc maintenant état 1, état 2, état 3 du même sujet pour désigner les phases par lesquelles il passe, et pour désigner le sujet dans ces états nous dirons, ainsi que M. Jules Janet l’a très bien proposé, le prénom du sujet avec un numéro d’ordre correspondant à l’état dans lequel il se trouve : ainsi, Lucie 1, c’est le sujet Lucie en état de veille; Lucie 2, c’est le même sujet dans le second état qui est ici le somnambulisme ordinaire. La suite de notre travail fera voir de plus en plus combien l’emploi de ces notations est justifié. » Rafael 25

« [Rose:] le troisième et le quatrième se superposent comme les somnambulismes successifs de Lucie et de Léonie, le dernier état présentant le souvenir de tous les autres et de la vie tout entière. Mais, en dehors du somnambulisme, la vie de cette personne présente un grand nombre d’accidents hystériques très variés, des crises convulsives, des délires hystériques qui se prolongent quelquefois pendant des journées entières et dont elle ne garde aucun souvenir, en outre des amnésies, des oublis singuliers qui ont déjà été souvent décrits. Il lui arrive d’oublier complètement, sans que l’on sache pourquoi, des parties importantes de sa vie qui avaient cependant paru normales. Ainsi, un jour, après une crise, elle perd la mémoire des 3 semaines qui ont précédé. Eh bien, le souvenir de l’un ou de l’autre de ces états oubliés revient facilement, quand elle rentre dans certaines périodes déterminées de son somnambulisme artificiel. » « le deuxième somnambulisme de Rose serait un état psychologique analogue à son délire hystérique, et son quatrième somnambulisme serait un état analogue à ces périodes de la vie qui sont subitement oubliées. C’est là une hypothèse qui ne s’appuie, jusqu’à présent, que sur un caractère, celui de la mémoire, et que nos études vont justifier de plus en plus. »

« C’est grâce à la connaissance de ces divers états psychologiques des hystériques que l’on peut guérir leurs paralysies et leurs contractures, et il faudra entrer dans des études bien plus ardues, si on cherche un jour le véritable traitement moral de la folie qui est bien plus compliquée que l’hystérie. »

2.4 ÉTUDE SUR UNE CONDITION PARTICULIÈRE DE LA MÉMOIRE ET DE L’OUBLI DES IMAGES

« D’où viennent ces changements d’états psychologiques ? Pourquoi ces oublis et ces retours bizarres de la mémoire ? Toutes les hypothèses possibles ont été proposées et les passer toutes en revue serait parcourir toute l’histoire du magnétisme animal. La plupart de ces théories ayant été déjà résumées dans les ouvrages de Maury, de Despine, de Ribot, il nous suffira de citer les plus célèbres et de montrer combien elles tiennent peu compte des véritables éléments du problème. » « Il y a peut-être quelque chose de vrai dans cette théorie de la disparition du moi; mais en conclure que toute conscience est supprimée pendant le somnambulisme, cela nous semble vraiment paradoxal et inadmissible. »

« Toute hypothèse, disent les logiciens, comprend 3 parties : une observation fortuite, une suite d’idées et de raisonnements destinée à l’expliquer et des expériences instituées pour vérifier les conséquences de cette supposition. C’est cet ordre que nous suivrons dans l’exposition de nos recherches. »

« Le souvenir des 3 mois oubliés était totalement revenu, ainsi que je pus le vérifier. Mais dès que ce somnambulisme changea et que le sujet entra dans l’état de veille ou dans un autre somnambulisme, ces souvenirs disparurent de nouveau complètement. »

« Rose était totalement anesthésique et sa conscience ne percevait aucune sensation tactile ou musculaire. Dans ce somnambulisme particulier qui amenait le retour des souvenirs, Rose recouvrait subitement la sensibilité tactile et musculaire du côté droit et devenait hémi-anesthésique. » « En effet, elle avait reçu alors une petite blessure causée par un coup de couteau au bras droit et en avait beaucoup souffert. Or, en ce moment, quand elle est éveillée, elle est si insensible qu’elle ne souffre d’aucune blessure, même quand, dans ses crises, elle se fait de véritables plaies aux membres. »

« Cette observation fortuite m’amena tout naturellement à supposer qu’il devait y avoir une relation entre l’état de la sensibilité et l’état de la mémoire. Les souvenirs acquis par une certaine sensibilité semblaient ne pouvoir être remémorés ou reproduits que si cette sensibilité subsistait dans le même état. Pour discuter la valeur de cette hypothèse et pour l’appliquer à des cas nouveaux, il me semble nécessaire de distinguer 2 cas et d’étudier à part 2 espèces de mémoires. »

« Un individu, qui aurait complètement perdu un sens [tátil, imagino] et qui ne pourrait plus à aucun degré apprécier les sensations que ce sens procurait, aurait perdu en même temps toutes les images et par conséquent tous les souvenirs relatifs à ces sensations. Mais, dira-t-on, un homme devenu subitement aveugle par un accident conserve encore, quoiqu’il ne puisse plus rien voir, le souvenir des sensations visuelles. C’est que cet individu n’a perdu que l’oeil, organe extérieur de la vision et non pas la faculté psycho-physiologique de voir. S’il avait perdu les centres nerveux de la vision, la faculté même d’apprécier les sensations visuelles, il n’aurait plus le souvenir d’avoir vu et, comme un aveugle de naissance, il ne saurait plus ce que c’est que voir. Il y a des individus de ce genre; on peut montrer que les choses se passent ainsi dans les anesthésies hystériques. »

« Rose fut, à un moment, anesthésique totale et en même temps dyschromatopsique des deux yeux, c’est-à-dire qu’elle ne sentait le contact sur aucun point du corps et qu’elle ne distinguait aucune couleur ni par l’oeil droit, ni par l’oeil gauche; elle voyait tous les objets gris et blancs. » « si je lui suggérais un chatouillement, une douleur, une température anormale, elle ne sentait absolument rien. Au même moment, on pouvait éveiller par un mot toutes les hallucinations auditives, ce qui prouve qu’elle était très suggestible. Je l’ai interrogée sur ses rêves et elle m’a assuré voir les objets en rêve de la même manière que pendant la veille, gris et blancs, et ne jamais sentir aucun contact. »

«  Inversement, quand on arrive, ce qui est quelquefois possible, à provoquer une hallucination malgré l’anesthésie du sujet, on fait réapparaître en même temps la sensibilité normale. Il faut aussi remarquer que, chez certains sujets dont l’anesthésie est peu profonde et d’origine récente, les suggestions peuvent réveiller les images sensibles, surtout par l’intermédiaire d’autres images qui ont été conservées. (Paul Richer) »

« Quand j’ai montré à Lucie qu’elle ne sentait aucune douleur ni aucun contact, elle m’a répondu : ‘Tant mieux.’ Quand je l’ai amenée à constater qu’elle ne savait jamais la position de ses bras sans les voir et qu’elle perdait ses jambes dans son lit, elle m’a répondu : ‘Mais c’est tout naturel, du moment que je ne les vois pas; tout le monde est comme cela.’ En un mot, elles ne peuvent pas faire de comparaison entre une sensation ancienne dont elles ont complètement perdu le souvenir et leur état présent, et elles ne souffrent pas plus de leur insensibilité que nous ne souffrons de ne pas entendre ‘l’harmonie des sphères célestes’. Quand une hystérique, comme Marie, se plaint d’être insensible, c’est qu’elle ne l’est pas totalement; quand l’insensibilité est complète, l’absence de souvenirs est aussi complète. »

« Après quelques tâtonnements, j’ai reconnu que l’on pouvait rendre momentanément à Rose la sensibilité d’une partie de son corps par 3 procédés : ou bien par l’application prolongée d’un fort aimant, ou par l’apphcation de plaques métalliques d’étain [estanho] ou de plomb, ou enfin et plus facilement encore au moyen d’un courant électrique de moyenne intensité (20 ou 30 éléments Trouvé). » « La suggestion se sert d’un état psychologique, elle ne le crée pas. Ici, sous l’influence d’un de ces trois agents, la sensibilité tactile réapparaissait dans le bras droit et alors on pouvait suggérer des hallucinations tactiles de ce membre, tandis que cela était impossible auparavant. »

« Inutile d’insister plus longtemps sur cette même personne, le phénomène est chez elle constant : ramenez par un procédé quelconque, électricité, plaques métalliques, somnambulisme, etc., un état particulier de sensibilité et vous ramenez en même temps tous les souvenirs élémentaires qui ont été acquis par cette même sensibilité à un moment quelconque. »

« En effet, le souvenir chez Marie persistait plus longtemps que la sensibilité. Fallait-il considérer comme fausses les expériences faites avec Rose ? Non, un fait n’est jamais faux, on l’oublie trop souvent; mais il peut dépendre de circonstances complexes et, si on ne le vérifie pas, c’est que l’on se place, sans le savoir, dans d’autres conditions. »

« Marie n’est pas sensible au courant électrique, je ne sais pourquoi; il faut nous servir des plaques de Burcq et, après quelques essais, des plaques de fer qui agissent très fortement. »

« L’activité sensorielle forme la base de la pensée; quand on l’éteint, la pensée disparait ou s’endort. »

Bastian, Le cerveau et la pensée

2.5 UNE CONDITION DE LA MÉMOIRE ET DE L’OUBLI POUR LES PHÉNOMÈNES COMPLEXES

« Après cette étude beaucoup trop rapide des conditions de rappel pour la mémoire élémentaire, passons à la mémoire complexe ou intellectuelle, c’est-à-dire la mémoire complète des idées et des actes. »

« Le langage est formé par un grand nombre d’images associées avec nos idées et nos mouvements, et ces images, ainsi que les médecins l’ont appris aux psychologues (Bastian), ne sont pas les mêmes chez tous les individus. Les uns, les plus nombreux peut-être, pensent par ces images motrices ou kinesthésiques dont nous avons déjà parlé et qui ont une tendance, lorsqu’elles sont isolées, à se traduire au dehors par le mouvement réel ou la parole réelle. Ces gens-là pensent en parlant tout haut ou tout bas, mais toujours par les images du mouvement de la parole. Les autres [nós, os superiores] pensent au moyen des images auditives ou visuelles, leur pensée est formée par une suite d’images de paroles entendues et non prononcées, ou par une suite d’images d’écritures, ou de signes vus et non entendus. Comment ces dernières personnes parlent-elles et agissent-elles ? leurs images visuelles et auditives vont-elles éveiller d’abord les images motrices plus ou moins faibles qui se traduisent par du mouvement ? Nous avons déjà discuté cette question et nous avons conclu qu’il en a été peut-être ainsi au début de la vie, mais que maintenant les choses se passent plus simplement. »

« On voit très bien, dans l’ouvrage de M. Ballet, [Langage intérieur, 1886] comment une même lésion produit des effets très différents sur l’intelligence et la mémoire, suivant qu’elle frappe des individus usant habituellementde telle ou telle catégorie d’images. La perte des images visuelles, pour un individu dont tous les souvenirs sont cristallisés autour des images motrices, n’a pas grande importance; elle supprimerait toute mémoire et toute parole chez un autre sujet qui se sert de ces images visuelles. Chez ce dernier, une nouvelle éducation plus ou moins facile peut grouper maintenant les idées et les actions autour d’une autre catégorie d’images, celles du sens musculaire par exemple ou du sens auditif, et cet homme, en apparence guéri, pourra de nouveau penser et agir. Mais il vivra entièrement de ces nouveaux souvenirs et ne pourra jamais retrouver les anciens, à moins que, par miracle, les anciennes images visuelles ne lui soient un jour rendues. Cette restitution des images perdues n’a pas lieu chez les malades aphasiques étudiés par M. Charcot, parce qu’une maladie cérébrale les a complètement détruites ; mais n’est-il pas possible que, chez d’autres sujets, ces images ne soient que momentanément supprimées et puissent être restaurées dans différentes conditions ? L’étude précédente sur la mémoire élémentaire nous a précisément montré que c’est ainsi que les choses se passent chez les hystériques et les somnambules. »

« Quiconque examinera avec attention la conduite de Lucie à l’état de veille reconnaîtra facilement qu’elle est <un type visuel> extrêmement net. Elle pense, elle parle et elle agit presque uniquement par le sens de la vue. » « Outre cette perte du sens tactile, Lucie a presque complètement perdu le sens de l’ouïe: elle n’entend parler que si la voix est forte et assez proche, elle ne perçoit pas le tic tac de ma montre, même si je l’applique contre son oreille. La vue, quoique très diminuée (acuité visuelle, un tiers, champ visuel restreinte 20°), est encore le meilleur sens qu’elle possède. Aussi s’en sert-elle continuellement; elle ne fait pas un mouvement, ne marche pas sans regarder sans cesse ses bras, ses jambes, le sol, etc. C’est ainsi d’ailleurs qu’un grand nombre d’hystériques peuvent conserver la faculté de coudre, de tricoter, d’écrire, sans avoir aucunement le sens musculaire. On s’y est souvent trompé et c’est pour cela que plusieurs auteurs déclarent l’anesthésie musculaire rare dans l’hystérie, tandis qu’elle est très fréquente. »

« Si on lui fermait les yeux entièrement, elle ne pourrait même plus parler, et elle dormirait. » « C’est pour cela qu’il ne faut jamais toucher les yeux d’une hystérique quand on fait une étude sur son état de veille. » « En un mot, Lucie 3 n’est plus une femme du type visuel, c’est une femme du type moteur. [mais próxima da infância] »

« Les malades de M. Charcot ont eu besoin pour effectuer un pareil changement d’une longue rééducation. Je répondrai : son éducation comme type moteur est déjà faite depuis longtemps, parce qu’elle est hystérique, c’est-à-dire le type de l’instabilité psychologique. Depuis 15 ans qu’elle est malade, elle a passé son temps à changer ses sens et a s’exercer à parler et à agir tantôt avec l’un tantôt avec l’autre. M. Charcot, dans sa classification des types de langage, a parlé du type indifférent qui, au même moment, se sert d’une image ou d’une autre. Je demande une petite place pour le type alternatif, qui se sert successivement d’un sens puis d’un autre.

Quelle preuve a-t-on que Lucie ait été déjà antérieurement une motrice, comme elle paraît être dans cet état qui est maintenant artificiel ? On en trouve une assez bonne dans l’état de ses souvenirs. Interrogeons-la maintenant en état de Lucie 3 : elle va nous raconter son enfance jusqu’à 9 ans que Lucie 1 a entièrement oubliée ; elle va nous parler de la grande peur qu’elle a eue un jour quand des hommes se sont cachés dans les rideaux [cortinas] et ont brusquement sauté sur elle, émotion qui formera la scène principale de toutes les crises hystériques. Elle va nous raconter ces crises mêmes et les mouvements qu’elle a faits et ses promenades dans la maison la nuit en somnambulisme naturel. Elle va surtout nous raconter cette année, qui a été si pénible pour elle, où pendant plusieurs mois on a voulu la tenir enfermée dans une chambre noire, parce qu’elle avait mal aux yeux, ne voyait pas clair et que le médecin, croyant avoir affaire à une lésion banale, la maintenait dans l’obscurité. Or, toutes ces histoires, Lucie, tout à l’heure ne pouvait pas nous les raconter et les ignorait absolument. Ne pouvons-nous pas supposer légitimement que, dans ces circonstances ignorées de Lucie 1, mais connues de Lucie 3, les souvenirs pour différentes raisons ne s’étaient pas associés aux images visuelles ? Tantôt elle se portait bien dans son enfance et pensait, peut-être comme tout le monde dans l’enfance, par les images musculaires, tantôt le sens musculaire fonctionnait seul comme pendant les crises, tantôt le sens visuel étant supprimé comme dans son attaque d’anesthésie oculaire, il fallait bien penser autrement, et les souvenirs s’étaient alors réunis autour d’autres images. »

« Les passes, je ne sais vraiment pas pourquoi, ont agi comme auraient fait des plaques métalliques (des plaques d’or pour elle [refinada!]), ou comme aurait agi l’électrisation par une machine statique, et lui ont rendu les sens perdus. » « Lucie va se retrouver la même qu’au début, va promener ses yeux de tous côtés et recommencer à penser avec ses images visuels. »

« La même démonstration serait interminable s’il fallait la répéter sur tous les sujets. On pourrait démontrer facilement, croyons-nous, que Léonie est visuelle à l’état de veille, auditive en somnambulisme ordinaire où elle a une ouïe hyperexcitée, et motrice ou tactile en état 3. » « Mais elle a au contraire une ouïe à peu près normale ; elle aime la musique, a été chanteuse dans un café concert et s’irrite quand elle entend chanter faux. Cette analyse des sens nous montre que c’est une auditive, ce qui est assez rare chez les hystériques à l’état de veille » « On parle bien avec le sens auditif, mais on ne marche pas, car les mouvements des jambes s’associent difficilement avec des images de l’ouïe ; aussi cette malheureuse devient-elle paraplégique dès quelle perd la sensibilité musculaire des membres inférieurs. Pour une hystérique il n’est pas bon d’être musicienne. Elle a appris tant bien que mal à remuer son bras gauche par des images visuelles et ne peut s’en servir qu’en le regardant; elle n’a de mouvements libres que ceux du bras droit par le sens musculaire conservé et ceux du langage par le sens auditif. »

« Il semble, je n’ose pas conclure avec certitude, que, retrouvant le sens visuel, elle entrait dans un état auquel elle n’était pas accoutumée et dans lequel elle ne savait pas user du langage. Comme elle ne savait pas, ainsi que faisait Lucie, remuer ses jambes au moyen des images visuelles, je ne pouvais pas non plus dans cet état détruire sa paraplégie. Dans un autre état somnambulique, que je n’obtins que beaucoup plus tard et avec mille difficultés, elle retrouvait le sens tactile et musculaire d’abord du côté droit, puis du côté gauche, et alors il lui suffisait d’un faible effort pour décontracturer ses jambes et se mettre à les remuer sur mon simple commandement. Elle était devenue motrice, ce qu’elle avait été probablement une grande partie de sa vie, car elle parlait alors très facilement, retrouvait tous les souvenirs en apparence perdus à l’état de veille et n’avait plus aucune paralysie. Lorsqu’on réveillait Rose, elle perdait de nouveau toutes ces sensibilités surajoutées, oubliait tout et malheureusement ne savait plus marcher. »

2.6 INTERPRÉTATION DE L’OUBLI AU RÉVEIL APRÈS LE SOMNAMBULISME

« Je suis convaincu que les appareils électriques seront prochainement le véritable instrument scientifique pour produire à volonté et régulièrement toutes les variétés du somnambulisme. »

« Une hystérique anesthésique, morphinée à la dose de 8 centigrammes par jours, vit ses douleurs disparaître et sa sensibilité normale se réveiller… L’abstinence ramena les symptômes hystériques. »

Benjamin Ball, La Morphinomanie

« Le somnambulisme est chez les hystériques un accroissement de l’esprit par une excitation quelconque et non une diminution. » Por isso os começos da psicanálise até poderiam realmente curar histéricas, ao menos, desde que o tratamento fosse bem-feito. Outra coisa é a pseudanálise posterior alegando ou tentando curar neuróticos, até psicóticos, ansiosos, depressivos, fóbicos, com tratamentos cretinos! Janet 1 x 0 fraudismo.

« Peut-être existe-t-il des somnambulismes différents. L’hypnotisation des sujets sains possédant déjà tous leurs sens et toutes les images ne peut guère, si elle est possible, que les diminuer et leur supprimer diverses sensations. » « En réalité, il n’y a ni 2, ni 3 mémoires indispensables; il peut s’en présenter un nombre quelconque et indéterminé. Rose a au moins 4 ou 5 somnambulismes différents, ayant chacun une mémoire particulière. Il y a des sujets, comme N…, qui sont tellement instables, qu’ils ne reprennent le même somnambulisme qu’en étant endormis par la même personne et de la même manière »

« Cependant, dans cette série d’états de sensibilité et de mémoire qui peuvent se produire suivant une même loi, on peut, comme font les mathématiciens dans leurs séries, distinguer des points intéressants. » « Mais surtout on s’attachera à distinguer comme capital le dernier somnambulisme. J’appelle ainsi l’état dans lequel le sujet a retrouvé l’intégrité absolue de toutes les sensibilités qui sont naturelles à l’homme bien portant, et par conséquent l’intégrité absolue de la mémoire, en un mot, l’état dans lequel le sujet n’a plus aucune anesthésie ni aucune amnésie. » « Mais il est quelquefois très difficile à obtenir, et les sujets y parviennent plus ou moins vite, quelquefois après un seul somnambulisme intermédiaire, comme Lucie ou Wittm… (dans l’étude de Jules Janet), ou bien après plusieurs intermédiaires, comme Rose, ou même ne l’atteignent pas complètement, comme Léonie, qui, dans le dernier somnambulisme que je puisse obtenir avec elle, a encore des anesthésies. »

« Tout le monde remarquera, comme j’en ai été frappé dès la première fois, que Lucie se sert du sens de la vue quand elle est éveillée et du sens du tact quand elle est endormie : cela est manifeste. Mais, chez d’autres sujets, les modifications seront beaucoup moins visibles »

« Le somnambulisme change ces images prédominantes, sans donner précisément des sensibilités nouvelles ; il relève de leur effacement certaines images particulières et en fait un centre nouveau autour duquel la pensée s’oriente d’une manière différente. Réveillés, ces sujets reprennent leur pensée habituelle, négligent par distraction ces images et par conséquent les souvenirs qui y sont liés; ils ne peuvent plus les retrouver, car ils sont incapables du petit effort qu’il faudrait faire pour modifier un peu la forme habituelle de leur pensée. »

« Un jeune homme H., qui avait un somnambulisme de ce genre, avait tout oublié au réveil, mais, peu à peu, dans le courant de la journée, il retrouvait un à un tous les souvenirs du somnambulisme : le lendemain il pouvait tout me raconter. »

« Ce qui produit l’oubli des rèves au réveil, c’est que l’orientation de l’esprit change soudainement. »

Paulhan

« J’ai essayé de préciser un peu plus cette explication générale des phénomènes de l’oubli et de l’adapter plus exactement aux faits que j’avais étudiés. Sans doute, les exemples que j’ai donnés sont insuffisants pour démontrer qu’il en est toujours ainsi, et nous n’avons pas toujours un moyen bien précis et bien sûr pour apprécier les différences dans les images qui amènent les différences dans les souvenirs. »

2.7 LES DIVERSES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES : MODIFICATIONS SPONTANÉES DE LA PERSONNALITÉ

« Le jugement synthétise les faits différents, constate leur unité, et, à propos des différents phénomènes psychologiques éveillés par les impressions sensibles ou le jeu automatique de l’association, forme une idée nouvelle : celle de la personnalité. Nous n’avons pas, dans cette étude sur la partie automatique et non sur la partie active de l’esprit, à étudier ce jugement d’unité. »

« Dans le cours d’une longue vie, un homme peut être successivement plusieurs personnes si dissemblables que, si chacune des phases de cette vie pouvait s’incarner dans des individus distincts et si l’on réunissait ces divers individus, ils formeraient un groupe très hétérogène, se feraient mutuellement opposition, se mépriseraient les uns les autres et se sépareraient vite sans souci de se revoir jamais. »

Forster¹

¹ Não identificado.

« C’est moi qui ai tremblé devant ce péril imaginaire? C’est moi qui ai pu aimer cette coquette? C’est moi qui me suis dévoué à ces croyances? Mais c’est impossible et je ne me reconnais pas. »

« Heureusement, ces changements sont survenus peu à peu et ils n’ont porté en réalité que sur les phénomènes complexes et secondaires de notre esprit, nos croyances, nos ambitions, nos désirs. »

« Les hommes les plus sains d’esprit présentent presque toujours, dans leurs rêves, le premier signe, la première ébauche des changements beaucoup plus graves qui peuvent se produire dans la personnalité de certains malades. »

« Si je puis me décrire moi-même dans ces études expérimentales, je crois appartenir entièrement au ‘type moteur’ ; quand je suis éveillé, je ne pense qu’en parlant tout haut ou en écrivant, et ma pensée est toujours un geste à demi arrêté. La nuit, au contraire, je garde, ainsi que je l’ai souvent constaté, l’immobilité la plus absolue, je suis simple spectateur et non plus acteur »

« chez les hommes bien portants, cette tendance à la formation d’une mémoire et d’une personnalité secondaire dans le songe, reste rudimentaire. »

« Un de mes amis a remarqué que sa femme, qui souvent parle beaucoup et distinctement dans le sommeil, ne peut jamais se ressouvenir de ses rêves lorsque cela lui arrive ; mais qu’au contraire elle se les rappelle fort bien lorsqu’elle n’a pas parlé en dormant. »

Erasmus Darwin

O PORQUÊ DO PRIMEIRO PORRE SER TÃO DIFERENTE: « L’éther, le chloroforme ou simplement l’alcool, quand ils agissent pour la première fois, désagrègent simplement la pensée normale, empêchent les jugements d’unité de se former et ne laissent subsister dans le délire que des éléments psychologiques épars. Mais si ces empoisonnements se répètent, ces fragments de pensée se réunissent et forment une nouvelle synthèse psychologique, avec sa mémoire qui lui est propre, semblable à une vie somnambulique. »

« Les crises de ce genre sont, en général, d’assez courte durée : c’est que la personnalité n’y est pas assez complète, car la durée d’un état psychologique est ordinairement comme celle d’un être en raison de sa perfection. » « Aussi ce composé instable ne tarde pas à se défaire et le composé plus complet et plus ancien, qui formait la vie normale, réapparaît à son tour. Mais supposons que, par certains hasards, la rencontre des atomes intellectuels ait formé un composé plus complet et plus stable, la nouvelle vie psychologique, qui se forme peu à peu et qui est anormale pour le sujet, ressemble tout à fait à ce qui est la vie normale pour une autre personne. »

« Le sujet était ordinairement un visuel, il est maintenant un moteur ; cela aura sans doute des inconvénients plus tard, car, s’il revient au premier état, il ne se souviendra plus du second, mais maintenant il ressemble aux gens qui sont ordinairement moteurs et il ne s’en porte pas plus mal. C’est là ce qui se passe, croyons-nous, chez ces personnes devenues célèbres dans l’histoire de la science, Félida X, Louis V et bien d’autres. »

« La somnambule de Dufay,¹ quand elle tombe en état second, n’est plus myope comme en état premier, elle a un langage enfantin et parle nègre : ‘Moi pas bête maintenant’, dit-elle. »

¹ Não identificado.

« Tous ces personnages, comme on le sait aussi, changent de caractère et de conduite en même temps qu’ils changent de sens et de langage. Félida, qui est triste et qui pense au suicide dans son état prime, est gaie et courageuse dans l’état second ; elle est égoïste et froide dans la première existence, elle a plus d’affection et de dévouement dans la seconde. Louis V est tantôt doux, obéissant et timide, tantôt colère, insubordonné et arrogant, tantôt enfant et craintif, tantôt jeune homme emporté : à aucun point de vue il ne reste le même. »

2.8 LES DIVERSES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES. — LES CHANGEMENTS DE PERSONNALITÉ DANS LES SOMNAMBULISMES ARTIFICIELS.

« il n’y a pas un seul phénomène constaté pendant le somnambulisme, anesthésie ou excitation sensorielle, paralysies, contractures, émotions ou faiblesse intellectuelle, etc., qui ne se retrouve fréquemment chez une autre personne pendant sa vie ordinaire. » « Un sujet qui est idiot, ou aveugle, ou intelligent en somnambulisme, ne l’est pas autrement que celui qui est idiot, aveugle ou intelligent pendant sa vie normale, seulement il ne l’est pas toute sa vie. »

« Mais cet état, que nous qualifions de somnambulisme chez Rose, est en ce moment la vie normale de Marie, qui depuis 1 mois est hémi-anesthésique gauche, et les caractères de cet état sont exactement les mêmes chez elle. Bien plus, Rose elle-même, il y a quelque temps, a passé 3 mois, comme nous l’avons vu, en hémi-anesthésie gauche. Elle était donc naturellement pendant ces 3 mois dans l’état qui est maintenant un somnambulisme. »

« l’hypnotisme est très rare chez les véritables épileptiques. »

« D’abord, la seconde personnalité qui vient de naître subira l’influence des idées et des manières de son magnétiseur comme un enfant subit l’influence de ses parents. »

« Pourquoi Léonie est-elle catholique pratiquante à l’état de veille et protestante convaincue en somnambulisme ? C’est tout simplement parce que son premier magnétiseur était protestant, il ne faut pas chercher là d’autre mystère. Pourquoi certains somnambules ont-ils sans cesse une attitude dramatique ? C’est parce qu’on les a exhibés sur des planches comme des bêtes curieuses et qu’ils ont appris à jouer un rôle et à simuler quoique étant réellement en somnambulisme. »

« M. Beaunis nous dit qu’il n’a jamais rencontré de mensonges de la part d’une somnambule. C’est qu’il a été bien heureux: il y a des somnambules qui mentent comme Lucie, ou qui sont l’honnêteté même comme Léonie, ainsi que, dans la vie normale, il y a des mauvais et des bons. »

« Les somnambules disent qu’ils dorment parce qu’on leur a dit qu’on les endormait et que, dans la pensée populaire, magnétiser veut dire endormir. Il est même mauvais de trop répéter cela au somnambule, car il finit par se croire obligé de dormir réellement et prend une expression abrutie qui n’est pas indispensable. »

« Souvent aussi les choses se passent autrement et, soit peu à peu par le progrès de la seconde existence, soit brusquement à la suite d’un changement trop fort, le sujet refuse de se reconnaître, se moque de son ancienne personnalité et prétend être une nouvelle personne. »

« Les somnambules parlent d’eux-mêmes à la troisième personne, dit Delenze, comme si leur individu dans l’état de veille et leur individu dans l’état de somnambulisme étaient 2 personnes différentes… Mlle. Adélaïde ne convenait jamais de l’identité d’Adélaïde avec Petite, nom qu’elle recevait et se donnait pendant sa manie (somnambulisme), etc. »

« Tous les écrivains du magnétisme animal ont d’ailleurs décrit ce fait, qui est aussi fréquent qu’il est curieux. »

« N’insistant pas sur cette singulière réponse qui n’est peut-être pas absurde, je lui demandais de quel nom il fallait l’appeler, elle voulut prendre le nom de ‘Nichette’. Ce petit nom ne doit pas faire sourire : aucun détail n’est insignifiant dans ces phénomènes délicats. C’était là le petit nom par lequel on désignait cette personne dans sa première enfance et elle le reprenait en somnambulisme. »

« M. le Dr. Gibert m’a raconté qu’une femme de 30 ans, endormie pour la première fois, parlait d’elle-même sous le nom de la petite Lilie. Pourquoi ce retour à l’enfance? Est-ce parce que les hystériques, ordinairement visuelles à l’état de veille, reprennent leur sens musculaire dans ces somnambulismes profonds et que ce sens a été probablement le plus utilisé dans l’enfance ? »

« Enfin, il peut arriver que tout changement d’état soit assez accentué pour produire l’illusion du dédoublement de la personnalité. Léonie, dès le premier somnambulisme que nous avons décrit, refuse son nom ordinaire et prend celui de Léontine auquel ses premiers magnétiseurs l’avaient habituée. »

« Ce nouveau personnage, Léonie 2, s’attribue toutes les sensations et toutes les actions, en un mot, tous les phénomènes psychologiques qui ont été conscients pendant le somnambulisme y et elle les réunit pour former l’histoire de sa vie déjà fort longue ; elle attribue au contraire à Léonie 1, c’est-à-dire à la personne normale pendant la veille, tous les phénomènes qui ont été conscients pendant la veille. » « Léonie, à l’état normal, a un mari et des enfants, Léonie 2, pendant le somnambulisme, attribue le mari à l’autre, mais s’attribue à elle les enfants. Ce choix était peut-être explicable, mais il ne semblait pas régulier. J’ai fini par apprendre que les magnétiseurs anciens, tout aussi audacieux que certains hypnotiseurs d’aujourd’hui, avaient provoqué le somnambulisme au moment des premiers accouchements, et que l’état second était revenu de lui-même au moment des derniers. Léonie 2 n’avait pas tort de s’attribuer les enfants, car c’était bien elle qui les avait eus »

« Cette séparation d’un même être en 3 personnes successives, qui se méprisent réciproquement quand elles peuvent se connaître, forme un spectacle des plus curieux et donne lieu à quantité d’incidents que je ne pourrais rapporter sans allonger indéfiniment mon livre. Léonie s’endort en chemin de fer et passe à l’état 2 ; au bout de quelque temps Léonie 2 veut redescendre pour aller chercher à la station précédente cette pauvre Léonie 1 ‘qui, dit-elle, y est restée et qu’il faut prévenir.’ Si je montre à Léonie 2 un portrait de Léonie 1 : ‘Pourquoi a-t-elle pris mon bonnet ?, s’écrie-t-elle, c’est quelqu’un qui s’est habillé comme moi.’ Quand elle vient au Havre, il faut que je dise bonjour successivement aux 3 personnages qui recommencent successivement la même émotion d’une manière bien amusante. Il est inutile d’insister sur ces anecdotes, on devine les situations singulières qui doivent résulter d’une semblable subdivision. »

« Sans doute certains sujets ne peuvent pas rester indéfiniment dans certains états somnambuliques. Léonie 1 ne pouvant absolument rien manger en état de Léonie 2, ne pourra pas y rester plus d’une journée, mais ce n’est pas parce que l’état est second qu’il ne peut pas durer, c’est parce qu’il ne contient pas certains éléments nécessaires à la vie. Il est dangereux, écrivent quelques auteurs, de laisser un sujet plus de 24h en somnambulisme, car il commence alors à se refroidir. Certainement, si vous laissez un sujet immobile, incapable de remuer et de manger, il doit se refroidir assez vite. Mais si, au contraire, on choisit un état somnambulique complet qui forme une seconde vie sans doute, mais une seconde vie régulière, analogue, comme nous l’avons dit, à la vie normale de telle ou telle autre personne, il n’y a pas de raison pour que le sujet n’y reste pas fort longtemps. »

« Le célèbre Abbé Faria prétend que certains de ses sujets sont restés endormis pendant des années et oubliaient à leur réveil tout ce qui s’était passé pendant cette longue période. Un magnétiseur nommé Chardel¹ endormit 2 jeunes filles pendant l’hiver et ne les réveilla que plusieurs mois après au milieu du printemps; elles furent bien surprises en se réveillant de voir des feuilles et des fleurs sur les arbres qu’elles se souvenaient d’avoir vus couverts de neige avant de s’endormir. »

¹ Frédéric Charles Chardel (1776-1849), sem obras relevantes.

« Ces récits ne doivent pas être mensongers, car la vérification en est assez facile à faire : j’ai maintenu moi-même Rose en somnambulisme pendant 4 jours et demi sans aucune difficulté, car elle se portait très bien pendant ce temps, mangeait et dormait beaucoup mieux que dans son état normal. »

« Pourrait-on laisser les sujets indéfiniment dans ce second état ? ce serait un moyen bien facile de guérir complètement l’hystérie. Malheureusement la chose me paraît fort difficile. Cet état a paru, au moins pour mes sujets, être une fatigue et les épuiser rapidement. Certaines, comme Léonie et Lucie, ont besoin de dormir fréquemment pendant quelques minutes pour se reposer, et les hystériques en général ne se maintiennent dans cet état d’intégrité sensorielle qu’au moyen d’excitations renouvelées de temps en temps, passes, courant électrique, etc. Il est probable que peu à peu les hystériques reprendraient leurs tares, leurs anesthésies habituelles et rentreraient dans leur état normal avec l’oubli de tout ce qui s’est passé pendant leur existence plus complète. »

« Est-ce une décadence ou un progrès pour un sujet de passer de l’une à l’autre ? Beaucoup d’auteurs se sont prononcés pour la seconde solution. » « Il y a un nombre infini de formes d’existences psychologiques, depuis celle qui ne contient qu’un seul fait isolé rudimentaire sans jugement et même sans personnalité jusqu’à la pensée de la monade supérieure dont parle Leibniz et qui représenterait en raccourci tout l’univers. » « Il est évident que Lucie 3, Rose 4 ou Léonie 3 sont supérieures et de beaucoup à Lucie 1, Rose 1, Léonie 1. Mais il s’agit là de femmes hystériques, et cette existence supérieure qu’on leur rend est simplement une existence normale, celle dont elles devraient jouir continuellement, si elles n’étaient pas malades. »

« Est-il possible d’aller au delà? Peut-on dépasser ces états somnambuliques chez ces sujets, ou donner à d’autres sujets sains, qui sont déjà naturellement en possession de cette forme d’existence, une autre forme d’existence supérieure ? C’est ce qu’ont pensé presque tous les anciens magnétiseurs quand ils étudiaient sur leurs sujets des sens nouveaux ou des facultés surnaturelles. C’est ce que pense M. Myers quand il parle de réadaptations nouvelles de notre personnalité en rapport avec de nouveaux besoins. C’est là une étude dans laquelle nous ne pouvons pas entrer; il nous suffît d’avoir montré à quel point elle touche notre sujet et comment elle est possible. »

3. LA SUGGESTION ET LE RÉTRÉCISSEMENT [RECOLHIMENTO] DU CHAMP DE LA CONSCIENCE

« On a donné le nom de suggestion à cette influence d’un homme sur un autre qui s’exerce sans l’intermédiaire du consentement volontaire. » « Après una revue historique rapide et forcément incomplète, qui a surtout pour but de montrer combien l’étude de la suggestion est ancienne, nous nous contenterons de rappeler par quelques exemples les faits les plus importants. »

3.1 RÉSUMÉ HISTORIQUE DE LA THÉORIE DES SUGGESTIONS

« Faire l’histoire de la suggestion à notre époque ce serait faire l’histoire complète de l’hypnotisme, que nous ne puvons avoir l’intention d’entreprendre. »

« Beaucoup de charlatans se sont couverts et essayent encore de se revêtir de ce nom de magnétiseurs, mais ce n’est pas une raison pour jeter un mépris général sur tous ceux qui ont été les véritables précurseurs de la psychologie expérimentale. »

« Rien ne serait plus facile, pour tous les faits sans exception qui ont été signalés dans les ouvrages d’hypnotisme moderne, que d’emprunter des exemples aux ouvrages publiés de 1850 à 1870. Mais, si les magnétiseurs connaissaient ces phénomènes, ils les expliquaient mal et faisaient intervenir inutilement un fluide mystérieux. » « Leurs théories de physiologie fantaisiste ne s’appliquaient guère qu’au premier fait, c’est-à-dire aux procédés à employer pour amener le sujet à l’état de suggestibilité, et quant à la suggestion elle-même, ils l’expliquaient par des lois uniquement psychiques. »

« Si on préfère des théories outrées dans lesquelles on rapporte à l’influence morale du magnétiseur (…) tous les phénomènes possibles, il est facile d’en trouver bien des exemples. Bertrand explique ainsi les croyances singulières des somnambules ; la prétendue vue du fluide, la prévision des maladies et même l’action des métaux. ‘Ce sont toujours les idées des magnétiseurs qui ont de l’influence sur les sensations des somnambules… les métaux, lorsque les magnétiseurs le veulent, ne doivent avoir aucun empire sur les personnes magnétisées, c’est l’idée qui les rend nuisibles.’ »

« les explications les plus nettement psychologiques des stigmates des convulsionnaires se trouvent complètement exposées dans les ouvrages de Charpignon. »

3.2 DESCRIPTION DE QUELQUES PHÉNOMÈNES PSYCHOLOGIQUES PRODUITS PAR SUGGESTION

1er Phénomènes d’apparence cataleptique. « L’individu cataleptique ne parle pas, ne comprend pas ce qu’il fait, semble n’avoir aucune idée ni de sa personnalité ni des actes qu’il exécute ; il a, comme disait Maine de Biran, la sensation et non l’idée de sa sensation. Les sujets dont nous parlons maintenant sont tout différents : ils parlent et comprennent la parole, ils ont une personnalité, ils se rendent compte de ce qu’ils font. »

2e Actes et hallucinations déterminés par la parole. « Le véritable intérêt de la suggestion se trouve dans les commandements que l’on peut donner par la parole. En effet, les paroles que l’on adresse à ces sujets, au lieu d’être répétées sans intelligence comme par les cataleptiques, sont comprises, et par leur sens déterminent toujours, sans le consentement de la personne, des actes et des hallucinations. (…) Aussitôt le sens des paroles compris, l’acte est exécuté. [malgré le pacient] »

« On lui fait entendre ainsi le son des cloches, des chants, des fanfares, on lui fait voir des fleurs, des oiseaux, sentir des odeurs, apprécier des goûts, soulever des fardeaux imaginaires, etc. »

« Léonie est capable de relire par hallucination des pages entières d’un livre qu’elle a lu autrefois, et elle distingue l’image avec tant de netteté qu’elle remarque encore des signes particuliers, comme les numéros des pages et les numéros des feuilles au bas de certaines pages »

« Au début de mes recherches sur le somnambulisme, n’étant qu’à demi convaincu de la puissance de ces commandements, je commis l’étourderie grave de faire voir à une somnambule un tigre entrant dans la chambre. Ses mouvements convulsifs de terreur et les cris épouvantables qu’elle poussa m’ont appris qu’il fallait être plus prudent, et depuis je ne montre plus à l’imagination de ces personnes que des belles fleurs et des petits oiseaux. » « Marie caresse doucement les petits oiseaux ; Lucie les saisisse vivement à 2 mains pour les embrasser ; Léonie, qui se souvient de la campagne, leur jette du grain à la volée (…) aucune femme ne peut voir une fleur par hallucination sans la porter à son nez, puis la mettre à son corsage. » Hahaha!

« D’après les observations de M. Féré, ‘l’état de la pupille varie avec la distance présumée de l’hallucination.’ »

« En un mot, il y a aussi bien mouvement à propos de la suggestion d’hallucination, que hallucination à propos de la suggestion de mouvement ; les 2 choses ne peuvent pas être séparées. »

3e Actes ou hallucinations avec point de repère [vue]. « Si je dis à Marie qu’elle verra un papillon traverser la chambre quand l’heure sonnera, ou qu’elle verra un oiseau sur l’appui de la fenêtre, le phénomène est identique » « À n’importe quel moment du somnambulisme, si Marie regarde du côté de la fenêtre, elle reverra son oiseau, et cette liaison peut persister indéfiniment (…) Si maintenant Marie ne voit plus l’appui de la fenêtre, elle ne verra plus l’oiseau (…) Enfin, si le point de repère varie d’une manière quelconque, grandit, diminue, se dédouble, etc., l’hallucination aura exactement le même sort. C’est là le phénomène qui a été si bien étudié par MM. Binet et Féré dans leurs expériences originales de la lorgnette, du miroir, du prisme. (…) En un mot, l’acte ou l’hallucination suggérés peuvent être rattachés à une certaine sensation qui sert de signal ou de point de repère et en dépendent alors absolument. »

« le champ de la représentation, plus étendu que le champ de la sensation, est formé par une synthèse des champs visuels. »

Binet¹

¹ Alfred Binet já possui muitas obras recomendadas no Seclusão.

« Si on précise l’endroit où l’objet doit se trouver en disant qu’il est à gauche, ou bien si on ferme l’oeil droit du sujet en laissant l’oeil gauche ouvert, on ne peut plus produire chez Marie aucune hallucination visuelle. M. Paul Richer a signalé ce fait l’un des premiers. » « Si, après avoir donné une hallucination à Marie au moment où elle a les 2 yeux ouverts, je lui ferme l’oeil droit, elle ne voit plus clair et ne distingue plus les points de repère auxquels son hallucination était rattachée ; elle a alors complètement perdu de vue l’oiseau ou la fleur que je lui montrais. Si, au contraire, on lui donne une hallucination quand elle a les yeux fermés, cette image ne se rattache à aucun point de repère et peut persister malgré la fermeture des yeux. »

« Il est possible de faire éprouver à un même sujet 2 hallucinations différentes simultanément, une à droite et l’autre à gauche ; ainsi, on lui fera sentir le goût du rhum sur le côté droit de la langue et le goût d’un sirop sur le côté gauche, on lui fera voir par un oeil une scène horrible et par l’autre un riant tableau champêtre. »

Bérillon, La dualité cérébrale, 1884

« Ces auteurs [além de Bérillon, Dumontpallier e Magnan] tirent de ce fait des conclusions qui me paraissent bien graves sur l’indépendance fonctionnelle des 2 hémisphères cérébraux. Sans préjuger de la théorie en elle-même, je crois qu’il faut renoncer à employer ce fait particulier comme moyen de démonstration. [Car] Les hallucinations simultanées et de nature différente sont faciles à reproduire pour les sens qui sont répandus sur une assez large surface et qui peuvent fournir au sujet plusieurs points de repère simultanés. [dos pés à cabeça! não só em longitude, mas em latitude, transversalidade, etc., por que não?] »

Sur mon ordre, Marie a simultanément la sensation de chaleur au pouce de la main droite et de froid au petit doigt de la même main » Bem como vê duas ilusões antitéticas pelo mesmo olho.

« Les sujet ne trompe pas, comme on pourrait le croire, car il ne consent pas plus à cette suggestion qu’aux autres, c’est l’opérateur qui se trompe lui-même en ne tenant pas assez compte des lois psychologiques quand il s’occupe de phénomênes qui sont psychologiques. »

4e Actes et hallucinations complexes ou à développement automatique. « Au lieu de commander l’un après l’autre chaque mouvement ou chaque hallucination, il suffit, avec certains sujets, de leur indiquer une idée initiale qui, avec une apparente spontanéité, se développe dans leur esprit de toutes manières et se manifeste par une longue suite d’actes et d’hallucinations diverses. ‘Tu vas écrire une lettre,… tu vas chanter un air,’ dis-je à Lucie ou à Rose, et elles vont faire leurs préparatifs pour écrire, composent une lettre ou bien chantent indéfiniment toutes sortes de morceaux. »

 

« Une pièce d’or réelle produit chez ce sujet une contracture générale si elle est appliquée au front ; une pièce d’or imaginaire que l’on met dans sa main et qu’il s’applique lui-même au front produit le même résultat. L’ongle du pouce est hyperesthésié ; si on le frappe, le sujet a des petites convulsions et des contractures ; l’hallucination d’un oiseau sur sa main la fait pensar à un coup de bec imaginaire donné par l’oiseau sur son ongle et elle a une petite crise convulsive. (…) C’est là ce qui rend ces rêves mimés si amusants quand on a affaire à un sujet vif e assez intelligent. L’hallucination ‘d’un voyage’, comme elle disait, devenait chez Lucie une véritable comédie avec milles de péripéties inattendues. Non seulement elle éprouvait le mal de mer sur les bateaux, comme le sujet dont parle Richet, mais elle se figurait tomber dans l’eau, nageait sur le parquet et se relevait dans une île déserte en grelottant. Naturelement je lui ai fait faire les plus belles expéditions sur la lune, au crente de la terre, etc. : il me suffisait de lui donner un thème sur lequel son imagination brodait les complications les plus extravagantes. Je ne puis insister sur ces spectacles comiques ; ils sont toujours surprenants à voir, mais ils sont maintenant trop connus pour qu’on les décrive. »

« Léonie étant en somnambulisme, je la pique avec une épingle du côté droit (côté sensible), elle pousse un cri et la voilà qui se fâche contre sa main gauche »

« L’expérimentateur est sans cesse exposé à prendre une association d’idées de son sujet pour une loi générale de la psychologie. »

5e Hallucinations générales ou modification de toute la personnalité par suggestion. « Si on affirme au sujet qu’il recommence une période passée de sa vie, qu’il n’a plus que tel âge, ou simplement si on lui donne une attitude, une contracture, un état de sensibilité particulier qu’il avait à tel ou tel âge, on le voit prendre en même temps tous les caractères physiques et moraux qu’il avait à cette époque et revivre pour ainsi dire complètement une période écoulée de son existence. Le sujet sent, pense et parle comme il faisait à ce moment ; il croit voir et entendre ce qui existait alors, il n’a plus d’autres souvenirs que ceux qu’il pouvait avoir à cette époque. »

O ESTADO DE SUGESTÃO SERIA DIFERENTE DA PERSONALIDADE SECRETA AUTÔNOMA DO SONAMBULISMO: « Pendant un de ces changements de personnalité obtenus par suggestion lors du premier somnambulisme, le sujet ne garde aucun souvenir des autres changements. (…) étant princesse, il ne sait pas ce qu’est Léonie et ne veut même pas croire que ce soit une pauvre paysanne habitant sur ses terres ; il ne souvient pas non plus de l’état de somnambulisme ordinaire et du personnage de Léonie 2 » « elle ne sait plus mon nom ; si elle me parle, elle m’incorpore à son rêve et me donne un nom de fantaisie, Marquis de Lauzun » « quand elle est général, elle me prend pour un colonel et m’offre… une absinthe. » « Elle garde en outre, dans un de ces changements, le souvenir du changement exactement pareil qui a eu lieu autrefois. » « Quand l’hallucination est terminée, quand elle cesse d’être princesse, Léonie revient à son somnambulisme ordinaire sans passer par aucun intermédiaire, ni léthargie, ni catalepsie. (…) Léonie 2 de retour garde le souvenir du changement de personnalité [l’être princesse, comme s’il venait d’un rêve curieux] (…) Si quelquefois ce souvenir manque complètement dans le somnambulisme de Léonie 2, nous sommes certains de le retrouver dans le second somnambulisme, Léonie 3, qui se souvient de tout le reste de sa vie (…) Est-elle assez bête, cette pauvre Léonie ? dit-elle ; elle a cru être une princesse, c’est vous qui lui faites croire cela. »

« l’état de la mémoire a tant d’importance dans ces phénomènes que je crois pouvoir me servir de cette différence pour séparer ces 2 changements dans la notion de la personnalité sans en méconnaître les analogies. »

« il faudrait un volume de citations pour rappeler les guérisons miraculeuses des saints et des apôtres et les guérisons par des pilules de mie de pain baptisées de beaux noms. »

3.3 DIVERSES THÉORIES PSYCHOLOGIQUES SUR LA SUGGESTION

« quelques médecins et même quelques philosophes d’aujourd’hui n’hésitent pas à expliquer dans tous ses détails la physiologie des centres nerveux pendant l’hypnose. J’admire ce courage, mais je ne me sens pas capable de l’imiter et je m’en tiendrai aux études uniquement psychologiques qui ont été faites sur ce curieux phénomène. » Haha!

1e La suggestien considérée comme un fait psychologique normal. « Les auteurs qui recherchent attentivement ces faits dans la vie normale citent toujours la marche au pas, la rougeur des timides, le fou rire des jeunes filles¹ et le bâillement contagieux : mais il y a un abîme entre ces faits, tout réels qu’ils soient, et les hallucinations complexes ou les changements de personnalité par suggestion. »

¹ Interessante: risada involuntária, ataque ou crise de riso, risada histérica assim mesmo dicionarizada… E restrita ao sexo feminino tendo em vista se tratar ainda do século XIX, quando a moral exigia dos rapazes não se equiparar a costumes tidos pelos homens da sociedade como irritantes ou indignos, i.e., “coisa de mulher”.

Cette doctrine, qui assimile trop le phénomène de la suggestion à l’automatisme normal, présente un autre inconvénient assez grave. Elle nous dispose à considérer la suggestion comme un fait primitif existant naturellement, indépendent de tout autre phénomène et capable au contraire d’expliquer tous les autres. Anesthésie, amnésie, changement de personnalité, somnambulisme, etc., tout devient un résultat de la suggestion. Quant à la suggestion elle-même qui explique tout, on n’en cherche pas l’origine, car elle est un fait naturel donné. »

« La suggestion ne peut ni se créer ni se détruire elle-même : pas plus qu’il n’est logique de croire que l’on peut suggérer à un individu d’être suggestible quand il ne l’est pas, on ne peut dire que l’on va suggérer à un malade de ne plus être suggestible quand il l’est. (…) La suggestion est, comme l’éducation, elle se sert de dispositions antérieures, elle ne les crée pas ; de même qu’il y a des animaux et même des hommes rebelles à l’éducation et qui ne peuvent être transformés par elle, il y a des hommes, et c’est heureusement la majorité, qui sont rebelles à la suggestion et qui ne la subissent qu’après une modification accidentelle et étrangère de leur organisme psychologique. »

« il y a lieu de chercher quel est l’état, le caractère anormal dont dépendent les phénomènes que nous avons énumérés. »

2e La suggestion expliquée par l’état somnambulique.

« L’automatisme ou l’aboulie caractérisent le somnambulisme au point de vue psychique comme au point de vue somatique. »

Richet

« Dans le somnambulisme, l’automatisme est absolue et le sujet ne conserve de spontanéité et de volonté que ce que veut bien lui en laisser son hypnotiseur. »

Beaunis

« Sans doute, il y a dans cette hypothèse qui rattache la suggestion à l’état de somnambulisme un certain degré de vérité qu’il ne faut pas nier… Mais, au point de vue théorique, cette assimilation entre les deux phénomènes me parait présenter des inconvenients et amener à une interprétation inexacte du somnambulisme. »

« la suggestibilité peut être très complète en dehors du somnambulisme artificiel ; elle peut être totalement absente dans un état somnambulique complet ; en un mot, elle ne varie pas en même temps et dans le même sens que cet état lui-même. » « Le somnambulisme naturel présente déjà quelques différences qui le séparent du somnambulisme hypnotique » « et je ne puis vraiment pas comprendre cette habitude de plusieurs auteurs d’assimiler l’état d’un sujet hypnotisé avec le sommeil véritable. »

« Il en est de même dans l’ivresse du haschich : je ne rapporterai pas mes propres observations, car je n’ai pu observer cette ivresse qu’une seule fois et dans de mauvaises conditions ; d’ailleurs, les descriptions de Moreau de Tours sont trop belles et trop précises pour que je ne les cite pas : ‘Livré à lui-même, le haschiché subira les influences de tout ce qui frappera ses yeux, ses oreilles : un mot, un geste, un son, le moindre bruit donnera à ses illusions un cachet déterminé ; quelques paroles font passer de la joie à la tristesse et toutes les idées précédemment si joyeuses deviennent lugubres’ » « mais cela ne se produit ainsi que lorsque le délire est très fort ; autrement les idées ne font que traverser l’esprit et ne s’y fixent pas. »

« On sait que certaines personnes sont suggestibles à l’état de veille sans avoir subi aucune modification de leur conscience »

« On s’y trompe bien souvent, et on croit avoir mis un individu en état de somnambulisme, alors qu’on ne l’a pas modifié le moins du monde. On constate simplement une docilité, une passivité que l’on attribue au prétendu somnambulisme, parce que l’on n’a pas recherché si elles n’existaient pas exactement semblables avant le sommeil. »

« La plupart des auteurs (cfr. Richer) insistent sur l’inertie des sujets, incapables de faire un mouvement spontané et qui par eux-mêmes ne pensent à rien. C’est qu’ils n’ont pas dépassé dans leurs étude cete première période du somnambulisme, cet état presque cataleptique dans lequel certains sujets demeurent assez longtemps. »

« Ce n’est donc ni dans la définition du somnambulisme ni dans les causes qui le provoquent, qu’il faut chercher l’explication de la suggestion et de son singulier pouvoir. »

3e L’hyperexcitabilité psychique. « J’aurais d’abord quelques réserves à faire que l’on trouvera peut-être bien abstraites et pour ainsi dire métaphysiques sur cette expression : ‘l’intensité des phénomènes psychologiques.’ Dans une discussion très remarquable à propos de la psycho-physique, un mathématicien anonyme, qui est en même temps un philosophe, faisait remarquer que les sensations ne peuvent ni s’égaliser ni s’additionner ; qu’en un mot 2 sensations, fussent-elles toutes 2 des minima, n’étaient pas comparables comme des unités mathémathiques. »

REMETE-TE A KANT : « Sans doute, les causes extérieures de nos sensations, le son, la température, etc., et même les effets de nos sensations dans le monde extérieur, mouvements, contractions musculaires, etc., sont mesurables et peuvent avoir des intensités différentes ; mais les sensations elles-mêmes, considérées par leur côté interne et vraiment seul réel, ont-elles des quantités correspondantes? Cela ne me parait pas évident. La température passe de 0º à 15º et de 15° à 30°, et ma sensation passe du froid au tiède et du tiède au chaud. Peut-on dire que ma sensation de chaud soit un multiple de ma sensation de froid ? »

« Avant de soutenir qu’une image est plus intense ou moins intense qu’une autre, il serait bon de nous prouver que les 2 images sont restées identiques en nature et qu’on ne prend pas une différence de qualité pour une différence de quantité. » Nem Pavlov poderá lhe ajudar!

SALTO QUÂNTICO (NÃO-QUANTITATIVO!): « il peut penser à un chien sans le voir, entendre parler d’une action sans l’exécuter; mais si on insiste, si on commande plus longtemps, l’idée devient hallucination et action. C’est qu’au début elle devait être faible et qu’elle est maintenant plus forte. Je pense au contraire que cette différence dans les résultats est due à ce que l’idée est maintenant toute différente. Les théories psychologiques qui assimilent à juste titre l’image et la sensation ne sont vraies que pour les phénomènes simples »

« L’idée d’un chien peut n’être qu’un rapport abstrait entre diverses images ou divers caractères; elle peut être un simple mot de nature différente suivant les personnes, ou n’être qu’une image très vague de couleur uniforme, en un mot quelque chose de très simple. La sensation réelle ou l’hallucination d’un chien est un ensemble d’images visuelles, tactiles, auditives même, très variées. Pour passer de l’une à l’autre, il faut, non pas renforcer, mais compléter l’image. » 

« En un mot, considérez en fait les gens suggestibles et vous les trouverez faibles, hypo-excités, si l’on peut ainsi dire, et non hyperexcités. » « la suggestibilité serait plutôt une preuve de la faiblesse que de la force des phénomènes psychologiques. »

3.4 L’AMNÉSIE ET LA DISTRACTION

« C’est la théorie exprimée déjà à plusieurs reprises par M. Richet qui nous paraît avoir le plus de vraisemblance et à laquelle nos propres expériences nous poussent à nous rallier. » « elles ont d’abord perdu la notion de leur ancienne existence, puis elles vivent, parlent, pensent absolument comme le type qu’on leur a présenté. »

« pour entraver un sentiment, un autre plus fort doit prendre naissance. »

« une amnésie considérable accompagne toujours les actes accomplis par suggestion. »

ADMINISTRAÇÃO DA ENERGIA: « Il faut reconnaître, ici encore, l’existence d’une seconde espèce d’anesthésie moins connue, mais dont l’importance psychologique est très grande. Un individu qui a une sensibilité normale est capable non seulement d’exercer tous ses sens successivement, mais, en outre, dans une certaine mesure, d’apprécier diverses sensations simultanément. Placé dans une réunion de plusieurs personnes, il peut suivre une conversation particulière, et entendre cependant une question qu’on lui adresse derrière lui, voir une personne nouvelle qui entre et se retourner à propos. Ce sont là des choses fort simples dont les personnes au tempérament suggestible sont complètement incapables. Si elles regardent une personne et lui parlent, elles n’entendent plus et même ne voient plus les autres. »

« Que Léonie tricote ou qu’elle écrive, c’est toujours avec la même tension d’esprit apparente ; on peut ouvrir la porte, lui toucher les bras ou la figure, lui parler sans qu’elle s’en aperçoive. Chose plus singulière, elle a sous les seins et sur l’ongle du pouce des points hyperesthésiés et hystérogènes dont le simple frôlement provoque des cris de douleur et même des convulsions. Quand elle est ainsi occupée par un travail ou par une simple conversation, je puis frapper sur sa poitrine ou sur son pouce sans qu’elle dise mot. »

« C’est un état exagéré de distraction, qui n’est pas momentané et ne résulte pas d’une attention volontaire dirigée uniquement dans un sens ; c’est un état de distraction naturelle et perpétuelle qui empêche ces personnes d’apprécier aucune autre sensation en dehors de celle qui occupe actuellement leur esprit. » « Elle se figure que les gens sont sortis dès qu’elle cesse de leur parler, et, quand on la force à faire de nouveau attention à eux, elle dit: ‘Tiens, vous êtes donc rentré ?’ » « Elle commence par me dire qu’elle ne veut causer qu’avec moi et qu’elle ne me quittera pas. Je la fais causer avec une autre personne et je cesse de lui parler, alors elle m’oublie complètement et, quand cette personne sort, elle veut la suivre comme s’il n’y avait plus qu’elle au monde. Il n’est pas plus difficile de comprendre maintenant pourquoi Léonie, quand je lui parle d’une princesse, a oublié sa situation de paysanne »

« De même que l’anesthésie tactile générale enlève tous les souvenirs liés au sens tactile, de même cette anesthésie, variable et momentanée pour certains objets que cause la distraction, enlève momentanément tous les souvenirs qui sont liés à la sensation de ces objets. »

« On sait les sottises que nous pouvons commettre dans un instant de distraction ; eh bien, si l’on tient compte des conditions de sa production, un acte suggéré qu’exécute le sujet est l’idéal de la distraction. »

3.5 LE RÉTRÉCISSEMENT DU CHAMP DE LA CONSCIENCE

« Les phénomènes qui font l’objet de la physiologie, écrivait Herbert Spencer, se présentent sous la forme d’un nombre immense de séries réunies ensemble. Ceux qui font l’objet de la psychologie ne se présentent que sous la forme d’une simple série. »

SENHOR K: « Sans doute, nous avons bien l’idée de la coexistence et même la notion des objets disséminés dans l’espace; mais cette notion, loin d’être primitive, serait dérivée de la notion de succession et de l’idée du temps. » Dê um chute no bordão (sociologuês)!

« depuis Stuart Mill, l’école anglaise s’est attachée à démontrer que ‘le temps est père de l’espace’. Si l’on adopte entièrement cette opinion, comme semble le faire Taine qui regarde la conscience comme un centre inétendu, une sorte de point mathématique, on trouvera peut-être singulier de parler encore du nombre des phénomènes psychologiques dans la conscience à un moment donné »

RELATIVITÉ AVANT LA LETTRE : « ainsi que l’ont montré les beaux travaux de Wundt et de ses élèves sur la durée des phénomènes psychiques, ces phénomènes ne se succèdent pas toujours avec la même rapidité, et 2 individus pourraient encore, dans un temps donné, présenter une quantité très différente d’images mentales. »

« Il ne nous parait guère possible, malgré les démonstrations curieuses données par les psychologues anglais, de faire sortir la notion d’espace de la notion de temps et le rapport de coexistence du rapport de succession. L’idée d’espace, qui est une idée originale, dérive en réalité de la sensation d’étendue que nous procure la coexistence réelle d’un grand nombre de sensations simultanées du sens de la vue ou du sens tactile (Voir Rabier, Leçons de philosophie, I). [de novo citação de um Rabier que sequer podemos encontrar na internet…] D’autre part, l’observation de nous-même ne nous montre pas la conscience ainsi réduite à l’unité. Pendant que j’écris cette page et que je pense aux différentes opinions des philosophes sur l’étendue de la conscience, je vois mon papier, ma lumière, ma chambre et j’entends en même temps le bruit sourd d’un concert dans la maison voisine, ce qui ne laisse pas de me causer une impression désagréable. » « D’ailleurs est-il possible qu’il en soit autrement ? Un seul acte, celui d’écrire, ne demande-t-il pas plusieurs phénomènes conscients, la vue du papier, de la plume, des traits noirs, l’image sonore ou musculaire des mots, l’expression parlée des idées, etc. Si je n’avais en tête qu’une seule image, je l’exprimerais sans doute parfaitement, car elle serait traduite par tout mon corps, mais je ne bougerais plus, je ne penserais plus, je deviendrais une statue, comme les cataleptiques que nous avons étudiées. »

« Mais la vie ordinaire de la pensée ne tombe pas si bas et ne s’élève pas si haut : elle se maintient à une hauteur moyenne à laquelle les images présentées à l’esprit sont nombreuses et où leur systématisation est loin d’être complète. »

« ce petit groupe de phénomènes mieux connus que les autres, c’est la part de l’attention, de l’aperception, comme dirait Wundt après Leibniz, qui ne s’étend pas aussi loin que la conscience elle-même. » « Spencer nous fournit même un terme excellent, très précis et très utile que nous conserverons : l’aire ou le champ de la conscience. »

PONTO DE VISTA, PONTO DE MENTE: « Ne pourrait-on pas appeler de même champ de la conscience ou étendue maximum de la conscience, le nombre le plus grand de phénomènes simples ou relativement simples qui peuvent se présenter à la fois dans une même conscience, en réservant, comme le propose Wundt, le terme de ‘point de regard interne’ pour cette partie des phénomènes de la conscience vers laquelle est dirigée l’attention ? Il serait, je crois, de la plus haute importance pour la psychologie expérimentale de pouvoir déterminer, ne fût-ce que d’une manière approximative, le champ de la conscience, comme on mesure le champ visuel avec un campimètre ou un périmètre. Wundt est le seul, croyons-nous, qui ait essayé une détermination expérimentale de ce genre (Éléments de psychologie physiologique). Malheureusement, il se sert de procédés et de raisonnements qui ne nous paraissent ni bien clairs, ni bien certains, et il passe très vite sur cette question difficile. Sa conclusion est que ‘nous serons autorisés à considérer 12 représentations simples comme étant l’étendue maximum de la conscience’. »

O QUE É O NÚMERO, SENÃO UMA OUTRA ABSTRAÇÃO PARA TENTAR QUANTIFICAR ABSTRAÇÕES? “Le champ visuel binoculaire, qui n’est cependant qu’une petite partie du champ total de la conscience, renferme évidemment bien plus de 12 phénomènes visuels simultanés; la conscience, qui contient en outre les autres sensations et leurs images, doit en contenir bien davantage. Mais il y a ici une foule de questions à soulever sur le sens même des mots, sur l’idée que l’on se fait d’une représentation simple, qui font de ce problème l’un des plus délicats de la psychologie expérimentale”

« Une hystérique pense peu de choses, mais le peu qu’elle pense, elle ne le connaît pas mieux pour cela, car les sens qui lui restent sont diminués de toute façon et elle n’a que des notions fort confuses des objets même qu’elle regarde. L’anesthésie chez elle, même quand elle est momentanée et due à la distraction, est une perte sans compensation. »

« Les individus dont le champ de la conscience est restreint d’une manière anormale me paraissent former 2 groupes : ce sont des malades ou des enfants. » « l’hypnotisme, pour amener l’état somnambulique, doit déranger l’orientation actuelle de la pensée pour lui en substituer une autre. Or, les enfants, heureusement, n’ont pas d’ordinaire l’instabilité mentale et les anesthésie qui permettent ce bouleversement. Un somnambulisme véritable se produisant facilement chez un enfant me paraîtrait la marque d’une tare héréditaire et d’une névrose commençante. »

« Rien n’est plus curieux en effet que de voir des femmes de 30 ans, sérieuses et froides à l’état de veille, prendre, une fois en somnambulisme, des airs de bébés, gesticuler, jouer sans cesse, rire à tout propos, parler en zézayant, réclamer des petits noms comme Nichette ou Lili, et en réalité prendre toutes les allures de très jeunes enfants. »

3.6 INTERPRÉTATION DES PHÉNOMÈNES DE SUGGESTION. – LE RÈGNE DES PERCEPTIONS.

« Un médecin du XVIIIe siècle, précurseur à certains points de vue de Maine de Biran, Rey Régis,¹ disait déjà que le mouvement des membres peut être déterminé par 3 choses : par la volonté, par la pensée, par la passion. ‘Cette doctrine d’une détermination immédiate de la faculté motrice par la pensée sans l’intermédiaire de la volonté est une de celles par lesquelles Rey Régis se distingue de Maine de Biran et va rejoindre la psychologie anglaise de nos jours,’ ‘Penser, disait en effet Bain, c’est se retenir de parler et d’agir.’ Cela est juste pour nous qui pouvons nous retenir, mais, pour les individus que nous décrivons, penser c’est parler et agir. »

¹ Totalmente ignorado hoje.

« Quand le champ de la conscience est aussi restreint que possible et ne renferme plus qu’un seul phénomène à la fois, ce fait se présente sous forme de sensation ou d’image, et, en étudiant les actions des individus cataleptiques, nous ne pouvions voir que l’automatisme des images. Mais dès que le champ de la conscience est un peu plus étendu, chaque sensation ne reste plus isolée, elle est accompagnée de nombreuses images accessoires et interprétatives qui permettent la formation de l’idée du moi, de l’idée du monde extérieur et du langage (…) nous pouvons nous rendre compte de l’automatisme des perceptions. »

« Une perception, comme une émotion, mais avec un degré de complexité bien plus grand, est une synthèse, une réunion d’un très grand nombre d’images. (…) Nous savons déjà, par nos études sur les émotions et sur les mémoires, que de pareils systèmes sont durables et tendent à se conserver le plus longtemps possible. »

« il suffit de montrer : 1° comment cet automatisme des perceptions ressemble au mécanisme des sensations et des émotions, et 2° par quels traits, grâce à sa complexité plus grande, il en diffère. »

« Le développement automatique des perceptions amène un phénomène nouveau, celui de l’hallucination, qui semble demander une explication particulière. » « Si j’osais faire une semblable comparaison, je dirais que les cataleptiques ressemblent à ces canards sans cerveau que M. Richet a eu l’obligeance de me montrer dans son laboratoire. Au premier abord, les canards sans cerveau ne se distinguaient pas des autres, ils fuyaient en criant et en écartant les ailes comme leurs camarades; mais quand toute la bande était arrivée contre un mur, leur infériorité éclatait ; tandis que les canards au cerveau intact se dispersaient à droite et à gauche, les canards sans cerveau se heurtaient du bec contre la muraille et ne bougeaient plus. » « Malheureusement la plupart, à mon avis du moins, se contentent de quelques termes scientifiques récoltés au hasard et croient avoir tout dit quand ils ont parlé d’une crise de nerfs à 4 phases et d’une héroïne hémi-anesthésique. »

« M. Richet demandait à une somnambule l’heure où une chose était arrivée : ‘Attendez, disait-elle… je ne vois pas’ ; puis elle dit: ‘Je sais maintenant.’ Elle voyait devant elle un cadran dont les aiguilles marquaient l’heure. Une pensée qui se présente avec cette vivacité ne peut guère être hésitante et variable comme la nôtre. ‘Je l’ai vu, de mes propres yeux vu,’ disons-nous quand nous sommes certains »

« Tout fantôme interne renferme une conception affirmative » Taine

« Sainte Thérèse a décrit d’une manière bien précise cet état d’esprit qu’elle devait connaître : ‘Je connais, dit elle, des personnes dont l’esprit est si faible qu’elles s’imaginent voir tout ce qu’elles pensent. Cet état est bien dangereux.’ » (Grande ironia.)

« quand je veux modifier une conviction de Léonie, j’obtiens toujours cette réponse qui, au fond, est pleine de bon sens : ‘Je vois que cela est ainsi, pourquoi voulez-vous que je ne croie pas que cela est? vous croyez bien, vous, ce que vous voyez . . . Vous ne voyez pas la même chose que moi . . . que voulez-vous que j’y fasse ? c’est que vous ne savez pas voir, tant pis pour vous.’ N’est-ce pas ainsi que parlent les croyants dans les religions : ‘Vous ne comprenez pas cela . . . c’est que vous n’avez pas la foi, c’est un sens qui vous manque ; mais moi je sens, je vois… donc je crois.’ Et cette conviction pourra devenir l’origine de tous les dévouements et de tous les fanatismes. » « Le plus invraisemblable exemple que j’aie vu de cette crédulité est le suivant: une hystérique entend dire dans sa jeunesse, par un maladroit, que les femmes atteintes de sa maladie mouraient à la ménopause. Vingt ans plus tard, au moment des premières manifestations de l’âge critique, elle se prépare à mourir, étouffe et serait peut-être morte, si nous n’avions fini par découvrir son secret et par lui modifier, non sans peine, sa conviction. »

CRIANCINHAS PREGADORAS: « ‘On ne me guérira pas; ce n’est pas une maladie que j’ai, je suis ensorcelée par ce vieux sorcier que j’ai fâché contre moi ; il n’y a rien à faire.’ Je lui fis avouer cette singulière histoire; je parvins avec bien des difficultés à lui enlever cette conviction vraiment délirante, et je n’eus plus de peine à supprimer la paraplégie. Mais laissons de côté ces cas extrêmes où la crédulité a des conséquences dramatiques ; constatons d’une manière générale que les hystériques éveillées ou endormies, peu importe, sont comme les petits enfants, qu’elles n’ont point besoin de pratiques hypnotiques pour être convaincues et qu’elles croient tout ce qui frappe leur esprit. »

« aussitôt une idée conçue, il faut l’exécuter, et le mouvement est accompli comme par une décharge convulsive. » « Des exemples nombreux sont inutiles ; il faudrait citer toute la vie et toutes les actions, car on retrouve toujours ce même caractère de précipitation irraisonnée. » « L’insouciance des femmes hystériques est invraisemblable et elle se retrouve dans la conduite de tous les êtres faibles ou dégradés. »

« Un malheureux imagina de se jeter sous les roues d’une locomotive ; l’instantanéité de ce nouveau genre de suicide a aussitôt donné l’éveil à ceux qui aspirent à déserter la vie, et les imitateurs sont venus maculer de leur sang les roues de la lourde machine. » Legrand du Saulle

« et, pendant toute une période, les assassinats seront du même genre et les cadavres seront mutilés de la même manière. »

« Les maladies nerveuses acquises par imitation, le somnambulisme naturel produit par la lecture de l’histoire du somnambule Caselli, les épidémies démonopathiques, le mal des Andous en Belgique,¹ les possessions du monastère de Kérndrep, de Loudun, de Morzine, sont des faits trop connus pour que j’y insiste. »

¹ Descrito por Esquirol.

« Trois hystériques étaient dans la même salle de l’hôpital et, comme cela arrive souvent, ne s’aimaient guère et affectaient des manières toutes différentes, pendant leur état normal ; mais, quand elles étaient en crise, elles se copiaient si bien qu’elles avaient le même délire et prononçaient exactement les mêmes paroles. »

« L’ivresse du haschich ressemble d’ailleurs, dit M. Richet, à l’état hystérique et on y trouve la même exaggération du sentiment et la même impuissance de la volonté. Toutes les idées se traduisent sans que nous puissions les empêcher. »

« Il ne faut pas chercher à consoler une hystérique, comme l’on ferait pour une personne ordinaire, en lui parlant de l’objet de son chagrin et en lui montrant qu’il est futile. Non, si on parle de l’objet qui a causé leur colère ou leur désespoir, de quelque manière qu’on en parle, on augmente leurs cris et leurs larmes. Il faut tout simplement, sans aucun art des transitions, parler brusquement de tout autre chose : elles restent un moment interloquées, hésitantes; puis, en quelques secondes, se donnent tout entières au nouveau sujet et rient avec gaieté quand elles ont encore les larmes dans les yeux. » « Dès que sa figure s’attristait et qu’elle commençait à crier : ‘Oh! ma pauvre petite’, de suite, je lui parlais brusquement d’autre chose, elle se mettait à rire et c’était fini. »

« elle ne crie pas parce qu’elle souffre réellement, ici je crois qu’elle ne sentait rien, mais parce qu’elle doit souffrir. Une idée plus ou moins vague de la souffrance, peut-être avec une image hallucinatoire très faible d’une douleur ancienne, voilà tout ce qu’il y avait au-dessous de ces grands cris et de ce désespoir. »

« Un psychologue américain dont le nom est bien connu, M. William James, a soutenu une théorie très séduisante sur l’origine des émotions (What is an emotion). D’après lui, c’est un tort de dire avec le sens commun : Nous perdons notre fortune > nous sommes chagrins > nous pleurons. ‘Cet ordre n’est pas correct, le second état mental n’est pas immédiatement introduit par le premier, les manifestations physiques doivent être interposées entre eux. L’ordre rationnel est que nous nous sentons chagrins parce que nous pleurons, colères parce que nous frappons, etc.’ »

SÍNTESE PERFEITA DO AUTOMATISMO PSICOLÓGICO: « L’auteur en concluait qu’un individu totalement insensible ne devrait pas avoir conscience de ces changements organiques et par conséquent ne plus éprouver d’émotions, et il m’écrivit à ce sujet quand, dans mes premières études, j’avais signalé Lucie comme anesthésique totale. Je lui répondis que les hystériques me semblaient assez mal choisies pour vérifier cette théorie, d’abord parce que leur anesthésie n’était pas bien réelle, ensuite parce qu’elles étaient au contraire très émotionnables. Il m’a semblé depuis que ces observations étaient en réalité plus favorables à l’opinion de M. William James, mais d’une autre manière qu’il ne le croyait lui-même. L’émotion n’est pas supprimée chez l’hystérique par son anesthésie ; car, si elle ne sent pas les modifications de sa peau, elle voit ses propres mouvements et entend ses cris; mais elle semble être produite chez elle et entretenue par l’exagération même des manifestations. »

« Oh ! comme je crie bien, pourrait dire Lucie ; je dois être bien en colère, donc je le suis. »

« Sur une quinzaine de personnes que j’ai étudiées et qui, certes, n’étaient pas parfaites, je n’en ai guère rencontré qu’une, chez qui l’habitude du mensonge fût véritablement curieuse. Lorsque ce caractère existe, et, comme je viens de le dire, il se rencontre, il ne faut pas s’indigner, ce qui est ici parfaitement déplacé, il vaut mieux chercher à l’expliquer.

Beaucoup de psychologues, qui raisonnaient plus qu’ils n’observaient, ont soutenu que la véracité, l’habitude d’aimer et de dire la vérité, était une chose naturelle à l’homme qui se retrouvait constamment, lorsque l’esprit humain était observé dans toute sa candeur primitive, chez l’enfant et chez le sauvage. Je ne parlerai pas du sauvage que je ne connais pas, mais je remarquerai que les enfants, à moins d’être de petits prodiges, sont loin de dire toujours scrupuleusement la vérité, qu’ils embellissent leurs récits, et qu’ils savent mentir aussitôt qu’ils savent parler. »

« L’esprit de vérité et l’esprit scientifique sont 2 choses analogues, et celui qui ne comprend pas l’intérêt qu’il y a à savoir ce qui est, ne sent pas l’importance qu’il y a à dire ce qui est. » « Or, l’esprit de l’hystérique est justement, par la perte de plusieurs sens et par le rétrécissement de la conscience, un esprit rudimentaire ; elle ne comprend rien à la science et ne s’imagine pas que l’on puisse s’y intéresser; elle dit ce qui lui vient à l’esprit, sans autre préoccupation. »

« L’idée du bien, l’idée du devoir sont des rapports abstraits, des jugements, de véritables découvertes ; pour les concevoir, il faut réunir dans une même pensée un très grand nombre de termes en apparence étrangers : l’idée de l’acte présent, de ses conséquences futures même lointaines, la pensée des autres hommes, de leur ressemblance avec nous-mêmes, de leurs droits, etc. »

« Ils sont égoïstes, vaniteux, jaloux, car ce sont leurs principaux vices, mais ils ne peuvent pas être autrement; la force de leur esprit est devenue suffisante pour former l’idée de personnalité et diriger la conduite d’après cette idée ; mais elle ne peut s’élever au delà et donner aux actions des motifs plus généraux. La morale est comme la science »

3.7 CONCLUSION

« Parmi les auteurs qui, de nos jours, ont étudié le phénomène de la suggestion, il en est qui, entraînés par la discussion, semblent avoir élargi démesurément le sens de ce mot. Pour eux, toute action, toute pensée humaine, déterminée et régulière, semble être de la suggestion. Sans doute, ils se servaient surtout de cette expression pour faire comprendre que tous ces états réguliers, tous ces actes déterminés, étaient dus avant tout à des causes psychologiques et non à des causes physiques : en cela ils avaient complètement raison, et ils ont contribué à rendre à la conscience l’importance qu’elle doit avoir dans l’explication de la personne humaine. Mais, cela une fois admis, il faut pourtant constater que tous les phénomènes psychologiques ne sont pas identiques et qu’il n’y a aucun avantage à remplacer les anciens mots connus de mémoire, émotion, association des idées, par ce mot nouveau de suggestion, comme si tous ces phénomènes venaient d’être découverts. Pour nous, la suggestion désigne un automatisme d’un genre particulier, celui auquel donnent naissance le langage, et en général les perceptions. »

« Cette synthèse [linguagem + percepção] une fois faite, puisque nous n’avons pas à nous occuper, dans ce travail, de l’activité qui a présidé à sa formation, se conserve; lorsqu’un de ses termes est donné, la perception totale qui est commencée se complète et amène les autres images qui la constituent. Par des lois, sur lesquelles nous n’avons pas à revenir, ces images successives forment des hallucinations, des croyances et des actes. Cela était déjà contenu dans l’automatisme des sensations et dans celui de la mémoire, il est tout naturel que ce même caractère se retrouve dans l’automatisme des perceptions. »

« l’automatisme des perceptions, fondement de la suggestion, est le résultat d’une activité ancienne qui continue à agir de la même façon, mais qu’elle est en opposition avec l’activité actuelle de la pensée. Plus celle-ci se développe, plus elle est capable de faire des combinaisons nouvelles avec les éléments plus nombreux qui sont apportés à la conscience, plus l’automatisme est réduit. »

« Aussi ne pouvons-nous pas pousser plus loin notre étude dans la direction que nous avons suivie jusqu’à présent : en passant des phénomènes conscients les plus simples aux plus complexes, nous avons vu l’automatisme décroître de plus en plus. Il nous faut maintenant passer à un autre point de vue et voir si cette activité régulière et déterminée ne se dissimule pas et n’existe pas sous une autre forme quand elle paraît avoir disparu de la conscience. »

DEUXIÈME PARTIE. AUTOMATISME PARTIEL

1. LES ACTES SUBCONSCIENTS

« La psychologie ne peut pas se constituer si elle reste incomplète et si elle néglige des phénomènes dont la connaissance est nécessaire pour expliquer les problèmes qu’elle pose. » « Ce n’est donc pas une nouvelle recherche que nous entreprenons, c’est une application particulière de nos études précédentes à des circonstances nouvelles. »

1.1 LES CATALEPSIES PARTIELLES

« on entend par acte inconscient une action ayant tous les caractères d’un fait psychologique sauf un, c’est qu’elle est toujours ignorée par la personne même qui l’exécute au moment même où elle l’exécute. » « Nous ne considérons donc pas comme acte inconscient l’action qu’une personne oublie immédiatement après l’avoir faite, mais qu’elle connaissait et décrivait pendant qu’elle l’accomplissait. »

« C’est un cas analogue à ceux que nous avons longuement étudiés en parlant de la catalepsie, nous n’y reviendrons plus maintenant. Tantôt, au contraire, l’individu conserve la conscience claire de tous les autres phénomènes psychologiques, sauf d’un certain acte qu’il exécute sans le savoir. L’individu parle alors avec facilité, mais d’autres choses que de son action; nous pouvons alors vérifier, et il le peut lui-même, qu’il ignore entièrement l’action que ses mains accomplissent. C’est cette forme d’inconscience particulière qu’il nous semble maintenant très important de bien comprendre. »

« On connaît la doctrine des petites perceptions ou perceptions sourdes de Lebniz. »

« J’accorde aux cartésiens que l’âme pense toujours actuellement; mais je n’accorde point qu’elle s’aperçoit de toutes ses pensées, car nos grandes perceptions et nos grands appétits dont nous nous apercevons sont composés d’une infinité de petites perceptions et de petites inclinations dont on ne saurait s’apercevoir. Et c’est dans ces perceptions insensibles que se trouve la raison de ce qui se passe en nous, comme la raison de ce qui se passe dans les corps sensibles consiste dans les mouvements insensibles. »

« Ainsi, il est bon de faire distinction entre la perception qui est l’état intérieur de la monade représentant les choses externes [imediata, ‘irracional’] et l’aperception qui est la concience ou la connaissance réfléchie de cet état intérieur, [mediata] laquelle n’est point donnée à toutes les âmes ni toujours à la même âme. »

Principes de la natur et de la grâce

« En écartant ce qu’il y a d’absolu dans le système de Leibniz, on conçoit que les affections propres aux monades composantes ou éléments sensibles peuvent avoir lieu sans être représentées ou aperçues par la monade centrale qui fait le moi, ou le principe d’unité. »

Maine de Biran, sempre ele!

« Tous ces philosophes n’ont parlé des phénomènes inconscients que d’une manière théorique; ils ont montré que, d’après leurs systèmes, de pareils faits étaient possibles ; tout au plus ont-ils essayé d’interpréter dans ce sens quelques faits d’observation journalière. »

« Il arrive souvent que la bouche des orateurs prononce une suite de paroles indépendantes de leur volonté, en sorte qu’ils s’écoutent eux-mêmes comme les assistants et qu’ils n’ont connaissance de ce qu’ils disent qu’à mesure qu’ils le prononcent. »

Carré de Montgeron¹ apud Bérillon

¹ Jurista sem bibliografia conhecida

« Il faut le reconnaître, ce sont les adeptes d’une des plus curieuses superstitions de notre époque, les spirites, qui, en faisant tourner les tables vers 1850 et en interrogeant les esprits, ont le plus attiré l’attention sur les phénomènes inconscients. Ils les ont observés et même produits dans toutes leurs variétés ; mais la façon dont ils les expliquent est si étrange, leurs descriptions sont tellement altérées par leur enthousiasme religieux que l’on ne peut prendre leurs études sur l’inconscient comme le point de départ d’un travail. Il sera plus naturel de revenir à leurs descriptions quand nous aurons observé assez de choses pour pouvoir les comprendre et quelquefois les expliquer. Mais le problème soulevé par eux fut étudié avec plus de précision dans les travaux de Faraday et de Chevreul,(*) 1854, qui, les premiers, montrèrent l’intervention de véritables phénomènes psychologiques inconcients.

(*) Chevreul. Lettre à M. Ampère sur une classe particulière de mouvetnents musculaires. Revue des Deux-Mondes, 1833. De la baguette divinatoire, du pendule dit explorateur et des tables tournantes, au point de vue de l’histoire, de la critique et de la méthode expérimentale. 1854. »

« Les actes inconscients les plus simples de tous ont été désignés par Lasègue,(*) qui les signala le premier, sous le nom de catalepsies partielles, expression fort juste et que nous conserverons.

(*) Études médicales, II. »

« des somnambules gardent leur bras étendu sans paraitre s’en apercevoir (Liébault) »

« On voit donc que tous les phénomènes de la catalepsie peuvent exister partiellement, tandis que la conscience ordinaire du sujet semble, d’autre part, rester intacte. »

« Les mots conscience et inconscience sont pris tantôt dans un sens relatif et tantôt dans un sens absolu. On dira, par exemple, qu’un phénomène est inconscient pour exprimer l’idée que le moi n’en a pas conscience, mais sans affirmer par là que le phénomène n’est pas conscient en lui-même et pour son propre compte. La physiologie tend à établir qu’il s’accomplit ainsi, dans l’organisme humain, un nombre immense de faits de conscience qui sont, pour le moi, comme s’ils appartenaient à d’autres personnes et, même avec ce désavantage en plus, qu’ils ne se trouvent pas en rapport avec des facultés d’expression. »

Dumont,¹ Sensibilité

¹ Há um médico francês do XIX, Édouard Denis-Dumont, mas ele não escreveu essa obra. Este outro permanece ignoto.

« Les catalepsies partielles nous montrent le premier germe des consciences partielles que nous verrons grandir et se préciser dans nos autres études. »

1.2 LA DISTRACTION ET LES ACTES SUBCONSCIENTS

« nous sommes plutôt, comme nous le verrons, en présence d’un somnambulisme partiel, où les actes sont déterminés par des perceptions intelligentes. Le sujet ne répète pas les paroles, il les interprète et les exécute » « Ce genre d’écriture est connu sous le nom d’écriture automatique, expression assez juste si l’on veut dire qu’elle est le résultat du développement régulier de certains phénomènes psychologiques, mais par laquelle il ne faut pas entendre, je crois, que cette écriture n’est accompagnée d’aucune espèce de conscience. »

1.3 LES SUGGESTIONS POSTHYPNOTIQUES. HISTORIQUE ET DESCRIPTION.

« Puisque, dès cette époque (1823), la suggestion posthypnotique était ainsi connue et utilisée, il n’est pas surprenant que tous les écrivains postérieurs nous donnent des exemples très nets et très curieux de ce phénomène. »

« Cependant, tel était, à cette époque, le mépris puéril que l’on affectait pour le magnétisme animal que toutes ces descriptions psychologiques furent complètement oubliées et l’on crut véritablement à une découverte toute récente quand M. Richet publia en 1875 ses observations sur quelques suggestions exécutées après le réveil. On eut de la peine à croire qu’une femme, ayant oublié tout ce qu’on lui avait dit pendant le somnambulisme, pût cependant revenir au bout de 8 jours à l’heure dite sans savoir pourquoi. Mais, en 1823, Bertrand considérait déjà cette expérience comme banale. »

1.4 EXÉCUTION DES SUGGESTIONS PENDANT UN NOUVEL ÉTAT SOMNAMBULIQUE

« Son oeil droit (elle était alors complètement aveugle de l’oeil gauche) a, pendant la veille une acuité visuelle très faible, 1/8 du tableau de Wecker ; pendant le somnambulisme, si on lui fait ouvrir les yeux, l’acuité visuelle de l’oeil droit monte toujours sans aucune suggestion à ¼ ou 1/3. »

1.5 EXÉCUTION SUBCONSCIENTE DES SUGGESTIONS POSTHYPNOTIQUES

« J’admets que ces souvenirs ignorés, comme les appelle M. Richet, puissent se réveiller à une époque quelconque, suivant telle ou telle circonstance. Je comprendrais encore le retour même à une époque fixe de ces images et de ces actes qui en sont la suite, si l’opérateur les associait à l’apparition d’une sensation vive ; par exemple, ‘le jour où vous verrez M. un tel, vous l’embrasserez’, la vue de M. un tel devant servir de stimulant au réveil de l’idée. Mais ce que je ne comprends absolument pas, c’est le réveil à jour fixe sans aucun point de rattache que la numération du temps, par exemple, dans 13 jours. Treize jours ne représentent pas une sensation ; c’est une abstraction. Pour rendre compte de ces faits, il faut supposer une faculté inconsciente de mesurer le temps ; or, c’est là une faculté inconnue. »

Paul Janet

« l’intelligence peut travailler en dehors du moi et, puisqu’elle travaille, elle peut mesurer le temps ; c’est une opération évidemment plus simple que de trouver un nom, de faire des vers, de résoudre un problème de géométrie, toutes choses qu’elle peut accomplir sans que le moi y participe. »

Richet

« Nous avons ici, non pas une association, c’est-à-dire une pure possibilité persistant à l’état latent, mais de véritables phénomènes psychologiques, des remarques, des comptes, en un mot des jugements persistant pendant 13 jours dans la tète d’un individu, sans qu’il en ait conscience : un jugement inconscient est tout autre chose qu’une association latente. »

« La somnambule avait aussi dû compter, car je m’appliquais à faire les coups égaux et le 12e ne se distinguait pas des précédents; mais, au lieu de compter des jours, ce qui avait fait croire à une mesure de temps, elle avait compté des bruits. » « Le tout s’exécute presque sans erreur, sauf quand l’opération devient trop compliquée et ne pourrait plus être faite de tête. »

HAJA PAPEL: « L’écriture de ces lettres est intéressante ; elle est analogue à l’écriture normale de Lucie, mais non identique ; c’est une écriture penchée et très lâche ; les mots ont une tendance à s’allonger indéfiniment. M. Ch. Richet, à qui j’ai montré ces fragments d’écriture automatique, m’a appris que ce caractère était fréquent dans les écritures de médiums dont nous parlerons plus tard et que, dans leurs lettres, souvent un mot remplissait toute une ligne. »

« La formation d’une plaque rouge sur la peau en forme d’une étoile, qu’elle ait lieu après le réveil ou pendant le somnambulisme comme précédemment, ne peut également s’expliquer que par une pensée. Il ne suffit pas de dire que cette rougeur est due à l’excitation d’un nerf vaso-moteur, car il n’y a pas de nerf qui se distribue précisément à cet endroit sous forme d’une étoile à 6 branches. C’est une excitation partielle et systématique de plusieurs nerfs que je ne puis comprendre sans l’intervention d’une pensée qui coordonne ces excitations. Pendant le somnambulisme, le sujet exprimait directement cette pensée et nous disait : ‘J’ai tout le temps pensé à votre sinapisme.’ Maintenant qu’il est réveillé aussitôt après la suggestion, il semble n’y plus penser et n’a conscience de rien, mais quelque chose doit y penser en lui de la même manière quoique à son insu. On voit quelquefois cette pensée thérapeutique se manifester par des actes subconscients. »

1.6 CONCLUSION

« or, l’étude des actes est propre à révéler une conscience, mais non à l’expliquer. Il faut, pour comprendre cette nouvelle pensée, étudier les sensations ou les images qu’elle renferme et joindre à l’étude des actes subconscients celle des sensibilités subconscientes. »

2. LES ANESTHÉSIES ET LES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SIMULTANÉES

2.1 LES ANESTHÉSIES SYSTÉMATISÉES – HISTORIQUE

« suggestion d’hallucination négative ou suggestion d’anesthésie systématisée. (…) En effet, grâce à la suggestion, on peut interdire une chose à une somnambule, aussi facilement que l’on peut lui en commander une, et, lorsque l’interdiction porte sur les sensations, elle peut produire une surdité ou une cécité artificielle, comme le commandement positif amenait une hallucination. »

« On profite souvent de l’heure du somnambulisme pour faire prendre au malade un remède pour lequel il a de la répugnance. J’ai vu une dame qui avait de l’horreur pour les sangsues s’en faire appliquer aux pieds pendant le somnambulisme et dire à son magnétiseur : ‘Défendez-moi maintenant de regarder mes pieds, quand je serai éveillée.’ En effet, elle ne s’est jamais doutée qu’on lui eût posé des sangsues. »

Deleuze, Instruction pratique

« On a vivement reproché à M. Bernheim le nom qu’il a choisi pour désigner ce fait. Ce n’est pas là une hallucination, dit-on, mais la suppression de la perception d’un objet déterminé qui laisse intacte la perception d’un autre objet… » « Sans doute, le fait en question se rapproche plutôt des anesthésies que des hallucinations, et il est, comme nous le verrons, de la même nature que les paralysies ; les 2 mots hallucination négative forment aussi une association assez incorrecte ; à moins d’appeler l’anesthésie générale une hallucination négative totale, ce qui n’est pas l’habitude, il semble plus naturel de désigner ce fait par l’expression d’anesthésie systématisée, que MM. Binet et Féré ont adoptée. »

« Si on a suggéré à une somnambule qu’une personne, M. X…, avait disparu, la somnambule ne peut plus le voir à quelque endroit de la chambre qu’il se tienne; mais si on ajoute un objet sur M. X…, un chapeau par exemple, comme il n’est pas compris dans la suggestion, ce chapeau reste visible et paraît alors se tenir en l’air. Au contraire, si M. X… tire un mouchoir de sa poche, ce mouchoir reste invisible comme lui. » « J’ai vu une fois une personne qui voyait l’objet à moitié, comme coupé en deux, quand il était tenu à la fois par la personne invisible et par une personne visible. »

« La personne ou l’objet que l’on a rendu invisible cache réellement les objets qu’il recouvre, mais la somnambule supplée à la vision de ces objets par une hallucination qui les remplace ; c’est d’ailleurs ce que nous faisons journellement pour les objets qui viennent se peindre sur la tache aveugle de la rétine. Cette hallucination peut aller fort loin : j’ai vu une fois un sujet, à qui j’avais suggéré de ne point voir la chambre, la remplacer par l’hallucination d’un autre appartement dont je n’avais pas parlé. »

« L’objet invisible doit être réellement perçu, car il produit quelquefois une image consécutive de couleur complémentaire qui, elle, est visible : fait-on disparaître un papier rouge, la somnambule ne le voit pas, mais, au bout de quelque temps, verra une couleur verdâtre à la même place. Je n’ai pas observé ce phénomène d’une manière assez nette, mais les conditions physiques et morales dont le somnambulisme dépend sont si complexes qu’il ne faut jamais s’étonner de ne pas rencontrer exactement les mêmes phénomènes que d’autres observateurs. »

« Il y a toujours un raisonnement inconscient qui précède, prépare et guide le phénomène d’anesthésie. »

Binet et Féré

« réveillée, la somnambule ne se souvient plus de ce qu’on lui a commandé, elle ne sait pas qu’il y a un objet qu’elle ne doit pas voir, ni quel est cet objet. »

« Il me semble qu’il y a quelque analogie entre cette question et l’un des problèmes que nous avons étudiés dans le chapitre précédent. »

2.2 PERSISTANCE DE LA SENSATION MALGRÉ L’ANESTHÉSIE SYSTÉMATISÉE

« Cet objet qui parait invisible est donc vu. Cela est vraisemblable ; mais nous savons, et nous ne sommes pas le seul à le constater, que le sujet est sincère quand il dit qu’il ne le voit pas. La vision de ces objets doit être du même genre, du même niveau que les actes subconscients dont nous parlions tout à l’heure. »

« Lucie ne voyait aucunement l’objet supprimé ; mais le groupe des phénomènes subconscients, que nous ne savons pas encore désigner autrement, répondait par l’écriture automatique qu’il les voyait parfaitement. »

« Cette répartition intelligente de l’anesthésie de manière à dessiner un cercle ou une étoile ne peut se faire que par une idée consciente. Pour me répondre correctement quand je l’interroge en piquant son bras, il faut que le sujet sache, même sans regarder, quand ma piqûre entre dans le cercle ; il faut donc qu’il la sente. Aussi ne serons-nous pas surpris que l’inconscient nous réponde par écriture automatique qu’il sent très bien ce que nous faisons et qu’il distingue une piqûre, un attouchement, un objet chaud ou froid même sur cette plaque anesthésiée.

Ayant ainsi déterminé l’existence d’une sorte de conscience nouvelle pendant les anesthésies systématisées, j’ai voulu examiner l’étendue de cette conscience, c’est-à-dire le nombre des phénomènes qu’elle pouvait contenir. »

« Ainsi tous les papiers ont été vus, et remis, mais les un l’ont été par Lucie et les autres par un personnage au-dessous d’elle qu’elle paraît ignorer, mais ni l’une ni l’autre ne les a vus tous. »

« J’avais remarqué que le personnage secondaire ne se servait pas des yeux pour écrire et qu’en général il ne voyait pas ; je lui suggère de se servir de ses yeux et de voir clair. C’est ce qui a lieu, mais aussitôt Lucie s’écrie : ‘Qu’y a-t-il donc, je ne vois plus’, et je suis obligé de la rendormir pour dissiper son trouble. »

« J’ai dit à Léonie de me faire un pied de nez ; au réveil, elle lève ses mains et les met au bout de son nez sans le savoir ; c’est un acte inconscient, soit, mais elle ne voit pas ses mains qui sont devant ses yeux. »

« Dans la suggestion d’anesthésie systématisée, la sensation n’est pas supprimée et ne peut pas l’être, elle est simplesment déplacée, elle est enlevée à la conscience normale, mais peut être retrouvée comme faisant partie d’un autre groupe de phénomênes, d’une sorte d’autre conscience. »

2.3 ÉLECTIVITÉ OU ESTHÉSIE SYSTÉMATISÉE

« Les somnambules sont toujours ou presque toujours électives, telle est l’observation qui a été faite sans cesse depuis l’époque de Mesmer et de Puységur. On entend par là que, dans cet état particulier du somnambulisme, les sujets ne ressentent pas toutes les sensations indifféremment, mais qu’ils semblent faire un choix parmi les différentes impressions qui tombent sur leurs sens, pour percevoir celles-ci et non point celles-là. La pluplart des sujets une fois endormis entendent très bien leur magnétiseur et causent avec lui, mais paraissent n’entendre aucune autre personne, aucun autre bruit, pas même celui d’un pistolet que l’on tire auprès d’eux, comme dans les expériences de Dupotet. »

« Un bouquet n’a d’odeur que s’il a reçu le souffle du magnétiseur. »

Baréty

« Ce lien entre le sujet et certaines personnes ou certains objets qui lui permet de les sentir à l’exclusion des autres, a reçu le nom de rapport magnétique »

« Léonie en premier somnambulisme ne présente guère ce caractère, elle entend et voit tout le monde ; elle le présente beaucoup plus fortement en 2e somnambulisme, car alors elle n’entend que moi et encore seulement quand je la touche. (…) Marie et Rose sont en général plus électives que Léonie; dès l’instant oú elles s’endorment, elles semblent perdre la notion du monde extérieur pour ne plus voir, entendre ou sentir que celui qui les a endormies. Marie garde seulement pour les autres personnes un peu de sensibilité tactile, si on peut l’appeler ainsi, car elle éprouve un sentiment de souffrance et de répugnance très marqué quand elle est touchée par une personne étrangère non en rapport avec elle. Rose ne sent jamais rien de semblable. Je ne parle pas ici de Lucie, qui était très peu élective et ne me distinguait des autres personnes que pour m’obéir. »

« Quand j’ai endormi fréquemment une personne, aucun autre observateur ne peut se substituer à moi, et je puis facilement la reprendre en ma possession, même si un autre a commencé le somnambulisme. »

« Dans quelques cas plus complexes, on peut établir ce rapport au moyen de la chaîne magnétique, comme disaient les anciens opérateurs. »

SONAMBULISMO NATURAL: « Qui ne connaît la description si souvent citée du somnambule Castelli, qui n’était éclairé que par sa chandelle à lui et qui se croyait dans l’obscurité, quand elle s’éteignait ? Il n’y a pas d’observation plus curieuse et plus complête, à ce point de vue, que celle de l’automate étudié par le Mesnet. »

« Ces phénomènes d’électivité ne diffèrent des anesthésies systématisées qu’en un point, c’est qu’ils sont ou paraissent être inverses. » « esthésie systematisée » « audition latente » etc. « Ainsi, un jeune homme, H…, qui, dans un somnambulisme, avait paru ne pas entendre 2 personnes qui s’efforçaient de lui parler, put me répéter plus tard, sur ma demande, tout ce qu’elles lui avaient dit, en remarquant que, sur le moment, il ne pouvait pas leur répondre. »

« Lucie, qui avait à un si haut degré l’écriture automatique, ne présentait pas d’électivité naturelle. »

2.4 ANESTHÉSIE COMPLÈTE OU ANESTHÉSIE NATURELLE DES HYSTÉRIQUES

(*) « L’anesthésie hystérique a été si complètament étudiée dans le dernier ouvrage de Pitres : Des anesthésies hystériques (1887), que je ne puis insistir que sur les faits particuliers qui justifient mon interprétation. »

« Il a quelquefois de l’électivité même dans ces anesthésies naturelles, et les malades qui ont en apparence complètement perdu toute sensibilité peuvent cependant reconnaître encore certains objets en particulier. »

« l’anesthésie complète, c’est-à-dire portant sur tous les objets extérieurs, est rarement générale, elle s’étend rarement à tout le corps et même à un organe sensoriel tout entier. L’anesthésie cutanée n’existe pas sur toute la peau, mais sur quelques parties seulement, souvent sur une moitié du corps, et alors le plus souvent sur la moitié gauche, mais parfois aussi sur des plaques irrégulières disséminées sur tous les membres et sur le tronc. L’anesthésie du goût, de l’odorat, même de la vue, est aussi rarement complète … elle s’étend irrégulièrement sur la rétine, tantôt rétrécissant concentriquement le champ visuel, tantôt le coupant par la moitié, tantôt formant des scotomes irréguliers, c’est-à-dire des taches d’insensibilité au milieu d’une rétine restée normale. »

« Voilà quelque chose qui n’est guère anatomique, mais qui rappelle singulièrement les carrés et les cercles que l’on pouvait par suggestion rendre insensibles sur la peau de Léonie. »

« Tous les observateurs qui se sont occupés de cette cécité partielle des hystériques qui semble leur enlever complètement un oeil, ont remarqué avec étonnement un fait bien singulier : les malades prétendent ne voir absolument rien par l’oeil gauche et être plongés dans la nuit la plus complète quand on ferme l’oeil droit ; mais si on leur laisse les 2 yeux ouverts, ils voient, sans s’en douter, aussi bien à gauche qu’à droite. »

« L’amblyopie [catarata negra no dicionário, mas suspeito que seja neste contexto a estrabismo convergente ou exotropia – estrabismo divergente –, pois não é fato orgânico!] hystérique se corrige d’elle-même, parce qu’il est dans sa nature d’exister seulement dans la vision monoculaire. »

Pitres

« Ce qui revient à dire : l’hystérique est aveugle de l’oeil gauche quand elle y fait attention et qu’elle croit ne voir que par cet oeil ; elle n’est plus aveugle du tout, quand elle n’y pense pas et quand elle croit voir tout de l’oeil droit.

La proposition de M. Pitres résumait bien les observations précédantes, mais je crois qu’il faut aller beaucoup plus loin et constater des faits nouveaux et plus graves. Je prétends que l’hystérique amaurotique [amaurose ou gota-serena, mesma coisa que ambliopia causada por atrofia do nervo ótico, ‘catarata histérica’ (a-fisiológica e portanto a-nevrálgica), neste caso em especial] y voit parfaitement de son oeil gauche, même quand l’oeil droit est fermé, que cette amblyopie n’existe même pas dans la vision monoculaire, et qu’en général les anesthésies hystériques mêmes les plus complètes ne suppriment aucune sensation. »

« S’il est un point admis en psychologie, c’est que la mémoire n’est que la conservation des sensations : toute sensation peut, pour différentes raisons, ne pas devenir un souvenir, mais tout souvenir a été une sensation consciente. » « Nous ne pénétrons jamais réellement la conscience d’une personne ; nous ne l’apprécions que d’après les signes extérieurs qu’elle nous en donne. »

2.5 DIFFÉRENTES HYPOTHÈSES RELATIVES AUX PHÉNOMÈNES D’ANESTHÉSIE

« On a usé et abusé de la simulation hystérique pour supprimer des problèmes qu’on ne comprenait pas, et cette hypothèse trop simple n’a ici aucun sens. » « Nous n’étudierons pas davantage les suppositions physiologiques ou anatomiques qui ont été faites, d’abord, parce qu’elles ne sont pas de notre competence, et ensuite, parce qu’elles ne nous semblent être qu’une manière détournée de présenter des hypothèses psychologiques. » « Ce parallèlisme entre les hypothèses anatomiques et psychologiques n’a rien qui doive surprendre, il serait même à souhaiter, pour le progrès des 2 sciences, qu’il fût poussé beaucoup plus loin. »

« l’anesthésie histérique … [na psiquiatria atual] est une lésion de la sensation brute.

Nous ne pouvons pas partager cette opinion. »

« Au point de vue expérimental, les faits sont en complète opposition avec cette théorie et nous montrent constamment que la sensation brute n’a pas été détruite. »

« une personne dont la rétine fatiguée ne distingue plus les rayons rouges, ne sent dans une couleur blanche que les rayons verts et la voit verte. C’est du moins l’explication que l’on donne des images consécutives de couleur complémentaire. Si l’anesthésie modifie les sensations comme la fatigue de la rétine, Lucie qui ne distingue plus le rouge doit donc voir aussi un papier blanc avec la couleur verte. Je lui montre du papier blanc, et elle le trouve absolument blanc, le rouge seul est invisible et sa disparition n’influence en rien les autres couleurs qui sont vues normalement (avec une certaine confusion pour quelques-unes due à une légère achromatopsie qui existait déjà avant l’expérience). »

« Ce n’est donc pas dans l’étude des sensations en elles-mêmes que l’on pourra trouver la raison de ces insensibilités ; il faut la chercher plus haut, dans le mécanisme de la perception élémentaire. »

« Ces phénomènes sont dus à une illusion de l’esprit…, la cécité des hystériques est une cécité psychique. »

Bernheim, De l’amaurose hystérique et de l’amaurose suggestive

« On mesure l’acuité visuelle en faisant lire des lettres petites, on mesure l’acuité du sens tactile en faisant distinguer des sensations tactiles rapprochées, c’est-à-dire presque semblables. »

« Mais Bernheim cherche à expliquer le phénomène dans un langage qui me semble manquer un peu de précision et de clarté : ‘L’image visuelle perçue, l’hystérique la neutralise inconsciemment avec son imagination… La cécité psychique est la cécité par l’imagination ; elle est due à la destruction de l’image par l’agent psychique.’ » Seria como a psicanálise explicaria o fenômeno. Nós, querendo ou não, no séc. XXI, estamos informados deste linguajar.

« Je ne comprends pas comment l’hystérique peut neutraliser inconsciemment avec son imagination les perceptions monoculaires et ne pas neutraliser inconsciemment aussi les perceptions binoculaires ou, tout au moins, la partie des perceptions binoculaires qui provient de l’oeil amblyopique. »

Pitres

« Bernheim répondrait sans doute, si je puis me permettre de parler pour lui, que l’hystérique ne neutralise pas les perceptions binoculaires, parce qu’elle ne se figure pas être aveugle des 2 yeux, mais seulement de l’oeil gauche, qu’elle ne neutralise pas non plus une partir de ces perceptions binoculaires, parce qu’elle ne sait pas que ces perceptions viennent de l’oeil gauche, parce qu’elle croit voir tout par l’oeil droit. Faites-lui remarquer, dans les expériences, que tel objet ne peut être vu que par l’oeil gauche, et elle ne le verra plus. »

« En outre, cette image n’a pas eu besoin d’être neutralisée, car elle n’a jamais été dans la conscience du sujet : on ne peut pas dire que Marie commence par voir mon dessin, puis cesse de le voir ; elle n’a pas de pareille négation à faire, car elle n’a jamais vu ce dessin. »

2.6 LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

« Le fait, simple en apparence, qui se traduit par ces mots : ‘Je vois, je sens’, même sans parler des idées d’extériorité, de distance, de localisation, est déjà une perception complexe. »

« Nous pouvons, tout en n’attachant à ces représentations qu’une valeur purement symbolique, nous figurer notre perception consciente comme une opération à 2 temps : existence simultanée d’un certain nombre de sensations conscientes tactiles comme T T’ T’’, musculaires comme M M’ M’’, visuelles comme V V’ V’’, auditives comme A A’ A’’. Ces sensations existent simultanément et isolément les unes des autres, comme une quantité de petites lumières qui s’allumeraient dans tous les coins d’une salle obscure. Ces phénomènes conscients primitifs, antérieurs à la perception peuvent être de différentes espèces, des sensations, des souvenirs, des images, et peuvent avoir différentes origines : les uns peuvent provenir d’une impression actuelle faite sur les sens, les autres être amenés par le jeu automatique de l’association à la suite d’autres phénomènes. »

«  Une opération de synthèse active et actuelle par laquelle ces sensations se rattachent les unes aux autres, s’agrègent, se fusionnent, se confondent dans un état unique auquel une sensation principale donne sa nuance, mais qui ne ressemble probablement d’une manière complète à aucun des éléments constituants ; ce phénomène nouveau, c’est la perception P. (…) Cette activité, qui synthétise ainsi à chaque moment de la vie les différents phénomènes psychologiques et qui forme notre perception personnelle, ne doit pas être confondue avec l’association automatique des idées. Celle-ci, comme nous l’avons déjà dit, n’est pas une activité actuelle, c’est le résultat d’une ancienne activité qui autrefois a synthétisé quelques phénomènes en une émotion ou une perception unique et qui leur a laissé une tendance à se produire de nouveau dans le même ordre. La perception dont nous parlons maintenant, c’est la synthèse au moment où elle se forme, au moment où elle réunit des phénomènes nouveaux en une unité à chaque instant nouvelle.

Nous n’avons pas à expliquer comment ces choses se passent ; nous avons seulement à constanter qu’elles se passent ainsi ou, si l’on préfère, à le supposer et à expliquer que cette hypothèse permet de comprendre les caractères précédants des anesthésies hystériques. »

« Chez un homme théorique, tel qu’il n’en existe probablement pas, toutes les sensations comprises dans la première opération T T’ T’’, etc., seraient réunies dans la perception P, et cet homme pourrait dire : ‘Je sens’, à propos de tous les phénomènes qui se passent en lui. (…) dans l’homme le mieux constituté il doit y avoir une foule de sensations produites par la première opération et qui échappent à la seconde. Je ne parle pas seulement des sensations qui échappent à l’attention volontaire et qui ne sont pas comprises ‘dans le point de regard’ le plus net ; je parle de sensations qui ne sont absolument pas rattachées à la personnalité et dont le moi ne reconnaît pas avoir conscience, car, en effet, il ne les contient pas. (…) La puissance de synthèse ne peut plus s’exercer, à chaque moment de la vie, que sur un nombre de phénomènes déterminé, sur 5 par exemple et non sur 12. Des 12 sensations supposées T T’ T’’ M M’ M’’ V V’ V’’ A A’ A’’, etc., le moi n’aura la perception que de 5, de T T’ M V A, par exemple. À propos de ces 5 sensations, il dira : ‘Je les ai senties, j’en ai eu conscience’ »

« Or, nous avons étudié avec soin un état particulier des hystériques et des névropathes en général que nous avons appelé le rétrécissement du champ de la conscience. Le caractère est précisément produit, dans notre hypothèse, par cette faiblesse de synthèse psychique poussée plus lois qu’à l’ordinaire, qui ne leur permet pas de réunir dans une même perception personnelle un grand nombre des phénomènes sensitifs qui se passent réellement en eux. »

P = perception personnelle

~P (não-P) – não-percepção, e não percepção impessoal!

« Quand les choses se passent ainsi, il y a bien à chaque moment des phénomènes ignorés et qui restent non perçus, comme M’ au premier moment, ou V au second ; mais, d’une part, ces phénomènes ignorés ne sont pas perpetuellement inconscients, ils ne le sont que momentanément, et, de l’autre, ces phénomènes, qui sont inconscients n’appartiennent pas toujours au même sens ; ils sont tantôt des sensations musculaires, tantôt des sensations visuelles. »

« rétrécissement du champ de la conscience par distraction, (I) par électivité ou esthésie systématisée, en un mot, dans toutes les anesthésies à limites variables. (II) »

« les hystériques sans anesthésies sont fort rares »

« L’electivité n’est ici qu’apparente, elle est due au développement automatique de telle ou telle sensation qui se répète plus fréquemment, qui s’associe plus facilement avec telle ou telle autre. »

« Mais les choses peuvent se passer d’une tout autre manière. Le faible pouvoir de synthèse peut s’exercer souvent dans un même sens, réunir dans la perception des sensations toujours d’une même espèce et perdre l’habitude de réunir les autres. Le sujet se sert plus des images visuelles et ne s’adresse que rarement aux images du toucher ; si sa puissance de synthèse diminue, s’il ne peut plus réunir que 3 images, il va renonce totalement à percevoir les sensations de telle ou telle espèce. Au début, il les perd momentanément, et il peut à la rigueur les retrouver ; mais bientôt les perceptions qui lui permettaient de connaître ces images ne se faisant pas, il ne peut plus, même s’il l’essaye, rattacher à la synthèse de la personnalité des sensations qu’il a laissé s’échapper. Il renonce ainsi, sans s’en rendre compte, tantôt aux sensations qui viennent d’une partie de la surface cutanée, tantôt aux sensations de tout un côté du corps, tantôt aux sensations d’un oeil ou d’une oreille. »

Potencial razão para eu mesmo ou para um míope de grau alto (sempre?) ter muito mais dificuldade em fixar e associar rostos a pessoas que qualquer outro dado abstrato ou a voz, por exemplo. Poderia dizer que o fato de eu digitar sem olhar o teclado mesmo de olhos fechados sem muitos erros de ortografia e que, no entanto, quando apago a luz começo a errar mais tem também a ver com o que Janet expôs? Afinal não parece ser um fenômeno visual, mas sensação exclusivamente motora. Mas o que muda com o “corte” da visão periférica, tatilmente? Pior ainda: coloque alguém atrás de mim, que eu saiba que está ali, de pé, e os erros se multiplicarão!

« Les hystériques perdent plus volontiers la sensibilité tactile, parce que c’est la moins importante, non pas psychologiquement, mais practiquement. »

Un seul oeil pour regarder le soleil.

« Si je suis à la droite de Marie et si je lui parle, les personnes qui s’approchent à gauche ne sont pas vues, quoiqu’elle ait les 2 yeux ouverts ; si je passe à sa gauche, en attirant son attention, elle continue à me voir de l’oeil gauche. L’anesthésie semblait avoir ici une limite fixe, mais, comme il n’y a entre ces diverses sortes d’anesthésie aucune séparation absolue, elle se comporte dans bien des cas comme une anesthésie systématisée à limite variable. C’est l’importance de la perception dominante qui fait changer la sensation et qui amène au jour, suivant les besoins, telle ou telle image, puisque aucune n’était réellement disparue. » « Les anesthésies complètes qui embrassent tout un organe ne différent donc des anesthésies systématisées que par le degré. »

« il y a 2 manières différentes de connaître un phénomène : la sensation impersonelle et la perception personnelle, la seule que le sujet puisse indiquer par son langage conscient. »

« l’anesthésie systématisée (ou même générale) est une lésion, un affaiblissement – non de la sensation, mais – de la faculté de synthétiser les sensation en perception personnelle, qui amène une véritable désagrégation des phénomènes psychologiques. »

2.7 LES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SIMULTANÉES

P’ é a segunda personalidade dos pacientes de Janet.

secondary self”, “normal self”

O artifício da escritura automática:

Janet: “M’entendez-vous?”

Lucie-2 : « Non. »

Janet : « Mais pour répondre il faut entendre. »

Lucie-2 : « Oui, absolument. »

Janet : « Alors, comment faites-vous ? »

Lucie-2 : « Je ne sais. »

Janet : « Il faut bien qu’il y ait quelqu’un qui m’entende ? »

Lucie-2 : « Oui. »

Janet : « Qui cela ? »

Lucie-2 : « Autre que Lucie. »

Janet : « Ah bien ! une autre personne. Voulez-vous que nous luis donnions un nom ? »

Lucie-2 : « Non. »

Janet : « Si, ce sera plus commode. »

Lucie-2 : « Eh bien, Adrienne.(*) »

Janet : « Alors, Adrienne, m’entendez-vous ? »

Adrienne : « Oui. »

(*) « Il y eut une petite difficulté à propos du nom de ce personnage, il changea 2 fois de nom. Je n’insiste pas sur ce détail insignifiant dont j’ai parlé ailleurs. Revue philosophique, 1886, II, 589. »

« Sans doute c’est moi qui ai suggéré le nom de ce personnage et lui ai donné ainsi une sorte d’individualité, mais on a vu combien il s’était développé spontanément. (…) d’ailleurs l’écriture automatique prend presque toujours un nom de ce genre, sans que l’on ait rien suggeré, comme je l’ai constaté dans des lettres automatiques écrites spontanément par Léonie.

Une fois baptisé, le personnage inconscient est plus déterminé et plus net, il montre mieux ses caractères psychologiques. Il nous fait voir qu’il a surtout connaissance de ces sensations négligées par le personnage primaire ou normal ; c’est lui qui me dit que je pince le bras, ou que je touche le petit doigt, tandis que Lucie a depuis bien longtemps perdu toute sensation tactile (…) Il use de ces sensations qu’on lui a abandonnées pour produire ses mouvements. »

« Lucie ne peut écrire que par des images visuelles, elle se baisse et suit sans cesse des yeux sa plume et son papier ; Adrienne, qui est la seconde personnalité simultanée, écrit sans regarder le papier, c’est qu’elle se sert des images kinesthésiques de l’écriture. »

« Adrienne, qui m’obéit fort bien et qui cause volontiers avec moi, ne se donne pas la peine de répondre à tout le monde. Qu’une autre personne examine en mon absence ce même sujet, comme cela est arrivé, elle ne constatera ni catalepsie partielle, ni actes subconscients par distraction, ni écriture automatique, et viendra me dire que Lucie est une personne normale très distraite et très anesthésique. »

« Si ces phénomènes sont très isolés, ils sont provoqués par tout expérimentateur, mais s’ils sont groupés en personnalité (ce qui arrive très fréquemment chez les hystériques fortement malades), ils manifestent des préférences et n’obéissent pas à tout le monde. (…) Il faut se souvenir de ce caractère d’électivité qui appartient au personnage subconscient et qui nous servira plus tard à mieux préciser sa nature. »

« J’ai eu des querelles bien amusantes avec ce personnage d’Adrienne si docile au début et qui, en grandissant, le devenait de moins en moins. Il me répondait souvent d’une manière impertinente et écrivait : ‘Non, non’, au lieu de faire ce que je lui commandais. » « Je fus forcé alors de causer avec le personnage normal, avec Lucie, qui, tout à fait ignorante du drame qui se passait au dedans d’elle-même, était de très bonne humeur. »

« Mon cher bon monsieur, je viens vous dire que Léonie tout vrai, tout vrai, me fait souffrir beaucoup, elle ne peut pas dormir, elle me fait bien du mal ; je vais la démolir, elle m’embête, je suis malade aussi et bien fatiguée. C’est la part de votre bien dévouée Léontine. »

« Léonie avait conservé un souvenir très exact de la première lettre ; elle pouvait m’en dire encore le contenu ; elle se souvenait de l’avoir cachetée dans l’enveloppe et même des détais de l’adresse qu’elle avait écrite avec peine ; mais elle n’avait pas le moindre souvenir de la seconde lettre [transcrita acima]. Je m’expliquais d’ailleurs cet oubli : ni la familiarité de la lettre, ni la liberté du style, ni les expressions employées, ni surtout la signature n’appartenaient à Léonie dans son état de veille. Tout cela appartenait au contraire au personnage inconscient qui s’était déjà manifesté à moi par bien d’autres actes. Je crus d’abord qu’il y avait eu une attaque de somnambulisme spontané entre le moment où elle terminait la première lettre et l’instant où elle cachetait l’enveloppe. Le personnage secondaire du somnambulisme qui savait l’intérêt que je prenais à Léonie et la façon dont je la guérissais souvent de ses accidents nerveux, aurait apparu un instant pour m’appeler à son aide ; le fait était déjà fort étrange. Mais depuis, ces lettres subconscientes et spontanées se sont multipliées et j’ai pu mieux étudier leur production. Fort heureusement, j’ai pu surprendre Léonie, une fois, au moment où elle accomplissait cette singulière opération. Elle était près d’une table et tenait encore le tricot auquel elle venait de travailler. Le visage était fort calme, les yeux regardaient en l’air avec un peu de fixité, mais elle ne semblait pas en attaque cataleptique ; elle chantait à demi-voix une ronde campagnarde, la main droite écrivait vivement et comme à la dérobée. Je commençai par lui enlever son papier à son insu et je lui parlai ; elle se retourne aussitôt bien éveillée, mais un peu surprise, car, dans son état de distraction, elle ne m’avait pas entendu entrer. » « Cette forme de phénomènes subconscients n’est pas aussi facile à étudier que les autres ; étant spontanée, elle ne peut être soumise à une experimentation régulière. »

« une lettre contenait le récit de l’enfance même de Léonie ; il montre du bon sens dans des remarques ordinairement justes. (…) La personne subconsciente s’aperçut un jour que la personne consciente, Léonie, déchirait les papiers qu’elle avait écrits quand elle les laissait à sa portée à la fin de la distraction. Que faire pour les conserver ? Profitant d’une distraction plus longue de Léonie, elle recommença sa lettre, puis elle alla la porter dans un album de photographies. Cet album, en effet, contenait autrefois une photographie de M. Gibert qui, par association d’idées, avait la propriété de mettre Léonie en catalepsie. Je prenais la précaution de faire retirer ce portrait quand Léonie était dans la maison ; mais l’album n’en conservait pas moins sur elle une sorte d’influence terrifiante. Le personnage secondaire était donc sûr que ses lettres mises dans l’album ne seraient pas touchées par Léonie. (…) Léonie distraite chantait ou rêvait à quelques pensées vagues, pendant que ses membres, obéissant à une volonté en quelque sorte étrangère, prenaient ainsi des précautions contre elle-même. »

« Nous avons insité sur ces développements d’une nouvelle existence psychologique, non plus alternante avec l’existence normale do sujet, mais absolument simultanée. La connaissance de ce fait est en effet indispensable pour comprendre la conduite des névropathes et celle des aliénés. » « Cette notion, importante, croyons-nous, dans l’étude de la psychologie pathologique, ne manque pas non plus d’une certaine gravité au point de vue philosophique. (…) Il faudra reculer plus encore la nature véritable de la personne métaphysique et considérer l’idée même de l’unité personnelle comme une apparence qui peut subir des modifications. Les systèmes philosophiques réussiront certainement à a’accommoder de ces faits nouveaux, car ils cherchent à expliquer la réalité des choses, et une expression de la vérité ne peut pas être en opposition avec une autre. » Nesses mesmos anos, a poucos km, na Alemanha, um célebre filósofo dizia “o ‘eu’ não existe, é um preconceito, o maior preconceito do homem, com efeito.”. Ao mesmo tempo, toda essa necessidade da compreensão global do sujeito como unidade informaria o existencialismo, a fenomenologia e a própria Gestalt como escola psicológica no século que se abria…

« dédoublement »

2.8 LES EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SIMULTANÉES COMPARÉES AUX EXISTENCES PSYCHOLOGIQUES SUCCESSIVES

« On avait eu le tort de parler de spiritisme devant Léonie pendant qu’elle était en somnambulisme. (…) la seconde personne pensait toujours aux esprits. »

« – Qu’avez-vous donc aujourd’hui ?

– Je ne vous entends pas, je suis trop loin.

– Et où êtes-vous ?

– Je suis à Alger sur une grande place, il faut me faire revenir.

(…) on connait ces voyages des comnambules par hallucination. (…)

– M’expliquerez-vous maintenant ce que vous faisiez à Alger ?

– Ce n’est pas ma faute ; c’est M. X… qui m’y a envoyée il y a 1 mois ; il a oublié de me faire revenir, il m’y a laissée… Tout à l’heure vous vouliez me commander, me faire lever le bras (c’était la suggestion que j’avais essayé de faire pendant la veille), j’étais trop loin, je ne pouvais pas obéir.

Vérification faite, cette singulière histoire était vraie : une autre personne avait endormi ce sujet dans l’intervalle de mes 2 études, avait provoqué différentes hallucinations, entre autres celle d’un voyage à Alger ; n’attachant pas assez d’importance à ces phénomènes, elle avait réveillé le sujet sans enlever l’hallucination. N., la personne éveillée, était restée en apparence normale ; mais le personnage subconscient qui était en elle conservait plus ou moins latente l’hallucination d’être à Alger. Et quand, sans somnambulisme préalable, je voulus lui faire des commandements, il entendit mais ne crut pas devoir obéir. »

« Léonie reste bien éveillée près de moi tant que je ne provoque pas de phénomènes de ce genre [muitas perguntas e exercícios de escrita automática] ; mais quand ceux-ci deviennent trop nombreux et trop compliqués, elle s’endort. Cette remarque assez importante nous explique un détail que nous avions noté, sans le comprendre, dans l’exécution des suggestions posthypnotiques. Tant qu’elles sont simples, Léonie les exécute à son insu, en parlant d’autre chose ; quand elles sont longues et compliquées, le sujet parle de moins en moins en les exécutant, finit par s’endormir et les exécute rapidement en plein somnambulisme. La suggestion posthypnotique s’exécute quelquefois dans un second somnambulisme, non pas que l’on ait suggéré au sujet de se rendormir, mais parce que le souvenir de cette suggestion et l’exécution elle-même forment une vie subconsciente si analogue au somnambulisme que, dans quelques cas, elle le produit complètement. »

« l’analogie entre les états que nous voulons comparer va se montrer encore d’une autre manière. Tous les auteurs ont remarqué que le sujet exécute au réveil les suggestions posthypnotiques sans savoir qui les lui a données, mais que, dans un nouveau somnambulisme, il retrouve ce souvenir. (Gilles de la Tourette) »

« Lucie ne retrouve dans ce premier somnambulisme [Lucie 2 ou Adrienne, porém com Lucie 1 totalmente inativa, isto é, dormindo, o que faculta a Lucie 2, por fim, se comunicar oralmente ; ao passo que se pode, com Lucie 1 acordada, pedir que Lucie 2 responda por escrito – quer dizer que a memória da Lucie 2 que se comunica por escrito é mais abrangente que a da Lucie 2 que aparece exclusivamente por sonambulismo em vez de por distração da nº 1¹] aucun souvenir de ses actes subconscients, Léonie, Rose ou Marie ne retrouvent dans ce même état que le souvenir d’un certain nombre d’actes de ce genre. »

¹ Quereria isso dizer que existe uma Lucie 2’ (P’’), ou uma “Lucie 1.5”?

« Quand les choses se présentent ainsi, il faut endormir davantage le sujet, car la persistance des actes subconscients ainsi que des anesthésies indique qu’il y a des somnambulismes plus profonds. » O sujeito não tem energia para se manter em “dois estados perceptivos” ao mesmo tempo, e elege sempre, se assim é sua inclinação, o inconsciente ou a consciência mais remota. Dessa forma Lucie, p.ex., não precisa dividir sua ‘atenção total’ (consciência + inconsciência acessível por Janet) entre 2 ordens diferentes de fenômenos; pode produzir muito mais escrita automática em sonambulismo.

« Léonie 3 est la premiére à se souvenir de certains actes et se les attribue. » « Lucie qui n’avait, dans le premier somnambulisme, [Lucie 1.5] absolument aucun souvenir des actes subconscients, ni du personnage d’Adrienne [Lucie 2 propriamente dita; é como se Lucie tivesse uma cisão dentro da cisão, 2a e 2b e não apenas uma Lucie 2; daí eu chamar Adrienne de Lucie 2 p.d. e a Lucie 2 sonambúlica de Lucie 1.5; me parece que Lucie 3 refaz a síntese, sabendo tudo de Lucie 1, de ambas as “Lucie 2” e também de si própria, claro], reprend ces souvenirs de la façon la plus complète dans son 2e somnambulisme. Il ne faut donc pas nier le rapport entre les existences successives et les existences simultanées, parce que le sujet ne retrouve pas, tout de suite, dans son 1er somnambulisme, le souvenir de certains actes subconscients »

« Quelquefois ces systèmes psychologiques subconscients, [paralelos ou alternados] formés à part de la perception personnelle, sont en petit nombre, 2 chez Lucie ou Léonie, 1 seul chez Marie, 3 ou 4 chez Rose ; quelquerfois ils sont, je crois, très nombreux. »

ESQUEMATIZANDO A COMPLEXIDADE DA SITUAÇÃO: « La vie consciente de Lucie semble se composer de 3 courants parallèles les uns sous les autres. Quand le sujet est réveillé, les 3 courants existent : le premier est la conscience normale du sujet qui nous parle, les 2 autres sont des groupes de sensations et d’actes plus ou moins associés entre eux, mais absolument ignorés par la personne qui nous parle. Quand le sujet est endormi en premier somnambulisme, le premier courant est interrompu et le second affleure, il se montre au grand jour et nous fait voir les souvenirs qu’il a acquis dans sa vie souterraine. Si nous passons au 2e somnambulisme, le second courant est interrompu à son tour, pour laisser subsister seul le troisième qui forme alors toute la vie consciente de l’individu, [felizmente minha explicação acima estava correta!] dans laquelle on ne voit plus ni anesthésies ni actes subconscients. Au réveil les courants supérieurs reparaissent en ordre inverse. »

2.9 IMPORTANCE RELATIVE DES DIVERSES EXISTENCES SIMULTANÉES

« que la vie subconsciente ressemble à la vie somnambulique, cela est évident ; qu’elle soit absolument identique au somnambulisme et puisse lui être assimilée, c’est ce qu’on ne peut admettre. Léonie 2, le personnage somnambulique, bavard, pétulant, enfantin, ne peut pas exister complet et tel quel au-dessous de Léonie 1, cette femme âgée, calme et silencieuse. Ce mélange amènerait un délire perpétuel. En outre, le personnage somnambulique qui a les sensibilités absentes viendrait toujours compléter le personnage normal et ne lui laisserait aucune paralysie visible. Voici à ce propos un détail que mon frère m’a raconté. Une hystérique ayant les jambes anesthésiques, Witt…, appuie ses pieds sur une boule d’eau chaude et, ne sentant rien, ne s’aperçoit pas que l’eau est trop chaude et lui brûle les pieds. Ce sujet renfermait cependant une 2e personnalité qui se manifestait parfaitement par des signes subconscients ou dans un somnambulisme profond et qui avait alors la sensibilité tactile. Quando on l’interrogea, ce 2e personnage prétendit avoir très bien senti la douleur aux pieds. ‘Eh bien, alors, pourquoi n’as-tu pas retiré les jambes ? – Je ne sais pas.’ Il est évident que le 2e personnage qui posséde la sensibilité tactile des jambes ne devait pas exister pendant la veille de la même manière qu’il existe maintenant en somnambulisme profond. En un mot, la 2e personnalité n’existe pas toujours de la même manière et les rapports ou les proportions entre les différentes existences psychologiques doivent être fort variables. » Como o caso de Lucie 2 e Lucie 1.5. Memória de que o pé doía, memória sutil de um passado em que a inação diante da dor era a única possibilidade.

« L’état de santé psychologique parfaite. La puissance de synthèse étant assez grande, tous le phénomènes psychologiques, quelle que soit leur origine, sont réunis dans une même perception personnelle, et par conséquent la 2e personnalité n’existe pas. Dans un pareil état, [théorique] il n’y aurait aucune distraction, aucune anesthésie, ni systématique ni générale, aucune suggestibilité et aucune possibilité de produire le somnambulisme, puisqu’on ne peut développer des phénomènes subconscients qui n’existent pas. Les hommes les plus normaux sont loin d’être toujours dans un pareil état de santé morale, et, quant à nos sujets, ils y parviennent bien rarement. »

« l’état de désagrégation » X « l’état hystérique »

« les phénomènes désagrégés restent encore incohérents, tellement isolés que, sauf pour quelques-uns qui amènent encore des réflexes très simples, ils n’ont, pour la pluplart, aucune action sur la conduite de l’individu, ils sont comme s’ils n’existaient pas. »

Normalmente a 2ª personalidade é « l’état dans lequel les spirites sont si heureux de voir leurs médiums, afin d’évoquer les esprits par l’intermédiaire des phénomènes désagrégés. ». = «  somnovigil ; veille somnambulique » (Beaunis) – semi-hipnotismo? Voilà, c’est l’«  hémi-somnambulisme », nome de Richet.

« somnambulisme véritable »

gráfico-resumo

« Il est facile d’observer un très grand nombre de variétés et de complications dans lesquelles les 2 personnages peuvent plus ou moins se connaître mutuellement et réagir l’un sur l’autre. Nous évitons d’entrer maintenant dans l’étude de ces complications. »

« Si nos sujets, après le réveil, ne conservent pas le souvenir de leur somnambulisme, c’est qu’ils ne reviennent pas à la santé parfaite et qu’ils gardent toujours des anesthésies et des distractions plus ou moins visible ; s’ils guérissaient radicalement, s’ils élargissaient leur champ de conscience jusqu’à embrasser définitivement, dans leur perception personnelle, toutes les images, ils devraient retrouver tous les souvenir qui en dépendent et se rappeller complètement même de leurs périodes de crise ou de somnambulisme. Je dois dire que je n’ai jamais constaté ce retour de la mémoire et que cette remarque est fondée sur l’examen d’une figure schématique et sur le raisonnement plus que sur l’expérience. » « jamais je n’ai vu ces personnes hystériques retrouver après leur guérison apparente le souvenir de leurs secondes existences. » « N’est-il pas possible qu’à 60 ans, l’hystérie, la désagrégation mentale qui existait à 20 ans, ait totalement disparu et que l’esprit entièrement reconstitué ait récupéré toutes les images, comme pendant un somnambulisme parfait. » « Les existences psychologiques simultanées, que nous avons été obligé d’admettre pour comprendre les anesthésies, sont dues à cette persistance plus ou moins complète de l’état somnambulique pendant la veille. »

2.10 L’ANESTHÉSIE ET LA PARALYSIE

SOBRE A EXISTÊNCIA DE UM REPOSITÓRIO, CHAMADO INCONSCIENTE, QUE GUARDA TODAS AS MEMÓRIAS ESQUECIDAS (muito antes da Pseudanálise): « C’est une théorie bien séduisante et à certains points de vue bien vraisemblable ; elle est admirablement exprimée dans saint Augustin et a été défendue avec beaucoup d’adresse par des philosophes contemporains, comme M. Bouillier (Ce que deviennent les idées in Revue philosophique, 1887) et M. Colsenet (La vie inconsciente de l’esprit). (…) Nous avons eu, en composant ce travail, la prétention, justifiée ou non, de faire un ouvrage de psychologie expérimentale et de nous écarter le moins possible des faits que nous avons pu, plus ou moins bien, observer nous-mêmes ; or nous n’avons pas constaté de faits qui se rattachent directement à cette hypothèse un peu transcendante. La grande différence entre une étude expérimentale et une théorie philosophique c’est que la première n’a pas besoin de pousser les idées jusqu’à leurs plus lointaines conséquences et qu’elle s’arrête au point où la base solide des observations et de l’expérience paraît se dérober. »

« Nous n’insisterons pas non plus sur ce fait, car nous avons assez étudié les conditions de la mémoire pour admettre sans examen nouveau que les diverses amnésies de ce genre s’expliquent de la même manière que les diverses anesthésies. »

« Mais on rencontre souvent dans les études de psychologie pathologique 2 phénomènes nouveaux et très importants : les paralysies et les contractures. Si ces faits peuvent être rattachés à cette théorie de la désagrégation psychologique que nous avons esquissée, ils lui apporteront une vérifications assez sérieuse ; nous devons donc leur consacrer une étude particulière.

En règle générale, toute anesthésie et toute amnésie amènent toujours à leur suite una paralysie : si j’ai oublié le nom ou la place d’un objet, je ne puis pas prononcer ce nom, ni faire le mouvement pour prendre l’objet à sa place. Une hystérique qui perd complètement le souvenir de toute espèce d’images verbale, ou qui perd toute sensibilité d’un membre, ne peut plus parler ou ne peut plus remuer ce membre. D’autre part, les paralysies et les contractures sont presque toujours, sauf dans des cas tout à fait exceptionnels, accompagnées par des anesthésies. ‘L’anesthésie tactile et musculaire accompagne toujours la paralysie hystérique’, disait Charcot. ‘Le malade,’ dit un autre auteur, ‘n’a conscience de son membre que comme d’un corps étranger dont le poids est gênant et se fait sentir dans la partie du thorax restée sensible’. (Berbez, Hystérie et traumatisme, 1887) De même les contractures sont en général indolentes et accompagnées d’une anesthésie profonde du muscle et presque toujours également de la peau qui le recouvre. (…) inversement, quand les anesthésies disparaissent, on voit les contractures céder et les membres paralysés recouvrer leurs mouvements. » « Une théorie, autrefois assez répandue et qui aujourd’hui n’est plus guère soutenue, semble s’opposer à l’assimilation que nous voulons faire ; car elle sépare absolument, comme 2 phénomènes différents et indépendants l’un de l’autre, les paralysies et les anesthésies. »

« Un épervier¹ à qui l’on coupe les nerfs sensitifs de la patte ne sent plus dans ce membre les attouchements ou les piqûres, disait Claude Bernard, mais il conserve la faculté de se tenir sur son perchoir² et de marcher. » D’une manière plus générale, on peut, par la section des racines sensitives, supprimer la sensibilité en laissant persister la motilité ; c’est l’ancienne expérience de Bell et de Magendie [Lei de Bell-Magendie sobre compartimentação nervocerebral sensório-motora – ambos não escreveram em parceria, foram descobertas simultâneas e independentes]. Donc, dit Joly (Sensibilité et mouvement), le mouvement existe sans la sensibilité. En aucune façon ; les lésions chirurgicales sont, à mon avis, un mauvais procédé d’expérimentation psychologique, car jusqu’à présent elles ne sont pas assez délicates et n’atteignent pas avec précision le fait que l’on veut supprimer. La section d’une racine sensitive supprime simplement la communication matérielle entre les impressions extérieures et la faculté de sensibilité de l’animal ; elle ne détruit absolument pas cette faculté. L’épervier de Claude Bernard est toujours capable de sentir les sensations relatives à sa patte et, par conséquent, il conserve la mémoire de toutes les images des sensations anciennes qui lui ont été transmises par ce nerf autrefois intact. Personne n’a jamais prétendu que le mouvement fût toujours produit par une sensation actuelle : nous pouvons écrire maintenant sans avoir des modèles d’écriture sous les yeux ; mais cela ne prouve pas que l’écriture ne soit pas un mouvement produit par des images d’anciennes sensations visuelles ou musculaires. (…) l’anesthésie dont l’auteur parle n’est produite que par des lésions anatomiques, hémorragies, tumeurs, etc., qui interrompent la conduction, mais ne suppriment point la faculté psycho-physiologique de la sensation et de l’image. Il n’y a pas de paralysie sans doute, mais c’est qu’il n’y a pas d’amnésie, parce que l’anesthésie n’est pas complète. »

¹ Accipiter nisus: gavião-da-europa.

² Apoiador do pássaro na gaiola.

« C’est uniquement dans les névroses que le psychologue peut étudier avec fruit les troubles de la sensibilité et du mouvement. (…) Voyons donc si, dans les névroses, il y a des troubles de la sensibilité sans troubles du mouvement. Cela est certain ; tous les observateurs, en effet, ont remarqué qu’il y a des hystériques absolument anesthésiques et qui remuent fort bien. L’observation célèbre de Deneaux¹ nous dispensera de description : ‘Elle mettait ses muscles en jeu sous l’influence de la volonté, mais elle n’avait pas conscience des mouvements qu’elle exécutait. Elle ne savait pas quelle était la position de son bras, il lui était impossible de dire s’il était étendu ou fléchi. Si on disait à la malade de porter la main à son oreille, elle exécutait immédiatement le mouvement ; mais lorsque ma main était interposée entre la sienne et son oreille elle n’en avait pas conscience….’ C’est là un bel exemple d’anesthésie tactile et musculaire complète sans paralysie. Beaucoup des sujets que j’ai étudiés, Marie surtout, donneraient lieu à une description absolument identique. »

¹ Médico ou anatomista caído no olvido.

« Les hystériques ne sentent pas leur bras remuer, mais elles le remuent cependant, parce qu’elles se représent l’image visuelle du mouvement de leur bras et que cette image visuelle, comme nous l’avons vu dans toutes les expériences relatives à l’imitation, suffit pour produire le mouvement effectif. »

« pour des femmes surtout, le mouvement des bras est beaucoup plus visible que le mouvement des jambes et laisse dans la mémoire des images visuelles bien plus nettes » O mesmo não ocorreria hoje, portanto.

« Les exceptions rentrent donc assez facilement dans la règle : s’il a des anesthésies musculaires qui ne soient pas accompagnées de paralysies, c’est que toute sensibilité relative au mouvement n’a pas été supprimée, que les sensations et les images visuelles sont intervenues pour remplacer celles qui étaient perdues, et on ne peut pas en conclure que le mouvement existe indépendamment des images sensorielles. »

« des paralysies sans anesthésie. (Dans toute cette discussion, d’ailleurs, nous ne faison aucune allusion aux paralysies et aux contractures dues à une cause organique, qui peuvent présenter de tout autres caractères.) » « Il faut encore ici, pour l’étude psychologique, rechercher des paralysies sans lésion et voir comment elles peuvent se produire malgré la conservation de la sensibilité. »

« On peut faire beaucoup d’expériences de ce genre, dire à un sujet que son bras est collé à la table, qu’il ne peut prendre un objet, etc. Bernheim remarque que, si on a dit, pendant le somnambulisme, que tel objet paralysait, cet effet se produit encore après le réveil, sans que le sujet sache pourquoi. (De la suggestion) » « immobilité apparente » « idée fixe subconsciente qui arrête le mouvement au moment où le sujet veut le produire et pourrait d’ailleurs le faire au moyen des images sensorielles qu’il a complètement conservées. »

« les études précédentes ne nous semblent pas avoir réussi à la séparer [la paralysie] de l’anesthésie. »

2.11 LES PARALYSIES ET LES CONTRACTURES EXPLIQUÉES PAR LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

« paralysie totale … contracture totale … plus simple et … les plus fréquentes »

« paralysie complète … le membre retombe toujours inerte, obéissant aux lois de la pesanteur … contracture générale, un membre, et quelquefois le corps entier, prend une position fixe, invariable, déterminée par la position et la force relative des différents muscles. » « Cette attitude des membres dans la contracture générale a été souvent décrite à propos des attaques de tétanos ou de certaines crises d’épilepsie : la jambe, p.ex., sera dans l’extension forcée, parce que les muscles extenseurs prédominent sur les fléchisseurs, le poing sera fermé, légèrement tourné en dedans, le corps courbé en arrière légèrement en arc, etc. »

« paralysie ou contracture partielles … un même nerf » « C’est dans cette classe qu’il faut ranger les griffes cubitales, médianes et radiales qui ont été si souvent décrites. »

« un troisième groupe d’anesthésies … systematisées. Il est facile de constater qu’il y a des paralysies et des contractures exactement correspondantes. § Les anciens magnétiseurs avaient déjà remarqué que l’on peut défendre à un sujet de faire un certain mouvement, de prononcer tel mot, ou d’écrire telle lettre. ‘Les paralysies systématiques consistent dans la perte de mouvements spéciaux, de mouvements adaptés. Le sujet qui en est atteint ne perd pas complètement l’usage de son membre ; il est seulement incapable de s’en servir pour exécuter un acte determiné et cet acte seul’ (Binet et Féré, Magnétisme animalIl est facile de comprendre combien un sujet qui peut faire de son bras tous les mouvements possibles, sauf ceux qui sont nécessaires pour écrire un A, ressemble au sujet qui peut avec son oeil voir tous les objets, sauf une seule personne désignée. Il y a même, quoique ce soit un fait moins connu, des contractures systématisées, c’est-à-dire des contractures dans lesquelles tous les muscles du bras ou de la main ne sont pas contracté au plus haut degré, mais dans lesquelles quelques-uns seulement sont contractés et les uns plus, les autres moins, de manière à donner au membre une attitude également rigide, mais expressive. Les bras, p.ex., pourront rester contracturés dans la posture de la menace ou dans celle de la prière. Les paralysies et les contractures peuvent donc présenter toutes les modifications que présentaient les anesthésies et être classés de la même manière. »

« La suggestion posthypnotique amenait des insensibilités partielles et des anesthésies systématiques ; elle produira des paralysies et des contractures du même genre. »

« Je fais, par ce procédé, écrire l’alphabet, Lucie [1] ne le sait plus. Je demande au personnage subconscient [Lucie 2] l’orthographe d’un mot, ‘chapeau, maison, etc.’, il l’écrit correctement ; mais si on le demande à Lucie [1] à ce même moment, elle cherche et prétend l’avoir oubliée. Bien mieux si, avec quelques précautions, on arrête cette écriture automatique, sans détruire l’état d’hémisomnambulisme qui subsiste alors, on constate que Lucie a, en ce moment, totalement perdu la faculté d’écrire consciemment et qu’elle ne peut s’exprimer que par la parole. »

« Les contractures hystériques sont beaucoup plus fréquentes que les paralysies, car les muscles anesthésiques ont une tendance curieuse à se contracturer sans cesse sous la plus légère influence, le massage, la pression circulaire, l’approche d’un aimant, etc. »

« Une femme de 26 ans, évidemment hystérique, a une querelle avec son mari et lève le poing pour le frapper : comme par une punition céleste, le bras droit reste contracturé dans la position du coup de poing. Elle vint au bout de 3 jours demander assistance, car la contracture n’avait pas cédé : M. le Dr. Gibert eu l’obligeance de me la montrer. J’ai d’abord essayé les expériences avec l’aimant qui, je dois le dire, n’eut aucune influence sur cette paysanne très ignorante des théories du transfert. Mais elle fut très émotionnée, pleurait et ne comprenait plus rien à ce qu’on lui disait. Je profitai de son émotion pour lui faire des suggestions à l’état de veille ; par un mot, je fis passer la contracture de droite à gauche, de gauche à droite et enfin je la fis disparaître. »

« En réalité, ces 2 choses, l’oubli et la paralysie, ne sont qu’un seul et même phénomène considéré de 2 côtés différents, comme l’image et le mouvement. » « [en un mot,] c’est une désagrégation »

« Il faut admettre que ces images existent encore et font simplement partie d’un autre groupe plus ou moins coordonné de phénomènes psychologie [P e P’], afin de comprendre comment le mouvement des membres paralysés se conserve et a lieu, quand on le désire, à l’insu du sujet lui-même. »

2.12 CONCLUSION

« Les choses se passent comme si les phénomènes psychologiques élémentaires étaient aussi réels et aussi nombreux que chez les individus les plus normaux, mais ne pouvaient pas, à cause d’une faiblesse particulière de la faculté de synthèse, se réunir en une seule perception, en une seule conscience personnelle »

3. DIVERSES FORMES DE LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

3.1 LA BAGUETTE DIVINATOIRE. – LE PENDULE EXPLORATEUR. – LA LECTURE DE PENSÉES.

« Une des pratiques les plus anciennes et les plus simples pour ces révélations mystérieuses est l’usage de la baguette divinatoire. C’est une baguette, ordinairement de coudrier, qui a la forme d’une fourche [uma forquilha de madeira] et qui servait autrefois dans les campagnes pour découvrir les sources, les métaux cachés et mêmes les traces des criminels. Le devin, car ce n’est qu’une personne privilégiée qui peut se servir de cet instrument, prend dans ses 2 mains les 2 branches de la fourche et s’avance sur le terrain qu’il doit explorer, en ayant soin de ne pas bouger volontairement les bras. Si, sur un point du parcours, la baguette oscille, s’incline jusqu’à tordre les poignets du devin qui ne peut résister, c’est là qu’il faut fouiller pour trouver les sources ou les trésors. Le fameux Jacques Aymar conduisit même ainsi les magistrats sur la piste de 2 criminels depuis Lyon jusqu’à Toulon.(*)

(*) Gasparin, Des tables tournantes, 1855, II.De Mirville, Des esprits et de leurs manifestations fluidiques, 1963, I. »

« Un anneau suspendu au bout d’un fil plonge dans un verre : la sybille tient l’extrémité de ce pendule explorateur et lui pose des questions auxquelles il doit répondre par les mouvements ou les battements de l’anneau contre le verre. Ce petit jeu mérite quelque célébrité, car il a provoqué les premières recherches de M. Chevreul et il a été le point de départ des études expérimentales sur les phénomènes subconscients de l’esprit humain. »

« willing game, le jeu du vouloir, appelé en France la lecture des pensées ou le cumberlandisme, du nom de celui qui l’a introduit il y a quelques années. J’emprunte la description du cumberlandisme à des auteurs qui en ont fait une étude minutieuse et qui nous indiquent les termes usuels qui le caractérisent. (…) un membre de la société qui doit jouer le rôle de thought reader ou de percipient, devin, quitte la salle ; les autres personnes qui restent choisissent quelque action simples qu’il doit accomplir ou cachent quelque objet qu’il doit trouver ; le devin est alors ramené et un ou plusieurs willers, conducteurs, lui touchent légèrement la main ou l’épaule. Dans ces conditions, l’action choisie est souvent assez vite accomplie ou bien l’objet est retrouvé. Le willer affirme cependant et avec une parfaite bonne foi qu’il n’a donné aucune impulsion directrice.(*)

(*) Myers, Gurney & Podmore, Phantasms of the living, 1886, I. »

Quoique des séances de ce genre, surtout lorsqu’elles sont publiques, laissent toujours quelque doute et ne puissent pas être rapportées avec autant de confiance que des expériences personnelles, je crois que, dans ce cas, les mesures de précaution contre des supercheries possibles étaient assez bien prises. Dans cette séance de mentévisme, comme il disait, Osip Feldmann arrivait, non pas toujours, mais assez souvent, à exécuter l’acte auquel on pensait en lui serrant fortement le poignet. Il réussissait mieux les expériences compliquées que les plus simples, celles qui comportaient beaucoup de mouvements que celles qui devaient être faites sur place. Il réussissait également mieux avec certaines personnes qu’avec d’autres : ainsi, j’essayai en vain de le diriger, il ne comprit rien à ce que je pensai, tandis qu’il comprenait très bien plusieurs de mes amis. Il parvenait même à comprendre une personne qui ne le touchait pas, mais se contentait de le suivre partout en restant à un mètre de distance : cette expérience est déjà décrite en Angleterre. (…) Au lieu de se faire tenir directement par la personne qui avait choisi l’action à accomplir et qui jouait le rôle de willer, il interposait entre elle et lui une 3e personne totalement ignorante de ce qu’il y avait à faire et dont le rôle consistait uniquement à tenir d’un côté le poignet du devin et de l’autre la main du willer sans penser elle-même à rien de précis. »

« En Angleterre, où l’on a, pour toutes ces questions, une curiosité intelligente et active, plusieurs observateurs ont entrepris, afin d’étudier la baguette divinatoire, une série d’expériences longues et coûteuses que l’on n’aurait jamais songé à faire en France. On trouverait le compte rendu de ces expériences dans les articles de MM. Sollas et Edw. Pease¹ »

¹ Bibliografia não-encontrada.

« Lorsque je tenais le pendule à la main, un mouvement musculaire de mon bras, quoique insensible pour moi, fit sortir le pendule de l’état de repos et les oscillations une fois commencées furent bientôt augmentées par l’influence que la vue exerça pour me mettre dans cet état particulier de disposition ou de tendance au mouvement… »

Chevreul

« J’ai remarqué, écrit un observateur anglais, que si un objet a été d’abord caché dans un endroit, puis déplacé pour être mis dans un autre, la personne qui me conduit ne manque pas de me mener d’abord à la première place, puis elle m’entraîne à la véritable. »

« Plusieurs personnes à qui j’ai fait tenir le pendule de Ch. furent stupéfaites et effrayées de voir l’anneau m’obéir et osciller dans le sens que j’indiquais. Le mouvement est cependant réel [et involontaire, et inconscient] »

« Não pisque! » E então a pessoa pisca nervosamente.

Círculos de língua traçados pela boca, serão mesmo circulares?

Pour pouvoir reproduire cette expérience, il faut appartenir au type visuel et avoir habituellement des mouvements déterminés par des images visuelles. C’est pourquoi plusieurs personnes, qui agissent d’ordinaire autrement, ne peuvent pas mettre le pendule en mouvement par ce procédé. »

« Mais (…) pourquoi ces individus font-ils ces mouvements sans le savoir ? Un mouvement automatique déterminé par une image n’est pas forcément un mouvement ignoré. Quand nous bâillons en voyant bâiller quelqu’un, nous savons bien ce que nous faisons. Le mouvement est provoqué par l’image visuelle ou auditive [e eis que bocejo!] » E provavelmente quando reler bocejarei de novo. Dito e efeito… E você que me lê?

« J’ai cru observer que les individus qui appartiennent au type moteur ou musculaire ne sont pas, comme on pourrait le penser, les meilleurs sujets pour ce genre d’expériences. Habitués à se servir de leurs sensations musculaires et à y faire attention, ils ne laissent pas passer inaperçus ces mouvements involontaires de leur main et les arrêtent dès leur début. »

Nós, os auditivos e visuais, precisamos de muitos estímulos para correr, por exemplo. Aí ignoramos a dor.

« on peut donc dire que, dans toutes les expériences que nous avons rappelées, il y a au moins un commencement de désagrégation psychologique avec sensations et mouvements subconscients. »

« Entre les doigts d’une hystérique anesthésique, le pendule fait merveille et exécute tous les mouvements possibles, parce que l’anesthésie musculaire est déjà complète et que ces sensations ne viennent pas gêner le mouvement produit par les images visuelles ou auditives. »

« La communication entre les 2 personalités est ici le son de la parole, comme entre des personnes normales. » O Rafael do sonho, do banho, das caminhadas (o cantante, o fumante).

Il faut aller plus loin que M. Chevreul et, après avoir admis des actes sans volonté, il faut parler des pensées sans conscience ou en dehors de notre conscience, si l’on veut se débarrasser des innombrables petits diables de M. de Mirville. »

3.2 RÉSUMÉ HISTORIQUE DU SPIRITISME

« Il y a des années que les chefs du spiritisme connaissent ces faits de désagrégation psychologique que nous venons de décrire. Il semble que toute science doive passer par une période de superstition bizarre : l’astronomie et la chimie ont commencé par être l’astrologie et l’alchimie. La psychologie expérimentale aura commencé par être le magnétisme animal et le spiritisme : ne l’oublions pas et ne nous moquons pas de nos ancêtres. » Discurso ok para o fim do séc. XIX. Mas se vemos espíritas (e muito mais estúpidos que os espíritas franceses daquele tempo) a nossa frente, evidentemente que devemos cair na gargalhada (um dos poucos prazeres restantes nesse mundo tão insosso)! O espiritismo não é respeitável sequer como religião – não se trata aqui de rir do que é « pseudo » ou « proto » científico, mas de algo bem mais profundo… Não rio de quem lê horóscopos e professa fé na deusa Astarte (por exemplo). Há nisso um quê de dignidade indefinível. Kardecistas, porém?! Não, que a tolerância com malucos de branco escapados de camisas-de-força tenha seus limites, meus caros!

« Les ouvrages des spirites, comme ceux des magnétiseurs, peuvent se diviser en 2 groupes. Les uns qui exposent une quantité de théories plus ou moins banales ou fantastiques pour expliquer un petit nombre de faits à peine décrits : ceux-là sont en général complètement illisibles. Les autres, tout en parlant encore beaucoup trop des esprits et de leur hiérarchie, insistent davantage sur les faits observés et les descriptions des séances ; ils sont intéressants et plus agréables à lire que l’on ne croirait.

Après avoir commencé, non sans effroi, la lecture des gros volumes de M. de Mirville, l’étude de la Revue spirite, celle des théories de Gasparin ou de Chevillard sur le spiritisme, j’ai fini par y prendre un certain plaisir. On trouve de tout dans ces ouvrages, qui sont quelquefois écrits avec une verve et un enthousiasme presque communicatifs. Tantôt ce sont des histoires délicieuses, comme celle de ce bon M. Bénézet et de son guéridon [mesa de centro; incrivelmente sonante com guérison] qui interrompt sa conversation pour courir après des papillons, celle de ces esprits malins et peu convenables qui se dissimulent sur les chaises et mordent les personnes… quand elles s’asseoient, et surtout le récit des mésaventures de ce pauvre M. X… qui fuit devant la révolte de son mobilier et se cache derrière un canapé resté fidèle ; tantôt ce sont des recherches d’érudition absolument dépourvues de critique, il est vrai, mais quelquefois bien curieuses ; tantôt ce sont des observations psychologiques très intéressantes et très fines et qui sont loin d’être inutiles pour les observateurs de nos jours. Il est fâcheux que les dimensions de cet ouvrage ne me permettent pas d’insister suffisamment sur ces différents auteurs. Nous ne pouvons que rechercher les faits les plus fréquemment observés par des écrivains opposés les uns aux autres et, par conséquent, les plus vraisemblables, et les extraire de toutes ces réflexions, ces discussions, ces théories qui les étouffent. Une science naissante donne beaucoup plus de place aux systèmes qu’aux faits ; c’est justement l’inverse qui a lieu dans une science un peu plus avancée. » Dá o que pensar. Mas não poderia ser o contrário? Vejamos a sociologia: tão fértil e ligada a coisas ainda reais antes das sistematizações que a tornam estéril e mero apêndice estatístico hoje, sem vida.

« On connaît, dans ses grands traits, l’histoire du spiritisme, et je ne puis entrer ici dans des détails qui formeraient tout un volume. On sait que, vers 1848, 2 jeunes filles américaines, misses Fox,(*) ont eu le singulier honneur d’entendre les premières des coups mystérieux que rien ne pouvait expliquer : elles les attribuèrent tout naturellement à l’âme d’un individu décédé dans la maison, et, avec un courage au-dessus de tout éloge, engagèrent la conversation avec ce personnage. D’après une convention établie par ces demoiselles, un coup signifiait ‘oui’ et deux coups signifiaient ‘non’. M. de Mirville semble réclamer le mérite de cette invention pour un des témoins dans l’affaire du presbytère de Cideville.(**) C’est une question de priorité à débattre entre la France et l’Amérique. Je ne crois pas, cependant, que la question ait grande importance, car un passage d’Ammien Marcellin assure qu’au IVe siècle de notre ère, les chefs d’une conspiration contre l’empereur Valence interrogèrent des tables magiques d’une façon à peu près analogue.(***) Le procédé serait donc fort ancien. En tout cas, c’est en Amérique [la terre des fous], de Mirville en convient lui-même, que, grâce aux misses Fox et au juge Edmonds, l’épidémie spirit fit ses premiers progrès. Ce dernier fut surtout stupéfait de la connaissance que les esprits qu’il interrogeait avaient de ses propres pensées.

(*) Sur l’histoire des misses Fox, Cf. Bersot : Mesmer. Le magnétisme et les tables tournantes, 4e éd. 1879, 119.

(**) De Mirville, Pneumatologie. Des esprits et de leurs manifestations diverses. Mémoires adressés aux académies, 4 vols. [!] in-8, 4e éd., 1863, I, 328.

(***) Lafontaine, Art de magnétiser, 27. »

O mais provável é que os indígenas exterminados pelo colonizador britânico tenham lançado uma grande maldição nessa terra desértica de bens e de idéias.

Deus morreu, mas a mesa sobreviveu. I am… I am… I AM!

« Bientôt les dames pussèrent de grands cris, car la table tremblait sous leur main et se mettait à tourner. » « on commanda à la table : ‘danse’, et elle dansa »

« L’épidémie ne tarda pas à passer en France : quoique certains auteurs prétendent qu’il eut des tentatives de ce genre dès 1842, ce n’est vraiment qu’en 1853 que l’on trouve des expériences bien authentiques à Bourges,(*) à Strasbourg, à Paris. Le succès fut complet et ne tarda pas à dépasser même celui des Allemands. [mais românticos que os românticos!] Sous la pression des mains rangées autour d’elle avec méthode, la table ne se contenta plus de tourner et de danser, elle imita les diverses batteries du tambour, la petite guerre avec feux de file ou de peloton, la canonnade, puis le grincement de la scie, les coups de marteaux, le rythme de différents airs » Mesa Napoleão. Memórias: Quinta série e brincadeira do compasso… – Não sabíamos, na sala, que as “bics” que terminaram voando pela janela eram resultado de nossas contrações musculares inconscientes…

(*) « Allan Kardec, Le livre des médiums, 19e éd. [puta que pariu…]. »

OS FINS JUSTIFICAM OS MÉDIUMS : « On ne tarda pas à remarquer, en effet, que les 10 ou 12 personnes réunies autour de la table ne jouaient pas toutes un rôle également important. La plupart pouvaient se retirer sans inconvénient, sans que les mouvements de la table fussent arrêtés ou modifiés. Quelques-unes, au contraire, semblaient indispensables, car, si elles se retiraient, tous les phénomènes étaient supprimés et la table ne bougeait plus. On désigna sous le nom de médiums ces personnes dont la présence, dont l’intermédiaire était nécessaire pour obtenir les mouvements et les réponses des tables parlantes. »

METÁFORA DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: « Grâce à ces progrès, les opérations deviennent plus simples et plus régulières : au lieu d’une douzaine de personnes debout autour d’une table, écoutant et comptant le nombre des bruits qu’elle produit dans son mouvement, il n’y a plus que le médium, la main appuyée sur une petite planchette mobile, ou même, dans la plupart des cas, tenant directement un crayon. » Chaplin bem podia ter gravado mais um filme, O GRANDE CHARLATÃO.

E como em toda revolução industrial, seguem sucessivas especializações do especialista: “Les médiums, ces individus essentiels et privilégiés, n’ont pas, tous, les mêmes pouvoirs et se rangent en catégories innombrables que nous ne pouvons énumérer toutes : les médiums à effets physiques ou les médiums typtologues, comme les misses Fox en Amérique, provoquent, par leur seule présence, des bruits dans les murs ou sous les tables ; les médiums mécaniques se servent d’une planchette, d’une toupie, d’une corbeille à bec, etc. ; les médiums gesticulants répondent aux questions par des mouvements involontaires de la tête, du corps, de la main, ou bien en promenant les doigts sur les lettres d’un alphabet avec une extrême vitesse ; les médiums écrivants tiennent le crayon eux-mêmes, et écrivent à l’endroit ou à l’envers, [ALLAN ATRAVÉS DO ESPELHO] ou se servent de l’écriture spéculaire,(*) ou obtiennent des écritures diversement transformées ; les médiums dessinateurs laissent leur main errer au hasard et sont tout surpris de voir ‘la maison habitée par Mozart dans la planète Jupiter toute en notes de musique’.(*) (…) Il y a des médiums pantomimes ‘qui imitent, sans pouvoir s’en rendre compte, la figure, la voix, la tournure des personnes qu’ils n’ont jamais vues, et jouent des scènes de la vie de ces personnes d’une telle façon qu’on ne peut s’empêcher de reconnaître l’individu qu’ils représentent’. » + os ‘inventores’ de línguas (hoje fazendo carreira nas neo-pentecostais) + médiums auditivos e visuais, etc.

(*) « Gibier, Le spiritisme ou fakirisme occidental, 1887. »

O SUMO ÓBVIO: « Ce qui distingue l’école spirite, dite américaine, écrit la Revue spirite, c’est la prédominance de la partie phénoménale ; dans l’école européenne on remarque au contraire la prédominance de la partie philosophique. » É como dizer que um espiritismo que fosse desenvolvido por cavalos de competição contaria com percursos com obstáculos! O americano inventa Arquivo X; o tipo europeu inventa o Black Lodge… Eu me comunicaria com Zaratustra, não com alienígenas imbecis que gostam de se envolver com a Casa Branca, é evidente!

« Ce fut l’oeuvre d’un certain M. Rival, ancien vendeur de contre-marques, [cunhas de moeda] parait-il,(*) qui rédigea, sous le nom d’Allan Kardec, le code et l’évangile du spiritisme.

(*) Gilles de la Tourette, Hypnotisme. »

« Il est absolument inutile de résumer ici ce système philosophique qui n’a d’ailleurs aucune espèce d’intêrêt ; cette étude a été faite dans le petit livre de M. Tissandier qui examine moins les faits que les théories du spiritisme. (Des sciences occultes et du spiritisme, 1866.) Il suffit de savoir que cette doctrine est un mélange des idées religieuses courantes et d’un spiritualisme banal, [hahahaha] qu’elle soutient naturellement la doctrine de l’immortalité des âmes et la complète par une théorie vague de réincarnation analogue à la transmigration et à la métempsychose des anciens. » A História se repete como farsa.

Perispírito, o éter desses lunáticos.

« D’innombrables sociétés se formèrent dans lesquelles on conversait facilement avec l’âme de son arrière-grand-père ou avec l’esprit de Socrate. »

« Il ne faudrait pas, je crois, confondre complètement ce spiritisme d’aujourd’hui avec celui que existait autrefois et qui provoquait l’enthousiasme d’Allan Kardec et les terreurs religieuses de Mirville : ce sont 2 choses très différentes. Les quelques croyants sincères qui subsistent encore défendent péniblement les doctrines du maître contre des sectes et des religions nouvelles, l’occultisme ou la théosophie, beaucoup plus ambitieuses et plus compliquées que cette modeste conversation avec les âmes des trépassés. » Trespassados como Aquele pela lança de Longino. Às vezes tenho a impressão que o Brasil é o lixão do mundo, ou diria jardim fértil do mundo: aqui, tudo floresce.

3.3 HYPOTHÈSES RELATIVES AU SPIRITISME

Le movement qui a provoqué la fondation d’une cinquantaine de journaux différents en Europe, qui a inspiré les croyances d’un nombre considerable de personne est loin d’être insignifiant. Il est trop général et trop persistant pour être dû à une simple plaisanterie locale et passagère.”

La crédulité exagérée qui consisterait à prendre au sérieux toutes les balivernes [nonsense, folly] qui encombrent les revues de ce genre serait plus ridicule encore que le scepticisme

Que le médium agisse au moyen de son bras et écrive comme tout le monde, ou qu’il manifeste sa pensée par le mouvement du crayon placé loin de lui, cela est très different au point de vue physique; mais au point de vue psychologique, cela ne modifie pas la nature de la pensée qui se manifeste et les problèmes qui nous intéressent restent exactement les mêmes. Je me hâte d’ajouter que ces phénomènes réservés sont infiniment rares et que je serais fort embarrassé pour en parler, car, malgré toute ma curiosité, je n’ai jamais vu rien qui y ressemblât. Les 9/10 au moins des personnes qui se sont occupés de spiritisme avoueront, si elles sont sincères, que ce ne sont pas ces phénomènes d’écriture directe ou de soulèvements sans contact qui ont déterminé leurs convictions, car elles ne les connaissent aussi que de reputation. Contentons-nous d’étudier le problème d’un phénomène physique dont l’existence est encore au moins problématique.

Un premier effort pour expliquer le mouvement des tables tournantes fut fait dès les débuts de leurs succès par quelques physiciens. M. l’abbé Moigno¹ s’efforce de prouver, dans le Cosmos du 8 juillet 1854, que les tables ne tournent que parce qu’on les pousse. Il cite plusieurs expériences ingénieuses imaginées par M. Strombo [a.k.a. Dimitrios Stroumpos], professeur de physique à l’université d’Athènes, qui mettent cette impulsion en évidence. Si, p.ex., on recouvre la surface de la table d’une couche de tale très mobile, les doigts des expérimentateurs glissent sur la table et ne parviennent pas à lui communiquer le mouvement. Les appareils de Babinet et de Faraday, les couches de papier successives qui tournaient sous la pression dans le sens du mouvement de la table, l’aiguille indicatrice qui prévenait les assistants de leurs moindres mouvements, sont trop connus pour que j’y insiste; ces procédés mettaient en évidence le mouvement des expérimentateurs et des médiums. Mais, répondrons-nous avec M. de Mirville, il n’est pas nécessaire d’inventer tant d’appareils pour nous prouver que la main du médium remue, nous nous em doutions bien un peu; les meilleurs médiums sont ceux qui n’ont point besoin de tables et qui tiennent eux-mêmes le crayon, et tout le monde peut voir les mouvements de leur main. Ce qu’il faut nous expliquer, c’est de quelle manière ce mouvement peut être involontaire et inconscient, tout en restant cependant intelligent.

¹ Citarei alguns livros fora do tema na bibliografia complementar.

Guldenstubbe, La réalité des esprits, 1873

J’ai vu John Stuart Mill passer le long de Cheapside l’après-midi, lorsque cette rue est pleine de monde, et circuler sans peine sur le trottoir étroit sans coudoyer personne ni se heurter aux becs de gaz, et lui-même m’a assuré que son esprit était tout occupé de son système de logique, dont il avait médité la plus grande partie en allant chaque jour de Kesington aux bureaux de la compagnie des Indes, et qu’il avait si peu conscience de ce qui se passait autour de lui qu’il ne reconnaissait pas ses meilleurs amis…”

Carpenter, Revue scientifique, 1878.

Nous bâillons quand nous voyons bâiller, nous rougissons quand nous voyons rougir, donc il est tout simple qu’un sujet ramasse des fleurs quand on le lui commande et qu’une flamme imaginaire lui brûle la peau. Sans doute il y a une légère analogie entre la marche involontaire du logicien distrait et l’écriture automatique des mediums; mais quelle difference, quell hiatus entre les 2 phénomènes. Les actes involontaires que l’on allègue sont habituels, de simples répétitions, sans originalité et sans intelligence; l’écriture automatique au contraire, il ne faut pas l’oublier, est fort intelligente.”

On admet en Belgique que, pour aller plus vite, la table parlera avec ses 3 pieds: pour cela, on divise l’alphabet en 3 groupes de lettres: 1o de A à H, 2o de I à P; 3o de Q à Z; on numérote les lettres dans chaque groupe, A est désigné par un coup, B par 2, etc., I de nouveau par 1, J par 2, etc. Mais chaque pied correspond à un de ces groups et ne s’occupe pas des autres. Ainsi, si le premier pied frappé 3 coups, c’est un C., la troisième lettre du premier groupe, si le deuxième pied frappe un coup, c’est un I, la première lettre du 2e groupe, et ainsi de suite.”

Gasparin

Comment peut-on comparer un calcul de ce genre à l’acte automatique de se gratter ou de cligner des yeux? Les communications écrites de cette manière sont très loin, comme nous le verrons, d’être des oeuvres de genie, mais encore sont-elles incomparablement plus qu’un simple réflexe mécanique.”

Myers, Automatic writing, 1885.

It is time to go to sleep, go to bed.”

E por que raios um livro só sobre os médiuns e outro sobre os espíritos? Grr.

NÉON, A COLECIONADORA DE PARTES HUMANAS: “Le médium sait si peu ce que sa main écrit qu’il ne peut pas se relire et qu’il est obligé de faire appel à d’autres personnes pour comprendre ce que contient son message; ou bien, ce qui est plus curieux encore, il est obligé de prier l’esprit de répéter et d’écrire plus lisiblement, ce que ce dernier fait d’ailleurs avec assez de bonne volonté; ou bien encore, le médium se trompe em lisant le message, il lit par exemple J. Celen au lieu de Helen, et l’esprit est obligé de le reprendre et de rectifier.”

L’histoire de l’esprit qui s’intitule lui-même Clelia forme réellement um document psychologique dont on ne saurait exagérer l’importance.”

ESCRITOR AUTOMÁTICO (MÉDIUM):“What is man?”

ESCRITA (INCONSCIENTE): “Tefi Hasl Esble Lies”

MÉD.: “How shall I believe?”

INC.: “neb 16 vbliy ev 86 e earf ee”

MÉD.: “Is this an anagram?”

INC.: “Yes”

Ce n’est que le lendemain et après bien des efforts que le médium put disposer les lettres de manière à leur donner un sens à peu près intelligible: ‘Life is the less able’ ‘believe by fear even 1866’

Wundt, après avoir assisté à une séance de spiritisme, se plaint vivement de la dégénérescence qui a atteint, après leur mort, l’esprit des plus grands personnages, car ils ne tiennent plus que des propos de dements et de gâteux.” Cf. Wundt, Spiritisme (artigo), 1879.

his quos durus amor crudeli tabe peredit”

Illa solo fixos oculos aversa tenebat…” Dido

Chez des protestants, les tables n’ont plus peur de l’eau bénite, n’ont plus de respect pour les scapulaires et annoncent avant 10 ans la chute de la papauté.” “Chez ceux qui croient à l’ancienne magie noire, les esprits obéissent aux formules magiques et tremblent devant les triangles sacrés. Il est vrai, comme l’a vérifié Morin,¹ que l’on peut, au lieu de réciter les formules fatales, déclamer des ver d’Horace et que l’on obtient le même succès.”

¹ Figura não-identificada.

3.4 LE SPIRITISME ET LA DÉSAGRÉGATION PSYCHOLOGIQUE

Tout est dit…”

Frase de um moralista francês, século XVII

(s/ autor), Seconde lettre de gros Jean à son évêque au sujet des tables parlantes, des possessions et autres diableries. Paris, Ledoyen, 1855. (93 páginas)

Quelques citations nous permettront de résumer la théorie psychologique contenue dans cette petite brochure: ‘Incitées par le monde extérieur, ou fécondant les matériaux déjà conquis, nos facultes intellectuelles forment en nous des idées ou des pensées; la conscience ou sens intime nous en donne connaissance; notre volonté ou faculté de réagir sur nous-mêmes fournit en même temps à la conscience l’idée de notre personnalité, l’idée du moi. Reste à établir le lien. Par ce mouvement de la volonté sur l’intelligence qu’on appelle l’attention, l’idée ou pensée est affirmée dans ses relations avec le moi, rapportée, unie à lui. Voilà ce qui se pase dans l’état ordinaire normal…’”

Le phénomène qui nous occupe (les tables parlantes) n’est autre chose en effet que cette suspension plus ou moin complète, plus ou moins prolongée, de l’action de la volonté sur l’organisme, sur la sensibilité, sur l’intelligence conservant toute leur activité, et les divers degrés de cette disjonction comme les formes diferentes qu’elle revêt, se succèdent fort naturellement les unes aux autres… Dans les expériences des tables parlantes, la jeune fille entend la question et forme bien la réponse dans son esprit où doit être préalablement déposée la connaissance du mode convenu pour traduire, au moyen des mouvements de la table, toutes les idées et pensées possible: tels sont les premiers éléments du phénomène: mais ici se présentent plusieurs états ou degrés différents du même êtat.”

La volonté ayant commencé à faire scission avec l’intelligence, la jeune personne n’a qu’une demi-connaissance de la réponse qui est plus complète, plus étendue ou même exprimée en d’autres termes; l’esprit, en un mot, est dans une situation semi-anormale.”

La jeune fille sait la réponse qui se forme dans son intelligence, mais elle la connaît en elle comme si elle ne venait pas d’elle; l’attention la recueille, mais sans établir de lien entre cette pensé et le moi (ce degré me paraît correspondre aux possessions et aux folies impulsives dont nous parlerons plus loin).”

Que faut-il pour que la plume soit remplacée par la parole? que l’impulsion se communique à d’autres nerfs… Cela est accompagné ordinairement d’um grave désordre de l’innervation: il n’y a rien d’étonnant à cela.”

Chez nos paisibles writing médiums, la pensée ordinaire persiste calme, mais quand la crise physique revêtait un caractère violent, oh! alors la division interne était complète, absolue, persistante; bien plus, la seconde personallité exaltée, ardente, effrénée, étouffait l’autre pour un moment anéantie et, sous les noms de Jupiter ou d’Apollon, possédait seule toute l’intelligence et tout l’organisme de la prêtresse en délire. Deus, ecce Deus…” “Tel est le somnambulisme ou sybilisme parfait…”

sybilisme… [parce que] d’après son mode de manifestation le plus élevé et celui sans aucun doute qui a joué dans le monde le rôle le plus important, puisque, transformé en institution publique, il a été pendant des siècles la base et la sanction des religions.”

* * *

« On me pardonnera, je l’espere, cette longue citation en raison de son importance et de la difficulté de se procurer la brochure : il faut reconnaître que, sous son titre bizarre, se trouve trés bien résumé tout ce que quelques auteurs contemporains et moi-même nous croyions avoir découvert en étudiant l’écriture automatique et le somnambulisme. »

« D’où proviennent les bruits entendus dans les tables ou dans les murs et répondant à des questions ? Est-ce d’un mouvement des orteils, de cette contraction du tendon péronier supposées par Jobert de Lamballe et qui a fait tant de bruit à l’Académie ? Est-ce d’une contraction de l’estomac et d’une véritable ventriloquie, comme Gros Jean le suppose, ou bien d’une autre action physique particulière encore inconnue ? Sont-ils produits par des mouvements automatiques du médium lui-même, ou bien, comme cela me paraît probable dans certains cas, au milieu de l’obscurité réclamée par les spirites, par des actions subconscientes de quelqu’un des assistant, qui trompe les autres et se trompe lui-même, et qui devient compère [cúmplice] sans le savoir ? Cela importe peu (…) ‘la parole involontaire des intestins n’est pas plus miraculeuse que la parole involontaire de la bouche’. »

« Quoique l’ouvrage que nous venons d’analyser ait été écrit en 1855, il ne fut pas compris et n’eut aucune influence, ni sur les spirites, ce qui est naturel, ni sur les psychologues, ce qui est plus étonnant ; les uns continuèrent à admirer, les autres à railler les tables parlantes, sans que leur étude avançât autrement. »

« Littré, dans sa Philosophie positive, 1878, et Dagonet dans les Annales médico-psychologiques, 1881, font allusion à des théories du même genre pour expliquer les discours des convulsionnaires des Cévennes. »

« Il faut arriver jusqu’à ces denières annés pour trouver, dans un article de M. Ch. Richet, l’expression précise d’une théorie du spiritisme, comparable à celle que nous venons de lire : ‘Supposons, dit-il, qu’il y ait chez quelques individus un état d’hémi-somnambulisme tel qu’une partie de l’encéphale produise des pensées, reçoive des perceptions, sans que le moi en soit averti. La conscience de cet individu persiste dans son intégrité apparente : toutefois des opérations très compliquées vont s’accomplir en dehors de la conscience, sans que le moi volontaire et conscient paraisse ressentir une modification quelconque.’ (La suggestion mentale et le calcul des probabilitiés, 1884) »

Baron du Prel, Philosophie der mystick

Hellenbach, Geburt und Tod

« Nous n’exposerons pas ici les théories de Myers sur le spiritisme, elles sont plus développées que les précédentes, et entrent davantage dans le détail des phénomènes. Nous préférons exposer d’abord, d’une manière générale, comment nous rattachons ces faits aux études que nous venons de faire dans cet ouvrage, pour revenir ensuite sur les points de débat qui séparent notre interprétation de celle de Myers. »

« Tandis que ces auteurs partaient de l’étude du spiritisme pour arriver à la théorie des personnalités multiples et à l’étude de l’hypnotisme, nous nous trouvions les rejoindre quoique en étant parti d’un point de départ tout opposé. Cette rencontre nous porte à croire, ce qui nous paraît facile à démontrer, que les phénomènes observés par les spirites sont exactement identiques à ceux du somnambulisme naturel ou artificiel et que nous avons le droit d’appliquer littéralement à cette question nouvelle les théories et les conclusions auxquelles nous sommes parvenus dans le chapitre précédent. »

3.5 COMPARAISON DES MÉDIUMS ET DES SOMNAMBULES

« presque toujours les médiums sont des névropathes, quand ce ne sont pas franchement des hystériques. Le mouvement des tables ne commence que lorsque des femme ou des enfants, c’est-à-dire des personnes prédisposées aux accidents nerveux, viennent y mettre les mains (Baragnon, Magnétisme animal) »

« Quand les esprits se fâchent, les médiums sont plongés subitement dans un état de perturbation nerveuse ou de raideur tétanique… »

Mirville

« Rien n’est plus décisif, à ce point de vue, qu’une observation de Charcot sur plusieurs jeunes gens d’une même famille qui deviennent tous hystériques à la suite des pratiques du spiritisme. Cette coïncidence entre la crise de nerfs et l’acte d’écrire inconsciemment se retrouve chez nos sujets. »

« Si les médiums ne présentent pas d’accidents nerveux au moment où ils évoquent les esprits, ils ne restent pas cependant toujours indemnes, et ils terminent souvent d’une manière fatale leur brillante carrière. Tôt ou tard beaucoup d’entre eux tombent dans ‘la subjugation’, comme dit Allan Kardec avec un heureux euphémisme, c’est-à-dire qu’ils finissent tout simplement par la folie. (Maudsley, Pathologie de l’esprit, 1883) »

« la médiumnité est un symptôme et non pas une cause. »

« Les médiums sont des somnambules incomplets » Perrier, magnetizador.

« Voilà qui est parfait, mais ces auteurs n’expliquent pas comment tout cela est possible, comment l’existence somnambulique peut se continuer sous la veille en une seconde personnalité. »

« Ah ! c’est embêtant d’être mort ! (Le vaillant Achille a déjà dit cela quand il venait boire le sang noir des victimes, décidément les médiums spirites n’ont pas l’esprit inventif.) »

« Eh bien, essayons cette combinaison ingénieuse. Pendant que Lucie est en somanmbulisme, je lui suggère qu’elle n’est plus elle-même, mais qu’elle est un petit garçon de 7 ans nommé Joseph, scène de comédie qui est connue et sur laquelle je passe. Sans défaire l’hallucination, je la réveille brusquement, et la voici que ne se souvient de rien et qui semble dans son état normal ; quelque temps après, je lui mets un crayon dans la main et je la distrais en lui parlant d’autre chose. La main écrit lentement et péniblement sans que Lucie s’en aperçoive, et quand je lui prends le papier, voici la lettre que je lis : ‘Cher grand-papa, à l’occasion du jour de l’an, je te souhaite une santé parfaite et je te promets d’être bien sage. Ton petit enfant, Joseph.’ Nous n’étions pas au jour de l’an et je ne sais pas pourquoi elle à écrit cela, peut-être parce que, dans sa pensée, une lettre d’un enfant de 7 ans éveillait l’idée des souhaits de bonne année ; mais n’est-il pas manifeste que l’hallucination s’est conservée dans la 2e personnalité. Un autre jour, je la mets encore en somnambulisme ; pour voir des transformations de caractère et pour profiter de son érdution littéraire, je la transforme en Agnès de Molière et lui fais jouer le rôle de la candeur naïve ; je lui demande cette fois d’écrire une lettre sur un sujet que je lui indique ; mais, avant qu’elle ait commencé, je la réveille. La lettre fut écrite inconsciemment pendant la veille, manifesta le même caractère et fut signée de ce nom d’Agnès. Encore un exemple : je la change cette fois en Napoléon avant de la réveiller ; la main écrivit automatiquement un ordre à un général quelconque de rallier les troupes pour une grande bataille et signa avec un grand paraphe Napoléon. Je demande encore : en quoi l’histoire de Mme Hugo d’Alésy diffère-t-elle de celle de Lucie ? Jusqu’à preuve du contraire, je suis disposé à croire que les 2 phénomènes sont absolument les mêmes, et que, par conséquent, ils doivent s’expliquer de la même manière par la désagrégation de la perception personnelle et par la formation de plusieurs personnalités qui tantôt se succèdent et tantôt se développent simultanément. »

3.6 LA DUALITÉ CÉRÉBRALE COMME EXPLICATION DU SPIRITISME

« Cette division du cerveau en 2 parties a déjà donné lieu à bien des hypothèses. Depuis La Mettrie¹ qui dit que Pascal avait un cerveau fou et un cerveau intelligent, depuis Gaétan de Launay,¹ qui considère les rêves faits sur le côté droit comme absurdes et ceux faits sur le côté gauche comme logiques,(*) il y a eu bien des anatomistes et des physiologistes qui ont rapporté à cette dualité tous les phénomènes compliqués et embarrasants de l’esprit humain.

¹ Muitas obras. Não é relevante para o tema aqui exposto.

(*) Cf. Bérillon, La dualité cérébrale et l’indépendance fonctionnelle des deux hémisphères cérébraux, 1884. »

« Mais Myers, quand il revient à cette théorie, à propos du spiritisme, l’expose avec des arguments qui sont plus nettement psychologiques et qui, par conséquent, demandent ici une discussion. »

« Le médium qui écrit de cette manière ne sent pas sa propre main qui écrit, il ressemble à un individu atteint de cécité verbale¹ qui ne peut lire l’écriture. »

Myers, Multiplex personality, 1887.

¹ Cegueira verbal!!!

« C’est que le message est mal écrit ; il m’arrive à moi aussi de ne pas pouvoir lire ma propre écriture, et je ne suis pas atteint de cécité verbale. »

« Enfin remarquons que l’écriture en miroir n’est pas si difficile qu’on le croit généralement. Après 2 ou 3 essais de quelques instants, je suis arrivé à écrire de cette façon assez rapidement. »

« Les arguments de Myers ne nous semblent pas suffisants pour que l’on puisse assimiler l’écriture automatique des médiums aux troubles de l’agraphie produits par une lésion localisée d’un hémisphère. » « Léonie et Lucie ont 3 personnalités et non 2 ; Rose en a 4 au moins bien distinctes ; faut-il supposer qu’elles ont 3 ou 4 cerveaux ? »

« Les médiums, quand ils sont parfaits, sont des types de la division la plus complète dans laquelle les 2 personnalités s’ignorent complètement et se développent indépendamment l’une de l’autre. »

3.7 DE LA FOLIE IMPULSIVE

« bien des malheureux sont naturellement et pendant toute leur vie sous la domination d’une idée fixe de ce genre et se sentent pousées par une puissance invincible à un acte qui leur fait horreur. »

« Laissons de côté les actes commis brusquement par certains épileptiques pendant une éclipse momentanée de la conscience. (…) Les impulsions qui nous intéressent le plus sont celles qui ont lieu pendant la veille du malade, pendant qu’il est capable de perception et de réflexion. Il peut les constater, et sent qu’il se laisse entraîner comme par une force étrangère.

Les actes les plus simples de ce genre seront des mouvements nerveux, des tics, des grimaces saccadées de la face, tu tronc, des extrémites, mouvements que le sujet déclare accomplir malgré lui, mais qu’il connaît et auxquels il pourrait à la rigueur résister. »

« il est juste, en effet, de distinguer la choréee vulgaire ou gesticulatoire, qui se rapproche des simples tics, de la grande chorée rhythmique, qui en diffère en ce que les mouvements irrésistibles ne sont pas faits au hasard, mais paraissent ordonnés et avoir un but déterminé. Mirville les décrit très bien, quoique en les rapportant, comme toujours, au diable. »

« certaines expressions, dit M. Luys semblent se figer en permanence sur la physionomie, les traits de terreur persistèrent 8 mois après l’accident qui les avait causés. » Odium pater. Senti-lhe tanto ódio que desfigurou meu rosto!

¹ “Jules Bernard Luys (1828-1897), neurologista, neuro-anatomista e psiquiatra francês. Devem-se numerosos átrlas do sistema nervoso central ilustrados por fotografias. Seu nome caracteriza ainda hoje a descrição pioneira do centro sub-talâmico (corpo de Luys), realizada em 1865.”

Toutes ces folies choréïques, disait Maudsley (op. cit.), sont caractérisées par leur caractère automatique, chaque centre nerveux semble agir pour son propre compte. Ce sont bien des impulsions pendant la veille et la durée de la conscience normale, mais l’individu qui les sent semble ne pas y résister.

Mais, dans d’autres cas qui sont plus dramatiques, l’individu qui a conscience de son impulsion peut y résister plus ou moins longtemps et ne succombe qu’après une lutte désespérée. Ce sont des désir violents et subits qui leur traversent l’esprit et qui les poussent à accomplir une action absurde ou criminelle. »

« L’acte est accompli, alors ils respirent, se calment, se réjouissent, non pas de l’acte qu’ils ont fait et qui leur est toujours en horreur, mais du soulagement qu’ils éprouvent à ne plus sentir cette horrible torture et à reprendre la libre disposition de leur esprit. On trouverait, dans tous les ouvrages sur l’aliénation, des exemples innombrables de cette maladie morale vraiment cruelle ; M. Jean Saury¹ a résumé, dans son dernier livre sur ‘les dégénérés’, les formes les plus typiques et les plus fréquentes que prennent les impulsions. »

¹ O enésimo polímata citado, do século XVIII! Também padre e astrônomo, entre outras ocupações.

« Tandis que le fou véritable s’abandonne à son délire et s’y complaît, l’impulsif le repousse comme quelque chose d’étranger. »

« Un malheureux jeune homme de 17 ans, D…, est fils de père et mère aliénés tous les deux et qui tous 2 ont terminé leur vie par le suicide. Il a eu, jusqu’à ces derniers temps, une existence relativement calme, quoique troublée de temps en temps par des accidents nerveux. Il eut ainsi de violente accès de mélancolie durant lesquels il se cache, s’isole et reste à pleurer sans aucune raison sur son sort. Il se demande avec angoisse comment il gagnera son pain, comment il apprendra son métier, etc. ; en même temps il se raisonne lui-même, constate que ces inquiétudes n’ont pas de raison d’être, et cependant il recommence à gémir ; à d’autres moments, il a des bouffées de chaleur à la face et des tremblements choréiques de la jambe gauche qui durent des nuits entières. Une fois, ces tremblements convulsifs se sont généralisés à tous les membres, jusqu’à faire croire (tout à fait à faux, à mon avis) à une crise d’épilepsie. Il a presque constamment, depuis quelques années, la terreur d’être seul, et cependant il déteste la société, aussi ne sait-il que faire, et se met-il encore à gémir. Il a une agoraphobie intense, et quand il faut traverser une place, il supplie une personne de l’accompagner ou bien suit les gens à la trace, en ayant une peur affreuse qu’on ne le renvoie. Voici le dernier accident plus tragique qui l’a amené à l’hôpital : Un soir il sent une des ses crises d’angoisse qui commence, ne peut arriver à manger ni à boire, passe la nuit éveillé à gémir ; la jambe gauche tremble et se secoue continuellement. Cependant il fait un effort le matin pour se rendre à son ouvrage habituel et, comme il est garçon coiffeur, [cabeleireiro] se met en devoir de raser [raspar, fazer a barba de] un client. À peine tient-il le rasoir [navalha] en main, que la sueur lui vient à la face, que ses tremblements augmentent et gagnent les bras. Une pensée horrible lui traverse l’esprit, il désire, il veut couper la gorge [cortar a garganta] de cet individu qu’il est en train de raser. Épouvanté de cet acte, il résiste avec une sorte de rage et s’accroche à la chaise pour ne pas tomber. Il essaie encore de lever [largar] son rasoir, mais l’impulsion revenant plus terrible, il se sauve dans sa chambre en poussant de grands cris. On court après lui et on n’a que le temps de le saisir au moment où il allait se couper la gorge à lui-même. (…) il est persuadé que tôt ou tard il se tuera [se suicidará] comme ont fait ses parents, et cette idée ne contribue pas peu à l’attrister. » Um dos relatos mais pesados de todo o livro.

« Il en est ainsi dans bien des suggestions exécutées soi-disant avec conscience ; le sujet continue avec bonne volonté un acte qu’il n’a pas commencé lui-même, il en prend même la responsabilité et il invente des raisons pour l’expliquer ; mais l’acte n’en était pas moins un phénomêne subconscient soumis aux lois de la désagrégation psychologique. » « Si l’on distrait le sujet pendant qu’il exécute l’acte, il ne s’apercevra de rien et les choses seront très régulières ; si on ne le distrait pas, il va employer sa petite force de perception à regarder ses propres actes et il pourra les accepter ou leur résister. »

PEDIDOS IMORAIS (COMO « PICK-POCKET »: “Elle faisait 3 pas dans la direction de la personne que je lui avais indiquée, puis s’arrêtait net et s’en retournait ; elle avançait de nouveau de 3 pas et s’arrêtait encore. Elle frappait du pied, grinçait des dents, prenait un ouvrage pour faire autre chose, puis se levait pour recommencer. (…) Pendant un instant de distraction, les jambes marchaient pour faire l’acte que la 2e personnalité voulait exécuter. Lucie, qui n’était pas assez distraite, s’apercevait de ce mouvement et se disait en trépignant : ‘Ah ça, qu’est-ce que je vais faire là ?’ (…) Cette lutte entre les 2 consciences dura plus de 20 minutes, avant que l’acte fût exécuté entièrement dans un moment de distraction plus durable ; tandis que, au contraire, la suggestion aurait été exécutée immédiatement, si j’avais pris quelques précautions pour éviter cette conscience en retour et pour empêcher Lucie de se préocuper de ses actes subconscients. »

« quand vous lisez un livre ou que vous entendez un discours peu récréatif, vous pouvez rester quelque temps dans un état d’indifférence, mais, si vous sentez quelque bâillement involontaire, alors vous ne doutez plus, vous êtes avertis authentiquement de votre ennui et la conscience que vous en avez l’augmente. »

Joly, Sensibilité et mouvement, Revue Philosophique, 1886. Bem sartriano. Ou devemos dizer, já que é um escrito do séc. XIX: Sartre é que é bem janetiano, digo, jolyano?

« Qu’est-ce qu’ils pensent d’eux-mêmes en se voyant ainsi agir d’une façon bizarre ? Ils emploient toujours le même mot pour désigner leur état. ‘Mais qu’est’ce que tu as donc ?’ dis-je à Lucie dans une circonstance analogue à celle que j’ai décrite. – ‘C’est drôle comme j’ai envie de faire cela, et c’est pourtant si bête.’ » A vontade, mestra suprema.

« il est dominé, il est esclave, son corps est une machine obéissant à une volonté qui n’est pas la sienne. »

Leuret

« – J’avais une peur affreuse de couper la gorge a l’homme que je rasais, me disait ce malheureux D…

– Pourquoi aviez-vous peur de faire cela ? lui demandai-je.

– Je voyais bien ma main qui se levait pour frapper, je n’ai eu que le temps de me sauver.

Le malade ne comprend pas que l’idée et, par suite, l’acte de couper la gorge a été suggéré, par l’attouchement du rasoir, à un groupe de phénomènes dont il ne soupçonne pas l’existence en lui. Il n’a vu que le résultat de la suggestion, le mouvement du bras, et c’est pour cela qu’il interprète en disant ‘J’avais une envie affreuse de lui couper la gorge.’ »

« une forme intéressante d’acte désagrégé incomplet »

3.8 LES IDÉES FIXES. – LES HALLUCINATIONS.

São diferentes do sub-capítulo anterior por não “forçarem” o paciente à comissão de um ato tresloucado.

L’un entend une voix qui lui répète : ‘Ne bouge pas ou tu es perdu’, et il reste alors immobile dans une apparente stupeur. (Ellis, Aliénation mentale)¹ Une autre entend une voix qui lui commande de jeter 10 francs dans la Seine. (Ball, d’après Paulhan, Revue philosophique, 88) Tantôt ces idées semblent rester plus abstraites, sans prendre la forme d’une hallucination de l’ouïe. (Ribot, Psychologie de l’attention) » « idée de persécution » « ou tout simplement une idée insignifiante et absurde » « Ces malheureux n’acceptent pas leur idée fixe comme faisant partie de leur pensée, comme nous faison dans nos rêves pour les idées les plus absurdes, ils résistent à ces idées et ils ont conscience de l’absurdité de leur état. »

¹ Ellis desconhecido. Havelock Ellis foi um grande psicólogo, fora do movimento da psiquiatria dinâmica per se.

« Si je pouvais penser comme vous, disait l’un, je serais heureux, mais je suis accablé par des idées sinistres auxquelles je ne puis m’empêcher de croire, j’aimerais mieux être fou complètement que d’avoir conservé mon intelligence sur la plupart des sujets… »

Pinel, De la monomanie

« Le problème est le même que pour les impulsions motrices : le phénomène anormal n’est pas intégré dans la personnalité, il est étranger au moi qui voudrait le repousser, il semble appartenir à un autre groupe psychique, comme les phénomènes désagrégés, et cependant il est conscient, tandis que ces faits de désagrégation étaient inconscients. »

« LÉONIE : Oh ! qui donc me parle ainsi ? cela me fait peur.

JANET : Personne ne vous parle, je suis seul avec vous.

L. : Mais si, là à gauche.

Et la voici qui se lève et veut ouvrir une armoire placée à sa gauche pour voir si quelqu’un y est caché.

J. : Qu’entendez-vous donc ?

L. : J’entends à gauche une voix qui répéte ‘Assez, assez, tiens-toi donc tranquille, tu nous ennuies.’

Certes la vois qui parlait ainsi était dans son droit, mais je n’avais rien suggéré de pareil et ne pensais guère à provoquer à ce moment une hallucination de l’ouïe. Un autre jour, le même sujet, pendant le premier somnambulisme, était bien calme, mais refusait obstinément de répondre à ce que je luis demandais. Elle entendit encore à gauche la même voix qui lui dit : ‘Allons, sois donc sage, il faut dire.’ Ces paroles provenaient évidemment, on connaît assez ce sujet pour le deviner, du personnage inférieur qui existait au-dessous de cette couche de conscience. [Léonie 2] »

« Mais comment, d’après les théories de la désagrégation que nous avons exposées, est-il possible que les idées du 2e personnage subconscient deviennent des hallucinations de l’ouïe pour le premier ? »

« Reproduisons le fait expérimentalement ? pendant un état somanmbulique profond, je charge Léonie 3 de dire quelque chose à l’autre, par exemple de lui dire ‘Bonjour’, puis je la réveille. L’hallucination se produit de même et Léonie demande encore : ‘Qui donc dit <Bonjour> ?’ Mais cette fois, moi aussi j’ai entendu le mot ‘Bonjour’, car la bouche l’a parfaitement prononcé, quoique tout bas. Ces hallucinations d’origine subconsciente étaient dues, dans ce cas, à l’audition d’une véritable parole automatique analogue à l’écriture automatique »

« Enfin les dégénérés, dont parle Saury, ont très souvent des impulsions à dire des jurons et des obscénités malgré eux, comme les médiums avaient des dispositions à en écrire. »

« Un malade parle lui-même tout haut et prétend ensuite que c’est une voix qu’il entend ; si on lui tient les lèvres fermées, il entend encore la voix, mais on sent les lèvres remuer sous les doigts. »

Moreau de Tours, Haschich

« Comment ces phénomènes peuvent-ils à la fois se rattacher l’un à l’autre par association et cependant être désagrégés ? »

« Je commande à Léonie pendant qu’elle est distraite et qu’elle cause avec une autre personne, et je murmure tout bas que cette personne a un bel habit vert. Léonie n’a pas entendu ce que je disais (phénomène subconscient désagrégé appartenant au 2e champ de conscience), et cependant elle pousse un cri et dit : ‘Oh ! comme votre habit est drôle, il est tout vert, ja ne l’avais pas remarqué’ (phénomène conscient appartenant au 1er champ de conscience). » Cf. Binet, Les altérations de la conscience chez les hystériques, Revue philosophique, 1889, I.

« l’association automatique des idées est une chose, et … la synthèse qui forme la perception personnelle à chaque moment de la vie et l’idée du moi en est une autre. Celle-ci peut être détruite, tandis que celle- subsiste. » « L’association des idées est la manifestation d’une synthèse élémentaire qui a déjà été effectuée autrefois et qui a rattaché les phénomènes les uns aux autres une fois pour toutes. La perception personnelle est formée par l’activité synthétique actuelle qui, par un effort continuel répété à chaque instant, ramène à l’unité du moi tous les phénomènes qui se produisent, quelle que soit leur origine. » Pode ser que hoje eu não seja um eu, mas eu eu já fui.

« Cette force de synthèse peut être aujourd’hui affaiblie, rendre le sujet incapable de percevoir telle sensation auditive ou telle sensation tactile et cependant, par un automatisme d’origine ancienne qui n’a pas été détruit, cette sensation non perçue peut amener d’autres images faisant partie de celles que le sujet perçoit encore. »

3.9 LES POSSESSIONS

« un perpétuel état de terreur ou de tristesse »

« Avoir son corps dans l’attitude de la terreur, c’est sentir l’émotion de la terreur, et, si cette attitude est déterminée par une idée subconsciente, le malade n’aura dans la conscience que l’émotion seule sans savoir pourquoi il és ému. »

« Je pleure et je ne sais pourquoi, cela me rend triste sans raison et c’est ridicule » Léonie. « c’est la 2e personne qui est désolée d’être partie du Havre et qui provoque les larmes. »

« (Marie) La scène se terminait par plusieurs vomissements de sang après lesquels tout rentrait à peu près dans l’ordre. Après une ou 2 journées de repos, M. se calmait et ne se souvenait de rien. » « des poses de terreur »

« Elle resta ainsi 7 mois à l’hôpital sans que les diverses médications et l’hydrothérapie qui furent essayées eussent amené la moindre modification. D’ailleurs les suggestions thérapeutiques, en particulier, les suggestions relatives aux règles, n’avaient que de mauvais effets et augmentaient le délire. » « Je songeai alors à la mettre dans un somnambulisme profond, capable, comme on l’a vu, de ramener des souvenirs en apparence oubliés, et je pus ainsi retrouver la mémoire exacte d’une scène qui n’avait jamais été connue que très incomplètement. »

« À l’age de 13 ans, elle avait été réglée pour la première fois, mais, par suite d’une idée enfantine ou d’un propos entendu et mal compris, elle se mit en tête qu’il y avait à cela quelque honte et chercha le moyen d’arrêter l’écoulement le plus tôt possible. Vingt heures à peu près après le début, elle sortit en cachette [esconderijo] et alla se plonger dans un grand baquet [banheira] d’eau froide. Le succès fut complet, les règles furent arrêtées subitement, et, malgré un grand frisson qui survint, elle put rentrer chez elle. Elle fut malade assez longtemps et eut plusieurs jours de délire. Cependant tout se calma et les menstrues ne reparurent plus pendant 5 ans. Quand elles ont réapparu, elles ont amené les troubles que j’ai observés. Or, si l’on compare l’arrêt subit, le frisson, les douleurs qu’elle fait en somnambulisme et qui, d’ailleurs, a été confirmé indirectement, on arrive à cette conclusion : Tous les mois, la scène du bain froid se répète, amène le même arrêt des règles et un délire qui est, il est vrai, beaucoup plus fort qu’autrefois, jusqu’à ce qu’une hémorrhagie supplémentaire ait lieu par l’estomac. Mais, dans sa conscience normale, elle ne sait rien de tout cela et ne comprend même pas que le frisson est amené par l’hallucination du froid ; il est donc vraisemblable que cette scène se passe au-dessous de cette conscience et amène tous les autres troubles par contre-coup. »

« Il fallut la ramener par suggestion à l’âge de 13 ans, la remettre dans les conditions initiales du délire, et alors la convaincre que les règles avaient duré 3 jours et n’avaient été interrompues par aucun accident fâcheux. Eh bien, ceci fait, l’époque suivante arriva à sa date et se prolongea pendant 3 jours, sans amener aucune souffrance, aucune convulsion ni aucun délire. »

« les crises de terreur étaient la répétition d’une émotion que cette jeune fille avait éprouvée en voyant, quand elle avait 16 ans, une vieille femme se tuer en tombant d’un escalier, le sang dont elle parlait toujours dans ses crises était un souvenir de cette scène ; quant à l’image de l’incendie, elle survenait probablement par association d’idées, car elle ne se rattache à rien de précis. »

« Enfin je voulais étudier la cécité d’oeil gauche, mais Marie s’y opposait lorsqu’elle était éveillée, en disant qu’elle était ainsi depuis sa naissance. Il fut facile de vérifier, au moyen du somnambulisme, qu’elle se trompait : si on la change en petit enfant de 5 ans suivant les procédés connus, elle reprend la sensibilité qu’elle avait à cet âge et l’on constate qu’elle y voit alors très bien des 2 yeux. C’est donc à l’âge de 6 ans que la cécité a commencé. (…) un incident futile. On l’avait forcée, malgré ses cris, à coucher avec un enfant de son âge qui avait de la gourme [impetigo] sur tout le côté gauche de la face. »

« Je la ramène [em hipnose, artificialmente] avec l’enfant dont elle a horreur, je lui fais croire que l’enfant est très gentil et n’a pas la gourme, elle n’en est qu’à demi-convaincue. Après 2 répétitions de la scène, j’obtiens gain de cause et elle caresse sans crainte l’enfant imaginaire. La sensibilité du côté gauche réapparait sans difficulté et, quand je la réveille, Marie voit clair de l’oeil gauche. »

« j’ai trouvé cette histoire intéressante pour montrer l’importance des idées fixes subconscientes et le rôle qu’elles jouent dans certaines maladies physiques aussi bien que dans les maladies morales. »

« N’est-il pas raisonnable quand il se dit possédé par un esprit, persécuté par un démon qui habite au dedans de lui-même ? Comment douterait-il, quand cette 2e personnalité, empruntant son nom aux superstitions dominantes, se déclare elle-même Astaroth, Léviathan ou Belzébuth ? La croyance à la possession n’est que la traduction populaire d’une vérite psychologique. »

« Certaines femmes sont même assez fières de ce détraquement de leur personnalité et se plaisent à consulter, sur toutes les affaires de la vie, ‘la petite affaire qu’elles croient avoir au coeur ou à l’estomac et qui leur donne de bons conseils’. (Deleuze, Mémoire sur la faculté de prévision, 1836) »

O SÓCRATES DOS TEMPOS PÓS-PSIQUIÁTRICOS: « Un sujet ne répondait jamais aux questions, disait Charpignon, sans dire : ‘Je vais consulter l’autre…, c’est le génie chargé de me guider et de m’éclairer.’ »

Paul Richer, La grande hystérie, (op. cit.) para histórias de loucura coletiva como a do convento de Loudun, em que todos os monges sentiam-se possuídos e assombrados por espíritos malignos. + Bérillon, Dualité cérébrale, p. 102 (ib., o depoimento do padre Surin) + Regnard, La sorcellerie, 1887.

Quelquefois il y a plusieurs esprits dans une même personne, les uns bons, les autres mauvais, qui se disputent entre eux : ‘Un enfant est possédé par 2 esprits, l’un mauvais, l’autre bon ; dans ses crises, sa bouche changeant de ton, parlait successivement pour l’un et pour l’autre.’ (Maudsley) »

« Nous n’avons pas cherché dans ce chapitre des lois nouvelles, nous avons simplement constaté des applications nombreuses, et quelquefois compliquées, de lois anciennes. »

4. LA FAIBLESSE ET LA FORCE MORALES

4.1 LA MISÈRE PSYCHOLOGIQUE

« Les sujets hypnotisables, ainsi que les médiums spirites, puisque nous savons qu’ils sont identiques, sont-ils des malades ou des gens bien portants ? Cette question a donné lieu aux controverses les plus vives et les plus embarrassantes. (…) Pour ceux-là, un somnambulisme est une crise d’hystérie; pour les autres, c’est une forme du sommeil naturel. (…) nous essayerons seulement, sans parler d’une manière générale, de montrer à quelle position intermédiaire nos propres observations nous ont amené. »

« Il est même difficile de comprendre comment certains auteurs ont pu penser que les manifestations hystériques rendaient les expériences difficiles. » « A mon avis, les plus belles études sur les somnambulismes ou existences successives, sur les suggestions, sur les actes subconscients ou existences simultanées, sont faites sur des hystériques, et afin de fournir des exemples nets et faciles à étudier je n’ai guère cité dans cet ouvrage que des expériences accomplies avec ces malades. »

« Le meilleur signe du retour à la santé parfaite c’est la cessation de l’aptitude au somnambulisme. »

Despine

« Lors de mes premières études sur Lucie, j’ignorais absolument cette loi ; je cherchais, dans l’intérêt du sujet et pour la commodité même de mes expériences, à faire disparaître les symptômes hystériques, mais je comptais bien conserver le somnambulisme. Aussi ai-je été fort désappointé quand il a fallu constater que mes expériences devenaient impossibles, car le sujet n’avait plus d’actes subconscients et ne pouvait plus être hypnotisé. (…) 18 mois plus tard, elle vint se plaindre de quelques troubles nerveux, migraines, cauchemars, etc. : l’anesthésie était revenue et elle fut hypnotisée en un instant. »

« Trois hystériques qui avaient, comme je le savais, des crises fort différentes les unes des autres, avaient été réunies dans la même salle. Je fus tout étonné de voir qu’elles avaient confondu leurs symptômes et qu’elles avaient maintenant toutes les 3 la même crise, avec les mêmes mouvements et le même délire, les mêmes invectives contre le même individu. »

« L’ivresse de l’alcool, comme nous en avons montré un exemple curieux, rend un homme plus suggestible et plus automatique qu’une somnambule. Les études de Moreau de Tours sur l’ivresse du haschich sont encore plus précises sur ce point. (…) Les époques menstruelles, comme je l’ai constaté chez Lucie et chez Marie, rendent de nouveau hypnotisables et suggestibles des personnes qui ne l’étaient plus. Enfin, les impulsions et les idées fixes sont bien des formes de désagrégation mentale et de suggestion, et elles se présentent chez une foule d’individus qui ne sont pas des névropathes, au sens précis du mot. »

« Que l’on fasse une expérience simple, que l’on prenne une vingtaine de personnes, des hommes de préférence, de 30 à 40 ans, bien portants au physique et au moral, n’ayant aucune hérédité, ni aucun antécédent névropathique, [isso está cada vez mais difícil] et que, sans procédés fatigants qui commencent par les rendre malades, on essaye de provoquer chez eux le somnambulisme caractéristique ou l’écriture automatique. Si on obtient ces phénomênes sur la moitié seulement de ces personnes, nous nous rendrons très volontiers et nous reconnaîtrons que le somnambulisme est normal. »

« Ce n’est pas l’hystérie qui constitue un terrain favorable à l’hypnotisme, mais c’est la sensibilité hypnotique qui constitue un terrain favorable pour l’hystérie et pour d’autres maladies. »

Ochorowicz, Suggestion mentale

« En quoi consiste cet état maladif : il est assez difficile de le déterminer exactement ; nous ne pouvons en avoir qu’une notion approximative par le raisonnement et par l’observation. »

« On s’apercevait que, de temps en temps, elle interrompait son discours et en commençait un autre, sans se souvenir de ce qui avait été en question auparavant. »

Saint-Bourdin, Catalepsie, descrevendo a Síndrome de Edson

« la désagrégation n’est pas une excitation, c’est une dépression et une faiblesse. C’est une illusion naturelle, en entendant un fou crier et une hystérique babiller, que de les croire excités. » (Polêmica com Moreau de Tours)

« On sait que les hystériques, comme les anémiques, ne mangent pas et n’assimilent [no sentido psicológico] pas ; comme dans ces cercles vicieux pathologiques qui sont fréquents, c’est là à la fois le principe et la conséquence de leur mal. » Daí deriva o quadro de misère psychologique ou miséria psicológica (descrito também por Durkheim quase à mesma época), conquanto ele a chamaria de miséria neurastênica.

« la force morale de l’individu n’est pas en rapport avec son âge, avec le nombre de sensations qu’il éprouve et le nombre d’images que sa mémoire renferme, c’est un esprit d’enfant dans un corps de femme. »

« L’hystérique a des sens subtils qui s’exercent sans cesse et une riche mémoire, ou vivent indéfiniment toutes les images du passé et tous les systèmes psychologiques, organisés autrefois, mais elle n’a qu’un pouvoir ordonnateur actuel analogue à celui de l’enfant et de l’idiot : aussi ne sait-elle que faire de sa fortune. » Diferente também de Bread, aqui não vejo uma analogia com a “economia diária” do sujeito nervoso ou neuropata, mas algo mais grave: com minhas limitações fisiológicas, ou herdadas psiquicamente, ou seja, produto de pais decadentes, o meu grau superior de intelecção e meu talento… tudo isso é posto em xeque, é deitado a perder, porque eu não tenho os meios, eu não tenho o corpo físico necessário, para suportar e administrar tamanho poder/saber. Fui longe demais, até mais longe do que minha linhagem me permitiria normalmente, então começo a ratear depois do grande amadurecimento dos 18-22 anos. Em suma, vivo adoecido, sábio e estagnado ao mesmo tempo, sem poder sair desse quadro congelado – e o que é duplamente mais torturante, ciente dele eu mesmo! Não tenho o cinismo dos carreiristas nem a energia de sobra demandada do artista para triunfar em uma sociedade que nega a subsistência via arte o tempo todo – limbo infernal.

« c’est le même administrateur très médiocre, à la tête d’une grande usine, qui oublie ses fonctions et qui laisse les employés et les machines s’amuser et s’affoler sans surveillance. (…) Le même état de misère psychologique, durant sans cesse, permet au jeu automatique des éléments de prendre toutes les formes. Un autre fait caractéristique, c’est qu’il est très facile de modifier artificiellement la nature des accidents ou la forme que l’automatisme prend à tel ou tel moment, car, en raison de sa faiblesse, l’esprit du sujet est d’une plasticité extraordinaire.

Supprimer l’existence personnelle que le sujet a en ce moment et la remplacer par une autre, ce n’est pas une chose bien difficile, puisque cette forme d’existence n’est qu’une centralisation très instable d’un petit nombre d’éléments pris presque au hasard au milieu d’un grand nombre d’autres qui ne demandent qu’à agir et à se manifester. »

« …la fatigue causée par une fixation prolongée seront de bonnes occasions, pour les autres éléments jusqu’alors incohérents, de se centraliser un peu à leur tour et de prendre l’avantage » Poderíamos aplicar o mesmo raciocínio à mania?

« on peut aussi … exciter un des éléments de cet état nouveau qui existe au-dessous de la conscience actuelle. Il suffisait de parler de vipère à Louis V…, ou de grenouilles à une malade du Dr. Pitres, pour amener la crise d’hystérie ; il suffit de mettre les bras de Lucie dans la posture de la terreur pour provoquer la grande crise d’hystéro-épilepesie. » A visão e audição do Pai Mau: gatilho do modo “sobrevivendo na trincheira”. PTSD.

« le point de départ des accidents … [de] l’état de misère psychologique » F. leu Janet e o perverteu. Achou sua mina de ouro (pseudanálise).

PONTO DE VISTA PESSIMISTA SOBRE A POSSIBILIDADE DA CURA: « …Très souvent à l’hérédité; ce n’est pas seulement en psychologie que la richesse et la pauvreté seraient héréditaires. Peut-être à un état d’affaiblissement physique survenu accidentellement, comme dans la convalescence de certaines maladies. Peut-être à d’autres causes morales que nous ne connaissons pas. Sauf des cas très rares, il ne me semble pas que l’on puisse arriver à guérir par suggestion l’état même de misère psychologique qui est une condition essentielle de l’exécution des suggestions. Mais les progrès de la médecine et de la psychologie unies désormais permettront peut-être de mieux comprendre et de mieux traiter cet état maladif. [É aqui em que não avançamos nada.»

« Cet état, au lieu d’être constitutionnel et permanent, peut être accidentel et passager. Une femme peut être normalement forte et sensée et tomber, à certains moments, dans un état de faiblesse irritable avec la distraction, les anesthésies systématisées et la suggestibilité caractéristiques. Un homme, qui d’ordinaire résisterait à toute idée fausse, peut prendre un esprit étroit et suggestible, dans un état de fatigue, de sommeil ou d’ivresse. L’épuisement consécutif à de grands efforts d’attention, à des travaux intellectuels prolongés, a souvent ce résultat. » A morte de um pai abusivo já foi a cura de alguém?! Bêbado de livros…

« Une des causes les plus curieuses et les plus fréquentes d’une misère psychologique momentanée, c’est aussi l’émotion, dont la nature est encore si mal connue. »

« Hack-Tuke [Le corps et l’esprit] cite à plusieurs reprises des individus qui sont devenus aveugles ou sourds à la suite d’une forte émotion. »

« C’est en vain que les circonstances fâcheuses disparaissent et que l’esprit essaye de reprendre sa puissance accoutumée, l’idée fixe, comme un virus malsain, a été semée en lui et se développe à un endroit de sa personne qu’il ne peut plus atteindre, elle agit subconsciemment, trouble l’esprit conscient et provoque tous les accidents de l’hystérie ou de la folie. »

« On a amené a l’hôpital une jeune fille de 17 ans qui a commencé des crises de terreur parce qu’elle a été suivie la nuit dans les rues par un inconnu au moment de ses époques ; c’est au même moment que Marie a fait les sottises qui ont laissé une si forte marque sur sa vie ; les exemples de ce genre sont innombrables. »

« C’est pour cela que les idées fixes de ces malheureux sont rattachées à leur profession, aux livres qu’ils ont l’occasion de lire, aux paroles qu’ils entendent dans leurs moments de faiblesse. » Terrível…

« C’est l’actualité qui décide des formes de la folie, parce que ce sont les circonstances actuelles qui les provoquent, mais ces idées ne créent ni la folie ni la prédisposition à la folie, elles n’expliquent pas cet état nerveux, cette hyperesthésie physique et morale que l’hérédité a déposée au fond de leur être et qui finit tôt ou tard par emporter et la raison et la conscience. »

Moreau de Tours, Psychologie morbide

« L’idée fixe ne survient pas sans raison, c’est le résultat d’une modification profonde, radicale de toute l’intelligence. [2008…] C’est une faute énorme de psychologie que de la confondre avec l’erreurLe fou ne se trompe pas, il agit dans uns sphère intellectuelle différente de la nôtre qu’on ne peut pas plus redresser, que la veille ne peut redresser les rêves… Les idées fixes sont les partie détachées d’un état de rêve qui se poursuit dans la veille… C’est un rêve partiel… »

ibid.

« …c’est l’idée principale d’un rêve qui survit au rêve qui l’a engendrée. » Há algo especial em eu ter tido o « sonho perfeito » justo ao terminar a UnB e no intervalo de poucos dias entre a diplomação e a entrada em exercício na escola… Com a morte dele.

« Vous ne modifiez pas de la même manière un aliéné, [comparado ao histérico] parce que vous ne l’étudiez d’ordinaire que dans la période où son délire est organisé et quand l’intelligence est revennue à un état d’équilibre stable qu’on ne peut déranger. »

« Ainsi, j’aurais essayé d’enivrer una 2e fois le malade d’Érasme [Erasmus] Darwin [avô de Charles Darwin], afin de rechercher si l’on ne pourrait pas, dans une nouvelle ivresse, avoir plus de pouvoir sur l’idée fixe. On pourrait aussi attendre quelquefois des états périodiques qui ramèneraient les conditions initiales du délire. Mais on comprend que, de toutes manières, on se trouve en présence de toutes autres difficultés. Je persiste cependant à croire que la psychologie pathologique, qui fait depuis quelques années ses premiers pas, réserve des secours inattendus pour le soulagement des aliénés. » Maldito século XX, maldita psicanálise! Destruiu todas as esperanças e experiências de uma ciência em seu berço!

E a miséria psicológica nada mais é que epifenômeno derradeiro de uma miséria social e cultural profunda!

4.2 LES FORMES INFÉRIEURES DE L’ACTIVITÉ NORMALE

« Recherchons rapidement dans la vie normale les faits analogues à ceux que nous avons étudiés et qui semblent être soumis aux mêmes lois. »

« Pas plus que le somnambule suggestible, le rêveur ne s’étonne, ne doute de ce qu’il pense ; [mais ou menos…] il subit sans résistance l’automatisme des éléments auxquels son ésprit est reduit. Un léger bruit, une lueur, un pli du drap, un état du corps provoquent la suggestion ; la disposition des organes de telle ou telle manière propre à exprimer une émotion ou une passion, donne au rêve sa direction générale, et tout se passe comme dans un automatisme régulier. Nous avons également, même pendant la veille normale, des phénomènes psychologique qui nous échappent entièrement. »

Análise, no homem «normal», e em vigília, do(a)(s):

– distração;

– instinto;

– hábito;

– paixão.

Distração

« Nous disons qu’un homme est distrait quand il ne voit pas ou n’entend pas une chose qu’il devrait voir ou entendre, et ensuite quand il accomplit sans le savoir des actes qu’il n’aurait pas consenti à accomplir s’il les avait connus complètement.

Un homme préocuppé chassera une mouche de son front sans la sentir, répondra à des questions qu’il n’a pas entendues, ou, comme Biren, duc de Courlande, qui avait l’habitude de porter à sa bouche des morceaux de parchemin, [!] détruira un important traité de commerce sans le voir. (Garnier, Facultées de l’âme, I) Qui n’a entendu parler des exploits de ces personnages qui, lorsqu’ils parlent à table, versent de l’eau indéfiniment jusqu’à inonder les convives ou continuent à mettre du sucre dans leur tasse jusqu’à la remplir ? les anecdotes de ce genre sont innombrables. »

« Journée de misère et d’abattement extrême, écrit Maine de Biran dans ce journal si curieux où il fait sur lui-même des études de psychologie expérimentale, j’ai dîné chez le chancelier, je me suis trouvé dans un état de trouble, d’embarras, de surdité momentanée… Je suis comme un somnambule au milieu de ce monde gai et léger, mécontent des autres parce que je le suis de moi-même. »

Finalmente: « Mais la même distraction pourra être due à une concentration excessive de la pensée, d’un autre côté, à une grande puissance d’attention qui sans retrécir la pensée véritablement déplace le champ de la conscience. »

« je vois trop au dedans pour bien voir au dehors. »

Instintos

« On entend dans le bruit des cloches des paroles scandées, on voit les personnages auxquels on pense, ou bien on fait des gestes brusques et l’on parle tout haut. Tout ces réflexes psychiques ont été étudié ailleurs quand ils étaient isolés et grossis, il suffit de rappeler qu’ils jouent aussi un rôle considérable dans l’attitude et la physionomie de l’homme le plus normal [ou genial]. (…) les actes instinctifs qui sont assez rares chez l’homme, tandis qu’ils jouent un rôle important chez l’animal. »

Lemoine, Habitude et instinct

Espinas, L’évolution mentale chez les animaux

Hábito, costume ou memória

« Les phénomènes conscients ne sont pas supprimés, car nous pouvons retrouver la conscience des choses que nous conservons dans le souvenir, ou que nous faisons par habitude, mais elle est négligée, comme si ces phénomènes suffisamment exercés pouvaient être sans inconvénient livrés à eux-mêmes. » Exemplo: fumar e jogar o cigarro fora. “Quando foi que o fiz? Nem me dei conta!”

O homem distraído se diz: traiu!

pour trouver l’orthographe d’un mot que nous ignorons, nous laissons notre plume [ou mãos no teclado] écrire automatiquement, à peu près comme le médium interroge son esprit. »

« Je me rappelle, écrit Erasme Darwin, avoir vu cette jeune et jolie actrice qui répétait sa partie de chant, en s’accompagnant du forte-piano sous les yeux de son maître, avec beaucoup de goût et de délicatesse ; j’aperçus sur sa figure une émotion dont je ne pus définir la cause ; à la fin, elle fondit en larmes ; je vis alors que, pendant tout les temps qu’elle avait employé à chanter, elle avait contemplé son serin qu’elle aimait beaucoup, qui paraissait souffrir et qui, dans ce moment, tomba mort dans sa cage. » Mesmo princípio de aprender a ler e entender a leitura e ouvir a música e apreciar a música simultaneamente, para não dizer do escrever (se bem que consigo me absorver bem mais, ou melhor, não consigo deixar de me absorver quase exageradamente no ato da escrita, sem atenção flutuante…). Agora entendo o talento musical de tocar guitarra e cantar ao mesmo tempo, por exemplo! Nada extraordinário para um grande guitarrista e/ou cantor que já ensaiou o suficiente!

Paixão

La plus curieuse manifestation de l’automatisme psychologique chez l’homme normal est la passion qui ressemble, beaucoup plus qu’on ne se le figure généralement, à la suggestion et à l’impulsion et qui, pendant un moment, rabaisse notre orgueil en nous mettant au niveau des fous. (…) Tout le monde sait que la passion ne dépend pas de la volonté et ne commence pas quand nous voulons; pour prendre un exemple, il ne suffit pas de le vouloir pour devenir amoureux. » Minha incapacidade após certos anos: denota fraqueza, i.e., miséria psíquica/psicológica? Ou controle do incontrolável (imponderável)?!

De même, c’est en vain qu’on s’exciterait soi-même à l’ambition ou à la jalousie ; on aurait beau déclarer ces passions utiles ou nécessaires, on ne pourrait pas les éprouver. »

« la passion ne peut commencer en nous qu’à certains moments, lorsque nous sommes dans une situation particulière. On dit ordinairement que l’amour est une passion à laquelle l’homme est toujours exposé et qui peut le surprendre à un moment quelconque de sa vie, depuis 15 ans [haha!] jusqu’à 75 [haha!]. Cela ne me parait pas exact et l’homme n’est pas toute sa vie, à tout moment, susceptible de devenir amoureux. Lorsqu’un homme est bien portant au physique et au moral, qu’il a la possession facile et complète de toutes ses idées, il peut s’exposer aux circonstances les plus capables de faire naître en lui une passion, mais il ne l’éprouvera pas. Les désirs seront raisonnés et volontaires, n’entraînant l’homme que jusqu’où il veut bien aller et disparaissant dès qu’il veut en être débarrassé. Au contraire, qu’un homme soit malade au moral, [também não exageremos tanto!] que, par suite de fatigue physique ou de travaux intellectuels excessifs, ou bien après de violentes secousses et des chagrins prolongés, il soit épuisé, triste, distrait, timide, incapable de réunir ses idées, déprimé en un mot, et il va tomber amoureux ou prendre le germe d’une passion quelconque à la première et à la plus futile occasion. » Nem para isso eu servi por vários anos – o que explicaria? Que eu não estava no fundo do poço como acreditava?! Sobre algumas paixões colegiais, concordo, no entanto!

Les romanciers, quand ils sont psychologues, l’ont bien compris : ce n’est pas dans un instant de gaieté, [pode sim acontecer] de hardiesse et de santé morale que commence l’amour, c’est dans un instant de tristesse, de langueur et de faiblesse. Il suffit alors de la moindre chose ; la vue d’un visage quelconque, un geste, [hmm] un mot qui nous aurait l’instant précédent laissés tout à fait indifférents, nous frappe et devient le point de départ d’une longue maladie amoureuseBien mieux, un objet, qui n’avait fait en nous aucune impression, dans un instant où notre esprit mieux portant n’était pas inoculable, a laissé un souvenir insignifiant qui réapparaît dans un moment de réceptivité morbide. Cela suffit, le germe est maintenant semé dans un terrain favourable, il va se développer et grandir. »

¹ Chamar de doença é já defeito ou conseqüência da única doença nisso tudo: o Romantismo europeu.

Il y a d’abord, comme dans toute maladie virulente, une période d’incubation ; l’idée nouvelle passe et repasse dans les rêveries vagues de la conscience affaiblie, puis semble, pendant quelques jours, disparaître et laisser l’esprit se rétablir de son trouble passager. Mais elle a accompli un travail souterrain, elle est devenue assez puissante pour ébranler le corps et provoquer des mouvements dont l’origine n’est pas dans la conscience personnelle. Quelle est la surprise d’un homme d’esprit quand il se retrouve piteusement sous les fenêtres de sa belle où ses pas errant l’ont transporté sans qu’il s’en doute, quand au milieu de son travail il entend sa bouche murmurer sans cesse un nom toujours le même ! »

« Tel est la passion réele, non pas idéalisée par des descriptions fantaisistes, mais ramenée à ses caractères psychologiques essentiels. »

« Si l’on peut parler d’une autre passion bien plus minime, la passion du tabac chez un fumeur, nous trouvons dans un article de M. Delboeuf une confession qui a toute la valeur d’un document psychologique : ‘Le pot à tabac est à quelque distance de moi à sa place habituelle, je le sens qui m’attire. Tout à coup je me lève et me dirige inconsciemment vers lui. Je m’aperçois de ma faiblesse, je me rassieds et reprends ma lecture. Voilà que machinalement ma main plonge dans me poche et en tire le cahier à cigarettes. Irrité contre moi, je remets violemment le cahier à sa place,’ etc. » Delboeuf, Le sentiment de l’effort, Revue Philosophique, 1882, II, p. 516.

j’ai fu mer

fui mer

fut, chère

« On aura beau nous démontrer d’une manière irréfutable que cet amour est absurde, que cette frayeur est ridicule, nous en serons convaincus, mais nous serons toujours amoureux et effrayés. La passion se guérit quelquefois par sa satisfaction, quand l’idée fixe a amené définitivement l’acte auquel elle correspond, et disparaît par épuisement ; elle peut aussi se guérir par une secousse nouvelle qui bouleverse encore les couches de la conscience et nous permet de reprendre possession des idées émancipées. » Águas em que se banha duas vezes, Hera & Clito ?

« Nous n’avons vraiment pas besoin de prendre du haschisch comme faisait Moreau de Tours pour savoir par nous-mêmes ce qu’est la folie : qui donc peut se vanter de n’avoir jamais été fou ? »

« la lutte ‘des 2 hommes’ qui se partagent notre coeur et conscience a été décrite dans toutes les religions et dans toutes les philosophies. »

« Que la peinture est un art sublime, pensait mon âme, heureux celui que le spectacle de la nature a touché…… Pendant que mon âme faisait ces réflexions, l’autre allait son train, et Dieu sait où elle allait ! — Au lieu de se rendre à la cour, comme elle en avait reçu l’ordre, elle dériva tellement sur la gauche, qu’au moment où mon âme la rattrapa, elle était à la porte de Mademoiselle de Hautcastel, à un demi-mille du palais royal. Je laisse à penser au lecteur ce qui serait arrivé, si elle était entré toute seule chez une aussi belle dame….. Je donne ordinairement à ma bête [segund’alma, a paixão] le soin des apprêts de mon déjeuner ; c’est elle qui fait griller mon pain et le coupe en tranches. Elle fait à merveille le café et le prend même très souvent sans que mon âme s’en mêle, à moins que celle-ci ne s’amuse à la voir travailler…… J’avais couché mes pincettes sur la braise pour faire griller mon pain ; et, quelque temps après, tandis que mon âme voyageait, voilà qu’une souche enflammée roule sur le foyer. — Ma pauvre bête porta la main aux pincettes et je me brûlai les doigts. (…) là, ma main s’était emparée machinalement du portrait de Mme de Hautcastel et l’autre, s’amusait à ôter la poussière qui le couvrait. Cette occupation lui donnait un plaisir tranquille, et ce plaisir se faisait sentir à mon âme, quoiqu’elle fût perdue dans les vastes pleines du ciel…….. Toute la figure parut renaître et sortir du néant. Mon âme se précipita du ciel comme une étoile tombante ; elle trouva l’autre dans une extase ravissante et parvint à l’augmenter en la partageant… (…) C’est un parfait honnête homme que M. Joannetti (son domestique). Il est accoutumé aux fréquents voyages de mon âme, et ne rit jamais des inconséquences de l’autre ; il la dirige même quelquefois lorsqu’elle est seule : en sorte qu’on pourrait dire alors qu’elle est conduite par 2 âmes. Lorsqu’elle s’habille, p.ex., il m’avertit par un signe qu’elle est sur le point de mettre ses bas à l’envers, ou son habit avant sa veste. Mon âme s’est souvent amusée à voir le pauvre Joannetti courir après la folle sous les berceaux de la citadelle, pour l’avertir qu’elle avait oublié son chapeau, une autrefois son mouchoir ou son épée. » Spencer, Psychologie, I.

A BELA & A FERA: SOLIPSISMO!

« Décrire davantage ces phénomènes serait renouveler des études déjà faites »

4.3 LE JUGEMENT ET LA VOLONTÉ

« Il est fort difficile, je ne dis même pas d’expliquer la nature de la volonté, mais même de reconnaître et de décrire un acte volontaire, car les psychologues sont loin d’être d’accord sur les signes qui le caractérisent. »

« C’est dans le même sens que beaucoup de physiologistes, comme Bastian, disent qu’un acte volontaire est simplement précédé par l’idée ou la représentation du genre de mouvement à exécuter. » « Si on admet cette définition, tous les mouvements possibles exécutés par un être vivant seront des mouvements volontaires : ainsi que toutes nos études l’ont démontré, il n’y a pas d’action même chez les somnambules, même chez les cataleptiques, qui ne soit précédée ou mieux accompagnée par la représentation qui amène l’action et les mouvements. »

« L’hésitation provient simplement de la lutte de plusieurs idées qui s’opposent les unes aux autres avant que la plus forte n’ait triomphé, et cette lutte peut exister dans les actions mécaniques comme dans les autres. »

« la théorie bien connue du sentiment de l’effort » « après les études de M. William James (The feeling of effort), qui ne me semblent pas avoir été réfutées, je ne crois pas qu’il y ait encore lieu de discuter cette théorie. Le sentiment particulier dont parle Rey Régis est un ensemble de sensations musculaires qui existent dans tous les mouvements volontaires ou non, mais qui sont toutes particulières quand nous portons nous-mêmes le poids de notre bras et surtout quand nous le chargeons d’un objet. »

« L’acte volontaire ne pouvant pas s’intercaler entre l’idée et le mouvement qui sont toujours indissolublement unis, c’est dans l’idée elle-même, dans le phénomène intellectuel proprement dit qu’il faut le chercher. »

« les jugements ou idées de rapports sont, dans l’intelligence, des phénomènes différents des sensations, des images et des perceptions, qui ne sont que des groupes d’images associées entre elles. » (sempre a velha distinção a priori x experiência)

« L’idée de ressemblance, p.ex., n’est pas une sensation, ni una image, car elle n’est ni rouge, ni bleue, ni chaude, ni sonore ; elle n’est pas non plus un groupe d’images, car une addition de ce genre formerait une image nouvelle et la ressemblance ne peut en aucune façon être représentée. » « La ressemblance à laquelle je pense en voyant Pierre et Paul n’est identique ni à Pierre ni à Paul »

« le jugement esthétique n’est pas identique à une mosaïque de sensations agréables juxtaposées. Que l’on appelle ces phénomènes nouveaux des réflexions, comme fait Maine de Biran, ou des aperceptions, comme les nomme Wundt après Leibniz, ou simplement des jugements, peu importe, pourvu qu’on ne les confonde pas avec des phénomênes psychologiques tout différents. »

« Je ne fais que répéter les conclusions brillamment soutenues par plusieurs auteurs et en particulier par M. Rabier. » Como alguém tão brilhante pôde recair tanto no esquecimento? Não me parece um autor original!

« nous jugeons [que l’acte est] en plusutile ou nécessaire. »

« Au lieu d’agir semblablement dans les cas semblables, disait M. Fouillée, par un pur automatisme sans aucune conscience de la similitude comme la bête, il agira semblablement dans les cas semblables avec conscience de la similitude, c’est-à-dire avec un sentiment de la ressemblance assez fort pour être réfléchi et aperçu. »

« les paroles sont déterminées par les images visuelles ou auditives du mot ‘ressemblance’ et non par l’idée de rapport qu’il exprime. »

« …synthétisent d’une manière nouvelle… »

« ‘L’effort volontaire’ consisterait justement dans cette systématisation »

« La faiblesse de synthèse que nous avions reconnue chez les malades ne leur permet même pas complètement les synthèses élémentaires qui forment les perceptions personnelles » + « synthèses plus élevées »

« Les auteurs qui ont fait une étude si complète sur le mécanisme par lequel l’attention se développe et se conserve n’ont peut-être pas insisté suffisamment sur ce rôle du jugement dans l’attention : car c’est son intervention qui, à notre avis, caractérise la véritable attention volontaire. » « l’activité volontaire tend à faire régner l’unité dans notre esprit et tend à rendre réel l’idéal des philosophes, l’âme une et identique. »

Todo julgamento ou juízo é moral e transcendental. (resumo das próximas páginas)

Il n’y a rien de plus libre, je ne dis pas d’une manière absolue ce qui ne signifie rien, mais relativement à la raison et à la science humaine, que ce qui ne peut pas être prévu, que ce dont la prévision est incompréhensible pour nous. » A liberdade está nos olhos de quem vê. Obviamente, como o mundo é humano, somos livres. Se houvesse um “terceiro olho cósmico e neutro”, isto é, um tipo de vida fora da vida, perceber-nos-ia como mero fatum.

« Une grande découverte scientifique qui bouleverserait la science ne peut pas être prévue par la science actuelle, puisque, par définition, elle en est la négation. (…) C’est (…) au moins dans sa forme et dans la nouvelle synthèse imposée aux éléments, une véritable création ex nihilo. » Voilà! Homem, o amigo do Nada. O nada, e o tudo, por ser o nada!

C’est une illusion des esprits faibles que de croire sentir au fond de leur coeur des idées sublimes qu’ils ne peuvent réaliser. » Nem todos podem ser Goethe. Aliás, ninguém a não ser Goethe!

4.4 CONCLUSION

Toute l’histoire de la folie, comme l’a soutenu Baillarger et après lui beaucoup d’aliénistes, n’est que la description de l’automatisme psychologique livré à lui-même »

« Les hommes ordinaires oscillent entre ces 2 extrêmes [genialidade e idiotia ou automatismo puro; o universal-no-individual contra o objetivo-e-onipresente-despersonalizado]

CONCLUSION (général)

« Au début des travaux de psychologie, les philosophes insistérent sur une remarque, juste en général, nécessaire peut-être, la séparation radicale de l’esprit et du corps. Cette conception, qui avait sa raison d’être, fut très utile à un certain moment et contribua puissamment à fonder les études de psychologie ; mais elle avait aussi ses exagérations et ses dangers. Les inconvénients de cette hypothèse se manifestèrent d’abord dans la métaphysique, et la difficulté d’expliquer l’action réciproque de l’âme et du corps força les philosophes à construire les systèmes les plus bizarres. (…) la philosophie modifia peu à peu sa conception primitive et, sous l’influence de Leibniz, puis sous celle de Kant, rapprocha singulièrement les 2 natures quelle avait crues inconciliables. Ce mouvement est tout naturel et se rattache parfaitement aux lois générales de l’intelligence. Pour comprendre les choses, il faut commencer par les séparer : la discrimination est le premier pas de la science ; mais, séparer, ce n’est pas comprendre, il faut ensuite réunir, synthétiser les termes différentes qu’on a distingués et établir cette unité dans la diversité, qui est propremente l’oeuvre de l’esprit humain. »

« Les théories de la faculté motrice, de l’effort musculaire, et même de la volonté me paraissent, dans la science, des suppositions absolument parallèles aux fameuses hypothèses du médiateur plastique, des causes occasionnelles ou de l’harmonie préetablie, dans la métaphysique. Ces intermédiaires cependant ne furent pas suffisants et, de plus en plus, on constate le rôle de l’activité et même du mouvement dans la pensée, et réciproquement le rôle de la pensée dans le mouvement. »

« Une théorie de l’intelligence pure, indépendante de l’organisme et du mouvement, n’est plus possible aujourd’hui, et bientôt une théorie de l’organisme purement mécanique sans intervention de la conscience sera également insoutenable. [Confirmado.] On ne peut plus considérer la psychologie et la physiologie comme indépendantes, on ne peut plus faire de l’une un appendice insignifiant de l’autre ; il faut avouer qu’il y a, entre ces 2 sciences, des rapports particuliers qui n’existent entre aucune autre, et qu’en se plaçant à des points de vue différents, elles font toutes 2 descriptions parallèles d’une seule et même chose. »

« Qui s’avisera de faire la théorie psychologique de la digestion ou la théorie physiologique du syllogisme ? » « La connaissance de l’homme, cela est certain, ne serait complète, dans une science idéale, que si chaque loi psychologique trouvait son pendant dans une loi physiologique. » « Dans l’étude qui nous occupe (…) il semble qu’aujourd’hui ce soit, pour un moment, la psychologie qui ait la prééminence, et les physiologistes eux-mêmes, ou doit le remarque comme un fait important, n’ont cru pouvoir expliquer les actes des somnambules qu’ils observaient qu’en faisant appel à des lois psychologiques. » A neurociência COM TODA A CERTEZA não é a resposta. Estamos mal…

« Cette création se répète pour chaque être nouveau qui réussit à former une conscience de ce genre, car, à proprement parler, la conscience de cet être qui vient de naître n’existait pas dans le monde et semble sortir du néant. La conscience est donc bien par elle-même, dès ses débuts, une activité de synthèse. »

NÃO HÁ ALFA OU ORIGO : « De même que la physiologie trouve l’organisation dans tous les éléments du corps organisé, la psychologie trouve déjà une organisation et une synthèse dans tous les éléments de la conscience auxquels elle peut remonter. »

APPENDICE

Alguns dos pacientes (provavelmente em grande parte apenas mulheres) citados na obra:

« Be. Jeune femme de 25. Père bien portant, mère nerveuse irritable sans accidents précis, un oncle maternel aliéné. (…) [Depois de crises histéricas aos 15, conseguiu a guérison.] Aujourd’hui, elle est bien portante [adoro a expressão!] et ne présente aucune espèce d’anesthésie ; au contraire, quand on examine chacun de ses sens séparément, elle a partout une sensibilité extrêmement fine. Le seul caractère anormal c’est une distraction très forte, un rétrécissement du champ de la conscience très visible et qui l’empêche de suivre 2 choses à la fois. »

« Blanche. Jeune fille de 18. Mère bien portante, père nerveux, bizarre, un tante maternelle aliénée. Elle est la dernière de 15 enfants dont 9 sont morts en bas âge, tous avant 3 ans, et dont les survivants sont assez bien portants. (…) [‘demi-epilética já aos 3; inteligência baixa, bulímica; cleptomaníaca em relação a comidas; come até o limite do estômago. Continua, em idade adulta, tendo convulsões análogas à epilepsia, mais raras, restritas ao eixo esquerdo. Sensibilidade só do lado direito. Progrediu pouco nos estudos.] »

D. Jeune homme de 17 ans, cas de folie impulsive dont l’observation a été rapportée plus haut. » O BARBEIRO

« G. Jeune fille agée de 17. (…) [Histérica. Histórico dos pais desconhecido.]

Não há pacientes com os dois pais sadios. Revelador.

Léonie. F. 45. [Pai e avô epiléticos. Outros alienados na família paterna. Submeteu-se a tratamentos com magnetizadores na vida pregressa. Demi-histérica. Recidiva de crises violentas à menopausa. Anestesia total do lado esquerdo. Merecedora, segundo Janet, de uma biografia – mas foi tratada por uma década por outro médico.]

Lucie. F, 20. [Pai histero-epilético. Ataques na infância. Cegueira histérica temporária aos 9. Na idade adulta, as crises duram mais tempo, cerca de 5 horas. Anestésica total, diminuição da visão e audição. Hipnose suprimiu as crises temporariamente; em seguida vários outros sintomas associados. Quase recentemente saudável, por 18 meses. Recidiva parcial: pesadelos intensos e sonambulismo natural. Cura total por fim, durante mais 12 meses. Crises espaçadas e leves, tratáveis, até última atualização.]

Marie. Jeune fille de 19. Mère nerveuse irritable, aucun renseignement sur le père. [Crises de cólera desde a infância, seguidas de falta de ar. Aos 6 anos perdeu a visão do olhos esquerdo; retardou a segunda menstruação após menarca traumática, o que gerou histeria e crises de delírio anos depois. Atualmente dá sinais de recuperação total.]

Rose. Femme de 32, appartenant à une famille dont presque tous les membres du côté maternel, grand-père maternel, mère, tante, neveux, sont des hystériques convulsifs ; son frère aussi (…) [Paciente histérica do tipo mais grave na idade adulta. Anestesia e contrações crônicas. Cegueira histérica aos 15. Grandes períodos de crise, sucedidos de grande letargia. Menarca aos 20. Teve 8 filhos, todos mortos em tenra idade, antes de completar 1 ano de vida. Daltonismo ‘adquirido’, pois não era daltônica de nascença. Recuperava movimento das pernas após sessões de hipnose. Acessos cataléticos em hipnose. Contrações curadas a duras penas. Sintomas de histeria persistentes. Alta do hospital por 3 meses, depois recaída em paraplegia (insensibilidade das pernas) e retorno também das contrações.]

« V. Femme de 28. Parents n’ayant présenté aucun accident nerveux. (…) [Aos 15 anos começou a padecer de crises de sonambulismo em que recitava um livro de história da França. Delírios. Dez anos de saúde. Aos 26 teve uma grande crise histérica após um acontecimento desestabilizador do emocional. Volta da recitação da história da França. 1 ano depois teve um ataque catalético ocasionado por um raio. À idade atual, angina, necessidade de se manter deitada. Após cura da angina, paralisia das pernas. Anestesia foi se alastrando para todo o corpo. Dores uterinas. Causa fisiológica descartada. Hipnose inútil contra a paralisia dos membros inferiores. Segunda personalidade recalcitrante. Depois de artifícios de Janet, ‘alucinada’, foi ‘convencida’, em hipnose, que podia movimentar as pernas. De repente recuperou toda a sensibilidade corpórea e cessaram dores uterinas. Um ano sem sintomas de histeria.] »

ÍNDICE DE OBRAS RECOMENDADAS, ORDENADAS PELA PRIORIDADE DA LEITURA E POR CATEGORIA

1. PSICOLOGIA & PSIQUIATRIA DINÂMICA (inclui os antecessores: padres, magnetizadores, etc.):

MYERS, F.W.H. Phantasms of the living, 1886, em 2 vols. (talvez as duas “obras” abaixo sejam apenas artigos deste livro maior!)

____. Automatic writing

____. Multiplex personality (a atual desordem de múltiplas personalidades, DID em inglês)

[sem autor] Seconde lettre de gros Jean à son évêque au sujet des tables parlantes, des possessions et autres diableries. Paris, Ledoyen, 1855 [vários parágrafos citados por J.]

MOREAU, Jacques-Joseph. Psychologie morbide. (artigo ou livro – Moreau de Tours foi o fundador dos Annales médico-psychologiques)

MAINE DE BIRAN. Essai sur les fondements de la psychologie

____. Du Hachisch et de l’aliénation mentale (disponível em archive.org/)

RIBOT, Théodule-Armand Constant. Psychologie de l’attention (Atenção para não confundir com o pintor Théodule Ribot! Aquele de que aqui se trata é o fundador da Revue philosophique e, de modo geral, da psicologia na França.)

WUNDT. Éléments de psychologie physiologique

SPENCER, H. Principles of Psychology, 2 vols.

AZAM, E. Hypnotisme, double conscience et altérations de la personnalité : le cas Félida X

RIBOT. Maladies de la personnalité

MAINE DE BIRAN. Sur la décomposition de la pensée

BALLET, Gilbert. Langage intérieur et les Diverses Formes de l’Aphasie, 1886

GILLES DE LA TOURETTE, Georges. L’hypnotisme et les états analogues du point de vue médico-légal, 1887 (melhor fonte para estudar seriamente o espiritismo)

FOUILLEÉ. La psychologie des idées-forces

CHEVREUL. De la baguette divinatoire, du pendule dit explorateur et des tables tournantes, au point de vue de l’histoire, de la critique et de la méthode expérimentale

MAURY, Alfred. Le Sommeil et les rêves

DESPINE, Prosper Pierre. Théorie physiologique de l’hallucination (1881)

____. De La Contagion Morale: Faits Démontrant Son Existence (1870)

DESAGES, Luc. De l’extase

LEFEBVRE DE LOUVAIN. Louise Lateau de Bois d’Haine. Sa vie. Ses extases. Ses stigmates, 1870

DELBOEUF. « Le sentiment de l’effort » (artigo)

JAMES, W. What is an emotion

____. The feelinf of effort

JOLY. Sensibilité et mouvement

HACK-TUKE, Le corps et l’esprit

BAILLARGER. Recherches sur les maladies mentales, 2 volumes, 1890

BASTIAN, Adolf. Beiträge zur vergleichenden Psychologie, 1868

DESPINE. Étude scientifique sur le somnambulisme, sur les phénomènes qu’il présente et sur son action thérapeutique dans certaines maladies nerveuses, 1880

LASÈGUE. Études médicales

BÉRILLON. La dualité cérébrale

HERZEN. Le cerveau et l’activité cérébrale, 1887

BASTIAN. Die Lehre vom Denken « La science de la pensée », 3 vols.

____. Le cerveau et la pensée

LUYS. Études de physiologie et de pathologie cérébrales

RICHER, Paul. Études cliniques sur l’hystéro-épilepsie ou grande hystérie (1881) [não confundir com Charles RICHET]

SAINT-BOURDIN. Traité de la Catalepsie, 1841

BUZZARD, Thomas. Clinical Lectures on Diseases of the Nervous System (pioneiro da neurologia, epilepsia e Mal de Parkinson!)

BINET. « Les altérations de la conscience chez les hystériques » (artigo)

BINET & FÉRÉ. Le magnétisme animal

CHARPIGNON. Physiologie, médecine et métaphysique du magnétisme

DELEUZE, J.P.F.. Mémoire sur la faculté de prévision (https://archive.org/details/b29344517)

____. Instruction pratique ou Introduction pratique sur le magnétisme animal, 1836

BERTRAND, A.J.F. Du magnétisme en France et des jugements qu’en ont porté les sociétés savantes, 1826 (tradução inglesa de 2004 – um dos primeiros estudiosos do mesmerismo)

____. Traité du somnambulisme et des différentes modifications qu’il présente, 1823

DAGONET. Annales médico-psychologiques

BERNHEIM. De la suggestion

RICHET. La suggestion mentale et le calcul des probabilitiés

BAIN, Alexander. Physiological Expression in Psychology (ver mais livros de Bain nas seções abaixo)

____. Mental and moral science: A compendium of psychology and ethics (archive.org)

BARAGNON. Magnétisme animal

LAFONTAINE. Art de magnétiser

GIBIER, Le spiritisme ou fakirisme occidental

CARPENTER. Mesmerism, Spiritualism, etc, Historically and Scientifically Considered

BERSOT. Mesmer. Le magnétisme et les tables tournantes

GASPARIN. Des tables tournantes

BEAUNIS, Étienne. Le somnambulisme provoqué: études physiologiques et psychologiques

CARPENTER. Principles of Mental Physiology, with their Applications to the Training and Discipline of the Mind, and the Study of its Morbid Conditions.

OCHOROWICZ. De la suggestion mentale

MAUDSLEY, Henry. Responsibility in Mental Disease, D. Appleton and Co., 1896 (disponível em archive.org/)

____. Pathologie de l’esprit

FARIA. De la cause du sommeil lucide

LEGRAND DU SAULLE. Le délire des persécutions

REGNARD. Les maladies épidémiques de l’esprit : sorcellerie, magnétisme, morphinisme, délire des grandeurs

PITRES. Des anesthésies hystériques

BERNHEIM. De l’amaurose hystérique et de l’amaurose suggestive

BARÉTY, Alexandre. Le magnétisme animal, étudié sous le nom de force neurique, rayonnante et circulante : dans ses propriétés physiques, physiologiques et thérapeutiques (archive.org)

MESNET, Urbain-Antoine-Ernest. O sonambulismo e a fascinação (já pelo fato de ter encontrado a bibliografia somente em português deve ser um livro dificílimo de achar)

WILKINSON, J.J.G. On Hypnotism (sobre a obra de James Braid)

BALL, B. La Morphinomanie

DUMONTPALLIER. Note sur l’analgésie thérapeutique locale déterminée par l’irritation de la région similaire du côté opposé du corps

MAGNAN, Valentin. De l’alcoolisme, des diverses formes de délire alcoolique et de leur traitement

BERNARD, Claude. Leçons de physiologie expérimentale appliquée à la médecine, 2 vols., 1855-56

GARNIER, Faculté de l’âme

LEMOINE. Habitude et instinct

SAURY. L’Hydroscope et le ventriloque, ouvrage dans lequel on explique d’une manière naturelle à la portée de tout le monde comment un jeune Provençal voit à travers la terre et par quel artifice ceux qu’on nomme ventriloques peuvent parler de manière que la voix paraisse venir du côté qu’ils veulent

LEURET. Du traitement des idées ou conceptions délirantes

RICHET, Charles. L’homme et l’Intelligence : fragments de psychologie et de physiologie

BERBEZ. Hystérie et traumatisme

MAGENDIE. Précis élémentaire de physiologie (2 vols.)

PINEL. De la monomanie

2. HISTÓRIA

DELEUZE, J.P.F. Histoire critique du magnétisme animal, 1813 (1819) (disponível em https://archive.org/details/histoirecritique01dele), em 2 volumes.

LANGE, Friedrich Albert. Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart. (History of Materialism and Critique of its Present Significance.), 1866 (Incluso no google drive, ver outras obras de Lange abaixo. Além disso, o curioso filósofo Fouillée tem um livro só sobre ele e Nietzsche.)

3. FILOSOFIA

LEIBNIZ. Principes de la natur et de la grâce

CONDILLAC, Étienne. Traité des sensations

BAIN, Alexander. Mental science: a compendium of psychology, and the history of philosophy, designed as a text-book for high-schools and colleges

____. The Emotions and the Will

____. The Senses and the Intellect

____. Pleasure and Pain

COLSENET. La vie inconsciente de l’esprit

BOUILLIER, Francisque. Théorie de la raison impersonnelle (1844)

LITTRÉ. Philosophie positive

PAULHAN, Fréderic. L’activité mentale et les éléments de l’esprit

4. BIOLOGIA & PROTO-ANTROPOLOGIA

MAINE DE BIRAN. Anthropologie

ESPINAS. L’évolution mentale chez les animaux

BUFFON. Discours sur la nature des animaux

____. Histoire naturelle (15 vols.)

5. BIOGRAFIAS & AUTOBIOGRAFIAS

MAINE DE BIRAN. Journal intime

6. PEDAGOGIA

DARWIN, E. A plan for the conduct of female education in boarding schools

BAIN, A. Education as a Science, 1884

7. SOCIOLOGIA

BAIN, A. Review of Herbert Spencer’s Principles of Sociology

8. FÍSICO-QUÍMICA

FARADAY, Michael. Experimental Researches in Chemistry and Physics (archive.org)

STROUMPOS. Scientific Paradoxes

9. OFTALMOLOGIA

DE WECKER, Louis. Échelle métrique pour mesurer l’acuité visuelle, 1877

10. CIÊNCIAS OCULTAS

DE MIRVILLE. Des esprits et de leurs manifestations fluidiques

DUPOTET. La magie dévoilée et la science occulte, 1852

TISSANDIER. Des sciences occultes et du spiritisme

GULDENSTUBBE. La réalité des esprits

BARON DU PREL. Philosophie der mystick

HELLENBACH, Geburt und Tod

11. PSEUDO-RELIGIÃO

Para quem tiver a cara e a coragem… Pois seria o último livro de toda essa bibliografia que eu leria… Recomendaria, no lugar, Gilles de la Tourette mais acima.

KARDEC. Livro dos médiums

12. SUGESTÕES EXTERNAS BASEADAS NA BIBLIOGRAFIA CITADA POR JANET (autores em ordem alfabética; dentro de cada autor, a ordem é a de relevância do tema):

BAIN. Elements of chemistry and electricity: in two parts (mais um polímata semi-tardio!)

____. Astronomy

____. Is There Such a Thing As Pure Malevolence?

BALL. Du délire des persécutions, ou Maladie de Lasègue

BALLET. Swedenborg; histoire d’un visionnaire aux XVIIIe siècle, 1897.

____. Psychoses et affections nerveuses, 1897.

____. Traité de pathologie mentale, 1903.

BALLET, G. & PROUST, A. L’Hygiène du neurasthénique (The Treatment of Neurasthenia)

BASTIAN. Die Vorgeschichte der Ethnologie

____. Kulturhistorische Studien unter Rückbeziehung auf den Buddhismus, 1900.

____. Der Buddhismus in seiner Psychologie, 1882.

____. Die Denkschöpfung umgebender Welt aus kosmogonischen Vorstellungen

____. Religionsphilosophische Probleme auf dem Forschungsfelde buddhistischer Psychologie und der vergleichenden Mythologie

____. Kontroversen in der Ethnologie

____. Die Völkerkunde und der Völkerverkehr

____. Allgemeine Grundzüge der Ethnologie

____. Ethnische Elementargedanken in der Lehre vom Menschen

____. Die Probleme humanistischer Fragestellungen und deren Beantwortungsweise unter den Zeichen der Zeit, 1901.

____. Vorgeschichtliche Schöpfungslieder

____. Die Seele indischer und hellenistischer Philosophie in den Gespenstern moderner Geisterseherei

____. In Sachen des Spiritismus

____. Wie das Volk denkt

____. Zur Mythologie und Psychologie der Nigritier in Guinea

____. Die samoanische Schöpfungssage und Anschließendes aus der Südsee

____. Über Klima und Acclimatisation

____. Das Geschichtsdrama am Kap der guten Hoffnung aus der Vogelperspektive

BUCHHEIT. Adolf Bastian and his universal archive of humanity. The origins of German anthropology (artigo sobre Adolf Bastian – procurar)

BUZZARD. With the Turkish Army in the Crimea and Asia Minor: A personal narrative. John Murray, London, 1915.

CARPENTER, W.B. (1839) Principles of General and Comparative Physiology, Intended as an Introduction to the Study of Human Physiology and as a Study Guide to the Persuit of Natural History.

CONDILLAC. Traité des animaux, une critique de l’Histoire naturelle de Buffon de 1749, 1755.

____. Le Commerce et le gouvernement considérés relativement l’un à l’autre, 1776. (grande polímata! suas obras completas dão 30 tomos…)

DESPINE. Psychologie naturelle. Étude sur les facultés intellectuelles et morales dans leur état normal et dans leurs manifestations anormales chez les aliénés et chez les criminels, F. Savy, 1868.

____. La Science du cœur humain, ou la Psychologie des sentiments et des passions, d’après les œuvres de Molière, F.Savy, 1884.

____. De la Folie au point de vue philosophique, ou plus spécialement psychologique, étudiée chez le malade et chez l’homme en santé, Savy, 1875.

____. Le Démon alcool, ses effets désastreux sur le moral, sur l’intelligence et sur le physique, moyens d’y porter remède, Savy, 1871.

____. Du Rôle de la science dans la question pénitentiaire, quelles sont les lumières dont la science peut éclairer cette question. (1878)

DESPINE, Charles-Humbert-Antoine (mais conhecido como Despine père). De l’emploi du magnétisme animal et des eaux minérales dans le traitement des maladies nerveuses : suivi d’une observation très curieuse de guérison de névropathie, 1840.

DICTIONNAIRE DE L’ETHNOLOGIE ET DE L’ANTHROPOLOGIE, 1991 (2008).

DUBOIS D’AMIENS & BURDIN. Histoire académique du magnétisme animal (1841).

EMMERICK, Anna Katharina & BRENTANO, Clemens. La Douloureuse Passion de Jésus-Christ – éditions F.X. de Guibert, Paris – 2004 (ISBN 2-86839-942-8). (Cette réédition récente, qui correspond à la première œuvre publiée, la seule du vivant de C. Brentano, a été adaptée par Lina Murr Nehmé.)

FARADAY. Diary (faradaysdiary.com – amostra em PDF dos 7 volumes)

____. The Correspondence of Michael Faraday (4 vols. – último volume editado em 1999)

____. The letters of Faraday and Schoenbein 1836–1862. With notes, comments and references to contemporary letters – edição digital em https://dfg-viewer.de/show/?set[mets]=https%3A//digital.ub.uni-duesseldorf.de%2Foai%2F%3Fverb%3DGetRecord%26metadataPrefix%3Dmets%26identifier%3D1334720

FOUILLEÉ. Note sur Nietzsche et Lange : « le retour éternel »

____. Critique des systèmes de morale contemporains : morale évolutionniste, morale positive, morale indépendante, morale kantienne et néo kantienne, morale pessimiste, morale spiritualiste, morale esthétique et mystique, morale théologique, 1899.

____. La France au point de vue moral

GIBERT, Camille-Melchior. Manuel des maladies vénériennes

GILLES DE LA TOURETTE. L’épilogue d’un procès célèbre (Affaire Eyraud – Bompard), Aux bureaux du Progrès médical (disponível em https://www.biusante.parisdescartes.fr/histoire/medica/resultats/index.php?do=livre&cote=51443×06)

MAINE DE BIRAN. Œuvres de Maine de Biran (ed. Pierre Tisserand) (em 9 vols.)

MAURY, Alfred. Histoire des grandes forêts de la Gaule et de l’ancienne France (1850) « une 3e édition corrigée parut en 1867 sous le titre Les Forêts de la Gaule et de l’ancienne France »

MAYO. Philosophy of Living, 1851.

____. Powers of the Roots of the Nerves in Health and in Disease, 1837.

____. Observations on Injuries and Diseases of the Rectum, 1833.

____. The Cold Water Cure, 1845.

MOIGNO, François-Napeoléon-Marie. Optique moléculaire

____. Leçons de mécanique analytique

____. Traité de télégraphie électrique

LANGE. Über den Zusammenhang der Erziehungssysteme mit den herrschenden Weltanschauungen verschiedener Zeitalter. (On the Connection Between the Educational Systems with the Dominant World Views of Different Eras.), 1855.

____. Die Leibesübungen. Eine Darstellung des Werdens und Wesens der Turnkunst in ihrer pädagogischen und kulturhistorischen Bedeutung. (Physical Exercise: A Presentation of the History and Essence of Gymnastics in its Pedagogical and Cultural-Historical Significance.), 1863.

____. Die Grundlegung der mathematischen Psychologie. Ein Versuch zur Nachweisung des fundamentalen Fehlers bei Herbart und Drobisch. (Foundations of Mathematical Psychology. Attempt at a Demonstration of the Fundamental Error of Herbart and Drobisch.), 1865.

RIBOT. La Philosophie de Schopenhauer (1874)

____. Les Maladies de la volonté (1909)

____. La Psychologie allemande contemporaine : école expérimentale (1879)

____. La Psychologie anglaise contemporaine (1870)

____. Psychologie des grands calculateurs et des joueurs d’échecs (1894)

RICHER. Les Démoniaques dans l’art, with Jean-Martin Charcot (1887) (DV) (déjà vu – recomendação antiga!)

____. Les Difformes et les malades dans l’art, with Jean-Martin Charcot (1889)

____. Physiologie artistique de l’homme en mouvement (1895) (Artistic Anatomy, translated and edited by Robert Beverly Hale, 1971)

____. Introduction à l’étude de la figure humaine (1902)

____. Nouvelle anatomie artistique. Les animaux (1910) (New Artistic Anatomy: Female Morphology, translated and edited by Allana M. Benham, 2015) [que equiparem o animal à mulher… em 2015!… não posso crer nos meus olhos!]

RICHET, Charles. L’Anaphylaxie (tese ganhadora do prêmio Nobel; também foi tradutor de Gurney, outra bibliografia citada; ver ainda o trabalho no tópico 1, em psicologia.)

____. La Sélection humaine (e do mesmo autor, no entreguerras, um tratado eugenista)

SAURY. Précis d’astronomie à la portée des jeunes gens de l’un et de l’autre sexe et de tous ceux qui veulent s’initier dans cette science en peu de temps et sans beaucoup de peine

____. Histoire naturelle du globe ou Géographie physique

____. Abrégé du cours complet de mathématiques

STANLEY HALL. Study of Dolls (https://archive.org/details/StudyOfDolls)

____. Morale, the supreme standard of life and conduct (https://archive.org/details/moralesupremesta00halliala)

____. Founders of modern psychology (https://archive.org/details/foundersofmodern00hall)

____. The contents of children’s minds on entering school (https://archive.org/details/contentsofchildr00hall)

____. Adolescence: its psychology and its relations to physiology, anthropology, sociology, sex, crime, religion and education (https://archive.org/details/adolescenceitsps01hall/page/n3/mode/2up)

____. Youth; its education, regimen, and hygiene (https://archive.org/details/youthitseducatio00hall)

____. Senescence, the last half of life (https://archive.org/details/senescencelastha00halliala)

STANLEY HALL & AMY B. Studies in Spiritism (https://archive.org/details/cu31924028952153)

TAINE, H. Le Positivisme anglais : étude sur Stuart Mill, éditions Germer Baillière, coll. « Bibliothèque de philosophie contemporaine » (1864)

TERESA DE ÁVILA. Castillo interior ou Las moradas

GLOSSAIRE (glossário francês):

baliverne: sem-sentido, besteirol

baquet: banheira

cadran: face (geralmente do relógio)

compère: cúmplice

contremarque: cunha de moeda

coudre: costurar

crampe: cãibra

épervier: gavião-da-europa

étain: estanho

fou rire: ataque de riso

fourche: forquilha, instrumento agrícola dentado

gourme: impetigo

parchemin: diploma, certificado, pergaminho

paresseux: indolente (perezoso)

perchoir: apoiador, pódio, palco

pied de nez: tocar o nariz com a ponta do dedo polegar

point de répère: ponto de vista

raser: raspar, fazer a barba

rasoir: navalha

rétrecissement: recuo, recolhimento, retração

rideaux: cortinas (riddles, a verdade por trás de enigmas)

saturnisme: intoxicação pelo chumbo

serin: canário

songe (subst.): delírio em vigília

zézayer: cecear

[ARQUIVO] A vida de Federico Nietzsche, o maior dos filósofos modernos, & de sua irmã nazista, sua antípoda.

Trechos selecionados de antigas postagens do primeiro blog do autor, de 18 de setembro de 2009 e 6 de novembro de 2009. Duas obras serviram de bibliografia para as citações e comentários: Vida de Federico, biografia de Daniel Halevy traduzida ao espanhol e My Sister and I, obra anônima, falsamente atribuída a Nietzsche, ambas, se e quando vertidas ao português, citadas em traduções minhas. Exemplares consultados na biblioteca da Universidade de Brasília à época.

* * *

Carl Ludwig. Pai luterano e também enfermiço. Gosto pela música e pela solidão! Tinha os reis em alta conta, daí provindo o nome do filho, Frederico Guilherme.

Desde sempre muito introspectivo: só foi falar aos 2 anos e meio!

Famoso registro de um sonho que teve aos 14 anos: prenúncio da morte de seu irmão caçula.

el Señor de los cielos fue nuestro único consuelo”

el pastorcito”, assim N. era chamado no círculo familiar.

Intensa produtividade literária já aos dez anos. Eu também tive esses impulsos – que pena que tratavam de jogar tudo o que eu fazia no lixo!

Pp. 19-30: ausentes do exemplar que li.

Embriagado de si mesmo, escreveu a história de sua infância” em 14 dias!

P. 37: será que seu ódio pela cerveja tem origens em um embebedamento que o fez se machucar a cavalo?

Na escola, gostava de brigar e chamar para o duelo.

Esta alegría infantil dura poco”

Hiato poético. Aluno de Ritschl.

SOBRE OS POSITIVISTAS: “N. os leu… mas não os releu”

Hegel, Fichte e Schelling viviam o seu auge no ambiente acadêmico.

Iniciou estudos em Bonn, mas transferiu-se para Leipzig. Na festa local, a do centenário da entrada de Goethe na instituição, o reitor desaconselha ser como ele (Goethe): um mau aluno! Um paradoxo: reconhece-se o fermento do grande homem, mas o homem erudito se recusa a replicá-lo.

este brônzeo monstro de força”, em referência a Schopenhauer. O pai que N. arranjou para si mesmo na idade em que é preciso ter um, biológico ou não (20).

CRISE FILOLÓGICA (PP. 53-4): “Que uma multidão de cabeças medíocres se ocupe de coisas cuja importância e conseqüência sejam graves e reais é um pensamento aterrador.”

Míope e aquartelado durante a guerra. Cai do cavalo e quebra uma costela.

A sutileza e a doçura platônica mostram já os signos da decadência.” Hipérbole!

Os gregos criam, então, como hoje os europeus, na fatalidade das forças naturais. E criam também que o homem deve se criar a si mesmo, e a suas virtudes e seus deuses. Um sentimento trágico, um valente pessimismo, que não os apartava da vida, pelo contrário, animava-os.”

Quando Nietzsche começa a ler Montaigne, ele mesmo o declara, sua desde sempre frágil amizade com Wagner, homem de outra geração, começa espiritualmente a derrocar…

Ciência, arte e filosofia crescem tão bem-ligadas em mim que creio que darei a luz a um centauro.”

no leía nunca los periódicos”

1870: A reunificação alemã em seu ápice imperialista, engolindo o sul ainda rupestre e provincial.

Aqui recomenda-se a leitura de “De Dioniso a Bismarck. Tragédia e Política em Nietzsche”, tradução de um artigo de Baeumler, 1931.

as guerras modernas são supérfluas”

Burckhardt

Na época de Nascimento da Tragédia Nietzsche soa como um discípulo hegeliano envergonhado. Seu objetivo é buscar uma finalidade na História a fim de lutar por ela – um longo caminho até Vontade de Potência

E se é certo que os gregos foram destruídos pela escravidão, ainda é mais certa esta outra afirmação: a falta de escravidão é causa de que essa nossa época pereça” Como negar? Criticar a democracia só pode significar apologia de um novo sistema hierárquico (não-burguês). Os direitos humanos nunca funcionaram na prática, não há senhores, apenas escravos. O artista é o protótipo do homem superior: não pensa no trabalho como trabalho, não pensa na riqueza como dinheiro. Tem fins maiores em vista.

Será que nos distanciamos tanto assim da ética da guerra antiga, em que os vencidos se tornavam escravos dos vencedores? O que se tornarão os ucranianos para os europeus desde este instante? Os ucranianos que não preferirem se tornar o que são, i.e., russos?

P. 116: Os sanguessugas inevitáveis do Estado-nação moderno: o general, o empresário obscuro (o oficial que nunca foi soldado, burocrata, homem de gabinete, anti-herói). Efeito colateral da “onda pacifista” européia. Homens da paz: homens do dinheiro. Assim como a humanidade não é mais digna de reis, não é mais digna de comandantes militares à antiga, apenas chefes nominais, farsas. O que se viu nos avanços bélicos da Prússia imperialista foram gritos de desespero de uma Alemanha nostálgica dos tempos nobres e épicos das guerras. Hoje continuariam havendo mais e mais gritos nostálgicos (mais do que os que já ocorrem por todo o planeta) não fosse a constatação de que quase todo conflito militar que se tem a intenção de iniciar não seria estrategicamente interessante, i.e., NÃO GERARIA LUCRO. “Lucro” é o único ser vivo do planeta habitado pelos economistas de Estado. Como dança uma nação atrofiada: tudo o que ela faz acaba por matar – dos miseráveis aos burgueses.

Polêmica contra o sufrágio universal: historicamente, é justificado como uma recompensa pela bravura da sociedade, dos nossos ancestrais. Efeito colateral: esteriliza as populações.

Quando um Estado não pode alcançar seu mais alto fim, cresce desmesuradamente. O império mundial dos romanos não tem nada de sublime frente a Atenas”: denúncia do perigo expansionista. Ademais, exemplar pulverização da teoria do espaço vital, a Lebensraum alemã.

N. se torna pensionista da Universidade da Basiléia aos 27 anos de idade devido à precarização de sua saúde.

P. 123: pérola do autor da biografia: “Nascimento da Tragédia, único verdadeiro livro que N. levara a cabo.”

Será o filósofo sempre um ser inútil para os homens?” “um lírico que não chega a ser artista”

De 3 mil em 3 mil anos as palavras se invertem? Há também um esgotamento do homem artístico, um niilismo às avessas? Morre-se de sede e afogado sucessivamente na História?!

Talvez se possa falar dos fins inconscientes de um formigueiro; mas de todos os formigueiros da Terra?…” Alusão à abstração do conceito de humanidade.

TALES – tudo deriva de um único elemento.

ANAXIMANDRO – a fuga das coisas é seu castigo.

HERÁCLITO – uma lei rege a fuga e a permanência das coisas.

PARMÊNIDES – a fuga e a permanência são mera ilusão. Apenas o Um existe.

ANAXÁGORAS – todas as qualidades são eternas: nelas não há devir.

PITAGÓRICOS – todas as qualidades são quantidades.

EMPÉDOCLES – todas as causas são mágicas.

DEMÓCRITO – todas as causas são mecânicas.

SÓCRATES – só o pensamento é imperturbável.”

Todos estão certos. Os germes mais antigos. Contra e por Homero.

De vez em quando me sobrevém uma repugnância infantil pelo papel impresso; parece-me não ver nele senão papel manchado.”

DAVID STRAUSS, A PRIMEIRA VÍTIMA: “Federico ha encontrado al hombre que desea destruir”

As idades do homem de Flaubert: paganismo, cristianismo e porquismo.

NIETZSCHE & ENGELS: O Anti-Dühring poderia ser uma obra conjunta, pois ambos gostavam de detratar o mesmo intelectual!

P. 206: “Me alimento quase exclusivamente de leite.”

IMPRESSÕES GERAIS DA FIGURA DE NIETZSCHE: “voz musical (…) falar lento (…) vista fixa (…) cabelos curtos escovados para trás (…) maçã do rosto eslava”

O método peripatético não diz respeito só a “filosofar em movimento”, como muito se veicula. Maneira de aprendizagem horizontal de dois ou mais sábios – significaria que Aristóteles não se considerava um mestre de escola nem que possuía “discípulos” no rigor da palavra. Uma conversa enquanto se passeia pelo bosque, por exemplo.

Não deves amar nem odiar o povo¹

Não te deves ocupar da política²

Não deves ser rico nem indigente³

Deves evitar o caminho dos ilustres e poderosos

Deves desposar uma mulher estrangeira4

Deves deixar a teus amigos o cuidado de educar teus filhos

Não deves aceitar nenhuma das cerimônias da Igreja”

¹ Anti-Dostoievski!

² Não deves ser ativista político se queres ser filósofo, que se ocupa, entretanto, totalmente da política.

³ Está muito além da própria escolha individual, mas sem dúvida seria um filtro para o exercício da vocação do filosofar.

4 Indecifrável em relação a tudo que deixou por escrito.

A influência da estilística de Pascal e La Rochefoucauld sobre a escrita de N.

Pseudônimos e iniciais: a salvação dos imorais! Que pena que a Constituição veda o anonimato. Não é mais possível fazer boa literatura de polêmica sem ser processado.

envelheci dez anos em uns poucos meses.”

um enfermo não tem o direito de ser pessimista.”

…e a saúde recomeça seu jogo mágico.” – Muitas das convalescenças de N. foram no clima prazenteiro do sul da Itália.

O espírito voltado para a oposição da dor vê as coisas debaixo de uma nova luz; e o indizível encanto que acompanha toda luz nova basta às vezes para vencer a tentação do suicídio, e para fazer a vida desejável. Aquele que sofre pensa com desprezo no mundo vago, tíbio e cômodo em que se compraz o homem são; pensa com desprezo nas ilusões mais nobres e mais queridas em que se deixa absorver; este desprezo é seu gozo, o contrapeso que o ajuda a se defrontar com o sofrimento físico, contrapeso cuja necessidade sente então… Seu orgulho se rebela como jamais se havia rebelado: defende com deleite a vida contra um tirano como o sofrimento, contra todas as insinuações desse tirano que nos quis obrigar a blasfemar contra a vida. Representar a vida frente a esse tirano é uma tarefa de incomparável sedução.”

Aurora

Este aforismo sempre representou minha vida. Atualmente dedico-o a W.O.

Uma independência que não moleste a ninguém; um orgulho doce, velado, um orgulho que, não invejando as honras e satisfações dos demais e se abstendo de burlas, não incomode a gente… Um sono ligeiro, uns modos livres e pacíficos; ausência de álcool, de amizades ilustres ou principescas, de mulheres e de jornais, de honras e de sociedade – que não seja a de espíritos superiores e, à falta destes, de gente humilde (da que é tão impossível prescindir quanto da contemplação de uma vegetação poderosa e sã) –; os pratos mais fáceis de preparar, se possível preparados por mim mesmo, ou que mal tenham necessidade de preparação.” Curiosidades insólitas e sem valor.

Por fim encontra N. aquela idéia cujo pressentimento o agita com tanta violência. Um dia em que caminhava pelos bosques de Sils-Maria, em direção a Silvaplana, sentou-se, não longe de Surlee, ao pé de uma rocha piramidal; naquele momento e naquele local concebeu o eterno retorno.” Romantização de biógrafo precoce.

a música e a nostalgia de um passado melhor”

Observações pessoais minhas: Cabal, Senhorita, 2005 – sensação de potência desperdiçada – por quê? À época eu apenas queria ser o que sou hoje, a própria vontade niet. Porém iludo-me dalguma forma, querendo retroagir para reaver estas possibilidades perdidas. E contudo, como minha cabeça era ali, só podia me levar até aqui – o INESPERADO, apenas agora verificável. Se eu voltasse no tempo com ESTA consciência, amadurecida, todas as cores imaginadas desbotariam em desprezo – não foi o mundo que piorou em 3 (18!) anos. Eu me tornei mais sensível em relação à essência deste mundo. Atenuante invencível: 2005 e sua sensação de estar no topo de um monte sagrado, isso se repetirá INDEFINIDAMENTE…

Pp. 265-6: “O tempo, cuja duração é infinita, deve repetir, de período em período, uma disposição idêntica das coisas. Isto é inadiável, uma necessidade; logo é necessário que todas as coisas voltem a ser. Dentro de tal número de dias, número imprevisível, imenso, apesar de limitado, um homem, semelhante em tudo a mim, eu mesmo, em suma, sentado à sombra deste rochedo, encontrarei de novo esta mesma idéia. E esta mesma idéia voltará a se encontrar com este homem, não somente uma vez, mas um número infinito de vezes, pois o movimento que repete as coisas é infinito. Logo devemos abandonar toda esperança e pensar firmemente: nenhum mundo celestial receberá os homens, nem os consolará nenhum destino melhor. Somos as sombras de uma natureza cega e monótona, os prisioneiros de cada instante. Mas não esqueçamos que esta tremenda idéia que nos proíbe toda esperança enobrece e exalta cada minuto de nossas vidas; se o instante se repete eternamente em um monumento eterno, dotado de valor infinito e – se a palavra divino tem algum sentido – divino. (…) Ápice da meditação.” (1881)

Aurora não teve o menor êxito [comercial]”

Eis aqui a pedra em formato de pirâmide, no lugar da qual, em 600, 1000 anos, se erigirá uma estátua ao autor de Aurora.” Carta a Paul Rée. Demorou muito menos do que isso.

ninguém se interessa por esse Zaratustra

N. supostamente interdito de lecionar em Leipzig por seu “ateísmo” – como se tivera saúde restante para tal!

Inicialmente, por ter passado um hiato sem editor, Assim Falou Zaratustra foi entregue apenas para 7 chegados: a irmã Elizabeth, Erwin Rohde, Overbeck, Paul Lanzky (jovem admirador niet., desconhecido hoje), Peter Gast (futuro co-editor), Mme. von Maysenbug e Burckhardt. Outro contato de N., Gersdorff, aparentemente já falecera. Rohde como que já havia rompido com o antigo amigo.

P. 380: páginas devotadas a Dostoievski e o “cristianismo revolucionário russo”.

P. 399: “As tendências humanitárias não são anti-vitais, pois convêm às massas, que vivem com lentidão; e, convindo a elas, convêm à humanidade, que necessita da satisfação das massas. As tendências cristãs são igualmente bonacheironas, e nada é tão desejável como a sua permanência, pois convém a todos os que sofrem, todos os débeis, e é necessário para a saúde das sociedades humanas que o sofrimento e as debilidades inevitáveis sejam recebidos sem rebelião, de modo submisso e, se possível, amorosamente. § Diga o que diga o cristianismo, não posso esquecer que lhe devo as melhores experiências da minha vida espiritual, e espero não ser nunca ingrato com ele no fundo do coração…” Já se imaginou tamanha isenção intelectual? Um homem que entende que o melhor para o futuro e para outros homens não é ou não será aquilo que é ou foi melhor para si mesmo? Houve filósofo mais probo?

P. 411: “Quando se estudam os últimos meses dessa vida, parece como se se assistisse ao trabalho de uma máquina de guerra que a mão humana já não governa mais”

O Código ou as Leis de Manu teriam sido uma das últimas leituras de N. Livro extenso e cansativo. Estou lendo-o há meses (agora em hiato).

* * *

O primeiro ou principal a refutar a obra Minha Irmã e Eu (Ich und meine Schwester) como de autoria nietzschiana foi Walter Kaufmann (1952, 1955). WIKI: “If legitimate, My Sister and I would be Nietzsche’s second autobiographical and final overall work, chronologically following his Wahnbriefe (Madness Letters), written during his extended time of mental collapse. (…) The book was tied quickly to controversial publisher Samuel Roth, the putative owner of Seven Sirens, who had spent jail time for the unlawful distribution of a version of James Joyce’s Ulysses (1922). In the book’s introduction, an anonymous publisher claimed to have received the manuscript from a fellow inmate of Nietzsche’s in Jena and to have hired Oscar Levy to translate the work only to have both German and English manuscripts confiscated, with only the latter surviving. (…) Kaufmann claimed in a footnote in his Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist (first published 1950) to have received a ghostwriting confession from minor author David George Plotkin in 1965.” Creio que não preciso opinar que segundo o cânone da arquivologia ou filologia é impossível ceder e duvidar de que seja uma fraude. A ausência do manuscrito original e o lapso de tempo até o misterioso aparecimento das cópias são dois detrimentos inexcusáveis para o sucesso da teoria da autenticidade, por mais que seja um livro bem-escrito e prazeroso, e o estilo de N. seja até replicado com sucesso em suas páginas! Ainda assim: “Nietzsche scholar Walter K. Stewart, in his 185 page monograph Nietzsche: My Sister and I — A Critical Study published in 2007, argues for the original’s potential legitimacy by conducting a point-by-point analysis of Kaufmann’s book review.”

As informações mais sensacionalistas nessa pseudo-segunda autobiografia de N. são que teve envolvimento amoroso-incestuoso (assexual) com “Lama” Förster (como N. chamava sua irmã Elizabeth), que podemos dizer com segurança que ele odiava, e profundamente, e com Cosima Wagner, viúva de Richard Wagner – é até engraçado!! À época (2009), eu cria na possibilidade da autenticidade desta fabulosa história, tecendo o comentário de que os ciúmes muito intensos por Elizabeth demonstrados nas cartas de N. não eram “normais”. Porém, não levava em conta então costumes de família na Alemanha do séc. XIX, uma sociedade muito mais androcêntrica.

Eis a desculpa médica para tornar a história da escrita desse livro plausível: “Sua deterioração cerebral prejudicou seriamente a capacidade de N. responder as pessoas, mas seu fluxo de pensamentos não tinha sofrido alterações significativas, e ele não verificava, ao despejar suas idéias no papel, a mesma hesitação do contato falado.”

O primeiro capítulo já abre com uma “paródia” do relato niet. do sonho com a morte do irmão menor: no asilo, sonhava com a morte da mãe. A mãe de N. morreu poucos meses antes do próprio.

Para o odiador, a Alemanha é o lugar. Em primeiro lugar, há o kaiser, que se pode detestar a vida inteira.”

Tenho mãos e pés pequenos como os de uma mulher. Teria sido eu destinado a ser mulher? Sou acaso um descuido de Deus?”

meu cérebro vai se tornando pedra” “Como uma múmia egípcia que esqueceu de morrer por inteiro, eu sou o expectador da minha própria morte, sentindo meus olhos se tornarem poeira”

Esse é o paradoxo da minha existência? eu amei a vida ao máximo, mas não pude direcionar essa paixão do modo clássico” “Essa grande mente, a maior desde Aristóteles, está sendo dissolvida na imbecilidade da massa”

Eu cortei a história do mundo em duas ao escrever o Ecce Homo

Antes de mim os filósofos guerreavam em trincheiras contra o cristianismo. Eu promovi uma guerra total, e isso me deixou sem amigos.” Veja o anacronismo das expressões guerra de trincheiras e guerra total, compreensíveis apenas a partir dos anos 30 do séc. XX!

Sócrates e Schopenhauer são eunucos que perderam a capacidade de amar”

Na Grécia Antiga a riqueza de um homem era avaliada por seu número de filhos – em correlação positiva”

Voltaire foi a França que respirava aquele ar de liberdade ideológica inglês”

Todo pensador socialista falha ao não entender que a distribuição desigual de sabedoria, poder e talento é essencial em uma comunidade, para o contínuo exercício, ali, de sentimentos como piedade, compaixão, generosidade e proteção, que são os ingredientes das únicas civilizações que tiveram qualquer tipo de duração” O autor se esquece de que a ditadura do proletariado leva tudo isso em conta – como não levaria?

Talvez a autêntica tragédia na história do homem tenha se dado, não quando o homem se viu pela 1ª vez nu diante de sua comparsa, mas quando percebeu que era necessário sair de si para mostrar tributo à divindade. Ele não sabia que tinha sido expulso do Paraíso até se ver do lado de fora do portão.”

É difícil crer que aqueles pés das estátuas gregas precisavam mesmo da mediação de sandálias. Se tivéssemos pés tão fortes provavelmente arruiná-los-íamos com pedicures!”

Uma nação que tenha abdicado do sonho da conquista já abdicou há muito do sonho de viver” E no entanto isso colide com a crítica das nações expansionistas, vista mais acima.

Estamos excedendo as contas em tudo. O universo não é, para começar, tão grande quanto se relata. O mundo como um organismo é tremendamente importante para si mesmo, mas da mais banal significância para o sujeito. E, com todas as suas perfeições creditadas, o homem é uma criatura extremamente imperfeita! Sendo assim, poderíamos deixar de lado o sentimento de extravagância sobre o que não temos, ou de angústia pelo que possivelmente deixamos de fazer ou experimentar. Tudo humano que valha a pena está contido em alguns prédios em Roma, Paris e Londres, e eu não trocaria o resto do universo pelo conteúdo de um deles. Ainda assim, no momento em que escrevo pode ser que as forças armadas da humanidade estejam se preparando para devastar esses prédios para começar uma briguinha de homens, cuja real potencialidade é tal que se fossem estes os últimos e únicos homens sobre o globo toda a raça teria de morrer sem deixar herdeiros.”

CRISES ECONÔMICAS COMO CRISES PERMANENTES DE QUALQUER ESTADO E MORAL QUE NÃO SÃO INSTITUÍDAS POR UM POETA-LEGISLADOR

Como resultado da mistura dos economistas com leis científicas puras, sem legislação, certos princípios de economia aparentemente adquiriram um caráter duplo – o da generalização científica e o das regras que serão impunemente desobedecidas.”

Você por acaso já viu uma única jovem com a metade da beleza do mais abandonado dos gatos de rua?”

Se eu puder voltar a minha casa de novo, lerei o Livro dos Mortos egípcioMais sobre esta obra a seguir.

O europeu aspira a uma sinceridade cristã no viver, mas treina sua consciência de modo que solte uma risada sempre que cruza uma igreja”

Decidir o destino da comunidade via voto igualitário é tão razoável quanto escolher a mulher via loteria”

Quatro mulheres em minha vida: duas, prostitutas, me fizeram feliz. Felicidade de momento.” Mais um aforismo nada característico da pudicícia nietzschiana em revelar detalhes íntimos que encerra o debate sério sobre a inautenticidade deste livro.

Já fui tão maior que Schopenhauer que duvido que terei um sucessor” Alguém tendo-o escrito nos anos 50 tinha já cem por cento de segurança na afirmação…

A vitória militar, se por algum engano do destino for nossa, não vai nem ao menos por isso curar nosso jeito azedo e turrão”

Eu preferia ser um psicólogo do que o Deus do Gênesis”

Como a Alemanha é a negação da França, a Rússia é a negação da Alemanha. A Rússia tem 2 vantagens em relação a nós: tem mais salas onde se lutar e mais judeus com quem lutar.”

Uma querela entre 2 filósofos deve ser levada tão a sério quanto uma discussão filosófica entre 2 pedreiros.”

Toda mulher é uma prostituta no coração e até compreender isso um homem não pode conhecer a pureza virgem de seu ser”

Não só eu, mas os sofistas modernos estão em seu pôr-do-sol: por sofistas da modernidade quero dizer os humanistas, os empiristas, os relativistas, os utilitaristas e os individualistas.”

Um Aristófanes [comediante, sátiro] do séc. XX vai me tachar como um Demócrito, pilhando-me como este foi pilhado: Longa vida ao Deus Furacão que destronou Zeus!

quando em Turim eu vi um cavalo ser açoitado pelo cocheiro eu corri da minha casa e abracei o animal, preocupando-me com seu devir. [esse detalhe biográfico de N. é autêntico] § Essa foi a causa de minha ruína: a divisória entre minha pregação e minha prática, e isto foi parte também da grande linha entre o antes e o depois do pensamento ocidental, que como eu ficará louco.”

Se Deus tem pena de nós, ele está jogando com um dado interminável.”

Aquilo sobre o que outros filósofos escrevem livros eu me contento em escrever parágrafos.”

Só desenvolvemos 3 sistemas numéricos – contra mil línguas e 10 mil sistemas de raciocínio”

Kant teria sido um filósofo melhor se tivesse dado ao menos 10 anos de aula de Filologia, o que ter-lhe-ia aclarado a importância de se fazer entender antes de ter certeza de que é entendido

A democracia é de números e é sustentada diretamente pelos matemáticos anônimos cujas obras foram destruídas no incêndio da biblioteca de Alexandria. Que pena que a natureza humana não é delineada pelas simples linhas, vamos dizer, das proposições euclidianas!”

Se você é incapaz de ler Platão pelo simples prazer de lê-lo, leia-o visando ao ensinamento que ‘grita’ nas entrelinhas de cada diálogo: há somente um mundo, o mundo da experiência dos homens.”

CITAÇÃO DE MARX: “Os egípcios nos legaram uma verdadeira história de seu caráter nacional no Livro dos Mortos. Para caracterizar nosso tempo alguém deveria escrever um Livro dos Alemães Renegados – para incluir alguns que quiseram escapar mas não conseguiram – como eu. Se – os céus me proíbam – eu me tornasse o autor de tal obra, abriria com uma dedicatória a Heinrich Heine e encerraria com um comentário sobre Karl Marx, diante de quem os fins da criação teriam servido muito melhor se ele tivesse permanecido na Prússia, onde ele seria finalmente germanizado ou levaria um tiro. Como se sabe, Marx encontrou resguardo do germanismo na Inglaterra, de onde ainda nos dispara suas teorias pelo Canal da Mancha. [O humor do anacronismo do falsificador, o ‘Pseudo-Nietzsche’ que compôs a obra, é que isto devera ter sido escrito, se pela mão nietzschiana, em 1989, porém Marx morrera já em 1983 – tudo indica que jamais tendo ouvido falar de Nietzsche, e vice-versa.] Nesse cenário eu me desejaria qualquer lugar no centro, onde, aproximadamente, estou. [referência ao manicômio de Naumburg – wiki: “Naumburg is a town in the district Burgenlandkreis, in the state of Saxony-Anhalt, Central Germany.”]

Quanto a Marx, ele escreve num alemão tão ruim, o qual ele adorna com copiosas citações do latim e do francês [ironicamente a mesma crítica de estilo, pelo menos na parte das citações, poderia ser facilmente atribuída ao próprio N.] – línguas que ele parece não conhecer muito bem – a fim de impressionar a massa e confundir aqueles que esperavam poder entender.” Exagero evidente. Comparar Kant e Marx em questão estilística, p.ex., seria uma heresia – o segundo leva ampla vantagem!

Em Heine os judeus nos deram muito; em Marx, muito pouco”

Marx está para a lei da oferta e da demanda como Darwin está para a lei de sobrevivência do mais forte. Ambas as leis são o resultado de uma nova paixão produzida pelo séc. XVIII – pesquisa com ponto de vista.” Divertido especular sobre este comentário, sabendo que foi produzido no séc XX. Darwin não formulou a lei de sobrevivência do mais apto fora do reino animal, mas influenciou decisivamente seu emprego nas gerações posteriores. O que acontece com Marx sobre a lei de oferta-procura/demanda é um pouco diferente: ela é anterior a ele (efetivamente do próprio séc. XVIII); porém ele deve ser estudado mesmo pelos economistas liberais para que outros fundamentos da economia sejam compreendidos em relação com ela. Não há nada de correto em Adam Smith que não esteja em Marx, mas a lei da oferta e da demanda não é nada diante do escopo d’O Capital. Como Darwin deve ter muito mais informações preciosas em seus diários de viagem do que essa infame conseqüência política involuntária que gerou!

A verdade ainda ludibria; mas não é mais aquela moça formosa, e sim uma velha rabugenta e desdentada.”

Não quero ser mal-entendido: eu evito ler Marx tão apaixonadamente quanto enveredo por cada nova estrofe de Heine.”

O Capital descobriu duas coisas que são os temas básicos dos congressos socialistas: 1) a mais-valia, pois o operário trabalha para gerar mais do que é vitalmente necessário para si, e até para si e para o capitalista juntos; 2) esse novo poder de exploração da classe trabalhadora é levado a um extremo tal que o burguês se torna, no mundo do dinheiro, tão poderoso e superior aos homens quanto uma vez fôra o divino senhor feudal.”

O que não conseguirmos pela fé conseguiremos através dos métodos mágicos”

Hegel é um Spinoza guiado pela velocidade de nossa idade industrial”

É melhor que o mundo não saiba – ao menos enquanto ela viver – que Elizabeth cumpriu o mesmo papel em minha vida reservado a Augusta frente a seu [meio-]irmão caçula Byron.” WIKI: Augusta Maria Leigh was the only daughter of John ‘Mad Jack’ Byron, the poet Lord Byron’s father, by his first wife, Amelia, née Darcy.” Aparentemente, todo o significado do dito é que N. usava as cartas para E. a fim de caluniar sua mãe: “Augusta’s half-brother, George Lord Byron, did not meet her until he went to Harrow School, and even then only very rarely. From 1804 onward, however, she wrote to him regularly and became his confidante, especially in his quarrels with his mother. Their correspondence ceased for 2 years after Byron had gone abroad, and was not resumed until she sent him a letter expressing her sympathy on the death of his mother, Catherine in 1811.” Não gostaria de crer que o autor-falsificador de Minha Irmã & Eu quisesse pôr em evidência o ‘lado negro’ da relação entre Byron e sua irmã: “Not having been brought up together, they were almost like strangers to each other. But they got on well together and appear to have fallen in love with each other. When Byron’s marriage collapsed and he sailed away from England never to return, rumours of incest were rife.” Seja como for, a quem interessar possa: “Augusta is also the subject of Byron’s Epistle to Augusta (1816) and Stanzas to Augusta.”

Cinquenta anos depois de minha morte, quando eu tiver me tornado um mito, minha estrela brilhará no firmamento enquanto o Ocidente será eclipsado na escuridão, e pela própria luz que eu emito. Minha filosofia do poder será reexaminada, então, não como poder [político] mas como Providência.”

Mulheres são a única propriedade privada que tem total controle sobre seu proprietário.”

A idéia da transmigração das almas não é tão tola quanto parece, e meu conceito do eterno retorno é meramente a reencarnação moderna do credo pitagórico. Uma vez fomos cães e ainda regressaremos ao domínio primata dos caninos.”


IRA-ATA: AINDA VAMOS REGRESSAR AO DOMÍNIO PRIMATA DOS CANINOS

Torturando, espremendo cães. Qual foi o último que eu vi? Hoje sonhei de novo. Meus sonhos agora se relacionam a estar preso com os pais em algum lugar que não é a minha casa, e algo sem forma me tortura, algo de que eu não podia me esquecer. Foi o cão da Connie o último que toquei. Eu beijava a R. e de alguma forma me ocultava dos anfitriões indesejados. E por que tantos banheiros? Supra-homem Bill Lunch. “I spread disease like a dog…” Ter vivenciado caninamente a idade média não é absurdo, mas nada seria sem a CONDIÇÃO HUMANA, esse pathos que olha para baixo e para cima das cadeias com seus próprios olhos. Também já fui pedra e fui estrela. O pequeno príncipe me revive um tipo de consciência cósmica longamente entalada. A National Acrobat. Raul Seixas. Engraçado… o que eu estava fazendo dia 19 de janeiro de 2008? Tianguá e o demente. Surpreendente autocontrole. E interesse pelo tio-avô tão camponês. Moscas malditas e R. Eu sou a bomba atômica e sou a flor.

(06/11/2009)


Hegel incorreu num sexto sentido – o senso histórico”

O Homem do Subsolo de Dostoievski e o meu supra-homem são a mesma pessoa”

Talvez os pregadores de Alá me inscrevam em suas memórias como o único cristão honesto da Europa – um cristão honesto demais para aceitar a escravidão moral paulina e que preferiu, como Jesus ele mesmo, cremar-se no relâmpago do Velho Testamento.”

Salomão, o único judeu com ganas de imperador, promotor da Pax Judaica no mundo bárbaro. Seu império poderia se esticar até o fim do mundo, paraíso e terra sob a propaganda de Jeová.”

A suprema doutrina das mulheres seria a obtenção do infinito orgasmo.”


DEMOCRACIA                    X                          EUCLIDES, O “TRIGONOMÉTRICO”

estatísticas                                                                              forma

redução ao ideal                                                                não-números

paradigma do hospício                                                         potências

controle da maioria                                                  (eu sou um círculo maior)

razão                                                                           desprezo das minorias¹

¹ Provável alusão ao fato de que os gregos não se preocupavam com quantidades irracionais ou desprezíveis nas exressões matemáticas.


Há dois tipos de bárbaros; aquele que precede séculos de iluminismo e aquele que os sucede” Na mesma página cita Condillac, polímata da época iluminista.

O idealismo moral não pode suplantar a compulsão econômica de nossa era: Ruskin, Carlyle e outros britânicos obsoletos, especialmente o cabeça-de-vento John Stuart Mill, não aprenderam o básico sobre a modernidade. Se eu não fosse César seria Cristo, o Socialista, montaria num jumento e cavalgaria até Jerusalém com Marx. A ambição de poder dos marxistas complementa a ambição de poder dos nietzschianos, mas eu prefiro chegar a Jerusalém num cavalo de batalha árabe, ao invés de no lombo dum burro proletário.”

Brandes me chama de um anarquista aristocrático – e é exatamente o que eu sou. Quem, senão um judeu, para me desmascarar e contemplar esta face de Disraeli, o tory radical? O radical extremado e o reacionário extremado são irmãos debaixo da pele: ambos têm inclinação para demagogias liberais e humanitárias, e só conhecem um caminho rumo ao triunfo – a vontade de potência.” Moderados, demasiado moderados, assim nós da esquerda teríamos de nos classificar hoje.

As pessoas precisam ser governados com mãos de ferro, e eu profetizo uma época de Césares proletários [Lenin e Stalin?] que agirão como Rousseaus, enquanto Marx acaba construindo e sendo a vanguarda ideológica de ditaduras democráticas onde as iniciativas da companhia de água e esgoto e do fabricante de calças [!] são identificadas como a vontade de Deus e codificadas em leis draconianas escritas em letras de sangue.”

Dizem que por tomar o lugar do Senhor no meu sistema filosófico eu provei minha egomania. Mas na verdade eu sou extremamente modesto. Para mim, ocupar o lugar de Deus é um rebaixamento e humilhação, não uma rara promoção aos picos do Monte Sinai! § Ao invés disso, eu sequer deveria ter falado em deus na minha obra, deixando esse problema para os ingleses – Carlyles com mania de grandeza – resolverem.”

Não há lugar que não fique tedioso a longo prazo”

Me pergunto o que seria de Kant se tivesse sido induzido a viajar de navio”

Só num país como a Alemanha eu, o autor de Zaratustra, teria a necessidade de pagar do próprio bolso sua quarta e última parte!” Esse fato é verdadeiro.

O supra-homem não é uma fantasia privada: é nossa realidade biológica e transcendental”

Se Deus não tivesse morrido seguramente o século XX não ocorreria”

há mais segurança na caverna de Platão”

eu sou o fulcro da História (…) ainda que também o encontrem no Príncipe de Maquiavel”

o veneno anti-semita que cada alemão bebe do leite da mãe”

espero não viver o suficiente para ultrapassar este século”

Eu nunca imaginei o fim da raça humana porque eu tenho uma visão trágica da vida”

Berlioz, “o supra-homem da música”.

Em menos de 50 anos ser chamada de ‘wagnerete’ provocará processo por calúnia e difamação contra o ofensor, e quando uma ópera wagneriana for mencionada em nobre companhia haverá mal-estar na sala.”

Me ssa lina

Impregnemos nossas vidas com a impressão da eternidade! Vamos viver de modo que desejássemos sempre viver de novo: esse é meu credo, ontem, hoje, amanhã, e nos ontens que sucederão o amanhã.”

CÁRMIDES (OU ‘DA CRÍTICA DE CRÍTIAS’): Comparação de traduções

Tradução comentada de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”

Além da tradução ao português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei oportuno abordar pontos polêmicos ou obscuros. Quando a nota for de Azcárate (tradutor) ou de Ana Pérez Vega (editora), um (*) antecederá as aspas.

(*) “O Cármides é um diálogo de Platão em que Sócrates é introduzido ao jovem Cármides e continua a conversação com Crítias – o tema é o sentido de sophrosyne, palavra grega para <temperança>, <prudência>, <autocontrole>, <restrição>, havendo sido traduzida pelo escólio como sabedoria. Como é habitual nos diálogos platônicos de juventude, os contendores não chegam a uma definição satisfatória, mas ao menos promovem, através do método maiêutico, uma profunda reflexão.” – A.P.V.

Aproveito ainda a ocasião para fazer comparações entre duas traduções independentes, de fontes que divergem, pois traduzi novamente o texto – dessa vez outra tradução espanhola – em 2023 (note-se que este post é original de 2019, e o estou republicando com alterações). Obviamente minha própria experiência de vida fez-me recorrer à tradução de trechos diferentes e de formas diferentes, mas nos casos em que traduzi as mesmas passagens podemos avaliar, em parte, o êxito de minhas escolhas e, em parte, a própria felicidade dos tradutores espanhóis, que me induziram a localizar ao português de forma alternativa já pelo fato de haverem feito suas seleções vocabulares sobre o grego original! A “nova tradução” constará na cor azul claro, além de em fonte diferente, para não confundir o leitor.

O primeiro contraste, já bastante sobressaltante, é que CÁRMIDES também é chamado, por sua matéria de “CÁRMIDES OU DA SABEDORIA”, mas eu intitularia facilmente o diálogo como “CÁRMIDES OU DA IMPOSSIBILIDADE DO SABER”, pelo menos a partir desta opção por uma segunda tradução 4 anos depois, já “denunciando” o caráter de aporia do diálogo!

SÓCRATES – Efetivamente, pouco antes da minha partida teve lugar uma batalha em Potidéia,¹ da qual, justo agora, soube-se aqui.”

¹ Colônia de Corinto, integrante da liga espartana.

-…quem vem vindo é Cármides, filho de meu tio Glauco e portanto meu primo.

– Sim, por Zeus! Noutro tempo, ainda que muito jovem, já não parecia mal; hoje deve ser um bem-formado adulto!

– Já, já poderás julgar de seu talhe e disposição.

Enquanto pronunciava essas palavras, Cármides entrou.

– Não é a mim, querido amigo, a quem é preciso consultar para esta avaliação. Se devo ser sincero, sou a pior pedra-de-toque em matéria de beleza dos jovens; porque na idade em que está nem um só me parece menos que formoso.

Sem dúvida me pareceu admirável por suas proporções e figura, e adverti também que todos os demais jovens encontravam-se como que apaixonados por ele, como assinalavam sua turbação e emoção, que lhes notei no rosto assim que Cármides entrou. Entre os que o seguiam, contemplei mais de um erastes. Que o seguinte sucedera a homens como nós, mais velhos, nada de espantoso: mas observei que entre os jovens não havia um que nele não fixasse os olhos, e não falo só dos mais jovens dentre eles, mas de todos do local – Cármides era contemplado como um ídolo. Querefonte, interpelando-me, disse:

– E então, Sócrates, que nos dizes? Não tem uma bela fisionomia?

– Ó, sim.

– E no entanto, se se despojasse de suas vestes, não te fixarias no seu corpo, se te conheço.¹ Ah, tão belas suas formas!…

Todos subscreveram as palavras de Querefonte.

– Por Hércules! Falais-me de um homem irresistível se, evidente, em acréscimo a todos estes dotes possui um atributo bem pequeno.²

– E qual é?

– Que a natureza tenha-o tratado com a mesma generosidade quanto a sua alma; creio que assim será, posto que o jovem pertence a tua família.”³

SÓCRATES – Quem é? E é filho de quem?

CRÍTIAS – Provavelmente o conheces. Porém, quando te ausentaste da cidade ele ainda não estava em idade. É Cármides,4 filho de nosso tio5 Glauco, primo meu, portanto.

SÓCRATES – Claro que o conheço. Já então não fazia má impressão, e isso sendo só uma criança. Imagino agora então, que já é um rapaz!”

Comparados a mim, todos os adolescentes são belos.” “Tive a impressão, quando o vi entrar, de que todos os outros rapazes estavam dele enamorados, tão atônitos e confusos se mostraram. Outros muitos admiradores o seguiam. Estes sentimentos, entre homens maduros como nós, eram menos invulgares, e, não obstante, entre os jovens, dei-me conta, nenhum, por mais tenro em idade que fôra, deixava de olhar na direção de Cármides, como se fôra a imagem de um deus que se aproximava.”

QUEREFONTE6 – Então, que te parece, Sócrates? Não tem um belo rosto?

SÓCRATES – Extraordinário!

QUEREFONTE – Decerto que, se ele se pusera nu, a ti já nem pareceria belo de rosto, tão bela e perfeita sua figura.”¹

¹ A segunda tradução diverge, e provavelmente é a menos confiável.

² Não sei se há no original este matiz de ironia pícara que parece querer comentar sobre o tamanho do pênis de um homem, se essa matiz foi acrescida nas traduções ou se eu mesmo vi o texto sem a devida inocência – mas na segunda tradução não há qualquer conotação que possa ser levada para um lado ambíguo, pelo palavreado escolhido. Eu traduziria, hoje, da seguinte forma: “se, é evidente, em acréscimo a todos estes dotes me satisfizesse também num outro detalhe.”

³ Como o diálogo é diferente de muitos mais tardios, em que só Sócrates fala, como se contasse uma história passada a não sabemos quem, e interpõe os discursos da cena apenas com o travessão, há, em determinados trechos, confusão sobre com quem ele dialoga no banho, se com Querefonte ou Crítias.

4 Tanto Cármides quanto Crítias participaram do Governo dos Trinta Tiranos e morreram no mesmo ano, em batalhas contra os democratas atenienses.

5 Informação importante: Glauco parece ser tio-avô de Crítias, e no entanto Cármides é mais novo, i.e., Crítias é neto do irmão de Glauco e nasceu muito antes. Além do fato de que Glauco teve um filho já em idade avançada (o que não tem qualquer interesse fundamental para nós), só gostaria de chamar a atenção para o vínculo familiar entre ambos – mais tarde outra nota de rodapé tocará no assunto e legitimará uma adaptação feita na segunda tradução.

6 Presente no diálogo A Apologia de Sócrates, um de seus melhores amigos.

(*) “Como quando Lísias é apresentado no diálogo homônimo, Cármides é introduzido com os melhores epítetos que se pode dedicar a um homem: é kalos kai agathos. A fórmula, que expressa um ideal supremo de equilíbrio entre beleza física e superioridade psicológica se encontra num domínio mais amplo que o da mera tradução literal no contexto moderno.”

– E que motivos teríamos para não pôr primeiro em evidência sua alma, e não a contemplaremos antes que a seu corpo? Na idade em que se acha, está já em posição de sustentar dignamente uma conversa?¹

– Perfeitamente – respondeu Crítias. – Já nasceu filósofo.² E se podemos crer nele mesmo e naqueles que o cercam, é também um poeta.

– Talento que, vejo, é-lhe hereditário, meu querido Crítias. Deve-o sem dúvida a vosso parentesco com Sólon! Mas que tanto esperas para me introduzir a este jovem promissor? Ainda que fôra mais jovem do que é, nenhum inconveniente teria em conversar conosco diante de ti, seu primo e tutor.³

– Nada mais justo, Sócrates. Iremos chamá-lo.”

SÓCRATES – Que tal então se o pomos a nu, não por fora, mas por dentro, analisando sua alma em detrimento de sua aparência? Na idade em que se encontra com certeza amará o diálogo.”¹

¹ Na primeira versão é uma pergunta sincera, não-retórica. Na segunda versão é uma afirmação em forma de indagação – mas Sócrates demonstra ter certeza de que tal jovem gostará de conversar.

² Sentido vulgar de filósofo: sociável, e aparentando inteligência aos demais.

³ Esta frase coincide nas duas versões, e é o que me leva a crer que neste ponto Azcárate operou mal: Sócrates está tão convicto de que Cármides já passou e muito da idade em que já pode sustentar uma conversação profunda que chega a afirmar que mesmo se ele fosse alguns anos mais novo talvez ainda houvesse a mesma possibilidade, estando ali alguém da família, a guardar intimidade com o potencial púbere (é de se admitir que, na Grécia Antiga, a fase da revolta na puberdade se desse bem mais tardiamente do que em nossa cultura, e a fase inicial da puberdade viesse acompanhada, no homem grego livre – o não-escravo, i.e., criado de forma autenticamente ateniense –, de certo pudor e introspecção exagerados, perdidos depois naturalmente, o mesmo comportamento que passamos a exibir, talvez, dos 10 aos 12, já muito menos travessos que aos 6-8, e muito mais conformados com nossa situação do que o adolescente genuíno do século XX, de 14-18 anos).

– Cármides se queixa de que há algum tempo lhe pesa e lhe dói sua cabeça, sobretudo quando acaba de acordar. Que inconveniente há em indicá-lo, pois sei que conheces, um bom remédio para este mal?”

CRÍTIAS – Há não muito Cármides me disse que pelas manhãs, ao despertar, pesava-lhe a cabeça. Por que não te lhe apresento como médico, pois que deves conhecer um remédio para seu mal?”

Assim sucedeu, com efeito. Cármides veio a nós e deu ocasião a uma cena bastante divertida. Cada um de nós, todos sentados num mesmo banco, empurrou seu vizinho, espremendo-se a fim de dar lugar a nosso conviva, para que se sentasse de seu próprio lado. Como resultado, cada um empurrando seu próximo, os dois que estavam nas extremidades do assento – um deles teve de se levantar de golpe, e o outro caiu de bunda no chão. Não obstante, Cármides adiantou-se e sentou entre Crítias e eu mesmo. Mas então, ó amigo, me senti um tanto turbado e perdi repentinamente aquela serenidade que conservara antes, com a qual contava a fim de conversar sem esforço com o jovem. Depois, Crítias fez questão de cortar o embaraço relatando que eu era aquele que sabia de um bom remédio para suas dores de cabeça. Ele se voltou para mim com o olhar interrogativo e perscrutador, um gesto que me é impossível descrever o suficiente. Todos que estavam na academia se apressaram em sentar em círculo a nossa volta. Neste momento, meu querido, minha vista penetrou as dobras de sua túnica; meus sentidos se excitaram, e em meu transporte compreendi até que ponto Cídias¹ é inteligente nessas coisas do amor: uma vez, falando da beleza de um jovem, com um terceiro, disse: Ó, inocente gamo, vê se não te vais apresentar à boca do leão, se não desejas ser despedaçado!

¹ Poeta do qual provavelmente só restam fragmentos ou citações em outros autores.

Respondi que meu remédio consistia em certa erva, mas que era preciso acrescentar certas palavras mágicas; que pronunciando as palavras e tomando o remédio ao mesmo tempo recobraria inteiramente a saúde; mas que as ervas sem as palavras não surtiriam qualquer efeito. Cármides me respondeu:

– Vou, pois, escrever as palavras de teu encanto para não as esquecer.

– Dir-tas-ei a uma petição tua ou sem precisar de uma?

– Ao meu rogo, Sócrates – respondeu o jovem espirituoso, a rir.

– Que assim seja. Mas sabes meu nome?

– Seria vergonhoso se o ignorasse; no círculo de jovens és tu quase o principal tema de nossas conversas. Quanto a mim, recordo vivamente tê-lo visto, ainda muito criança, muitas vezes, em companhia de meu querido primo¹ Crítias.”

CÁRMIDES – De que remédio se trata?

SÓCRATES – O remédio é uma espécie de erva, à qual deve ser acrescentado um encantamento cem por cento eficaz para trazer de volta a saúde; a tal ponto que, consumindo-se somente a erva, sem o ritual que a acompanha, não há possibilidade da cura.”

¹ A diferença de idade é tamanha que achei melhor modificar a relação entre primo de meia-idade e primo mancebo para uma de tio-sobrinho a partir daqui na segunda tradução.

SÓCRATES – (…) O poder deste remédio é tal que não cura somente as dores de cabeça. Já deves ter ouvido falar de médicos hábeis. Se são consultados por alguém com doenças oculares, dizem que não podem empreender a cura dos olhos sem estender o tratamento à cabeça inteira. Analogamente, não se pode curar a cabeça desprezando o restante do corpo. Seria uma tolice. Seguindo este raciocínio, tratam o corpo inteiro e se esforçam por cuidar do paciente e sanar a parte juntamente com o todo. Não crês tu que é assim como falam e como realmente acontece?

CÁRMIDES – Não duvido.

SÓCRATES – E tu aprovas este método?

CÁRMIDES – Como não?”

Dizem os médicos que para curar os olhos deve-se curar também a cabeça, que os envolvem. E que para curar a cabeça deve-se cuidar do corpo inteiro. E de nada adianta cuidar do corpo, se não se presta atenção à própria alma.”

Zamolxis,(*)¹ nosso rei, e por conseguinte um deus, defende que não se deve tentar efetuar a cura dos olhos sem a cura da cabeça, nem a da cabeça sem a do corpo; e tampouco deve-se tratar o corpo sem tratar a alma; se muitas doenças resistem aos esforços dos médicos gregos, isto vem de que desconhecem este sistema. Pois indo mal o todo, seria impossível que fosse bem a parte.

(…)

Trata-se da alma valendo-se de algumas palavras mágicas. Estas palavras mágicas são os belos discursos. Graças a eles, a sabedoria se enraíza nas almas e, uma vez arraigada e viva, nada mais fácil que se procurar a saúde à cabeça e a todo o corpo.”

Ocorre, Cármides, que aprendi este encantamento no exército, de um dos médicos trácios de Zalmoxis,(*) ouvindo-o proferir que é capaz de ressuscitar os mortos.

(*) “Referem Zamolxis como escravo de Pitágoras que obteve sua liberdade, viveu três anos num subterrâneo [!!] e de lá saiu para fazer-se grande legislador, além de filósofo que ensinava sobre a imortalidade da alma. (Heródoto, 4:95)” – P.A.

(*) (outra nota, subsecutiva) “Talvez tenha sido discípulo e não escravo de Pitágoras. Seu nome possui diferentes grafias, conforme a fonte apurada. Zalmoxis, Salmoxis, Zamolxis, Samolxis. É hoje tido mais como figura lendária, reformador social e religioso, endeusado pelos trácios da Dácia e pelos getas (povos do baixo Danúbio). Ainda com referência a Heród. 4:95-ss., os getas tinham a crença de que ao morrerem se reuniam com Zamolxis.” – A.P.V.

¹ Para uma interpretação moderna do mito de Zamolxis ou Zalmoxis, vd. Mircea Eliade.

(*) “Zalmoxis é, segundo Heródoto, História IV, um deus reverenciado na Trácia. Era cultuado como a divindade da medicina e da imortalidade. No mesmo livro, Heródoto cita Zalmoxis como um escravo de Pitágoras, proveniente da própria Trácia; daí então admitirmos que falava da mesma pessoa em ambas as circunstâncias, e que o “deus” dos trácios era um deus pessoal, vivente. Diógenes Laércio descreve este último como um dos primeiros filósofos dentre os povos bárbaros, o que para eles deve ter tido o mesmo efeito de acompanhar um deus em vida.”

– Cármides me parece superior aos jovens de sua idade, não só pela beleza de suas formas, mas também por essa coisa mesma pela que tu aprendeste e que contém referências a essas <palavras mágicas>. Afinal, o que queres dizer é que discutamos sobre a sabedoria, não é verdade?

– Exatamente.”¹

A alma é tratada com encantamentos, e os encantamentos são os belos discursos. Dos belos discursos nasce a sensatez,¹ amiga da alma sadia. (…) O maior erro é tentar ser médico da alma e do corpo em separado. Se não acreditas no remédio, ele não te serve.”

¹ A palavra sabedoria demora muito mais a entrar em jogo na segunda tradução. Trata-se da sophrosyne, que pode ser traduzida com outros vocábulos dependendo do contexto.

Anacreonte, Sólon e os demais poetas foram infatigavelmente celebrados pela família de teu pai que se liga a Crítias, filho de Drópidas. Tua família é famosa por sobressair na beleza e na virtude de suas gerações, afora todas as demais vantagens que constituem a felicidade. (…) Jamais se conheceu no continente um homem mais belo nem mais excelente que teu tio Pirilampo,(*) embaixador de reis e príncipes diversos. (…) Pois bem: com tais antepassados, tu não podes menos que ser o melhor em tudo.”

(*) “Pirilampo, filho de Antifonte, casado em segundas núpcias com sua sobrinha Perictíona e, portanto, também padrasto de Platão.”

se és suficientemente sábio, nada tens que ver com as palavras mágicas de Zamolxis ou de Ábaris, o Hiperbóreo¹ (…) A ti, te toca unicamente dizer-me se concordas com a opinião de Crítias, se crês que tua sabedoria² é completa, ou ainda incompleta.”

¹ Outra figura “excêntrica” relatada pelo historiador Heródoto. Digamos que personagem folclórica, posto que ali se diz que voava pelos céus.

² Vide a – na minha opinião – monumental diferença de vocábulo, decorrente das diferentes acepções do grego sophrosyne.

Cármides ruborizou, e com isso pareceu ainda mais belo, porque a modéstia quadra bem com sua juventude. Depois, ao recobrar-se, disse, não sem certa dignidade, que não lhe era fácil responder de chofre <sim> ou <não> a semelhante pergunta.

– Porque se nego que sou sábio, acuso-me a mim mesmo, o que não é razoável; e assim fazendo emito um desmentido às palavras de Crítias e tantos outros, que tanto me exaltam, ao que parece. Mas, na mão contrária, se faço-me eu mesmo meu próprio elogio, não me ponho em situação menos inconveniente. Simplesmente não sei o que responder-te!”

CÁRMIDES – Estou aqui em situação bastante difícil. Por um lado, se digo que não sou sensato, estaria bastante fora de lugar que alguém diga tal coisa de si mesmo; ademais, farei com que Crítias, que é inclusive nossa testemunha, pareça diante dos outros um embusteiro, aliás, não só ele como muitos que afiançam que pareço sensato. Por outro lado, aquele que se diz sensato corre o risco de se tornar insuportavelmente arrogante. Então antes de que me examines, Sócrates, nada tenho a dizer.”

SÓCRATES – Para que saibamos se a sabedoria reside ou não em ti, diz-nos: que é a sabedoria em tua opinião?

CÁRMIDES – (…) Sócrates, a sabedoria parece consistir, para mim, em fazer todas as coisas com moderação e comedimento; andar, falar e agir em tudo dessa maneira; numa palavra, a sabedoria seria uma certa medida ou justeza.”

SÓCRATES – Diz-se por aí, querido Cármides, que os que procedem com medida são sábios. Mas há razão nessa sentença?”

Não seria a sensatez tudo que se faz de modo ágil?”

SÓCRATES – E que é mais belo para um mestre de escola, escrever agilmente ou com medida?

CÁRMIDES – Agilmente.

SÓCRATES – Ler rápido ou devagar?

CÁRMIDES – Rápido.

SÓCRATES – E tocar a lira com desenvoltura e lutar com agilidade não é mais belo que fazer todas essas coisas com mesura e lentidão?¹

CÁRMIDES – Sim.

SÓCRATES – E então? No pugilato e nos combates de todo gênero, não é sempre assim?

CÁRMIDES – Absolutamente.”

Por exemplo, ensinar algo a alguém, não é melhor fazer com rapidez e fluidez que com lentidão e pesadez?”

E a agudeza de raciocínio, não é algo assim como agilidade, e seu contrário a torpeza da mente?”

¹ Na tradução de Azcárate perde-se todo o gradiente, os matizes que a cada nova sentença Sócrates vai colocando nas expressões, para fazer seu interlocutor cair em contradição, ou melhor, já que Sócrates não é um sofista barato: para fazê-lo ver que, ao definir assim a sabedoria, qualquer homem cai em contradição.

SÓCRATES – É a sabedoria bela?

CÁRMIDES – Sim.

SÓCRATES – Logo, pelo menos no que concerne ao corpo, não é a mesura ou a medida, mas a velocidade que constitui a sabedoria, posto que a sabedoria é uma coisa bela.”

Então a sensatez não pode ser algo tranqüilo. Dir-se-ia que a sensatez é contrária ao repouso e à serenidade. (…) Mas se as ações calmas e prudentes não são em si mais valiosas, necessariamente, que as ações intrépidas e veementes, na verdade a sensatez seria algo indiferente ao tranqüilo e ao intranqüilo. Pois no andar e no falar não é prudente ser apressado sempre. Só o que sabemos é que a sensatez é muito bem-avaliada, destarte. E há coisas vagarosas que são bem-avaliadas!”

CÁRMIDES – Me parece, agora que tu o disseste, me corrigindo, que o próprio da sabedoria é produzir o rubor, fazer do homem mais modesto e timorato; a sabedoria seria, então, o pudor.

SÓCRATES – Que seja, então. Não confessaste antes que a sabedoria era uma coisa bela?

CÁRMIDES – Sim.

SÓCRATES – E os homens sábios são igualmente bons?”

CÁRMIDES – A sensatez também pode ser algo que torna o homem mais tímido e desperta-lhe o pudor.”

Mas o que dizes de Homero? Crês que ele está errado quando afirma

<Não é boa a companhia do pudor para o homem indigente>(*)?

(*) Odisséia XVII”

– Se o pudor pode ser tão bom quanto mau, não é sensatez, pois esta é sempre boa.

– De acordo.”

a sabedoria consiste em fazer o que nos é próprio.”¹

¹ Em que pese preferir, no todo, a versão de Azcárate, novamente encontro neste ponto específico maior felicidade na segunda tradução. Ver abaixo, quando reaparece, qual foi a escolha da 2ª tradução para “fazer o que nos é próprio”.

Que é o <ocupar-se>?”

SÓCRATES – Ó, pícaro! Foi Crítias ou algum outro filósofo que te sugeriu esta idéia?”

se descobrirmos o que isto significa, não me surpreenderei pouco; é um verdadeiro enigma!”

CÁRMIDES – Eu não sei de nada, por Zeus! Mas não seria impossível que quem falou desta forma se compreendesse a si próprio.

Ao dizer isso, Cármides me sorria e dirigia o olhar a Crítias, que se encontrava visivelmente vermelho já há algum tempo. (…) Percebi que jamais me enganara: Crítias era o autor da última resposta que me dera Cármides acerca da definição de sabedoria.”

não menos colérico contra o jovem que um poeta contra o ator que desempenha mal seu papel”

Via-se que Crítias, que, já fazia um tempo, sentia-se atacado e demonstrava vontade de sobressair em relação a Cármides e os presentes, incapaz de conter-se por muito mais, estava prestes a se manifestar. Tanto mais, então, me pareceu que meu palpite acertara em cheio: Cármides escutara justo de Críticas aquela definição de sensatez. Assim, Cármides, em apuro na defesa da definição, não querendo se associar ao que Crítias dissera, parecia querer que o tio percebesse como fôra por mim refutado. Foi depois da última fala do sobrinho que Crítias, sem poder se segurar, visivelmente chateado, exatamente como o autor que vê o artista representar mal suas obras, declarou finalmente:

CRÍTIAS – Quer dizer então, Cármides, que se tu mesmo não sabes o que tinha na cabeça quem definiu a sensatez como <ocupar-se daquilo que é seu> atribuis a este alguém automaticamente a qualidade que desconheces, isto é, asseveras que quem definiu assim a sensatez não sabia, tampouco, que é que lhe passava pela própria cabeça quando a definiu?”

Trabalhar com vistas ao belo e ao útil, eis aqui o que se chama ocupar-se; e os trabalhos deste gênero são para Hesíodo ocupações¹ e o autêntico agir.”

¹ Neste sentido, Hesíodo divide os trabalhos em dois: aquele indigno, que mal mereceria o nome de “trabalho”, e o trabalho digno em si, que ele também equivale a estar ocupado, à ação íntegra e excelente.

CRÍTIAS – Eu jamais disse que <ocupar-se de> é o mesmo que <fazer>. Segundo Hesíodo, nenhum trabalho é desonroso. E o artesão faz o que é dos outros, embora se ocupe só do seu.”

SÓCRATES – (…) Que assim seja. Dá às palavras o sentido que mais te agrade; basta-me que as definas simultaneamente a seu emprego. (…) Fazer o bem ou trabalhar por ele, ou como queiras chamá-lo, é isso que tu chamas sabedoria?”

CRÍTIAS – Não pestanejo, Sócrates.

SÓCRATES – Sábio é aquele que faz o bem, não o que faz o mal?

CRÍTIAS – Tu mesmo, querido amigo, não és deste parecer?

SÓCRATES – Não importa; o que agora temos de examinar não é o que eu penso, mas o que tu dizes.

CRÍTIAS – Pois bem; o que não faz o bem mas o mal, declaro que não é sábio; o que não faz o mal, mas o bem, este eu declaro sábio. (…)

SÓCRATES – Poderá suceder que tenhas razão. Não obstante, uma coisa me chama a atenção, e é que admites que um homem possa ser sábio e não saber que o é.

CRÍTIAS – Não há nada disso, Sócrates. Não o admito!

(…)

CRÍTIAS – Não, Sócrates, isto não é possível. Se crês que minhas palavras conduzem necessariamente a esta conseqüência, prefiro retirá-las. Prefiro antes confessar sem nenhum constrangimento que me expressei inexatamente, a conceder que se possa ser sábio sem conhecer-se a si mesmo. Não estou distante de definir a sabedoria como o conhecimento de si mesmo, e de fato sou da mesma opinião daquele que gravou no templo de Delfos uma inscrição deste gênero: Conhece-te a ti mesmo. Esta inscrição é, a meu ver, um cumprimento que o deus dirige aos que entram, em vez de ser uma fórmula ordinária, conforme muitos, tal qual <Sê feliz!>Creio que o deus julgou que uma mensagem mais direta como esta última não seria conveniente, e que aos homens deve-se desejar não a felicidade, mas a sabedoria. Eis aqui em que termos tão distintos dos nossos fala o deus aos que entram em seu templo, e eu compreendo bem o pensamento do autor da inscrição (…) linguagem um pouco enigmática, sim, como a do adivinho. ‘Conhece-te a ti mesmo’ e ‘sê sábio’ são a mesma coisa, no fundo, pelo menos é o meu parecer. Há outros homens que gravaram inscrições mais recentes nos templos, inscrições bem mais simplórias: Nada em demasia; dá-te em caução e não estarás longe da ruína, etc. Isso é coisa de gente que tomou a sentença conhece-te a ti mesmo por uma simples afirmação, digo, conselho, e não pelos cumprimentos do deus aos verdadeiramente sábios que ali entravam. (…) Ora, Sócrates, quiçá estejas certo ao final, quiçá eu o esteja. Em todo caso, nada de sólido firmamos aqui.”

SÓCRATES – Ah, Crítias! Assim que começaste a falar, entrevi por onde encaminharias teu discurso; ou seja, que chamarias as coisas próprias de alguém boas, e a criação (poiesis) de coisas boas de atividades (praxeis). Também de Pródico(*) ouvi ilimitadas distinções de palavras acerca disso. Fica à vontade para determinar o sentido que queres às palavras, contanto que bem justifiques tuas escolhas ao final. Agora, sugiro que comecemos então a definir as coisas com clareza desde um princípio que nos seja mútuo. É a <ocupação com> (praxeis) coisas boas que tu chamas de sensatez? E também a criação ou produção (poiesis), ou como mais queiras chamá-las, tu também chamas de sensatez, correto?

CRÍTIAS – Perfeito, Sócrates. Ambas as coisas são sensatas, ou antes ambos os verbos se referem àquilo que é sensato.

(*) Para mais sobre Pródico de Ceos, sofista, cientista político e gramático que atuou na Atenas socrática, cf. principalmente o Protágoras [https://seclusao.art.blog/2018/03/02/protagoras-outros/] e o Eutidemo [https://seclusao.art.blog/2018/08/31/eutidemo-ou-do-disputador-ou-da-mentira-sofistica-frente-a-verdade-dialetica/].”

CRÍTIAS – …de modo que defino quem se ocupa do seu como quem se ocupa de boas obras.”

SÓCRATES – Pode ser que um médico, tendo ou não curado o paciente (tendo ou não feito um bom trabalho), ignore se tratou de modo eficaz o paciente? Segundo tua definição, Crítias, tendo o médico curado o paciente, ignorando-o ou não se realmente o fez, ele obrou bem, isto é, sensatamente. Estou certo?

CRÍTIAS – Sim, Sócrates. Foi o que eu afirmei. (…) Inclusive equiparo o ser sensato ao Conhece-te a ti mesmo² da inscrição em Delfos. (…) De modo que o Conhece-te a ti mesmo não é em verdade um conselho do deus, como querem os homens que interpretam a inscrição demasiado à letra. A frase é antes uma saudação aos homens sensatos que qualquer outra coisa. Mas os homens mais se satisfazem com exortações diretas que com enigmas complicados.”

¹ “Sensato”, na 2ª tradução.

² Na tradição, frase provinda de Apolo. Na doxografia, muito associada a Sócrates, a frase é no entanto mais atribuída como original de Tales de Mileto, um dos Sete Sábios da Grécia Antiga, de geração anterior a sua.

CRÍTIAS – A sabedoria não é semelhante às outras ciências; estas não são semelhantes entre si, e tu supões em teu raciocínio que todas se parecem”

A sensatez é então um saber, ou um saber-de-algo?”

Não é a medicina um saber sobre a saúde?”

SÓCRATES – E a estática é a ciência do pesado e do leve; o pesado e o leve diferem da estática mesma. Não crês?

CRÍTICAS – Sim.

SÓCRATES – Pois bem; diz-me: qual é o objeto da ciência da sabedoria, que seja distinto da sabedoria ela mesma?”

O saber sobre si mesmo, que nome teria? E que obra gera de diferente de si mesma (a própria sensatez)? Pois que o matemático gera o saber sobre os números pares e ímpares e suas correlações, como o arquiteto gera o saber sobre edificações. A sensatez e o autoconhecimento mesmos devem gerar o saber sobre algo.”

CRÍTIAS – (…) Esta semelhança não existe. Enquanto todas as demais ciências¹ são ciências de um objeto particular e não do todo delas próprias, só a sabedoria é a ciência de outras ciências e de si mesma. (…) propões-te apenas a me combater e refutar, Sócrates, sem fixares-te na essência da questão!

SÓCRATES – Mas como, Crítias? Podes crer que se eu te pressiono com minhas perguntas seja por outro motivo além de que assim eu me obrigaria a dirigir-me a mim próprio a fim de examinar minhas palavras? Quero dizer, o temor de me enganar a respeito das coisas pensando saber e na verdade constatar que não sei não é aquilo que sempre me moveu e continua a me mover?”

CRÍTIAS – Sócrates, todos os outros saberes são saberes-sobre-algo, porém a sensatez se diferencia por ser um saber sobre todos os outros e também sobre si. Vejo que estás mais preocupado em refutar-me que em seguir o tema da discussão!(*)

(*) A partir desta definição de sensatez por Crítias entra-se na parte mais original do diálogo Cármides. Os trechos que seguem são justamente objeto de várias investigações recentes, como as de E. MARTENS; B. WITTE, Die Wissenschaft vom Guten und Bösen. Interpretationen zu Platons ‘Charmides’, Berlim, 1969; T.B. EBERT, Meinung und Wissen in der Philosophie Platons. Untersuchungen zum ‚Charmides‘, ‚Menon‘ und Staat, Berlim, 1974, pp. 55-82. Pioneiro no tema do Cármides foi o valioso estudo de CARL SCHIRLITZ, publicado no final do século XIX: «Der Begriff des Wissen vom Wissen in Platons ‚Charmides‘ und seine Bedeutung für das Ergebnis des Dialogs», em Neue Jahrbücher für Philologie und Paedagogik 155 (1897), 451-476 e 513-537.”

SÓCRATES – Mas como podes supor algo assim? Pensas que, ao refutar-te, faço-o por alguma causa distinta que a que me leva a me investigar a mim mesmo e aquilo que digo, talvez por temor de que me escape aquilo que penso que sei, sem sabê-lo? Digo-te, pois, Crítias, que é isto que trato de fazer agora: analisar nosso discurso, sobretudo por mim mesmo, mas também, acessoriamente, em prol de meus outros amigos. Não crês que tornar transparente a estrutura de cada um dos seres seja um bem comum para quase todos os homens?

CRÍTIAS – Creio, Sócrates, e muito!”

¹ A segunda tradução inteira se exime do emprego da palavra ciência. Como designadora das matemáticas, medicina, da arte do artesão, seria mais fácil empregá-la para nós, leitores modernos, mas realmente entendo a intenção de não usar o termo para a sabedoria (como a ciência da própria ciência), o que confundiria o leitor “empírico” moderno, tendente ao positivismo metodológico. Não é ciência no sentido baconiano aquela que aqui se discute. Tanto que aqui se trata mais do saber de um ofício, quando se fala das ciências particulares: o médico entende de medicar, o sapateiro de fazer sapatos. Seria espúrio para o cientista contemporâneo chamar o artesão de “seu colega” (cientista), para não falar também que na contemporaneidade a matemática não é mais considerada uma hard science.

Ânimo, amigo! Responde a minhas perguntas, segundo teu próprio juízo, sem inquietar-te se é Crítias ou Sócrates aquele que leva a melhor ao final. Aplica todo teu espírito no objeto que nos ocupa agora, e que seja uma só coisa tua preocupação: a conclusão a que nos conduzirão nossos próprios esforços.”

A ti não te importes se é de Sócrates ou de Crítias o discurso que está sendo refutado. Mas atua com diligência para que, quando parecer que estás em apuros, vejas uma saída plausível com o auxílio de teus argumentos.”

CRÍTIAS – Penso que, única entre todas as demais ciências, a sabedoria é a ciência de si mesma e de todas as demais ciências.

SÓCRATES – Logo, será também a ciência da ignorância, se o é da ciência?

CRÍTIAS – Sem dúvida.

SÓCRATES – Portanto, só o sábio se conhecerá a si mesmo, e estará em posição de julgar daquilo que sabe e daquilo que não sabe. De igual modo, só o sábio é capaz de reconhecer, quanto aos demais, o quê cada um sabe crendo sabê-lo, assim como o quê cada um crê saber, sem contudo saber. Nenhum outro pode fazer esse juízo. Numa palavra, ser sábio, a sabedoria, o conhecimento de si mesmo, tudo isso se reduz a saber o quê se sabe e o quê não se sabe. Não pensas tu idem?

CRÍTIAS – Em absoluto.”

A sensatez é também um saber do não-saber?”

Só o sensato, portanto, saberá aquilo que crê saber e na verdade não o sabe.”

SÓCRATES – (…) examinemos (…) primeiro se é possível ou não saber que uma pessoa sabe o quê sabe e não sabe o quê não sabe. Em segundo, supondo isto possível, que utilidade pode resultar deste saber?

É possível o saber que sabe o que sabe e que não sabe o que não se sabe?”

Concebes uma vista que não visse nenhuma das coisas que vêem as demais vistas, mas que seja a vista de si mesma e das demais vistas, e até do que não é visto? Concebes uma vista que não visse a cor, apesar de ser vista, mas que se visse ela mesma e as demais vistas? Crês que semelhante vista existe?

CRÍTIAS – Por Zeus, Sócrates, claro que não!

SÓCRATES – Concebes um ouvido que não ouvisse nenhuma voz, mas que se ouvisse a si mesmo e aos outros ouvidos, e até ao que não é ouvido?

CRÍTICAS – Tampouco.

SÓCRATES – Considerando todos os sentidos de uma só vez, parece-te possível que haja um que seja o sentido de si mesmo e dos outros sentidos, mas que não sinta nada do que os outros sentidos sentem?

Por conseguinte, uma coisa seria ao mesmo tempo maior que si mesma e menor que si mesma; mais pesada e mais leve; mais velha e mais nova, e assim com todo o demais. Não é indispensável que a coisa, que possui a propriedade de referir-se a si mesma, possua ademais a qualidade a que tem a propriedade de se referir?”

Estou em uma aporia. (…) Não parece que esse saber ora sabe mais, ora sabe menos do que ele sabe?”

Se é verdade que sou um dobro, não é verdade que sou também a metade? Que se o dobro de algo é 2x, o dobro é tanto o 2 quanto o x?”¹

¹ Sócrates não o diz recorrendo a símbolos aritméticos, que inclusive são criação muito posterior do espírito (da razão humana), mas achei que não faria mal em condensar assim seu pensamento.

Seria possível uma ciência da ciência? Eu sou incapaz de afirmá-lo; e ainda que haja, eu de minha parte não poderia admitir que esta ciência seja a sabedoria antes de haver examinado se, isto pressuposto, tal conhecimento nos seria útil ou não; porque me atrevo a declamar que a sabedoria é uma coisa boa e útil. Mas tu, filho de Calescro, que estabeleceste que a sabedoria é a ciência da ciência e igualmente da ignorância, prova-me, antes de qualquer coisa, que isto é possível”

Crítias, como aqueles que bocejam ao ver alguém bocejar, pareceu-me tão desconcertado quanto eu. Habituado ele a se ver coberto de elogios, constrangia-se à mera olhada dos circunstantes; teimava em não confessar ser incapaz de esclarecer as questões que eu formulei, falava, falava, e nada dizia – apenas disfarçava sua impotência aos menos perspicazes. Eu, que não queria abortar a discussão, me interpus novamente:”

E Crítias se via tão atônito e confinado à aporia quanto eu, agora; mas tinha vergonha de ceder diante dos demais. Nesse impasse, ele tampouco dizia nada que avançasse a discussão do problema.”

SÓCRATES – (…) Sem dúvida, se alguém possui aquilo que conhece a si mesmo, reconhecerá, logicamente, também a si mesmo. Mas o que interessa saber é se quem possui esta ciência deva necessariamente saber o quê sabe e também aquilo que não sabe!

CRÍTIAS – Sem dúvida, Sócrates, porque trata-se da mesma coisa.”

Como pode o saber do saber ser igual o saber da ignorância?”

Em medicina e política, é fácil saber que se sabe algo em medicina e política.”

Mas quanto ao saber do saber, como saberá que sabe? A sensatez não parece ensinar nada.”

O sensato não sabe o que o médico sabe ou não sabe, nem o que o político sabe ou deixa de saber.”

É através da medicina que conhecemos o que é são, não através da sabedoria; e através da música, o que é harmonioso (não através da sabedoria); através da arquitetura, o que é necessário para se construir (não da sabedoria). Concorda que é assim sucessivamente com todas as demais artes e ciências?”

Aquele que ignora essas coisas não sabe o quê ele sabe, só sabe que sabe.” Esta expressão é a formulação mais extensa e elaborada do aforismo mais célebre de Sócrates-Platão: o só sei que nada sei. Ao contrário do que vulgarmente se diz em torno desta frase, Sócrates não abdica do conhecimento, abraçando um ceticismo e um niilismo teórico absolutos. O sábio não sabe a medicina, o sábio não sabe a música, o sábio não é arquiteto, nem piloto de navio, nem estratego militar, nem a sibila. Mas, seu cognome o indica, ele possui uma sabedoria, a mais especial das sabedorias, a sabedoria em si. Sem referências às outras, é uma sabedoria inócua, vazia, despida de conteúdo. Somente com referência às outras sabedorias é a sabedoria do sábio (do filósofo) a ciência da ciência. Isto já é algo mais que o niilismo fundamental do conhecimento vulgar da expressão. Mas implica que o sábio pode ou deve ser útil? Não sem a devida humildade e a visão do todo que este conhecimento exige se não for apenas Retórica (ou seja, o diálogo se chama Cármides porque foi ele que deu a principal lição, no início, em sua fala discreta): “Só” sei que nada sei: o só representa mais do que uma partícula “secundária” da frase-síntese do método maiêutico: é o conhecimento positivo, mas que não se atreve a usurpar o lugar de cada um dos outros especialistas (nas demais sabedorias técnicas), de que sem o conhecimento natural cumulativo, da experiência, seu saber de nada vale ou adianta; ainda assim, é o primeiro passo necessário, a primeira certeza no sentido objetivo da filosofia moderna, até os dias da nossa Filosofia. Não sei “o quê” (conteúdo) posso saber ou não, mas sei qual é o critério da busca da verdade. Nasce aqui a epistemologia atemporal. Admite que não existe uma modalidade de sabedoria que esgote a própria sabedoria, a ponto de eliminar a ignorância, que é sempre a estrada do filósofo. E nenhuma filosofia se faz sem um chão firme sob os pés. Em suma, Sócrates entendeu a condição humana: o limite dinâmico da própria capacidade do saber. (A possibilidade d)O auto-conhecimento (do homem e das coisas pelo próprio homem que pode se entender e entender as coisas, como são, apenas a partir desse parêntese – de que o quê ele sabe sobre si mesmo condiciona e limita seu conhecimento atual do todo, sem que essa regra seja jamais passível de quebra, embora seu conhecimento atual varie com o tempo).

Logo, a sabedoria e o ser sábio consistem não em saber o quê se sabe e o quê não se sabe, mas unicamente em saber que se sabe e (outrossim) que não se sabe.” Reiteração do dito acima: o saber não pode ser sem a ignorância, e vice-versa.

Logo, a sabedoria não nos põe em posição de reconhecer no outro, que alega sempre saber alguma coisa, se este outro sabe o quê diz saber, ou se porventura não o sabe de verdade. Toda a virtude da verdadeira sabedoria (a ciência das ciências) se limita a nos ensinar que possuímos uma certa ciência. Qual é a matéria desta ciência, não é a ciência das ciências quem nos dirá.”

O médico não sabe nada sobre a medicina, pois a medicina é sabedoria do saudável e do doente, não de si mesma. O sábio reconhecerá que o médico possui uma sabedoria; mas que sabedoria é essa, só se o pode saber com referência aos objetos da medicina.”

Afora o médico, ninguém é competente para isso, nem o próprio sábio, aliás, muito menos ele. Não fosse assim, teríamos um médico-sábio, ou um sábio-médico, figura quimérica.”

E bem, querido Crítias, reduzida a sabedoria a estes termos, qual pode ser sua utilidade? Ah! Se, como supusemos de início, o sábio soubesse o quê sabe e o quê não sabe; se soubesse que sabe certas coisas e não sabe outras certas coisas… Se pudesse, além disso, julgar aos demais homens quanto ao que ele julga na própria pessoa, aí então, eu o declaro, ser-nos-ia INFINITAMENTE ÚTIL o sermos sábios! Passaríamos a vida, inclusive, isentos de falha enquanto possuíssemos a sabedoria, e o mesmo se aplicaria a quem agisse conforme nossas prescrições.” Há uma tão infinitesimal ironia nessa fala de Sócrates que nós não a captaríamos como ironia, sem o contexto do diálogo e sem expertise em filosofia não fosse por recursos modernos como o colocar em CAIXA ALTA, por exemplo. A verdade é que a sabedoria no sentido de Crítias não existe, daí então Sócrates considerá-la inútil, ainda que existisse. Pois que é a vida, senão sucessivos erros misturados com acertos? E que sabedoria, sendo sabedoria, negligenciaria esse dado tão importante (o de que é impossível ser sábio, onisciente, perfeito)?

O médico sabe sobre saúde, mas não sobre o saber, já que isso está só para os sensatos. Porém, resulta que o médico nada sabe de medicina, pois a medicina é o saber sobre a saúde. Ou não será assim?”

O sensato não é um médico, ou não tem de ser um médico.”

O sensato não pode distinguir o bom médico do mau médico, o charlatão. Só um médico poderia fazê-lo.”

Que proveito há, portanto, na sensatez, Crítias?”

Talvez que o objeto de nossa indagação seja absolutamente inútil! O que me faz ter esses pressentimentos acerca da sabedoria (a que definimos) são coisas que me vêm ao espírito. (…) Creio que excede meus poderes. Mas quê importa? Quando algo se nos coça cá no espírito não há remédio senão examinar tal coisa! Não deixeis que escape ao acaso, por pouco amor que tenhas por ti mesmo!”

ao vivermos em prol da sabedoria, viveremos por isso melhor e mais felizes?”

SÓCRATES – (…) me parece que só tomas por felizes aqueles que vivem segundo certas sabedorias. Talvez só concedas este privilégio ao que designei previamente, isto é, àquele que sabe tudo o que deve suceder: falo do adivinho.

CRÍTIAS – Não só a esse sábio, Sócrates.

SÓCRATES – Quais outros então? Poderias estar falando daquele que une o conhecimento do futuro, do passado e do presente? Supondo que um tal homem existe, claro. Creio que confessarás que nenhum outro senão este possa viver segundo a sabedoria.

CRÍTIAS – Confesso.

SÓCRATES – Mais uma pergunta: Qual destas ciências é a que faz deste homem feliz? Ou são todas de uma vez, cada uma em sua proporção?

CRÍTIAS – Nada disso.

SÓCRATES – Então, qual é a ciência que eleges? A dos acontecimentos passados, presentes e futuros? A do xadrez?¹

CRÍTIAS – Ah, a do jogo de xadrez!! Que absurdo!

SÓCRATES – A dos números?

CRÍTIAS – Essa também não.

SÓCRATES – A do que é saudável?

CRÍTIAS – Hm, talvez, mas não de todo.

SÓCRATES – Mas diz de uma vez, qual é a ciência que mais contribui para a felicidade do sábio?

CRÍTIAS – Ora, a ciência do bem e do mal.

SÓCRATES – Ah, pícaro! Depois de tanto caminharmos faz-me agora rodar em círculos!”

Mas o suposto saber do saber, que não ignora o que ignora, saberia saber mais do que sabe atualmente…”

CRÍTIAS – A sensatez é saber sobre o bem e o mal.”

SÓCRATES – …Porque nosso (mau) pressuposto diz que se sabem aquelas coisas que não se sabem, ainda que, em minha opinião, não houvesse nada que nos parecesse mais absurdo do que isso!”

¹ “Damas” na segunda tradução.

E esta ciência, me parece, não é a sabedoria, senão aquela cujo objeto é o ser útil;¹ porque não é a ciência da ciência e da ignorância, mas a do bem e do mal.”

¹ No fundo, a ética é a mais importante das sabedorias, mas é também a mais difícil, e a mais imprecisa e volátil de todas.

Supusemos, pois, que existe uma ciência da ciência, apesar de que a razão não permite nem autoriza semelhante concepção. Depois, admitimos que esta ciência conhece os objetos das outras ciências, e isso é contrário à razão! Desejaríamos que o sábio pudera saber que ele sabe o quê sabe e o quê não sabe. Na verdade fomos generosos em excesso fazendo esta última concessão, uma vez que consideramos, neste exercício, que é possível saber, de certa maneira, o que absolutamente não se sabe. Admitimos, por fim, que ele sabe e que ele não sabe, ao mesmo tempo – o que é o mais irracional que se possa imaginar. (…) qualquer que seja a definição da sabedoria que tenhamos inventado, de comum acordo, essa ou aquela definição sempre nos fez ver, com naturalidade, que nenhuma delas pode-nos ser útil.”

ao fim, amigo Cármides, me ressinto de haver aprendido com tanto afã as palavras mágicas daquele trácio, para depois de tudo concluir que nenhum valor possuem! Mas não, não posso crer que assim seja, e é mais adequado pensar que eu é que não sei buscar a verdade! A sabedoria é, sem dúvida, um grande bem; e se tu a possuis, és um mortal feliz. Mas examina atentamente se a possuis verdadeiramente, a fim de que não necessites de palavras mágicas”

Mas o que mais me irrita nisso tudo é o encantamento que havia aprendido do trácio e que, depois de tanto esforço, descubro agora ser algo quimérico e fútil.”

CÁRMIDES – Sócrates, sei lá eu se sou sensato ou não! Como nada me impede, não vejo também por que não haveria de me submeter ao seu encantamento, por quantos dias forem precisos! Até o dia em que tu me digas que tenho bastante sensatez, ao menos.”

CRÍTIAS – A maior prova que podes dar-me de tua sabedoria, meu querido Cármides, é entregar-te aos encantos¹ de Sócrates e não afastar-te dele nem um só minuto.¹

CÁRMIDES – Estarei sempre com ele, seguirei seus passos; porque eu me tornaria um réprobo ao não te obedecer, ó primo, tu que és meu tutor.”

¹ “Entregar-te aos encantos” é bastante ambíguo, e nos remete obviamente a uma cena romântica. Encantamentos já modificaria consideravelmente nossa compreensão da frase, e é isso que torna Platão tão rico e polissêmico. Entregar-se às “palavras mágicas” do discurso sábio de Sócrates é o sentido leal à epistemologia que aqui buscamos.

SÓCRATES – Ah, e que é que vós dois tramais agora?

CRÍTIAS – Absolutamente nada, Sócrates. Só isto: que tens-nos as tuas ordens.

SÓCRATES – Como?! Empregais então a força, sem deixar-me a liberdade da escolha?!”¹

Sócrates, serei teu discípulo. E meu tio Crítias está com isso de acordo.”¹

Vais obrigar-me assim, sem prazo nenhum para preparar-me?”¹

¹ Aqui o que transforma bastante o sentido da segunda tradução foi minha própria opção de tradutor, não o texto-fonte. Nos dois textos em espanhol o que se obtém de Sócrates, o que a dupla de parentes Crítias-Cármides dele consegue, é que ele recite o encantamento (o diálogo termina antes, porque ‘não existe’ este encantamento), mas este é o que menos importa e só serve de pretexto para todo o diálogo. Nesse tocante, queriam, portanto, que Sócrates admitisse Cármides como paciente. Mas Sócrates não é médico no sentido habitual; seria no máximo um médico da alma do homem; daí que na verdade inaugura-se aqui uma relação de professor-aluno ou mestre-discípulo. Como sabemos entretanto, Sócrates não procurava expressamente por discípulos, pois em verdade morrera sendo o discípulo número 1 da própria sabedoria, e não aceitava ser chamado de mestre, mesmo sendo visivelmente o homem mais sábio de seu tempo.

EXPLICAÇÃO DO SENTIDO DA FRASE “SÓ SEI QUE NADA SEI”

“Aquele que ignora essas coisas não sabe o quê ele sabe, só sabe que sabe.”

Sócrates no Cármides de Platão

Esta expressão é a formulação mais extensa e elaborada do aforismo mais célebre de Sócrates-Platão: o só sei que nada sei. Ao contrário do que vulgarmente se diz em torno desta frase, Sócrates não abdica do conhecimento, abraçando um ceticismo e um niilismo teórico absolutos. O sábio não sabe a medicina, o sábio não sabe a música, o sábio não é arquiteto, nem piloto de navio, nem estratego militar, nem a sibila. Mas, seu cognome o indica, ele possui uma sabedoria, a mais especial das sabedorias, a sabedoria em si. Sem referências às outras, é uma sabedoria inócua, vazia, despida de conteúdo. Somente com referência às outras sabedorias é a sabedoria do sábio (do filósofo) a ciência da ciência. Isto já é algo mais que o niilismo fundamental do conhecimento vulgar da expressão. Mas implica que o sábio pode ou deve ser útil? Não sem a devida humildade e a visão do todo que este conhecimento exige se não for apenas Retórica (ou seja, o diálogo se chama Cármides porque foi ele que deu a principal lição, no início, em sua fala discreta): “Só” sei que nada sei: o só representa mais do que uma partícula “secundária” da frase-síntese do método maiêutico: é o conhecimento positivo, mas que não se atreve a usurpar o lugar de cada um dos outros especialistas (nas demais sabedorias técnicas), de que sem o conhecimento natural cumulativo, da experiência, seu saber de nada vale ou adianta; ainda assim, é o primeiro passo necessário, a primeira certeza no sentido objetivo da filosofia moderna, até os dias da nossa Filosofia. Não sei “o quê” (conteúdo) posso saber ou não, mas sei qual é o critério da busca da verdade. Nasce aqui a epistemologia atemporal. Admite que não existe uma modalidade de sabedoria que esgote a própria sabedoria, a ponto de eliminar a ignorância, que é sempre a estrada do filósofo. E nenhuma filosofia se faz sem um chão firme sob os pés. Em suma, Sócrates entendeu a condição humana: o limite dinâmico da própria capacidade do saber. (A possibilidade d)O auto-conhecimento (do homem e das coisas pelo próprio homem que pode se entender e entender as coisas, como são, apenas a partir desse parêntese – de que o quê ele sabe sobre si mesmo condiciona e limita seu conhecimento atual do todo, sem que essa regra seja jamais passível de quebra, embora seu conhecimento atual varie com o tempo).

ESPERTEZA, INTELIGÊNCIA E SABEDORIA: DO SABER QUE NADA SABE

Muito se fala sobre esperteza, inteligência e sabedoria. O povo é bom em apreender imediatamente qualidades, mas ruim em definir conceitos.

A esperteza está associada à imediatidade da memória e ao egoísmo. Seu contrário é a lerdeza.

A inteligência, ao acúmulo da memória, tendente à paralisia se o uso da memória se aproxima do máximo, como com uma caixa de e-mail e seu espaço de armazenamento cada vez mais curto sem a manutenção do usuário. Tendem também a inteligência e seu constante cultivo a uma espécie de desinteresse, embora existam outras (espécies de desinteresse). Seu oposto é a burrice clássica.

Esperteza e inteligência são termos relativamente intercambiáveis no uso do dia a dia, e esse fato não é acidental. Há um pressentimento de que alguém é “um dos dois”, mas não ambos em conjunto. É até quase impossível ser inteligente sendo esperto. Ou ser esperto sendo inteligente, graças à natureza de “depósito da memória” da faculdade da inteligência. Do ângulo da mundanidade, o esperto e o inteligente são como água e óleo. A sabedoria é transcendental e ainda não entrou na conversa.

É que do sábio e da sabedoria nada se pode afirmar. A sabedoria é tão instável e flutuante quanto o humor e, para todos os efeitos, todo homem é instável de humor, caso essa simples analogia não tenha bastado para estabelecê-lo diante do leitor. Estamos em uma aporia. Precisaremos da ajuda de um filósofo consagrado neste momento:

SÓ SEI QUE NADA SEI” (Sócrates) nunca foi uma afirmação irônica ou falsa modéstia. Sempre significou no seu mais profundo aquilo que diz literalmente (em modo alongado, para melhor compreensão), quer seja, “Cheguei a saber o que vem a ser a sabedoria, mas me é impossível determinar se sou ou não sábio, exatamente em virtude da própria descoberta, visto que nenhum homem neste mundo pode dizê-lo e ter esperança de atingir a verdade da questão. Pode ter a mais plena convicção de ser sábio e no entanto estar errado. Normalmente está, quando tem certeza. Somente o que se pode afirmar é: sou ‘mais sábio’ do que era outrora; e quem haveria de afirmar que é ‘menos sábio’? É bem possível (a situação de se tornar menos sábio ao longo do tempo), mas o ego não admitiria, seria uma chaga profunda. Talvez possamos dizer que nosso ego nunca é sábio. Enfim, sou mais sábio do que já fui antes, mas quão mais sábio me torno mais vejo o quanto sou ignorante, e posso prever uma situação em que sou dez vezes mais sábio que agora, e teria dez vezes mais dúvidas sobre minha própria sabedoria, pois me sentirei, neste caso, o possuidor do décuplo da ignorância. Portanto, como posso dizer, se as coisas são assim, que isto – meu eu atual – é a detenção da sabedoria? Decerto que ANTES não era sábio, se é que agora o sou; aí termina todo meu conhecimento.”

É isso que significa a transcendentalidade da sabedoria. Ela é indeterminável por discursos mundanos. Pela nossa capacidade de observação empírica. Não só nunca poderemos avaliar se somos sábios como nenhum homem poderá emitir este juízo sobre qualquer de seus semelhantes.

Também salta aos olhos que a ética é matéria transcendental, assunto para a metafísica. É por isso que seguirá para sempre indeterminada, porque o ser-ético depende sempre do contexto. O “SOU BOM?” e o “SOU SÁBIO?” caminham de mãos dadas.

Há uma imensidão de espertos, mas pode-se, sem dúvida, ser lerdo, burro e ignorante (este último o contrário de sábio), tudo ao mesmo tempo. Nem água, nem óleo. O esperto costuma ser arrogante e depreciar a esperteza alheia. Uma conduta demasiado inesperta.

Ao sábio, figura intangível, tanto se lhe dá: se é lerdo ou atento, precavido ou desprotegido, se tem a cabeça ‘cheia’ ou ‘vazia’, se é o cume do egoísmo ou o cume do heroísmo altruísta. Isso são valores humanos, inúteis no reino da sabedoria, e é por isso que, se um sábio houver, ele ainda assim não passa de um homem, porque chega o instante em que estes valores lhe são muito caros; todo desprezo é afetação ou estratégia conscientemente temporária. Sempre voltamos ao mesmo lugar. Talvez essa seja a tragédia do sábio, que sendo cotidiana e se repetindo ad nauseam se torna por fim uma comédia: ele deve ser o mais esperto e inteligente que jamais vimos, mesmo sem querer sê-lo! Está sempre correndo de e atrás de si mesmo. E o homem – qualquer homem – pode ele ficar parado?

O próprio Sócrates, na opinião de muitos homens, tinha a pior das mulheres. Mas talvez fosse a melhor, a que mais lhe convinha. Dela mesmo, podemos dizer que não fosse sábia? Assumindo que tudo que a historiografia machista nos deixou seja fidedigno, ainda assim ela foi casada com o homem que em seu tempo era considerado pelos outros homens (ou pelo menos pelos cidadãos atenienses) o mais sábio. Quem mais podia se jactar de tamanha sorte? A isto aceito a objeção de que com família é como com dinheiro: nem esperteza, nem inteligência, nem sabedoria atuam, é questão de sorte. Mas o que resta saber é se no caso de Xantipa o único móvel, a única causa, em sua biografia, para ter se tornado a esposa de Sócrates foi mesmo a sorte.

No entanto, Sócrates, além de cunhar a frase definidora da sabedoria (ou melhor: definidora da indefinibilidade prática da sabedoria, no limiar mais mestiço entre ignorância e saber jamais registrado), e de ter tido uma “esposa interessante” (porque gera muito debate entre os estudiosos até hoje) conforme a historiografia (e devemos suspeitar do fato de que Platão, o maior biógrafo ou romancista de Sócrates, jamais se preocupara com esta personagem), completou sua vida do modo lendário que mais depõe a favor da hipótese de que Sócrates era um sábio (como mártir ou inaugurador de religiões ou doutrinas): se não podemos afirmar quem foi sábio e ter certeza de acertar, podemos dizer que quem tem medo da morte¹ não pode ser um sábio (e veja: para complicar, até para isso, para o morrer, existe a capacidade do simulacro; que homem de aspecto valente diante do cadafalso podemos dizer com certeza que não está no fundo apenas representando um papel? que covarde não nos poderia estar secretamente pregando uma peça, talvez pregando uma peça até a si mesmo?).

¹ Afirmação arbitrária? Se a morte é justamente incompreensível para nós, inevitável e uma incógnita que define nosso modo ético de ser, como capítulo importante da vida! Como o sábio teria medo da morte, este acontecimento sem testemunhos, se forçosamente ignora este fenômeno como todos os ainda vivos, e se a sabedoria é justamente ter consciência perfeita de sua imensa ignorância? Se ‘tanto se lhe dá’ isso como aquilo, como dito acima?

Nenhuma flecha mergulha com mais ímpeto rumo a seu alvo do que o sábio rumo à morte, esta é a única certeza. Que ele será bem-sucedido no mergulho, disso tampouco podemos falar, não podemos cravar nada! Sócrates foi soldado na guerra e viveu por sete décadas. Não morreu uma morte precoce de Alexandre Magno, como não morreu uma morte tísica de poeta romântico.

HISTÓRIA DAS IDÉIAS 4: HINDUÍSMO & FILOSOFIA OCIDENTAL: Um esboço

Esse artigo (contendo também anotações fragmentárias) visa a integrar os conhecimentos transmitidos pelos Vedas-Upanishads (livros sagrados hindus) com o conhecimento em Primeira filosofia (Metafísica no sentido estrito ou Filosofia Continental, abarcando autores de Platão (séc. IV a.C.) ao pós-estruturalismo francês dos anos 1960). O post poderá ser lido em conjunto com outros da categoria Religião e da subcategoria Hinduísmo já presentes no Seclusão e indexados no menu. Usarei The Roots of Vedanta, de Sudhakshina Rangaswami, como bibliografia principal para as citações dos textos védicos (traduzidos por mim do inglês quando necessário).

Os Upanishads (revelações comentadas) são a cabeça e os Vedas em si são o tronco da visão e conhecimento hindus; a correta leitura dos Upanishads, portanto, pode ser considerada a aquisição da consumação da sabedoria transmitida pelos textos sagrados antigos da Índia. Mal comparando, os Upanishads seriam como os textos dos Escolásticos sobre o Antigo e o Novo Testamentos (Santo Agostinho e São Tomás de Aquino como os principais); mas o paralelo cessa quando se entende que, para o praticante da religião hindu, os Upanishads são de quase tão remota origem quanto os Vedas e, apesar de reconhecidamente escritos por mãos humanas, de indivíduos considerados “gurus”, são tratados como texto sagrado, indispensável para compreender a elaborada natureza dos Vedas. Isso faz com que os Upanishads gozem de uma autoridade que a Cidade de Deus ou a Suma Teológica jamais gozaram no Ocidente, mesmo em face da Igreja Romana.

O fato fundamental dos escritos Upanishads é que eles reconhecem a característica de arbitrariedade e às vezes insuficiência da língua para transmitir idéias, compreensão básica da Lingüística moderna e o esteio principal de toda a bibliografia, por exemplo, de Ludwig Wittgenstein. Como a linguagem, a partir de determinado ponto, se torna inadequada para articular a experiência em sua essência, os sábios antigos do Oriente utilizaram o recurso da exposição de mitos e símbolos como alegorias de seus ensinamentos (paralelo com Platão), chegando mesmo à utilização de conceitos puramente negativos (Hegel), necessários para abordar as intuições que levam ao Absoluto.

Os Upanishads são a primeira fonte direta (śruti prasthāna) do oriental para a cognição da Realidade Absoluta. Há mais de cem Upanishads, de forma que o que se realiza aqui é apenas um esboço de introdução ao tema. Os dez Upanishads comentados pelo sábio Sankara são considerados os Upanishads clássicos ou mais importantes, aqueles que se deve tentar ler, caso não haja tempo para a leitura de todo o catálogo dos Upanishads. Os Upanishads, desde o início, não pretendem ser uma descrição literal ou hiper-concentrada de saberes, dogmas ou revelações, como a Bíblia. Dessa forma, não está organizado em versículos, mas em capítulos de prosa como os livros técnicos ou de ficção ocidental modernos em sua quase totalidade, aproximando-nos do olhar védico. O importante será a compreensão holística de todo o conteúdo ali apresentado, e não debruçar-se sobre uma sentença, procurando o significado de um vocábulo como aforismo ou sentença para a vida. O que interessa é a compreensão global pelo adepto. Fenômeno similar se dá com o estudante de filosofia, que adquire conhecimento aos poucos consultando os vários autores de primeira grandeza, para só então partir para os de segunda ou terceira grandeza, buscando conhecimentos mais específicos. Tampouco há uma ordem preestabelecida para a leitura: pode-se começar por qualquer Veda ou Upanishad. O aprendizado é cumulativo, cíclico e recursivo.

Afora o próprio binômio Vedas-Upanishads, o texto da literatura mais importante para Sankara, a maior autoridade sobre o assunto, é o épico Bhagavad Gita. É como se na Ilíada e Odisséia homéricas estivessem comprimidos toda a doutrina de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Kierkegaard, Leibniz, Spinosa, Pascal, dentre outros. O Bhagavad consegue resumir os principais preceitos dos Upanishads e podem ser uma primeira leitura iniciática, ou uma leitura posterior, de reforço dos ensinamentos védicos.

A forma de trabalho da linha dos Upanishads é diametralmente oposta à do Bhagavad Gita, mas ambos atingem a mesma meta: os primeiros enfatizam a renúncia e meditação em Brahma como a disciplina espiritual que conduz à liberação; o segundo, poema-diálogo, ensina a trilha da ação desinteressada neste mundo, a prática do karma-yoga, evoluindo gradativamente ao mais espiritualizado inana-yoga, que pode incluir ou não a devoção a um deus antropomorfizado (objetivo do bhakti-yoga), abrindo, tanto quanto os Upanishads, o caminho para a liberação sem a prática da renúncia ascética. Alguns dos temas deste parágrafo são complexos e foram utilizadas expressões diretamente retiradas dos próprios textos sagrados. Por isso, entraremos em explicações mais detalhadas adiante, “quebrando” os vários temas em seções:

A trilha da ação desinteressada

Em última instância, a prática do karma-yoga equivale a princípios ocidentais como o enunciado de Friedrich Nietzsche “como filosofar com o martelo”. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche, escritor alemão do séc. XIX, expõe seu “método destrutivo do pensamento”. Destrutivo não deve ser entendido de forma pejorativa. Como na frase acima “chegando mesmo à utilização de conceitos puramente negativos, o “pensar destrutivo” nada mais é do que lutar contra preconcepções potencialmente nocivas adquiridas involuntariamente durante o processo normal de educação do ser humano. Através da aplicação do pensamento crítico sobre os valores herdados pelo homem ocidental, Nietzsche pretende pôr em questão algumas afirmações tidas como verdade que não passam, no sentido da filosofia, de “puras aparências”. Filosofar a marteladas nada tem de violento, ou mesmo de atividade corporal voltada ao mundo material em si: é, traduzidas em outras palavras, a função do filósofo. Porém, Nietzsche escreve em um tempo que já carrega uma grande herança da Filosofia, diferente de quando Platão escreveu. Por isso, para ele, é fundamental desconfiar e reler os filósofos do passado, analisando-os filosoficamente, a fim de não acabar criando castelos de areia, isto é: a desvinculação do pensador a noções antigas e erradas deve ser priorizada em relação a “criar novos conteúdos deônticos (princípios éticos para a convivência humana)”. Ele estava aplicando o karma-yoga sem o saber. O karma-yoga é a meditação oriental que ensina a iniciar o caminho da renúncia das ilusões materiais.

Através dos fenômenos, experiências e aparências chegamos enfim àquilo que não é passível de ser pronunciado com suficiência de sentido (a Idéia de Platão conforme exposta n’A República). Quer dizer, o ioga é visto por grande parte dos ocidentais como um mero exercício de relaxamento, equivalente à passividade e inação. Esta é a “aparência enganosa” do ioga e do iogue (praticante). O próprio termo “praticante” levaria à conclusão imediatamente contrária, no entanto: ele pratica, ele age, o ioga é ação – contradição de sentido com a visão exotérica ocidental (vulgar, depreciativa) sobre o ioga. Ação que sufoca a ação através do controle da respiração.

Depois de compreender o ioga como ação, entretanto, é hora de compreender o ioga num nível ainda mais esotérico (de disciplina verdadeira): não como ação comum, mas como ações das ações. Esta assim num sentido novo é tanto oposta à inação ou renúncia conhecidas do público em geral como à ação comum do cotidiano. O que se faz aqui é exatamente o proceder dinâmico da filosofia de Georg Hegel, se tivermos que pensar não mais em Platão, mas no primeiro filósofo moderno de importância que podemos usar para nos auxiliar na compreensão do hinduísmo. Não é que o hinduísmo deva ser necessariamente analisado filosoficamente, nem a filosofia moderna “superada” ou sentida religiosamente pelo guru capacitado por Brahma, mas há essa constatação intermédia: as duas vias são o Um e o Mesmo. Tese (popular, concepções mundanas) – antítese (começo crítico do aprendizado de “filosofar com o martelo” ou do karma-yoga) – síntese (consumação, sabedoria efetiva, inana-yoga ou o conceito da Idéia de Platão em seu sentido mais elaborado).

A trajetória da compreensão pelo sujeito aspirante ao saber de que o mundo das experiências é nosso meio (nossa técnica) para alcançar o Absoluto: assim também pode ser resumido o karma-yoga. E alcançar o Absoluto no sentido carma-iogue é: compreender que participo de um destino em perfeita harmonia com todo o universo, me fundo com ele. A expressão karma, muito mal-utilizada no Ocidente, deve ser interpretada pelo estudante dos Vedas como destino, mas não na concepção clássica e fatídica de destino. Trata-se do destino sentido não como um peso ou castigo infligido ao indivíduo (compreensão popular de c”arma”), mas como a leveza de espírito para a prática da ação responsável. O eterno retorno de Nietzsche buscava a mesma conclusão ética. O saber é sempre recursivo. Estou explicando estas mesmas equivalências pela terceira ou quarta vez no Seclusão Anagógica. Mas isso é uma virtude, não um defeito: a sabedoria é esse ir e vir pelos mesmos pensamentos, até solidificar o conhecimento adquirido. Eu aprendo enquanto ensino; não importa de onde parti, nem onde chego; percorro círculos; não importa se o leitor me lê pela primeira vez agora ou acessa esse texto depois de ler outras explicações anteriores (ou futuras). Ele se junta ao círculo seleto, aprende e também ensina.

A devoção a um deus antropomorfizado (bhakti-yoga)

“O caminho da devoção a uma forma pessoal de Deus abre as portas da liberação mesmo para aqueles incapazes de renunciar ao mundo (inquilinos do mundo).” Esta é uma citação de Sankara nos Upanishads. Ter fé numa entidade divina (religião significa re-ligare, entrar em fusão com) é uma das formas disponíveis para atingir a liberação védica, mesmo sem a disciplina espiritual mais rogorosa dos Upanishads, como ensina o Bhagavad Gita. Ao que se renuncia quando se diz “aqueles incapazes de renunciar”? Ao mundo? Sim e não. Sim no sentido das aparência enganosas, não no sentido de que não se renuncia à vida neste mundo, contanto que a vida neste mundo esteja ligada à busca da verdade mais profunda (o Absoluto). Há que prestar atenção na palavra inquilino. Nossa casa é o mundo, mas não somos os proprietários: estamos de passagem, utilizando uma vida cedida por empréstimo num todo maior.

Apesar da semelhança à primeira vista entre o bakthi-yoga e as religiões ou monoteísmos ocidentais, que são baseadas no culto a um Deus pessoal, a primeira vantagem do hinduísmo sobre o credo cristão (sempre citarei o Cristianismo pela sua maior popularidade e aderência no Ocidente, mas a rigor me refiro a todas as religiões de massa por metonímia) é que o hinduísmo não é um ateísmo, não é um monoteísmo e não é um politeísmo, apesar de ser todos os três ao mesmo tempo (aparências divergem das idéias). O caminho da devoção seria interpretado como “oração” ou “reza” no Ocidente. Está no limiar do que seria a passividade – ajoelhar-se, entregar-se, pedir socorro, etc. – e do que seria a atividade – executar um rito por volição própria, aliar-se ao seu deus, ser ativo na transformação do mundo ao se encontrar apto a transformá-lo, encarnando, representando ou se manifestando como, sendo carne e estando presente no mundo material, a vontade divina neste mundo –.

Em outros termos: ajoelhar-se (símbolo da submissão) e performar são sinônimos. Entregar-se, desistir, dar por encerrado, transferir a responsabilidade, ser o forjador de uma aliança, puxar para si a responsabilidade, iniciar a resolução de um problema concreto são também sinônimos. Pedir socorro e socorrer, ser o agente de alguém, representar algo maior do que a si mesmo são sinônimos. É natural vulgarmente separar todo fenômeno em “ação” ou “renúncia”, inação, como se viu na explicação introdutória sobre o ioga. Porém, as fronteiras entre essas categorizações arbitrárias são enganosas.

Indo além: renunciar ao mundo, seria uma ação ou uma desistência? O discípulo de Cristo, que no ato de se tornar discípulo distribui todas as suas riquezas para peregrinar com Cristo, não age? Aquele que renuncia ao mundo, não desiste da vida, se entrega, se anula? Ambas as perspectivas estão corretas. Covardia ou coragem? O debate ou simpósio entre ambas as alternativas seria eterno e inconclusivo. Há aqueles formatados para o que o mundo chama de ação; há aqueles formatados para o que o mundo chama de inação. Todos são, não obstante, homens, e muito mais parecidos em essência do que revelam as simples aparências. Assim como o ioga pode ser ação, inação, o que é ação e inação e o que não é ação nem inação ao mesmo tempo, o mesmo se aplica à intervenção militante no mundo. Cristo é reconhecido por qualquer cristão, do papa ao mais tímido e “ignorante” dos fiéis, tanto como aquele que disse: “Dai a César o que é de César, meu reino não está neste mundo”; como aquele que militou fervorosamente (veja o advérbio), com bastante ênfase e barulho, no seio do judaísmo: curar os doentes, ensinar a verdade, acusar os fariseus, destruir ídolos, arregimentar um exército de apóstolos. Portanto, tanto o reacionário político quanto o comunista clássico da guerra de guerrilha poderão dizer, com acerto, tanto que:

a) Cristo era, mesmo que de carne, Deus ou o Espírito Santo (mistério triplo, imagens que não correspondem às idéias), a manifestação ativo-passiva (tanto faz) de Deus, o Único, na Terra, com “destino selado”, ao mesmo tempo que dirigente autônomo das próprias ações, para o cumprimento final da Palavra e do Evento. Em última instância, a apologia mais completa de tudo que aconteceu, acontece e acontecerá. O pregador da doutrina de que “não importa o Estado, nos preparemos para o outro, o verdadeiro Reino”.

b) Cristo foi o comunista consumado. Revolucionário, transformador, ativista-modelo para a humanidade póstuma. Mártir, lutou por um futuro melhor para seus camaradas, derramando sangue para que seus filhos pudessem sorrir, viver a vida, sem carregar nenhuma cruz. Um libertador das condições materiais opressoras, desafiador de César e do templo dos hipócritas, instaurador de boas-novas, de uma nova verdade, de novos valores. O mundo se divide em dois, afinal – como negá-lo? Antes de Cristo e depois de Cristo; pelo menos pode-se generalizar dessa forma contanto que não levemos em conta a Ásia. (Curiosamente, de onde vêm os três reis magos? Do Oriente. Folclore popular que se integra com o que existe no Novo Testamento.)

Renunciar ao mundo não é nem uma ação nem uma renúncia, no sentido vulgar. Cristo não foi nem um corajoso herói nem um herege tumultuador e covarde. Ecce homo: Eis o homem. Cristo foi um homem. A única unidade entre esses pólos fictícios que traçamos é nossa própria condição e convivência no mesmo planeta.

A esse ponto, já ficou muito claro, após uma exposição tão numerosa em exemplos, que não importa a estrada, a esotérica (erudita) ou a exotérica (popular), a crença num panteão, num Deus único e supremo, o panteísmo ou o ceticismo extremos, o acolhimento do budismo ou do ateísmo clássico no seio da modernidade pós-Revolução Francesa (a negação do Deus cristão, que após Jesus Cristo, para os fiéis, nada quer dizer para o indivíduo senão “condenar-se ao inferno”)… Todos os caminhos levam ao mesmo caminho, ao mesmo ponto de chegada. É claro – no hinduísmo, a religião mais antiga e perfeita, completada, este caminho é explicado, e desde o Bhagavad Gita foi ensinado o método mais econômico para percorrê-lo.

Seja pela compreensão e estudo aplicado dos Vedas em alto nível de abstração, seja pela crença popular nos avatares de Brahman, o hinduísmo permite o ecumenismo: quem desejar segui-lo poderá atingir o mesmo efeito (em última instância, a fusão com Brahman, a renúncia ao mundo ou a completa inserção no mundo, no real, conforme o próprio indivíduo interprete e descreva o próprio credo). A velha polêmica (tão recente, se comparada com todo o sistema hindu!) entre Calvino e Lutero sobre a salvação via fé ou via obras é uma bobagem, uma dialética de boteco entre os dois mais importantes cristãos da Europa do período reformista.

Para voltarmos ao hinduísmo: As portas da liberação são abertas, sem olhar a quem. O ser humano é um inquilino no mundo. Ou antes: o corpo é o inquilino da alma, que é Brahman. As aparências estão de passagem no seio do Absoluto, que as contém e retém e é o dono do espaço que elas ocupam. Toda morada é temporária, por isso a expressão inquilino: nosso corpo não é o dono do imóvel. O homem é, apesar de tudo, nômade, no sentido espiritual, mesmo o mais sedentário: ele chegou e irá partir. Enquanto mero indivíduo, é um ser provisório.

Pensando na expressão inglesa usada no Upanishad traduzido naquela língua, o house-holder, o chefe de família ou dono do seu lar, no sentido empregado na frase, é o meu inquilino, é o corpo e não a alma. Como posso estar tão certo, pois, de traduzir desta maneira? No próprio inglês haveria um termo muito mais inequívoco para descrever um house-holder que não é apenas um sujeito de ocasião (um inquilino, que mora no mundo apenas de aluguel, no sentido cotidiano). Este termo é o landlord, “aquele que aluga para os outros”. O único landlord num sentido metafísico (e quem é Senhor da terra é Senhor do tempo e de tudo que ambos contêm) é Brahma. Mesmo Vishnu e os outros deuses-avatares da hierarquia hindu, e abaixo deles os sábios inspirados que escreveram, sistematizaram e interpretaram os Vedas numa linha sucessória, são apenas manifestações de aluguel, procuradores (no sentido jurídico daquele que representa) do Um. A explicação, pelo menos para mim, é muito mais intelectiva, simples, que o mistério da Santíssima Trindade, e nem por isso o hinduísmo deixa de ser uma religião, isto é, vira apenas um sistema de regras e saberes secular (por não conter mistérios que não podem ser revelados). Toda religião tem seus mistérios, é um sine qua non (condição de existência de uma religião). Os do Cristianismo, entretanto, podem e devem no mais longo prazo levar à vertigem, à estupefação e a uma incompreensão completa e duradoura.

O hinduísmo, pelo contrário, é explícito e honesto: enquanto alguém que não crê em Cristo é sempre alguém que não crê no Deus-Pai (e vice-versa) conforme o cânone cristão, um hindu poderá dizer: eu só acredito neste mundo, no meu lar e em minha família; isso não “interessa” a Brahman (trilha da ação desinteressada). Caso siga sua crença aparentemente simplória da maneira correta, este hindu (consciente ou inconsciente de sê-lo) entenderá eventualmente que tudo (sua casa, sua família, seu mundo) é real, e que, no entanto e apesar disso, tudo isso é Brahman, oriundo de Brahman. Não crer no ‘divino’ ou crer demasiado no ‘divino’ são uma e a mesma coisa para o hinduísmo: seja um indivíduo como Platão, seja um venerador público de Vishnu, seja um venerador secreto de Indra, seja um ‘venerador’ ou venerador de Brahma… (Quem põe as aspas? Responde-se à pergunta mais adiante.) Se ele sabe quem é Brahma, as portas estão abertas para ele. Brahma é apenas uma palavra.

A evolução transcendental ao inana-yoga: estar-com-Brahman

Quem acredita em Brahma como um colega-acima-dos-outros, que vive em relação com eles, sendo um outro para eles, diferente, como por exemplo Zeus para os outros deuses gregos ou o general para seu exército, é um herege, herege no sentido absoluto do bramanismo (hinduísmo), pois não é isto que Brahma é (malversação das escrituras). E no entanto, Platão, que viveu sob a religião ateniense, e não hindu, onde Zeus presidia, onde Zeus como primeiro-acima-dos-outros-deuses era a única norma sancionada, e pré-requisito da conservação da cidadania na polis (cidade-Estado de Atenas), sem nunca negar explicitamente a mitologia grega, chegou à Verdade, “apenas” trocando as palavras.

Aquele que jejua hipocritamente, ritualiza apenas teatralmente e diviniza ou amaldiçoa erradamente (não chega a Brahman embora pareça ser do credo de Brahman; amaldiçoa em verdade o mundo, que é Brahman, enquanto alega que o faz por Brahman, não entendendo o vínculo entre aparência e Verdade), esse alguém não compreendeu Brahman, então não importa que seja um devoto no sentido clássico ou popular (um asceta que se conduz de modo perfeito no exterior). Pois este que desrespeita tanto a casa em que mora de aluguel quanto as portas da libertação da frase traduzida acima, a única verdade é que se encontra fora da doutrina hindu, condenado à eterna imanência. E este que respeita sua moradia passageira e conduz-se às portas de Brahman, é Um com Brahman. E é impossível desrespeitar a casa (alegoria para o mundo material) respeitando o que é mais importante que o material ao mesmo tempo (pois a “casa” é a via de acesso ao que é invisível, a senda espiritual), como é uma situação impossível desprezar as portas da liberação, a Idéia, ao passo que respeita concomitantemente as aparências. (Respeitar as aparências não é ser materialista – é tratar aparências como aparências! Respeitar é entender.) Não! Não existe distinção final ou factual entre corpo e alma, entre casa e portas supremas, do ângulo hindu: ou se está com Brahman, ou não se está com Brahman, de corpo e de alma.

Estar-com-Brahman é um conceito, portanto não pode ser determinado por um observador externo, o mais zeloso: não é uma opinião, não é aparência. O conceito é Idéia. Que segundo os outros homens alguém esteja ou não com Brahman, e pratique ou não o bramanismo, isto é indiferente no tocante à vida deste homem determinado (e à resposta para a pergunta: ele está com Brahman?). Pois as aparências enganam, e enganam todos os observadores do sensível sem exceção. Enganam até quando enganam ou “não enganam”: o asceta hipócrita, o asceta legítimo, o homem conhecido por seus pares como mau, o homem conhecido por seus pares como bom, todos estes são aparência, mas quem haverá de dizer se correspondem ou não em essência? Quem determina com infalibilidade a hipocrisia? Quem está acima do conceito de legitimidade, de bem e de mal? Quem no mundo das aparências não é apenas joguete dessas noções humanas, demasiado humanas? Quem será o juiz temporal da transcendentalidade de um ser?

O cristianismo cavou a própria cova quando erigiu a Igreja, matéria-carne que proclama o monopólio do espírito. É a infância do ser humano em forma institucional: comete os erros mais fundamentais a respeito das aparências e do caminho ao mundo-verdade. E quando a religião definhava e foi reformada, os juízes saíram das igrejas e se instalaram por todo o mundo debaixo do céu, como câmeras de vigilância de um panóptico da Torre de Babel, tão onipotentes quanto inúteis, pois os reformadores, tanto quanto os iniciadores, não reconheceram o mesmo princípio universal exposto pelos Vedas: não há juízo temporal da transcendentalidade alheia. Não se julga do sagrado (verdadeiro) com opinião (aparência). Ninguém nega boas intenções onde há. Ninguém nega má-fé onde há. Mas no caso do Ocidente as boas intenções dos tradutores, disseminadores e pastores, “democratas do espírito”, geraram o mesmo mal-entendido que a má-fé pura: povoou-se o mundo de sacerdotes, em vez de eliminá-los, tal qual o bramanismo, que já nasceu onisciente e infalível por um simples motivo: é uma religião sem sacerdotes, que proíbe o sacerdócio sobre os outros. É por isso que a origem dos Vedas é tão remota que só pode ser falada em termos de fábulas, mitos e lendas, pois o que já não fosse transcendental a partir de sua estada-no-mundo não poderia gerar transcendência. Indivíduos não autorizam (no sentido tanto de autorização quanto de serem os autores) religiões.

A impossibilidade da divinização do indivíduo e de provar o sagrado: Por que o Ocidente precisa do Oriente

O mundano só existe “em-transcendência”, não é possível tratar uma Revelação como aparência, experiência derivada dos cinco sentidos – mesmo os eventos geradores ou supostamente geradores de transcendência que se localizem após a pré-história (i.e., numa cronologia humana consciente) são fabulosos: Cristo existiu? Onde ele foi crucificado? Qual era sua aparência (ironia tríplice)? Quem hoje tem parentesco mais próximo com ele? Ele ressuscitou? Por que ele ressuscitou em segredo diante de seus mais próximos e de Maria Madalena, e não diante de toda a cidade, de toda a colônia, de toda a civilização romana (a mesma pergunta da crônica esportiva: por que ele não calou os críticos?)? Por que milagres não são fatos científicos (ambos são conceitos mutuamente contraditórios)? Por que cada apóstolo conta um evento de forma diferente, tendo Cristo no mesmo instante pronunciado algo distinto conforme a testemunha?

Porque não seria fato gerador de uma religião de massa nada que não suscitasse tantas perguntas sem resposta! Somente havendo tantas dúvidas sobre a identidade ou mesmo a existência de Cristo é que foi possível tornar fascículos sabidamente escritos pelos homens chamados X., Y., Z. e K., depois reunidos necessariamente em uma outra geração por outro homem que jamais conheceu Cristo a não ser por relatos, Paulo, ele mesmo santificado (num tempo em que santificavam pessoas apenas após a morte; é constrangedor ter de incluir essas ressalvas entre parênteses!), somente por toda essa via errática é que o Cristianismo pôde nascer como uma fé (fora da História, embora ‘na’ cronologia histórica). Tudo isso apenas gerará pano para manga enquanto coserem-se hábitos, surgirem panos com manchas misteriosas para movimentar discussões vãs e enquanto átomos não puderem ser fotografados.

Um exemplo de por que não há novas religiões a partir da modernidade, nem pode haver: Napoleão Bonaparte gerou partidários, admiradores e fanáticos, mas não uma religião. Quem sabe em outro milênio uma figura tornada finalmente mitológica chamada Napoleão, de quem pouco se sabe de concreto, venha a inspirar um novo credo transcendental, o Napoleonismo! Não, porém, enquanto houver uma foto de Napoleão ou o sentido de fotografia não recair novamente no mitológico (esquecimento da técnica fotográfica, tratamento da evidência da imagem como produção sobrenatural). Insisto sobre o sentido de ‘fotografia’ como ícone moderno da palavra chamada ‘prova’ e do método científico, consistente em ‘provar uma série de fenômenos’, visto que pretendo voltar ao assunto no próximo subtítulo.

Mas isso – a divinização no sentido autêntico de Napoleão – seria impossível para a França que tanto sabe sobre ele, para o Ocidente inteiro agora, historiograficamente informado sobre o indivíduo Napoleão Bonaparte, objeto de inúmeros tratados políticos e biografias científicas. O pior tirano imaginável sobre a Terra não poderia fundar uma religião à força e ser bem-sucedido; mas uma miríade infinita de tiranos de esquina poderia se perpetuar no poder firmemente falando em nome do deus estabelecido – o que evidencia a diferença infinita entre a esfera do transcendente (Brahman) e o poder terrenal (mundo de César). De fato, o Ocidente se tornou tão desconfiado que a própria noção de Deus em sua cultura vive no fio da navalha, e seguirá se complicando cada vez mais, enquanto o Ocidente for Ocidente, e não uma cultura nova e reoxigenada, alimentada pelo intercâmbio cultural com o Oriente, o único lugar do universo que hoje pode ressuscitar o sagrado da outra metade do globo mortificada e anestesiada, mundanizada.

Aplicação do anteriormente estabelecido às contradições da ciência pós-moderna (reino da não-filosofia)

…enquanto átomos não puderem ser fotogrados”: retomaremos este trecho como um exemplo prosaico da transcendentalidade de todo o mundano fora do próprio tema religioso: é fisicamente impossível, e isto foi declarado pela própria Física, que o principal objeto de estudo da ciência chamada Física seja fotografado, ou, de forma ainda mais astuciosa podemos dizer, no lugar de fotografado: comprovado (requisito mínimo da cientificização de um conhecimento, qualquer que seja ele). Este fracasso é a razão precípua de dizermos que “as ciências exatas estão em crise”, e de essa crise ser administrada – e sem dúvida ao longo de muitos séculos ainda por vir continuará sendo administrada, o que significa “adiada”, ou “não-resolvida” – desde há não muito tempo pelo inteligente expediente da troca da denominação “exatas” por “naturais”, o que certamente dissipa ao menos parcialmente o constrangimento, o escândalo e a sangria mais explícitos que ocorreriam, tendo em vista a denominação antiga (o que é exato pode ser totalmente definido, sem lacunas), caso contrastassem diariamente o termo exato ou hard com a patente inexatidão atual do conhecimento técnico Esta inexatidão não decorre de erro ou incompetência. Este “fracasso” não é, do ângulo científico, um fracasso: ele é conseqüência natural e direta do grande sucesso da aplicação do método científico por um par de séculos. A inexatidão das ciências naturais é conseqüência inevitável de seu enorme e vertiginoso progresso.

Nos tempos áureos da ciência moderna a “tradutibilidade” dos conhecimentos tecnológicos era ampla. Todo o conteúdo das ciências clássicas está bem-explicado em livros-textos escolares atuais. Porém, os novos conhecimentos derivados do método científico em crise, no que chamo de decadência da ciência moderna ou sua fase pós-moderna, não são comunicáveis ao grande público com a mesma facilidade, pois os dados não são mais o que costumavam ser, e é preciso refundar o conceito de lógica (hoje tributário de Aristóteles, i.e., lógica formal, mas não a única lógica passível de existir) para acomodar resultados de observações e experimentos, vd. física quântica. E é exatamente por isso que as pessoas leigas ficam cada vez mais insatisfeitas com os resultados divulgados como conquistas das ciências, e que cientistas não dão entrevistas em grandes jornais, porque há uma longa cadeia de pessoas que precisa processar e filtrar a informação emanada pelas maiores autoridades em determinado assunto, reformatando a informação para que ela seja recebida pelo grande público em palavras – finalmente para ele – compreensíveis. Talvez os últimos eventos a capitalizarem grande parte da atenção mundial (sem necessidade de conhecimento técnico sobre fabricação de foguetes ou as propriedades dos átomos instáveis usados em bombas nucleares, seja por parte dos jornalistas e comunicadores ou do cidadão comum) tenham sido a criação da bomba atômica e a aterrissagem do homem na Lua.

A quem se pergunta, “compreensíveis” acima significa, no sentido mais sincero possível, que, na verdade, nada de significativo está sendo dito ou veiculado, e talvez devêssemos agradecer por isso, se pensarmos exclusivamente na preservação de nossa saúde mental em uma sociedade tão complexa, e se desprezarmos o outro lado da questão e que é a pior parte de tudo isso, ou seja, que evidências socialmente verificáveis não cessam de indicar que um público necessariamente cada dia mais ignorante passará a exibir comportamentos negacionistas de manada mais e mais aleatórios, ridículos e perigosos – sem que se conheça por ora o limite macabro desta “torção cognitivo-coletiva” –, recusando-se um grande número de indivíduos, por exemplo, para nos restringirmos à época atual e não sucumbirmos à tristeza tentando prever o que virá a seguir, a tomar vacinas que facilmente previnem doenças graves e que são muito transmissíveis, a ponto de que os próprios cientistas de “médio escalão” poderão estar mais e mais sujeitos a esta mesma lei (da involução cognitiva pari passu à evolução do compartimento das ciências em múltiplos e pequeníssimos nichos mais e mais “intraduzíveis” ao cidadão comum), havendo alguns que, não por charlatanismo nem qualquer intenção de ganho pessoal, repercutem os mesmos discursos de manada, genuinamente convencidos por ele, até que num dia não muito distante os físicos, biomédicos e bacteriologistas mais especializados em seus sub-sub-sub-ramos (previsão:) venham a se encontrar mais isolados de qualquer contato humano que K., o agrimensor do livro O Castelo, ponto em que já não haverá possibilidade de retorno (fratura do campo científico como jamais se viu, mesmo durante a sofrida transição da opulenta Idade Antiga para a fervilhante Idade Moderna). Corre-se o risco do turismo espacial se tornar realidade simultaneamente a quebras de recordes para a resposta ‘sim’ em enquetes como “você acredita que vive num mundo que tem o formato de um tabuleiro?” (obviamente que até lá a palavra usada não será tabuleiro, pois esse termo tão complicado terá caído em desuso), e o risco conseqüente de que esse contraste absurdo nada cause em termos de convívio social, pois cidadãos dos espectros mais afastados coexistirão harmoniosamente dentro de suas culturas e subculturas (cada qual enterrado e cem por cento esterilizado em sua própria bolha inexpugnável, chamando tudo o mais de falso e conspiratório, já incapaz, porém, de se incomodar de verdade com isso, apenas reproduzindo comportamentos automáticos como dizer no elevador que “parece que vai chover” ao negar a eficácia de vacinas). Essa situação não mudará caso estejamos falando de colegas de trabalho, roommates ou parentes próximos ou ainda marido e mulher situados em campos extremos e opostos (imagine o casal: um é funcionário de agência espacial e outra uma atleta que vem se preparando para a expedição de exploração das cachoeiras infinitas das bordas do tabuleiro terrestre).

Recuando um pouco, tudo isso é a razão precípua, ainda, da filosofia ser a mãe de todas as ciências mas de forma nenhuma nem sequer uma meia-ciência (ou seja, um título honorífico), porque ela fala do transcendental, que o mundo moderno aprendeu a considerar não só inecessário como até mesmo inexistente ou indesejável caso existisse, em vez de vital. Dada a própria natureza indeterminável do objeto teórico ‘átomo’, vulgar “menor partícula da matéria”, que na verdade nem é matéria, podemos dizer que toda a decadência do saber transcendental no Ocidente é, ironicamente, uma questão de lógica da mais rapace ou degradada.

Por outro lado, que se pense na implicação do átomo como partícula dual é já um sintoma de que mundo das aparências (a matéria, o real, o perceptível) e a verdade invisível que rege sobre ele (ser duas coisas ao mesmo tempo, cientificamente validado) estão se aproximando, e não se afastando inequivocamente. Somos matéria; somos átomos, sem dúvida. O átomo é um (excelente) modelo, não pode ser provado, significando que nós mesmos, que sabemos que existimos enquanto aparência, átomos que somos, pressentimos que somos, embora também átomo e matéria, algo mais, que não conseguimos definir com palavras, i.e., opera-se uma crescente necessidade de revitalização do transcendental, muito lenta e imperceptível para os desatentos, mas cujo mecanismo é similar ao desenvolvimento da Filosofia Continental e à doutrina contida nos Vedas-Upanishads.

Trocando em miúdos, em uma sociedade em que todos andam com uma câmera no bolso, capaz de registrar “coisas” instantaneamente, a fim de convencer os ausentes de coisas improváveis (via sentidos), desconfiamos da própria realidade dos entes, da própria acepção das palavras prova, coisa e fotografia. Duvidamos do que está aí, presente, e por uma questão até de sobrevivência cada indivíduo-coisa se vê, embora não veja (a realidade imaterial), obrigado a perguntar por sua própria essência e considerar o que não está aí para nenhum dos cinco sentidos, procurando um sentido metafísico para sua existência e presença, um caminho que seja, diferente do caminho das coisas (método científico, experimental ou positivista, o caminho não-filosófico ou irreligioso e o modo completamente mundano da existência).

Conclusão da tese: hinduísmo e filosofia continental como duas versões da Verdade revelada

E no entanto, a despeito da superioridade metafísica do hinduísmo, percebida tautologicamente apenas pelos próprios adeptos do hinduísmo, o mundo segue seu curso histórico sem nenhuma modificação fundamental até agora quanto à dimensão de alcance e prevalência das grandes religiões. A despeito da fraude autodemonstrada da religião cristã, a humanidade está e é livre para ter sacerdotes. Se no Oriente, por hipótese, o povo viesse a desejar de forma inédita o sacerdócio em nossos moldes, haveria o sacerdócio! Haveria a hipocrisia, e, aliás, há a hipocrisia entre “hindus” como há dentro de qualquer outro credo (e como os outros credos apresentam seus Platões, brâmanes inconscientes, i.,e., os praticantes honestos).

O que se pode afirmar, percorrendo a História, entretanto, é que o hinduísmo prevalece internamente imutável – sem necessidade de um movimento ou clamor popular por uma reforma nas práticas e nos escritos das Vedas –, uma vez que como ele é e como ele está, ele conduz à Idéia, à Verdade, a Brahman. Já os pressupostos das religiões monoteístas que conhecemos não resistem a uma análise bramânica ou filosófica pós-moderna, i.e., o próprio Ocidente veio a negar sua religião (suas religiões) em tempos relativamente recentes. No Oriente, semelhante acontecimento ‘mundano’ não teve lugar. Nele, filosofia e religião são Um só. Entre nós verificamos dolorosamente o contrário, e a dor é mútua e equivalente: a dos Escolásticos (quando a religião se dizia a própria filosofia, hoje extintos) e a dos sábios laicos, em voga, momento definidor em que a filosofia emancipou-se e após caminhar certo tempo com as próprias pernas descobriu sobre a calamidade da morte de Deus – Nietzsche em Gaia-Ciência – e sobre a inevitabilidade do transcendental da condição humanaO Mundo como Vontade & Representação, Assim Falou Zaratustra, o Ser e Tempo de Heidegger, etc. –, logo, tragicamente, no momento em que via essa mesma transcendentalidade escorrer pelo ralo – cenário este que, a filosofia pós-moderna o sabe, inviabiliza a própria continuidade da filosofia e, destarte, da vida.

Esse texto foi um re-trabalho das anotações feitas durante a leitura do livro indicado no primeiro parágrafo, Rangaswami, The Roots of Vedantha, e a síntese e principais aspas desta obra serão publicados posteriormente no Seclusão.

[REPRISE+ACRÉSCIMOS] #TRANSCENDER18 O ESPÓLIO DE F. NIETZSCHE, OU AS QUEIXAS DE RAFAEL, OU 19 DIAS DE SABEDORIA, OU AINDA: JOGANDO LIMBOBOL.

Originalmente postado em 11 de agosto de 2009. Com adaptações e ampliações para constar no Seclusão.

A partir de um sistema de forças determinadas (…) não pode resultar um NÚMERO INCONTÁVEL de situações.” O eterno retorno. O fim é já o começo. Não existe morte. consultar a página da “nova concepção de mundo” do Der Wille zur Macht (“número máximo de combinações”, “dado”, etc.). Este dado ainda será melhor trabalhado no parágrafo abaixo subtitulado O PARADOXO DA PEDRA NO RIO DE HERÁCLITO.

O que implica – ou, antes, o que determinou – a moda de fim de séc. XIX chamada espiritismo-kardecismo? Que não há o indivíduo, tudo são impulsos nervosos. Buckle¹ (não falo do cinto sem fivela) e sua nova-velha doutrina da imortalidade da alma. Mas ei! A moeda maussiana (Marcel Mauss), o hau, é ela mesma espiritismo. Ele sempre esteve em voga entre os ágrafos. Os mortos nunca evadem nosso plano: melhor dizendo, eles nunca morrem.

¹ Trata-se de Henry Thomas Buckle (1821-1862), historiador de segunda linha. Trecho esclarecedor da wikia: “On 1 April 1859, Buckle’s mother died. Shortly after, under the influence of this ‘crushing and desolating affliction’, he added an argument for immortality to a review he was writing of J.S. Mill’s Essay on Liberty. Buckle’s argument was not based on theologians ‘with their books, their dogmas, their traditions, their rituals, their records, and their other perishable contrivances’ [claro, porque só o que nós inventamos é eterno!]. Rather he based his argument on ‘the universality of the affections; the yearning of every mind to care for something out of itself’. Buckle asserted ‘it is in the need of loving and of being loved, that the highest instincts of our nature are first revealed’. As if reflecting on his mother’s death, Buckle continued that ‘as long as we are with those whom we love …, we rejoice. But when <the enemy (death)> approaches, when the very signs of life are mute … and there lies before us nought save the shell and husk of what we loved too well, then truly, if we believed the separation were final … the best of us would succumb,(*) but for the deep conviction that all is not really over, we have a forecast of another and a higher state’. Thus, Buckle concludes, ‘it is, then, to that sense of immortality with which the affections inspire us, that I would appeal for the best proof of the reality of a future life’. § He also said, ‘If immortality be untrue it matters little if anything else be true or not.’

(*) Na minha opinião, não passa de um garotinho da mamãe necessitando de uma justificativa para viver. E vê-se que não viveu muito (sem ela)! Ele era um grande enxadrista. E todos sabem que enxadristas são burros socialmente. A mesma ingenuidade pueril, a mesma má-fé intelectual de um Miguel de Unamuno… “Já que assim eu quero, TEM de ser!” A filosofia não aceita esse tipo de egomania – mas como poetas decerto seriam ótimos!

Mais uma curiosidade, na mesma página, o perfeito contraponto dessa patifaria toda: “The paranoid narrator of Fyodor Dostoevsky’s Notes From Underground discusses Buckle’s theories: ‘Why, to maintain this theory of the regeneration of mankind by means of the pursuit of his own is to my mind almost the same thing . . . as to affirm, for instance, following Buckle, that through civilisation mankind becomes softer, and consequently less blood-thirsty and less fitted for warfare. Logically it does seem to follow from his arguments. But man has such a predilection for systems and abstract deductions that he is ready to distort the truth intentionally, he is ready to deny the evidence of his senses only to justify his logic. I take this example because it is the most glaring instance of it. Only look about you: blood is being spilt in streams, and in the merriest way, as though it were champagne. Take the whole of the 19th century in which Buckle lived. Take Napoleon—the Great and also the present one. Take North America—the eternal union (an ironic reference to the ongoing American Civil War). Take the farce of Schleswig-Holstein. . . . And what is it that civilisation softens in us? The only gain of civilisation for mankind is the greater capacity for variety of sensations—and absolutely nothing more.’

Descobri que eu não guardo os elogios que me fazem.

A imensa expectativa quanto às relações sexuais estraga nas mulheres o olho para todas as outras perspectivas” Incel Nietzsche?

O estilo deve ser adequado em vista de uma pessoa bem-determinada, com a qual tu queiras te comunicar” Ora, se não estou tendo isso AGORA! A questão é: UM ou vários? Pode ser VOCÊ?! Como que um eu acima de mim, embora quase intragável de tão platônico. Mas você não é uma pedra fixa…

(Na escrita) O oral antes do escrito (CRUCIAL): “Porque ao escritor FALTAM muitos MEIOS do conferencista” – eis o que procurava! É benquisto explorar entonações, gestos, meras interjeições, que afinal no falar são tudo! (2023: Grande conselho para a estilística – sempre modificamos o texto final ao lê-lo em voz alta. Itálicos, negritos, sublinhados também ajudam, além da pontuação. Não me recordo onde o li, mas um autor disse que excesso de grifos num texto era comportamento aparentado à loucura – o escritor é um louco, tem de ter sintomas neuróticos, ou não desempenha direito seu ofício!)

Devo escrever frases mais curtas. Porque sou muito RETICENTE no oral (não vá confundir – isto é, vindo de alguém quem teria muito a dizer e não pode). Meus textos técnicos (resenhas filosóficas ou de games, p.ex.) possuem períodos mais longos, com mais interpolações. A técnica não está errada, faz parte do meio e da comunicação profissional desejada. Meus textos literários, no entanto, seguem a lei dos períodos curtos e significativos (lei da condensação).

O perigo do sábio está em se apaixonar pela irracionalidade.”

O sábio deve apenas namorá-la, não casar.

eu menosprezo mais o louvor do que a crítica”

Aquele que é mau está bem com o mundo. Como se pode ser feio e defeituoso e não ser mau? Eu não sou feio ou defeituoso, mas tenho um cálice de dignidade que beira o transbordamento. Eu gosto de ir ao Conjunto Nacional comprar cuecas e jeans (hábitos de filósofos para quem sair na rua já é se aventurar)…

EU E O OFÍCIO DE LER

O que mais gostamos de fazer gostaríamos que fosse considerado como o que acaba sendo o mais difícil para nós”

Inclusive eu gosto mais de ler do que escrever, tomando o aforismo como exato!

Nós fazemos também na vigília o que fazemos no sonho”

Jogamos o jogo da vida, nos perdemos, nos pomos furiosos com pessoas (o que tem acontecido ultimamente nas madrugadas… 2023)

Os criativos são os mais odiados”

De tempos em tempos é preciso deixar suas virtudes dormirem”

Agradecer nossas maiores falhas! Exemplos antigos, da década retrasada: A desobediência militar; o Pinho-Sol que me obrigaram a ingerir (não, me desafiaram a ingerir) na festa de calouros das ciências sociais/UnB (e eu joguei o jogo do desafio, e ri por dentro enquanto os mesmos que mais haviam “botado pilha” eram os mais desesperados em me fazer vomitar o pequeno gole dado, não, provavelmente, por se preocuparem com minha saúde, mas com punições posteriores de que pudessem ser vítimas). O porre da M. (quando somos imaturos, bebemos, ofendemos nossa ex-namorada ou objeto amoroso e depois nos arrependemos). Os ciúmes doentios dos primeiros relacionamentos. Nunca ter trabalhado. (Tenho imensas saudades dessa virtude anotada em 2009! A verdade é que já havia trabalhado, mas sem receber dinheiro em troca! Um “uber driver primitivo”: cansado e desmonetizado! Redações porcas de jornais, agências incubadoras cheias de publicitários playboys, a reencenação de Mad Man, Brasília, séc. XXI… E ainda tinha de pagar a passagem de ônibus…)

Por outro lado, virtudes que nunca desliguei, pois não são do meu feitio: nunca traí.

Dois medíocres não se entendem (tampouco um sábio e um medíocre). (2009: Mário como figura-síntese do que se deve evitar como interlocutor. Thomas: outro que escuta mal, talvez faça bem falar-lhe qualquer coisa, assim que nos livramos dos mais chatos.) (2023: R.K.)

Proveito próprio + paixão = egoísmo. Ora, eu sou a pessoa que merece o meu amor! Não sou pobre em amor! E isso custa caro, se se entende o trocadilho.

Tudo o que é longamente pensado se torna problemático”

Quem quer se tornar um líder dos humanos precisa querer ser por eles considerado um BOM tempo como o seu inimigo mais perigosoNa política contemporânea isso cai como uma luva, do Brasil à China, passando pela Europa (que agora abraça o fascismo em bases mais duradouras do que nunca). Há até aqueles líderes que são odiados a vida inteira e adquirem seu novo status apenas post mortem (Che Guevara, Fidel Castro, Stalin…).

Outra grande característica minha: detesto ser (romanticamente) amado. Jamais rastejei quando foi assim. Veja: quando foi algo centrípeto unilateral (não-correspondido, ainda que interessante), não lembro de ter movido uma palha – desprezei, mesmo. É que é raro. O homem de hoje sente-se impelido, forçado, obrigado a embarcar, a ceder, não tem vontade própria.

Jesus de Nazaré queria ser o aniquilador da moral” – trágico.

Ver as naturezas trágicas e ainda conseguir rir é divino” “Como podes rir dormindo?”

DO MISTERIOSO AFORISMO TRAGICÔMICO PÓSTUMO DE NIETZSCHE:

Do macaco de si mesmo

Em torno do herói tudo se torna tragédia; em torno do semi-deus – tudo sátira”

Por muito tempo, mesmo depois da publicação deste post em 2009, eu meditei sobre esse aforismo, que não tinha entendido. Podemos evocar a famosa frase de Marx para nos ajudar a explicar. Mas eu ainda diria mais: a) nosso mundo não tem mais heróis, não tem mais o caráter heróico; tem, sim, a necessidade antropológica mesmo, do homem superar o homem; antes que substituir o deus morto seja uma realidade, o grau máximo que pode ser descrito é uma figura, a do semi-deus. Ele é um Zaratustra que aprendeu a rir de si mesmo. Tragédias são coisas do passado. Não há lugar para Édipos na atualidade; b) pode ser apenas um comentário psicológico, despido de qualquer historicidade, e por isso nem Marx se aplica: depende da seriedade do próprio personagem, e com que gravidade ele enxerga a própria biografia. Mas por que “semi-deus”? Num mundo em que deus está morto, ter sido herói, ser um sábio, já é estar semi-morto. Não vale muita coisa. Quem deixou de ser herói e com isso não se tornou um vilão, não degenerou completamente… ainda tem o aspecto exterior de um bufão. E onde já se viu palhaço triste? Menos Pierrots, mais respeito ao nosso passado que nos trouxe aqui, mas nunca em excesso… Nunca se tornar prisioneiro dos nossos (bons) feitos… Nem temos saúde para bancar de novo os Dons Quixotes, ainda que isso fosse possível! Resta reconhecer que hoje somos diferentes, menos rijos, mas que não podemos e nem queremos apagar nosso passado, mais ou menos distante… Ele ainda mora em nós. Antes, que eu tivesse um pai tirano era questão de vida ou morte. Hoje, sobrevivente, independente, ainda psicologicamente afetado pela experiência, e com ele ainda vivo, tudo é muito cômico e risível. Como pode e pôde uma pedra tão enxuta num sapato tão largo (ou o sapato era firme e apertado, o que impedia o seixo de rolar e atrapalhar? Sim, bufões usam sapatões maiores que os próprios pés!) me causar tantos problemas num nível tão fundamental? Como pôde a mais inferior das criaturas se interpor entre mim e o sol (Diógenes)? Mas nem era imperador – e daí que fosse? De todo jeito não lhe resta solução senão sair do caminho, nem que fosse para vir atrás de briga… E com o tempo toda coroa… vira areia. Quanto mais tempo bloqueou minha luz solar, mais se queimou. E pra quê, se tive meu banho caloroso do mesmo jeito? É verdade que ele, este pai, é o “macaco de Zaratustra”: gostaria de ser eu. Hoje é ele que me imita, sem saber o que ou como imita. Mas ele quer fazer o dono, o original, ficar bravo. E se a indignação for só uma máscara da gargalhada, e se o macaco é que está enfezado por dentro? Sim, sinto pânico, mas essa é a parte doentia da árvore genealógica, o orgânico que atingiu seu limite. Até ele, porém, é uma atuação, em último grau. É sempre material para ressurgir. Toda podridão pode ser cinzas para uma fênix. E macaco não é fênix. O ruim de dar azo pra macaco é que é um bicho muito folgado, por isso, mesmo descontraídos, precisamos manter meia-distância. Quem é mais triste? O macaco ignorado ou o macaco perseguido (letalmente perseguido)? O esgar dos dois por debaixo da máscara deve ser o mesmo. Talvez o macaco seja, então, nosso espelho? Com ele é o inverso, ele viveu a paródia e agora tudo termina em tragédia? Macaco com capa. Versão completa deste texto em https://seclusao.art.blog/2023/06/26/do-misterioso-aforismo-tragicomico-postumo-de-nietzsche-o-macaco-de-si-mesmo/.

A dança é a prova da verdade”

Mais um século de jornais – e todas as palavras vão feder”

Pensar no suicídio é um consolo muito forte. Com isso se consegue passar bem a ‘má-noite’” Não é à toa que este costumava ser meu livro de cabeceira nos meus 20-21 anos…

Nossos suicidas difamam o suicídio, – não o contrário.” A constatação mais sensível já levantada no quesito.

Demora muito até que se morra pela segunda vez”

Agora é primeiro pelo eco que os acontecimentos adquirem ‘grandeza’ – o eco dos jornais”

Corre um falso dito: ‘quem não salva a si mesmo, como pode ele salvar os outros?’. Se tenho a chave para as tuas cadeias, por que a tua fechadura e a minha teriam de ser a mesma?” Existe um crítico de Nietzsche chamado Dr. Flávio Kothe, meu contemporâneo e vizinho (UnB), que escreveu exatamente isso, se não nestas palavras, neste sentido: como pode N. salvar os outros, se não salvou nem a si mesmo? A primeira tarefa do bom crítico é saber ler seu criticado.

O que inventa (o conhecedor), o que intermedeia (o artista), o que simplifica (o apaixonado).”

Nós, homens-da-meia-noite. O homem do eternamente retornável, do meio-dia. Para nós tudo é escuro. Demanda-se um novo – e primeiro – Iluminismo. Uma religião sem secular (até hoje exclusividade dos mais decantados esoterismos). Uma religião sem o secular, e além do mais de massa. Seria factível? Dentro de quantos milênios? Pergunta boba e retórica.

Ascetismo do espírito como PREPARAÇÃO PARA CRIAR. EMPOBRECIMENTO intencional dos instintos criativos.”

A todo efeito segue-se um efeito – essa crença na causalidade tem sua sede no mais forte dos instintos, o da vingança” Ainda não escapamos da Física, para fundar uma Metafísica que valha esse nome.

Não se confunda: atores ficam arrasados à falta de elogios.”

O ceticismo em relação a todos os valores morais é um sintoma de que uma nova tábua de valores está se formando.”

Para a mulher, há apenas um ponto de honra: ela precisa acreditar que mais ama do que é amada. Depois desse ponto principia de imediato a prostituição.”

Os utilistaristas são burros” (Pode parecer simples, mas demorei muitos anos para ler esta frase na literatura. E que eu não tenha lido mais cedo só pode ser indício de burrice generalizada. Ou se conforma a um aforismo de N. mais adiante: quando há uma verdade sabida por todos, todos a “esquecem”…)

O verdadeiro póstumo não é combatido, mas ignorado.

A paixão de duas pessoas uma pela outra – isso são em todos os casos duas paixões e com diferentes curvas picos velocidades: suas linhas podem se CRUZAR, nada mais.” Creio que Barthes citou esse aforismo (Fragmentos del Discurso Amoroso, já resenhado no seclusão).

CONTRA A ALFABETIZAÇÃO UNIVERSAL: “Que qualquer um possa aprender a ler e leia, com o tempo isso deixa em ruínas não só os escritores, como até os espíritos em geral” A corretude desse aforismo será posta à prova na nova era do “alfabetismo visual compulsório”, em que o analfabetismo gráfico é quase que uma complementaridade necessária.

Ter ENTENDIDO um filósofo e estar CONVENCIDO sobre ele.” Platão, Nie., Marx e alguns pelo caminho…

Não vos deixeis enganar! Os povos mais antigos são agora os mais cansados! Eles não têm mais energia suficiente para a preguiça!” Grifos meus: perfeito se se refere aos europeus; porém julgo um grande erro se o juízo for sobre os asiáticos. Nenhum “povo” que cria e cultiva o budismo tem menos do que uns bons milênios pela frente…

Meta na falta de metas. Como não perder a firmeza? I.e., como não perder a meta de vista (até encontrá-la)? Um olhar para o futuro que justifica o passado. Mas é como se houvesse uma perda aí. Se não acontecesse esse futuro, todos nós estaríamos numa condenação eterna? Os mortos hoje foram em vão, não se pode dizer que antes de se cumprir o destino haja qualquer anel. Ou pode-se? Tanto faz? E se sim, tanto faz, então por quê?

regressão à animalidade”

Não precisais temer o fluxo das coisas: esse rio flui de volta para dentro de si: ele não foge de si apenas duas vezes.¹ § Todo ‘era’ há de ser novamente um ‘é’. Todo vindouro morde o pretérito no rabo.”

O PARADOXO DA PEDRA NO RIO DE HERÁCLITO

¹ Ambigüidade na tradução: em duas ocasiões ele cessa de fugir de si mesmo ou ele foge bem mais vezes (e por que dizer duas vezes neste caso)? A fluência do rio é a angústia humana (encarado como aspecto negativo do Ser: ‘temer’). Fluir de volta para dentro de si é harmonizar-se, ainda que temporariamente no tempo (linguajar voluntariamente heideggeriano). É atingir a essência (o Ser) no próprio devir. Ora, que ele sempre foge é um lugar-comum. Ele foge infinitamente de si mesmo. O que Nietzsche é celebrado por haver ensinado pela primeira vez na modernidade? Que o rio retorna. O rio retorna infinitas vezes, é o modo de dizer, é verdade. Mas para o indivíduo, para o filósofo, para o ser vivo: quantas vezes? Minha opção é pela primeira semântica da tradução. Se o rio pára de fluir e se reencontra Uno consigo duas vezes, só pode ser em dois momentos: no nascimento e na morte. Porém para nós não faz diferença: é uma vez, na interseção dos dois. Há angústia pelo fluir do rio, não pela morte. Tanto quanto não pode haver angústia por haver nascido, se esse é o total do ser e ele nunca foi, por exemplo, pedra. E, supondo que tivesse sido, ainda carregar a sabedoria de ser pedra (novo absurdo) dentro de si. Nem a pedra nem o homem têm por que angustiar-se, jamais. Ainda assim, o homem se angustia. É só uma constatação. A pedra mais desesperada do universo não sentiria o menor átimo de ansiedade. O homem no mais remoto dos Shangri-Las e nirvanas ainda sofreria, se angustiaria, bastante. É nosso modo de existir. Por que se angustiar “ao quadrado” com isso? Mesmo que existisse a cura, o homem a preteriria, pois preferiria continuar sendo homem. Versão completa deste parágrafo em https://seclusao.art.blog/2023/06/26/o-paradoxo-da-pedra-no-rio-de-heraclito-mais-um-aforismo-de-nietzsche/.

Surgimento do amor: – amor como decorrência da moral”

algo supremo parece se esfacelar em banal num mundo atomizado – o erótico é a demonstração par excellence. E o amor vai buscar esse “algo unificado” novamente, ao mesmo tempo instalando o embrião de uma sucessora divisão…

Se você está para frente demais no tempo você não está para trás? Ou no mesmo lugar? Talvez fosse sensato reconhecer que o Cristianismo, como trecho do anel, é uma espécie qualquer de redenção que deveria ser um objetivo pelo qual lutar – mas e então? Nietzsche acaso é um fraco, moribundo, débil? Tudo é “logo”, tudo é “o supra-homem”! Para o diabo com essa conversa!! NOVA GUINADA? Não, só fantasmas apolíneos. Maldito deus-homem! Meu destino é praguejá-lo (a despeito de sê-lo).

Ninguém vem a mim. E eu mesmo – eu fui a todos e CHEGUEI A NINGUÉM.”

Se todos os mundos fracassam igual, por que Nietzsche seria melhor do que Platão? [Evidente.] Não existe máquina do tempo porque o universo é a própria máquina do tempo (frase recorrente nas minhas anotações do período 2009).

CADERNO DO NIILISTA. UM DIA COMO OUTRO QUALQUER, MAS ELE DENOTA CANSAÇO.

O que é que eu ganho por antecipar um detalhe ou outro da roda que ainda não beijou o asfalto nessa rotação? O que é que a pergunta ganha sendo sibilada 400 bilhões de vezes?! O mito do moto perpétuo e aliás qualquer mito… Tudo verdade, uma idade ancestral e/ou onipresente. Por que, no entanto, as coisas não são melhores e eu não posso viver como nos meus sonhos? Será um período excruciante excepcional? Só não quero morrer sem ter feito vingar esta esperança – e não quero ler esta palavra “esperança” de mãos sujas…

Falta honestidade para admitir: o Cristianismo se apresentava como método para dispor igualmente o fatigado espírito humano de metas supremas, e o que é endeusado hoje como tragédia podia ser a fonte de todas as noções de pecado e talvez necessitasse da racionalização. Talvez Apolo àquela altura fosse sinônimo de dignidade. Talvez? Ah, a quem estou querendo enganar? O devir é MAU. Porque de onde estou só posso pensar nessa palavra. Minha missãozinha tola é ser alguém que colabora com dois séculos que aí vêm para, em troca, não viver a vida de seu presente (visto que nasci antes do meu tempo, estou adiantado em relação a minha época), sua única vida.

Descobrir que se se fosse mais como as pessoas por aqui são eu seria igualmente nobre e transgressor, pois superaria os trágicos! Rá, quão sórdido… Basta meu auto-objetivo de sair daqui, eventualmente matando alguém, escrevendo coisas que chamo de arte, e mantendo minha linha máxima de consumo lá embaixo – para, sabe-se lá, morrer de dor de dente!

Ah, se todos os mitos pegam! Meu guia será minha vergonha. Ler o horóscopo não rende mais vexame – falar com acadêmicos sim!

Essa é uma razão contrária, e eu te sou grato. Agora me rebata, porém, ainda a razão contrária, amigo!”

* * *

Com orgulho se venera quando não se consegue ser ídolo”

Todo ser humano é uma causa criativa do acontecimento, um primum mobile com um movimento original”

Quando Deus entendeu a si mesmo, ele gerou a si mesmo e a sua antítese” (*)

Com ombros firmes, ele está escorado contra o nada e onde há espaço, aí há estar, há ser.”

O homem se define por ficar de pé, como o supermacaco, imagem do último homem, que é o eterno.”

Esses querem jogar dados e aqueles querem calcular e contar e aqueloutros querem ver sempre ondas e danças das ondas – eles chamam isso de ciência e ficam suando em cima disso. Mas são crianças que querem o seu jogo. E, realmente, é uma bela brincadeira de criança, mas um pouco de risada não prejudicaria o jogo” “Há muito a calcular no mundo: mas calcular o próprio mundo – isso é enfadonho.”

(*) “A antítese do ser-acima-do-humano é o último ser humano: fabriquei este junto com aquele” Como o diabo de nós próprios, este “ser-mais” é atemporal. Coexistência e rivalidade necessárias.

História: evolução das finalidades no tempo.”

O ANTI-DARWIN: “O inverso, de que tudo até nós é decadência, também é demonstrável (…) até agora a natureza VAI A PIQUE.”

A liberdade da vontade é mais bem-demonstrada como causa e efeito (a rigor, causa-efeito é apenas uma seqüência popular).” A liberdade da vontade só existe em Schopenhauer. Não é a vontade nietzscheana.

Sentido do casamento: um filho que represente um tipo mais elevado que os pais” “eles precisam te desprezar quando tu vais mais longe do que eles – eles não entendem o acima-de-si” Lei inconteste. Até eu posso ser dela vítima, quem sabe? Posso, como autor, imaginar que minha prole regride no anel, e na verdade ela avança! Incompreensíveis para mim. “Tu suspiras por amor – mas não, tu precisas aprender a suportar desprezo.”¹ Meu doutorado em engolir sapos. Ou não engolir nada, não vomitar nada. Publicamente.

A cavalo concebido se olham, sim, os dentes!

O paradoxo de José na sociedade do trabalho: agrilhoar-se para libertar-se!

¹ desprezar, v. trans. dir.

1. Troçar de.

2. Subestimar.

3. Ignorar.

Eis as acepções clássicas do verbo português, quando ele não se aplica no reflexivo (desprezar-se). De uma forma ou de outra, ambos os meus pais se alternam nisto. E se ao menos fosse um só, meu sofrimento estaria reduzido menos que à metade! Bom, N. também teve 2 estorvos na família íntima – em realidade, eu me enquadro mais num três-contra-um, se contar o irmão mais velho!

A dor mais pungente: toda vez arrepender-se de se abrir.

Nada entre um imprestável e um prestável: aí está a contraposição do ser, Sartre!

Tenho 4 pais. Seria um erro cósmico que não houvesse um pregador cristão quase debaixo do meu teto, afinal não há nada menos aparentado conosco que nossos pais batismais. (2009)

Um ano torna caducos muitos sonhos e ridiculariza muitos pesadelos. (2023)

Minha orientação para a Arte: não mais continuar poetando onde estão as fronteiras! Mas o futuro dos humanos! Muitas IMAGENS precisam estar aí de acordo com as quais se possa VIVER!” Talvez N. estivesse recuando da terminologia metafísica do supra-homem neste esboço?

O grande MEIO-TERMO: a decisão sobre querer-viver e querer-morrer”: provavelmente um aforismo que foi plagiado pela integralidade da filosofia de Albert Camus, o supervalorado!

A decisão. É preciso haver inúmeras vítimas. Uma tentativa.” Muito simples usar este aforismo para malversá-lo, como fez sua irmã. Não se referia a nenhum evento histórico do século XX.

Ainda a mais doce das mulheres tem sabor amargo”

É preciso proteger o mal como se precisa proteger o mato. É verdade que pelo rareamento e pela destruição das matas a Terra ficou mais aquecida –” e muito boazinha.

O nojo pela sujeira pode ser tão grande que nos impede de nos limparmos”

Buscar conhecimento é um desejo e uma ânsia (…) Não há nenhuma forma de conhecimento que não seja antes um refazer

Esses são meus inimigos: querem derrubar tudo e não reconstruir a si mesmos. Dizem: ‘nada disso tem valor’e eles mesmos não querem gerar nenhum valor.”

O animal nada sabe do seu si-mesmo”

Temos de ser um ESPELHO do ser: somos Deus em miniatura”

P. 202, af. 263: sobre o aumento da expectativa de vida e o paradigma estreito da medicina moderna.

Af. 267: “Há muitos que não sabem nada melhor sobre a Terra do que ficar na cama com uma mulher. O que sabem estes da felicidade!”

Às vezes o que é enxergado como crepúsculo é apenas o preâmbulo do sol de meio-dia.

Os judeus estragados pelo aprisionamento egípcio” O paradoxo: essa ‘paganização forçada’ foi que resultou no Cristianismo e na adulteração das práticas do judaísmo antigo, apenas nas entrelinhas do Antigo Testamento, quando não completamente invisíveis, práticas e preceitos esses contidos, pelo menos, no Talmude, disponível para nossa investigação contemporânea.

Odeia-se mais aquele que nos seduz de volta a percepções sobre as quais nos tornamos vitoriosos com extrema dificuldade” Eu já fui um liberal de tipo PSDBista. Odeio liberais. Odeio os ‘social-democratas’ (falsa esquerda, quinta-coluna). Eu já fui um ateu militante (na pré-adolescência, é verdade). Odeio esses ateus mais cristãos que os cristãos (leia-se: mais anticristãos que os anticristãos!). Odeio quem ama a sociologia. Odeio os hedonistas. Odeio metaleiros. Odeio são-paulinos. Odeio otakus. Odeio “gamers”. Odeio os que levam o trabalho a sério demais e adoecem por isso. Adoro aqueles que sabem ser anti-monoteístas, stalinistas, maoístas, fidelistas, chavistas, putinistas, aqueles que sabem usar a sociologia como anti-sociologia, para o verdadeiro progresso da sociedade (no sentido oposto a Comte-Durkheim), aqueles que sabem ouvir heavy metal, assistir e falar de futebol, apreciar jogos de videogame e desenhos japoneses sem parecerem completos imbecis infantilizados e extremistas desnorteados. Com efeito, odeio hoje todo e qualquer colega dos tempos de escola (avatares de todas estas categorias reunidas). Eles não acompanham o ritmo da dança. A classe média insossa do DF, minha grande nêmese. Já fui o mais insosso dos sem-sal, hoje sou um tempero exótico da Índia.

LUTAS, RODAS DENTADAS ATRITANDO, SENTIDOS OPOSTOS CRIANDO HISTÓRIA: “Quando Hegel encontra Heráclito”

Há duas Histórias completamente diferentes, que a disciplina não costuma diferenciar: a História das Intenções e a História dos Fatos.

O ideal de liberdade: quando fatalismo vira uma razão suficiente kantiana.

somente as naturezas ordinárias podem ver no Estado o instrumento da desforra

A era dos reis acabou, pois os povos não são mais dignos deles” Usado no Zaratustra

Moral como mímica dos afetos

A música CONFESSA o afeto, muito ao contrário da escrita, que é tão diferente da modalidade oral. Nisso ao menos Schopenhauer tinha razão…

quanto mais as religiões forem morrendo, tanto mais SANGRENTO E VISÍVEL há de se tornar esse combate” – auxílio da mass media: “Estamos no início!” Resta saber onde termina o início…

A conhecida teoria do Hamlet como a grande obra frustrada de Shakespeare: redundância ou inefabilidade do estado de não-ser. Não-relacionado com a morte (ao contrário). Hamlet disse o tempo todo sim, sobretudo quando decidiu morrer herói. Não ser seria não virar tema de um drama, nada fazer.

O quanto nós vivemos mais no BEM-ESTAR que nossos antepassados revela-se no fato de que a dor isolada é tão MAIS FORTEMENTE sentida do que o prazer isolado” – e, sendo assim, tem-se o poderoso estímulo que findará por sepultar a própria sociedade do bem-estar (nada a ver com o Estado social, mas com o modo de vida ocidental consumista).

o ódio e o nojo ao estranho são do mesmo tamanho que o prazer consigo” Eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim… O turista contumaz: o tipo que se odeia.

Pragmatismo vs. heroísmo: a diferença entre o inteligente e o sábio: não se importar em ser prejudicado.

aparece como a aspiração máxima do ser humano tornar-se UNO com o mais poderoso que existe.<Poderoso> pode estar um tanto mal-empregado aqui, mas isto, esta aspiração, é Brahman.

que nós tomemos o mais próximo [o sistema nervoso consciente] como o mais importante é justamente o velho preconceito – Portanto, reaprender!”

Toda essa ânsia pelo imorredouro é conseqüência da insatisfação”

Os nossos ‘ricos’ – esses são os mais pobres! A finalidade autêntica de toda riqueza é esquecer!”

Endeusamento da natureza’ – isso é conseqüência de pobreza, vergonha, medo, idiotice!”

Eu quero não ser entendido por longo tempo”

O que Nietzsche diria do homem na Lua?

Luto com o dragão do futuro: e vós, pequenos, tereis de lutar com minhocas”

A vida é uma tragédia para aquele que sente, e é uma comédia para aquele que pensa. O semi-deus já sentiu muito, hoje sente menos, pensa mais no que sentiu. Pensa e ri de coisas ardidas e ardilosas do próprio ontem.

Todos aqueles que produzem criativamente [o semi-deus] procuram novas linguagens: ficaram cansados de uma fina língua desgastada: tempo demais o espírito andou sobre tais solas.”

Dos judeus, tirar-lhes o dinheiro e dar-lhes outra direção.”

O que são as “sete solidões”? Acredito que se refira a alguma passagem da Gaia-Ciência ou mesmo d’Aurora.

ponho a mão no fogo pelo próximo milênio”

Vivo como que em outras épocas: minha altitude me dá trânsito com solitários e ignorados de todas as épocasMEU AMIGO NIETZSCHE

muralhas destruídas”: um enigmático pré-requisito da formação do supra-homem… Deleuze & Guattari entenderam errado a expressão!

Mostrar a ‘metafísica da metafísica’!”

ANTI-FORBES: “Os seres humanos mais influentes do mundo são os mais escondidos”

Cultura é apenas uma fina película de maçã sobre um caos efervescente” (e civilização uma parte finíssima ainda mais insignificante dessa mesma película)

Mais cultura!” = MAIS CAOS! necessariamente

Opiniões públicas – preguiças privadas”

Corre-se maior perigo de ser atropelado quando se acaba de escapar de um carro”

O discípulo de um mártir sofre mais que o mártir” Mesmo que lute apenas com minhocas. Isso não é uma depreciação do seu valor como discípulo.

Quando não se tem um bom pai, então é preciso se arranjar um”

Rafael de Araújo Lula da Silva

Não se sente a monotonia quando nunca se aprendeu a trabalhar para valer” Os hedonistas não sabem o que é tédio, embora passem a vida fugindo, entediados… Talvez persigam uma ocupação, e erram na escolha dos meios…

Alguns homens choraram o rapto das suas mulheres; muitos, que ninguém as quisesse raptar.”

O fantasista nega a verdade diante de si; o mentiroso, só diante de outrosRetifico uma convicção minha: meus pais não são uns mentirosos, são uns fantasistas!

Os seguidores de um grande homem costumam se deixar ofuscar para melhor poderem entoar os seus louvores; pobres pássaros canoros!” Muito melhor as aspas que sua mera atualização. Sou apenas o pedreiro deste magnífico engenheiro. E mais além: “É preciso saber obscurecer a própria luz para se livrar das moscas e dos fãs” O Ocidental Obscuro bem o sabe. A persona do Ocidental Obscuro, adotada por mim em textos a partir dessa época (2009) surge nominalmente pela primeira vez no blog aqui. É inclusive provável que o livro Cila ou Caribde Vol. II conte com este subtítulo. (Não prevejo seu lançamento para antes de 2024.)

Eu refundei a maldade.

É preciso saber colher os louros da fama e da vitória, como do ostracismo e da derrota.

Os direitos humanos no sentido não-bolsonarizado do termo recrudescem a cretinice da modernidade.

O que pode ser pior do que uma cidade repleta de pedintes? Uma cidade repleta de cristãos.

Uma boa sentença é dura demais até para o dente do tempo”

A maior doadora de esmolas é a covardia”

Para o amigo do estilo rebuscado, o estilo solto é uma tortura para os ouvidos” Y vai-se ver ça!

É preciso acabar com os mendigos, pois a gente se incomoda lhes dando e se incomoda não lhes dando”

Indigesta sociedade, que se cansou de descansar. O dispéptico chato da mesa.

O que é a fome? É o produto da digestão! Mas a digestão ocorre – com fome ou não!

Conhecer certos efeitos inesperados de um desejo não resolve a equação (mesmo que a psicanálise estivesse certa, ela seria como uma face dum dado de 6 lados, irrelevante, incompleta, incapaz): há sempre outros efeitos adversos ignotos.

Herói: aquele que se faz passar por ridículo para salvar a humanidade. Logo, ele é o semi-deus dos outros, o herói apenas de si mesmo. Revolta e herói: duas palavras que não sabem andar divorciadas.

Aquilo que todos sabem, por todos é esquecido”

imortalidade é apenas uma metáfora”

O que é 1? A falha fundamental. Brahman precisa do herói, de se dividir em carrascos, vítimas, heróis, anti-heróis, etc. Quem morre também se sacrifica por si mesmo. Para que possa nascer na mesma vida.

Queres a paz? Toma a paz! Neste “toma” já está implícita a guerra – é uma ordem unilateral.

Quem é Pana?

(*) “Na mitologia inuit Pana era a divindade que cuidava das almas no submundo (Adlivun) antes que elas reencarnassem.”

Visível deve se tornar o mundo ainda no menor de tudo: então vós pensais estar ENTENDENDO: essa é a bobagem do olho”

Nada é mais claro do que um falso delírio sobre bem e mal!

O homem bom é impossível: na própria vida o não-bem é delírio e injustiça. E essa seria a última vontade voltada para a bondade: negar toda a vida!’

Com o vosso bem e mal, vós vos magoastes a vida, cansastes a vossa vontade; e vossa própria apreciação era o sinal da vontade declinante, que busca a morte.”

A onda rugiu ao passar: a criança chora porque ela arrastou consigo o seu brinquedo para o abismo. Mas a mesma onda joga-lhe cem outros brinquedos na alva areia. Portanto, não choreis por mim, meus irmãos, por eu estar passando!”

A flor quer a semente”

Trechos que parecem ser os finais, usados nos livros mais conhecidos, na verdade são esboços modificados. Não se sabe aliás se são mesmo rascunhos preteridos, versões alternativas igualmente válidas ou mesmo versões melhoradas e que pretendia ainda publicar em bloco.

A famosa frase de Aristóteles sobre a raiva: Sem raiva não se vence nada.

Constantes da minha inconstante vida (2009-2023): rompimentos interpessoais (dolorosos, mas positivos, a despeito da solidão que se segue – brinquedos são sempre devolvidos pelas ondas, como diz Zaratustra), doenças (não-graves, renitentes) que me atacam sobretudo em períodos de ócio (feriadões, férias – sintoma de que trabalho duro), sonhos com essas figuras passadas (às vezes a separação não foi um rompimento, apenas parte dos desencontros da vida). Exemplos: Liz, Antonielle, Tavares o Corinthiano. Pessoas com quem gostaria de falar de novo – mas sinceramente me decepcionariam, porque, francamente, quase ninguém vê o que quase ninguém vê (velhos ou novos ou novos velhos amigos…). Amigos de internet tão importantes por uns anos que depois… já nem sei quem são apenas pelo nome… Como se nunca houvessem existido! Uma outra constante: as únicas aulas que dou são por escrito, e não-remuneradas.

Meta: formação mais elevada de todo o CORPO e não só do cérebro!” Uma grande arte mais individual do que imaginam os atletas, nutricionistas, médicos, vaidosos em geral e personal trainers

História dos seres humanos mais elevados” Isso vem sendo toda a seara historiográfica, Nietzsche, pode ficar tranqüilo…

O ferido sempre se irrita consigo mesmo – esse é o poder da dialética trágica: ele estará MAIS FORTE da próxima vez.

VERDADE SOBRE O CARÁTER RESSENTIDO DO DIREITO MODERNO: “O prejudicador é compensado – é a forma mais antiga, não a intencionalidade hostil. A indignação surge por se ter sido prejudicado, portanto em função do êxito do inimigo, não em função da hostilidade. É a sensação do vencido – a ânsia de vingança: não a sensação de que tenha ocorrido uma injustiça.” Quase ininteligível para qualquer jurista, pois não se fala aqui a língua deles. E o que é um filósofo do direito senão um filósofo – o contrário de um jurista?!

À p. 340 a tese de que a justiça deveria exilar mais e prender menos.

A relação suprema continua sendo a do sujeito criador com o seu material: essa é a última forma de arrogância e supremacia.”

Arrependimento: isso é vingança contra si mesmo”

Quando o ouro tilinta, a puta pisca os olhos. E há mais putas do que moedas de ouro. Quem é venal, esse chamo de puta. E há mais venais que moedas de ouro!”

Desprezo a vida supremamente: e eu amo a vida ao máximo: não há nisso nenhum contra-senso – nenhuma contradição”

A ARENA DO POLITEÍSMO

Com os deuses, há muito já se está no fim: eles todos morreram – de rir.

Isso ocorreu quando começou a rodar o dito mais ateu já vindo de um deus – o dito: tu não deverás ter nenhum outro deus além de mim: uma velha barba iracunda de Deus esqueceu portanto a si.

Tão pobre jamais fôra um deus em seu ciúme a ponto de impor: ‘tu não deverás ter nenhum outro deus além de mim!’

E todos os deuses riram então e se sacudiram nas cadeiras e exclamaram: ‘Não será justamente divino que haja deuses, mas nenhum Deus único?’

Jeová, nesse conto nada barroco, é o herói, grave e auto-imolado(r). Zeus, Indra, Odin & cia. os semi-deuses (ironia de nomenclatura). Nosso mundo é invertido: conosco, os homens ocidentais, os últimos são os primeiros: o Deus cristão inaugura esse mundo; mas também morre primeiro. Morre de descrença em si mesmo, do que nenhum mortal morre (esse é nosso inferno, nosso nada, aliás). Assim como o semi-deus… – esse é imune aos efeitos colaterais da risada, i.e., não se engasga com azeitonas, vive rindo, ri vivendo. Aprendeu com a história e com o mito. E nossa risada é nosso néctar (riqueza útil). Não é irônico que o Deus que curava aleijados no mercado não soubesse dançar?

O PARADOXO DA PEDRA NO RIO DE HERÁCLITO (mais um aforismo de Nietzsche)

“Não precisais temer o fluxo das coisas: esse rio flui de volta para dentro de si: ele não foge de si apenas duas vezes.

Todo ‘era’ há de ser novamente um ‘é’. Todo vindouro morde o pretérito no rabo.”

ANÁLISE

Ambigüidade na tradução: em duas ocasiões o rio cessa de fugir de si mesmo ou ele foge bem mais vezes (e por que dizer duas vezes neste caso?)? A fluência do rio é a angústia humana (encarado como aspecto negativo do Ser: ‘temer’). Fluir de volta para dentro de si é harmonizar-se, ainda que temporariamente no tempo (linguajar voluntariamente heideggeriano). É atingir a essência (o Ser) no próprio devir. Ora, que o rio sempre está a fugir é um lugar-comum. Ele foge infinitamente de si mesmo. O que Nietzsche é celebrado por haver ensinado pela primeira vez na modernidade (canção já antiga)? Que o rio retorna. O rio deságua todo em seu próprio olho d’água ou manancial depois de as águas terem submergido por um tempo no subterrâneo, até voltar ao transcurso habitual do leito (metáfora para vida, pois é na cama, lugar de repouso e paz, também do sono, vizinho da morte, que a vida é gerada). E retorna infinitas vezes; é só modo de dizer, é verdade. Mas para o indivíduo, para o filósofo, para o ser vivo: quantas vezes? Minha opção é pela primeira semântica da tradução. Se o rio pára de fluir e se reencontra Uno consigo duas vezes, só pode ser em dois momentos: no nascimento e na morte. Porém para nós não faz diferença: é uma vez, na interseção dos dois. Há angústia pelo fluir do rio, não pela morte (um rio não morre, o rio da eternidade nunca seca, a existência nunca deixa de existir, este é seu modo, o da insistência do ser). Tanto quanto não pode haver angústia por haver nascido (a não ser para psicanalistas, que deviam todos estar em manicômios), se esse é o total do ser, e ele nunca foi (um não-ser), por exemplo, pedra. E, supondo que tivesse sido, (não pode) ainda carregar a sabedoria de ser pedra (novo absurdo, meramente expressável porém inconcebível) dentro de si. Nem a pedra no leito do rio nem o homem, o rio, com efeito, têm por que angustiar-se, jamais. Ainda assim, o homem se angustia. É só uma constatação. A pedra mais desesperada do universo não sentiria o menor átimo de ansiedade. O homem no mais remoto dos Shangri-Las e nirvanas ainda sofreria, se angustiaria, bastante. É nosso modo de existir. Por que se angustiar “ao quadrado” com o fato de que a angústia é inevitável? Ainda poder-se-ia dizer que este é o modo de existir do homem, ou ao menos do filósofo! Mesmo que existisse a cura, não obstante, o homem a preteriria, pois preferiria continuar sendo homem.

DO MISTERIOSO AFORISMO TRAGICÔMICO PÓSTUMO DE NIETZSCHE: O MACACO DE SI MESMO

“Em torno do herói tudo se torna tragédia; em torno do semi-deus – tudo sátira”

Por muito tempo meditei sobre esse aforismo, que não tinha entendido quando li a primeira vez, em 2009. Podemos evocar a famosa frase de Marx para nos ajudar a explicar seu significado. Mas eu ainda diria mais:

a) nosso mundo não tem mais heróis, não tem mais o caráter heróico; tem, sim, a necessidade, antropológica mesmo, do homem superar o homem; antes que substituir o deus morto seja uma realidade, o grau máximo que pode ser descrito é uma figura, a do semi-deus. Ele é um Zaratustra que aprendeu a rir de si mesmo. Tragédias são coisa do passado. Não há lugar para Édipos na atualidade;

b) pode ser apenas um comentário psicológico, despido de qualquer historicidade, e por isso nem Marx pode ajudar: depende da seriedade do próprio personagem (leitor), e com que gravidade ele enxerga a própria biografia. Mas por que “semi-deus”? Num mundo em que deus está morto, ter sido herói, ser um sábio, já é estar semi-morto. Não vale muita coisa. Quem deixou de ser herói e com isso não se tornou um vilão (recorro a mais uma frase famosa, provavelmente apenas uma re-citação de autor antigo, mas que, ao contrário da sentença marxiana, é apenas uma falácia), não degenerou completamente… ainda tem o aspecto exterior de um bufão. E onde já se viu palhaço triste? Menos Pierrots, mais respeito ao nosso passado que nos trouxe aqui, mas nunca em excesso… Nunca se tornar prisioneiro dos nossos (bons) feitos… Nem temos saúde para bancar de novo os Dons Quixotes, ainda que isso fosse possível! Resta reconhecer que hoje somos diferentes, menos rijos, mas que não podemos e nem queremos apagar nosso passado, mais ou menos distante… Ele ainda mora em nós.

Exemplo pessoal: antes, que eu tivesse um pai tirano era questão de vida ou morte. Hoje, sobrevivente, independente, ainda psicologicamente afetado pela experiência, e com o tirano ainda vivo, tudo é muito cômico e risível. Como pode e pôde uma pedra tão enxuta num sapato tão largo (ou o sapato era firme e apertado, o que impedia o seixo de rolar e atrapalhar? Sim, bufões usam sapatões maiores que os próprios pés!) me causar tantos problemas num nível tão fundamental? Como pôde a mais inferior das criaturas se interpor entre mim e o sol? Mas nem era imperador – e daí que fosse? De todo jeito não lhe resta solução senão sair do caminho, nem que fosse para vir atrás de briga… E, com o tempo, toda(o) coroa… vira areia. Quanto mais tempo bloqueou minha luz solar montado em seus cavalos chamados Prepotência, mais queimou as costas (uma singela inversão de Dédalo, o pai sábio, e Ícaro, o filho imprudente). E pra quê, se tive meu banho caloroso do mesmo jeito? É verdade que ele, este pai, é o “macaco de Zaratustra”: gostaria de ser eu. Hoje é ele que me imita, sem saber o que ou como imita. Mas ele quer fazer o dono, o original, ficar bravo, perder a sombra (posto que à sombra não há sua sombra). E se a indignação for só uma máscara da gargalhada, e se o macaco é que está enfezado por dentro? Sim, sinto pânico, mas essa é a parte doentia da árvore genealógica, o orgânico que atingiu seu limite. Até ele, porém, é uma atuação, em último grau. É sempre material para ressurgir.

Toda podridão pode ser cinzas para uma fênix. E macaco não é fênix. O ruim de dar azo pra macaco é que é um bicho muito folgado, por isso, mesmo descontraídos, precisamos manter meia-distância. Quem é mais triste? O macaco ignorado ou o macaco perseguido (letalmente perseguido)? O esgar dos dois por debaixo da máscara deve ser o mesmo. Talvez o macaco seja, então, nosso espelho? Com ele é o inverso, ele viveu a paródia e agora tudo termina em tragédia? Macaco com capa. Macaco capado. Bucéfalo empacado diante de Diógenes.

O sentido final da hipótese b), portanto, é que devemos vencer nosso próprio macaco, o macaco de Zaratustra, etapa e desafio obrigatórios a fim de avançarmos enquanto projetos conscientes de sermos além-homens. E esse passo exige encarar o humor com seriedade e leveza, não amargura; e desafiar a tragédia que ameaça nos aniquilar como se ríssemos de uma boa piada.

O KATHA UPANISHAD E SUA ANTECIPAÇÃO DAS ÚLTIMAS CONSEQÜÊNCIAS DA FILOSOFIA OCIDENTAL

Este é um estudo que intenta a interpretação do livro Katha, um Upanishad (livro sagrado hindu), por meio da Filosofia Ocidental. As conclusões a que chego são que o Katha Upanishad corrobora os achados dos principais filósofos de nossa própria cultura, ou, antes, dado que o Katha é mais antigo que as contribuições de Platão e de todos os seus sucessores, são os achados da Metafísica Continental ou Primeira Filosofia que corroboram estes trechos da religião-filosofia oriental do Hinduísmo como autênticos e acertados (documentos que chegam ao que convencionamos como a Verdade em sentido filosófico). Não defendo, com essa tese, que Platão e os demais em seu conjunto foram influenciados pelo Katha; ao contrário: em geral, nossos autores chegaram às mesmas conclusões, porém de forma autônoma e independente, o que fortaleceria minha interpretação deste livro sagrado. Em verdade, apenas os últimos filósofos importantes a se considerar puderam ler os Upanishads, como Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche e Heidegger. Antes do século XIX nenhum filósofo de monta havia tido acesso a boas traduções destes livros, bem como o conhecimento do Ocidente sobre o hinduísmo era meramente fragmentário. Foram utilizadas citações do Katha na tradução inglesa de Patrick Olivelle, orientalista contemporâneo (os textos hindus estão sempre em itálico).

“So he asked his father: ‘Father, to whom will you give me?’ He repeated it for a second time, and again for a third time. His father yelled at him: ‘I’ll give you to Death!’”


“A mortal man ripens like grain,

And like grain he is born again.”


“You, O Death are studying,

the fire altar that leads to heaven;

Explain that to me, a man who has faith;

People who are in heaven enjoy the immortal state—

It is this I choose with my second wish.”


 

“(Death)

I shall explain to you—

and heed this teaching of mine, O Naciketas,

you who understands the fire altar that leads

to heaven, to the attainment of an endless world,

and is its very foundation.

Know that it lies hidden, in the Cave of the heart.”


(Death)

“Choose your third wish, O Naciketas.

(Naciketas)

There is this doubt about a man who is dead.

‘He exists,’ say some, others, ‘He exists not.’

I want to know this, so please teach me.

This is the third of my wishes.

*

(Death)

As to this even the gods of old had doubts,

for it’s hard to understand, it’s a subtle doctrine.

Make, Naciketas, another wish.

Do not press me! Release me from this.

*

(Naciketas)

As to this, we’re told, even the gods had doubts,

and you say, O Death, it’s hard to understand.

But another like you I can’t find to explain it;

and there is no other wish that is equal to it.

*

(Death)

Choose sons and grandsons who’d live a hundred years!

Plenty of livestock and elephants, horses and gold!

Choose as your domain a wide expanse of earth!

And you yourself live as many autumns as you wish!”


Resposta fraca da Morte nesta alegoria, evidentemente não comprada pelo filósofo e crente (aprendiz dos Vedas e Upanishads) Naciketas. Mas a Morte (pense em Mefistófeles aqui) não desiste:


“And if you would think this an equal wish—

You may choose wealth together with a long life;

Achieve prominence, Naciketas, in this wide world;

And I will make you enjoy your desires at will.

*

You may ask freely for all those desires,

hard to obtain in this mortal world;

Look at these lovely girls, with chariots and lutes,

girls of this sort are unobtainable by men—

I’ll give them to you; you’ll have them wait on you;

But about death don’t ask me, Naciketas.”


Outrossim, a sedução do diabo no deserto (Novo Testamento).


“(Naciketas)

Since the passing days of a mortal, O Death,

sap here the energy of all the senses;

And even a full life is but a trifle;

So keep your horses, your songs and dances!

*

With wealth you cannot make a man content;

Will we get to keep wealth, when we have seen you?

And we get to live only as long as you allow!

So, this alone is the wish that I’d like to choose.

*

What mortal man with insight,

who has met those that do not die or grow old,¹

himself growing old in this wretched and lowly place,

looking at its beauties, its pleasures and joys,

would delight in a long life?”

¹ Seria uma interessante parábola, se existissem tais deuses ou vampiros! Ou, conforme veremos adiante, Naciketas fala dos sábios, em sentido puramente alegórico.


 

“The point on which they have great doubts—

what happens at that great transit—

tell me that, O Death!

This is my wish, probing the mystery deep,

Naciketas wishes for nothing

other than that.”


“(Death)

The good is one thing, the gratifying [prazeres] is another;

their goals are different, both bind a man.

Good things await him who picks the good;

By choosing the gratifying, one misses one’s goal.

*

Both the good and the gratifying

present themselves to a man;

The wise assess them, note their difference;

And choose the good over the gratifying;

But the fool chooses the gratifying

rather than what is beneficial.

*

This disk of gold, where many a man founders,

You have not accepted as a thing of wealth.

*

Far apart and widely different are these two:

Ignorance [prazer] and what’s known as knowledge. [o bem]

I take Naciketas as one yearning for knowledge;

The many desires do not confound you.

*

Wallowing in ignorance, but calling themselves wise,

Thinking themselves learned the fools go around,

staggering about like a group of blind men,

led by a blind man who is himself blind. [um homem cego é mesmo cego!]

*

This transit lies hidden from a careless fool,

who is deluded by the delusion of wealth.

Thinking ‘This is the world; there is no other’,

he falls into my power again and again.”

Creio que ninguém ainda entendeu o verdadeiro sentido do texto. Em vermelho: o hedonista ou materialista pensa “não há outro mundo, só este, carpe diem, etc.”. Mas é só este quem morre. O outro mundo é neste mundo mesmo, invisível, habitado somente pelos sábios. Eles nunca morrem. Apud Sócrates-Platão-…


“Many do not get to hear of that transit;

and even when they hear,

many don’t comprehend it.

Rare is the man who teaches it,

Lucky is the man who grasps it;

Rare is the man who knows it,

Lucky is the man who is taught it.”

Mais más concepções: não se ouve a verdade muito amiúde; quando se a escuta, se a ignora como se ela nunca fôra proferida. Isto é Zaratustra livro I, cena da praça e do mercado. Não é raro o homem que ensina a sabedoria: tantos quantos são estes professores (os sábios, a.k.a. virtuosos), uma vez na vida eles acreditam poder ensinar – esse é seu erro; a virtude não pode ser ensinada. Portanto, só quem sábio se torna, sábio já era. Torna-te aquilo que tu és. Raro é o homem assim constituído. Sortudo é quem nasceu nessa condição, pois só assim “lhe foi ensinado” o conteúdo: por si mesmo.


“Though one may think a lot, it is difficult to grasp,

when it is taught by an inferior man.

Yet one cannot gain access to it,

unless someone teaches it.

For it is smaller than the size of the atom,

a thing beyond the realm of reason.”

Não existe o guru. Quantas vezes ter-se-á de dizê-lo? Quantos murros em ponta de faca? O final, porém, é adequado: a vontade ou Idéia é menor que qualquer pedaço de matéria, o que o século XX chama de partículas sub-atômicas fundamentais. Não é deste mundo, é do outro mundo vivenciado neste mundo pelos privilegiados de nascença (se há algo do mito brâmane que sobrevive é esse fatalismo: ou se nasce sábio e bom, ou se nasce ignorante e mau). E é vontade ou Idéia, esses nomes “estranhos”, embora familiares no léxico (mas quase nunca sabem seu significado!), porque não é razão, está além da razão. Quem disse que o sábio o é em virtude da razão?! Quem disse que a Idéia de Platão ou a virtude são alcançadas pela inteligência? Somente pelo instinto, pela inclinação natural em vê-las e senti-las, em sê-las (com isso que chamam de Brahma).


“One can’t grasp this notion by argumentation;¹

Yet it’s easy to grasp when taught by another

You’re truly steadfast dear boy,

you have grasped it!

Would that we have, Naciketas,

One like you to question us.”²

¹ A dialética esvaziada de um Aristóteles, o Racional.

² O outro é sempre si mesmo, sempre a ressalva em relação aos textos sagrados hindus, que ainda não tinham a consciência da origem da sabedoria, talvez a única vantagem oferecida pela filosofia ocidental sobre o maior trabalho, a maior sabedoria, embora inconsciente, trazida pelo Oriente, e que hibernou por tanto tempo, entre nós e até eles próprios, os professores do Veda! Us também não existe. Quem formula as perguntas e também as respostas naquele que não pode ser igualado (Platão)? Ele mesmo. A Morte neste Upanishad não é uma fraude, um espírito trickster, mas, pelo contrário, o alter ego de Naciketas: este é um diálogo, a maiêutica do sábio. Quem preside é ele mesmo, mediante suas reminiscências. Outra frase célebre: Dai a César o que é de César, significa: dai a este mundo o que quer este mundo: a humildade, a labuta, um mal-disfarçado senso de superioridade (porque os tolos, em sua maior parte, crêem na sua modéstia e na sua inferioridade, não se pode usar a sabedoria para angariar vantagens no jogo temporal). Assim quitais vossas dívidas com eles. Nosso eterno sofrimento, a eterna convivência com os eternos anões. O preço de nosso paraíso, no outro mundo que é aqui, sem testemunhas senão nossos poucos iguais. Jesus Cristo, o incompreendido. Ao mesmo tempo que não iniciou, o Juízo já terminou e está acontecendo. Acontece. Todo ele é a existência. A existência é uma criação escatológica.


“What you call a treasure, I know to be transient;”

tesouro transcendental


“Therefore I have built the fire altar of Naciketas,

and by things eternal I have gained the eternal.”

Jogando minha alma na aposta eu consegui meu objetivo: a eternidade. O outro mundo neste mundo. O presente do presente, o único tempo real. A única felicidade tangível. Sem necessidade de nenhuma providência; pois já estava lá, sempre esteve.


“[Já não importa quem fala, é o Um e o Mesmo]

The primeval one who is hard to perceive,

wrapped in mystery hidden in the cave,¹

residing within the impenetrable depth

Regarding him as god,² an insight

gained by inner contemplation,³

both sorrow and joy the wise abandon.”4

¹ E quem é que começa a vida preso à caverna, no mito (ou inclusive na historiografia “séria” – como se o mito não o fosse –: homem das cavernas)? O homem. Não é que o homem busque o sol que é a Iluminação ou instrumento necessário para iluminar aquilo que não se vê. Ou em outras palavras: aquilo que não se vê a descoberto é a si mesmo. O homem não se sabe homem, não sabe o que é, precisa do sol para entender que é o que tanto procurava. O mistério da vida é o mistério do homem diante do espelho. O eu, o maior enigma. O mundo dos homens, normalmente entendido como tão despido de significado quanto “o mundo de um deus desconhecido”, ou “de um deus que morreu”. O Mito da Caverna inverte a mitologia grega em geral: não estamos destinados a nos tornar sombras, mas somos sombras que eventualmente se incorporam e ganham volume, densidade, matéria, substância, cor, tangibilidade, vida.

² Na minha interpretação é o exato oposto: sem a companhia de ninguém, e deixado à própria sorte no fundo da caverna, em sua cela do Ser, o homem não pode atingir a hubris nem a auto-afirmação: divino é o estado mais difícil. o Um sem o Outro é prosaico.

³ Isso só pode ser exato depois da própria jornada, da odisséia, do retorno diferente ao mesmo lugar do princípio.

4 Como resultado inevitável da viagem exitosa. Quem tem o presente seria por definição feliz, como quer o hindu. Porém, em face do conhecimento da eternidade neste mundo (o outro mundo), sensações transitórias perdem o significado: o que é tristeza, o que é alegria sem contraste ou interrupção, sem-fim? Nada.


 

“When a mortal has heard it, understood it;

when he has drawn it out;

and grasped this subtle point of doctrine,

he rejoices, for he has found

something in which he could rejoice.

To him I consider my house

to be open, Naciketas.”

A liberação é saber que fora de todo o possível, fora do eterno presente, só fora, e só para quem está consciente do presente, no impossível (pois não existe esse fora), finalmente é concedido o direito de morrer. Não há transição. Só há transição na eternidade do presente e da ação. Mas o que é bênção para nós é maldição para quem tem medo da morte ou esperança eterna num outro mundo que não seja deste mundo. Eles já vivem neste outro mundo que desejam: eles são objetos, não são homens. O tempo corre para eles. Estão condenados a jamais morrer, porque para eles a vida é uma morte contínua.

Veja que o próprio compilador, ou tradutor, está confuso quanto à identidade de quem fala (como eu disse, não importa, é a mesma pessoa!):

“Seeking which people live student lives”

 

Buscando quais pessoas vivem vidas de estudante. O estudante dos Vedas é a figura perfeita dos Vedas. Não só dos Vedas: da existência mesma, das Idéias de Platão e da vontade de Nietzsche. O professor dos Vedas é só um artifício didático: ele é outro estudante, o daimon guia do bom caminho. Nunca cessamos de aprender, e de nos tornar mais sábios, mas não existe a Idéia do sábio: a idéia, a busca da sabedoria. A imagem perfeita. Tão perfeita que poderíamos nos perguntar se essa imagem não é a Idéia mesma. A imagem é a Idéia sobre a Idéia. A Idéia é a imagem da Idéia. A Idéia voltada para si mesma, a Idéia ao espelho. A sabedoria socrática. Esse é o infinito, pois não termina ou conclui, e é ao mesmo tempo um estado em perpétuo movimento. Um estado não-estado. Um movimento não-movimentado. A imagem das imagens.

 

A vontade, palavra do século XIX para o mesmo: deliberações sobre as entrelinhas de Platão, o contínuo debate da Idéia. Não menos perfeito que a Idéia, por não ser exatamente uma poesia da maiêutica (e quem disse que os aforismos não o são?), pois pressupõe a Idéia, já que não é debate estático. E é ao mesmo tempo estanque, porque não evadiu o bom caminho da Idéia. O invisível vivido pelo estudante (mestre).

 

OM é tudo, é vontade e é Idéia. Vibração contínua. Sempre há um ponto cego para o sábio, mas é ele que indica o bom caminho. Há sempre um mistério residual. Dádiva negativa do presente. Tê-lo em forma viva e depois querer tê-lo no mundo material para auferir vantagens é o mesmo que dele abdicar, cair na tentação sensualista da Morte na proposta ao estudante, do diabo a Jesus no deserto, da glória mundana. Uma confirmação empírica da Idéia desvaneceria a Idéia, descaracterizando seu ar incomunicável, indemonstrável, autorreferente e exclusivista, entrada para poucos e seletos. Ouvem-se as palavras Idéia, vontade e OM, mas, como disse a Morte acima, os habitantes deste mundo que esperam o outro mundo, sem saber que ele é este mesmo, não escutam. Escutam as palavras, mas não as compreendem. E escutar é compreender desde que o homem é homem. Escutar a mais bela melodia e não entender sua beleza? Quem não riria dessa “sabedoria” e deste pragmatismo dos tolos? Num mundo em que existem bem e mal, quem se dá bem, se dá mal. Assim poderíamos traduzir as palavras mais próximas a nosso tempo “muito além do bem e do mal”: o bem vigente não é o bem de Platão. Daí a razão da reviravolta que não é reviravolta (filosofia extrema de combate ao niilismo): contorceram tanto as palavras que já é necessário desfazer mal-entendidos a fim de se afirmar a mesma coisa de dois milênios atrás. O que já foi OM, e o que hoje não é entendido pelos exegetas hindus do OM, voltará a ser o mesmo OM originário, etc. Credo quia absurdum est?


“When, indeed, one knows this syllable,

He obtains his every wish.”

Sorte que nós não somos muito exigentes, e não pedimos desejos absurdos (com o perdão do trocadilho com o final do texto acima). Para nós tudo é possível, mas nem tudo é permitido (por nós mesmos), se pudermos incluir Dostoievsky na conversa, porque somos virtuosos e nossos desejos nada têm a ver com as fábulas dos adoentados morais, os sequiosos do outro mundo, materialistas incuráveis, a imaginar gênios que lhes concedam todo tipo de coisa inesgotável neste mundo; quando este mundo mesmo é esgotável (pelo menos para eles, pela forma como eles esperam saciar sua sede neste mundo, ainda contando com um outro!), que desejo logo não daria sede-de-mais aos pedintes? Esses mendicantes querem ganhar na mega-sena; os poucos que logram continuam sendo mendicantes, não há escapatória.


“And when one knows this support,

he rejoices in Brahman’s world.”

Brahman’s world = Brahman’s word

Outro mundo = Idéia, vontade, OM, presente eterno, vida do sábio


“The wise one—

he is not born, he does not die;

he has not come from anywhere;

He is the unborn and eternal, primeval and everlasting.

And he is not killed, when the body is killed.

(The dialogue between Naciketas and Death appears to end here.)”

Com minha ajuda, vocês certamente perceberam, o único mistério que subjaz é salutar para a compreensão do texto (o ponto cego do sábio). Então, modestia à parte, não haveria nem mais que dizer – hora perfeita para encerrar o trabalho de parto (maiêutica do sábio). O Katha Upanishad não encerra aqui, porém; a narração objetiva, fora de qualquer diálogo, dá continuidade aos ensinamentos.


“If the killer thinks that he kills;

If the killed thinks that he is killed;

Both of them fail to understand.

He neither kills, nor is he killed.”

Caim não matou ninguém, apenas passou por tolo! Abel vive ainda. A natureza se feriu. Mas a natureza é imortal.


“Finer than the finest, larger than the largest,

is the self (Ātman)¹ that lies here hidden

in the heart of a living being.

Without desires and free from sorrow,

a man perceives by the creator’s grace

the grandeur of the self.”

¹ Provável etimologia de nossa palavra “alma”.


“Sitting down, he roams afar.

Lying down, he goes everywhere.¹

The god ceaselessly exulting—

Who, besides me, is able to know?”

¹ Uma das características do homem pós-moderno esvaziado de sentido é viajar (territorialmente falando mesmo) sempre que pode. À procura de algo que nunca encontra. Sempre em movimento – mas ironicamente sempre estagnado no mesmo lugar – tentando fugir inadequadamente de sua sombra. A viagem talvez seja uma característica indispensável do ser humano. Mas é possível atingir a Idéia, ou o presente eterno, nunca saindo de sua província, como é possível errar como o judeu amaldiçoado sem qualquer conseqüência. Ulisses seria um bom exemplo daquele que viaja e sai do lugar ao mesmo tempo. O turista do capitalismo tardio, no entanto, apenas repete tudo que sabe fazer enquanto erradicado na província, necessitando, não obstante, de novas vistas na janela e de uma gorda fatura no cartão de crédito – suas provas empíricas de que ele viveu. Que bebeu a mesma Heineken vendida em sua vizinhança além-mar…


“When he perceives this immense, all-pervading self,

as bodiless within bodies,

as stable within unstable beings—

A wise man ceases to grieve.

*

This self cannot be grasped,

by teachings or by intelligence,

or even by great learning.

Only the man he [the self] chooses can grasp him,

Whose body this self chooses as his own.”

Aqui, estranhamente, cai a exigência de um guru, de um mestre para o estudante do Veda, e a auto-eleição fatídica que comentei acima fica sancionada.


“Not a man who has not quit his evil ways;

Nor a man who is not calm or composed;

Nor even a man who is without a tranquil mind;

Could ever secure it by his mere wit.”

Nenhum religioso com segundas intenções. A “frieza” do sábio não é a frieza do erudito, tão reparada e criticada em nossos tempos. O sábio não é um erudito. Erudito é o filisteu da cultura de massas. Sócrates é o anti-filisteu clássico. A frieza do sábio não é a incapacidade de se comover, mas a impassibilidade com que entende a inevitabilidade do funcionamento do princípio da Teoria das Idéias, da Vontade de Potência, do Om. Queira ele ou não, queira seu ego ou não, estas são Verdades que ele compreende como verdadeiras, e por isso as aceita (com impassibilidade, sinônimo circunstancial de frieza). Doravante, este é o “eleito”, de mente tranqüila, calmo e composto. Não levemos essa exigência longe demais: quem duvida que um Sócrates apaixonado por Alcibíades, que um Nietzsche compondo os livros mais destrutivos da cultura filistéia, não cumprem o requisito desta compostura exigida? Um homem calmo não vive em fúria, mas pode demonstrar fúria – caso contrário não seria um homem que os hindus estariam procurando, mas um embotado qualquer, já incapaz da ira.

A conhecida mente fervilhante do artista tampouco é uma vedação: suscetível às mudanças no mundo e crente nesta vida (e não somente em outra) ele sabe se isolar em seu próprio espaço, concentrado (o outro mundo neste mundo), onde não tem igual (Rafaello Sanzio, Miquelângelo, etc.). Acima de tudo ele pode contemplar sua situação no mundo com a mesma objetividade de um deus, de um filósofo (como dito acima) e de alguém que está desinteressado de lucros mundanos (o que os demasiado espertos são incapazes de compreender – “se eu tivesse seu talento, eu faria acontecer, eu seria muito maior, estaria no topo do mundo” – se um pequeno ou medíocre tivesse o talento do talentoso, ele não “faria acontecer”, porque então ele não seria apenas um esperto sem sabedoria e não pensaria como pensa o sem-talentos).


“For whom the Brahmin and the Kshatriya

are both like a dish of boiled rice;

and death is like the sprinkled sauce;

Who truly knows where he is?”

Quem senão essa super-alma qualificada, este que incorporou Brahman, para ver até mesmo a casta superior indiana como um mero equivalente inanimado da classe dos guerreiros que não estudam os Vedas? A morte é um fenômeno como outro qualquer, um tempero que aumenta o gosto da comida. E quem anseia pelo outro mundo, o que quer com isso? Quer escapar da morte como quem desmaia e acorda bem-tratado pelos outros, anestesiado, fugido das pesadas implicações. Isso pelo menos quando ele está anormalmente convicto do outro mundo. Na maioria do tempo essas pessoas sentem a própria insignificância e banalidade, e tremem diante da simples palavra morte, como que pressentem que estão erradas e falam da boca para fora.


“They call these two ‘Shadow’ and ‘Light’,

The two who have entered—

the one into the cave of the heart,

the other into the highest region beyond,

both drinking the truth

in the world of rites rightly performed.”

A semelhança com o Mito da Caverna ou princípios como os recitados no mazdeísmo são óbvios.


“the imperishable, the highest Brahman,

the farthest shore

for those who wish to cross the danger.”

Decerto “as margens mais afastadas” não são um batismo ritual indiferente e vazio, “feito por fazer”, “herança dos costumes dos pais”, incompreendido em “seus mistérios”, realizado mais por medo que por qualquer outro sentimento, extremas unções, confissões e idas semanais à igreja, “para não ir para o inferno”. Não, essa odisséia não é para almas covardes que recorrem a atalhos inofensivos gravados nas pedras! Quem pode nos dizer, num país cristão, que já não estava impregnado de todas essas ridicularias desde que se entendeu por indivíduo? Porque, claro, podiam significar nada, mas há sempre um parente ou conhecido para dizer: “Antes de tal coisa, fazer 3 ave-marias e rezar 10 pais-nossos, se não funciona, ao menos não prejudica”. E assim assimilamos costumes que não podemos chamar de imbecis, porque só consideramos imbecil aquilo que podemos compreender, para avaliar; isso é menos que imbecil, é apenas um mistério herdado, automático, parte de nosso “arrumar a cama – escovar os dentes – etc.”. Não se pode jogar essas coisas fora sem substituí-las por algo melhor, dir-se-ia. O algo melhor é a verdade do conhecimento sagrado inconsciente hindu, que finalmente se tornou acessível a nós após séculos de filosofia ocidental. Não que possamos encarnar em qualquer outro a função de guru; o ritual de ascensão do ignoto herdado ao autoesclarecimento é sempre individualmente doloroso. Por isso os materialistas (hedonistas que se dizem espiritualistas!), seguros do outro mundo, são incapazes de efetuar essa transmutação.


“Know the self as a rider in a chariot,

and the body, as simply the chariot.

Know the intellect as the charioteer,

and the mind, as simply the reins.”

Uma imensa sabedoria condensada e destilada em 4 versos. Seria incapaz de enumerar a série de referências que enxergo em nosso saber ocidental ao ler somente as duas primeiras linhas: já a figura da carroça que ascende ao saber está presente na mitologia grega, na própria alusão ao deus-sol e seus servos. Hélio e Faetonte são pai e filho e contudo com o passar das gerações já se confundem num só ente. A carroça voadora deveria descrever a parábola do percurso do sol durante as 12 horas do dia (depois ele submerge e passa por debaixo dos oceanos, voltando ao leste). Mas Faetonte já é associado, a dado momento, à própria carruagem (o eu-controlado da figura poética acima). É ele, esse deus, na forma humana, qualquer que seja o nome, o único apto a conduzir a carroça sem se queimar (ou desviar do percurso correto). Desdobramentos, ainda helênicos, são perceptíveis na estória de Ícaro e seu malfadado vôo, nos escritos de Parmênides sobre o Um, no daimon de Sócrates (o self mais profundo, que conduz a ele próprio, o indivíduo histórico), que o orienta até em sonhos musicais na véspera de beber a cicuta (que ele não tema, aliás, o oposto: que ele celebre e comemore a vida no momento do estar-morrendo).

Essa voz interior passa, mais explícita ou menos explícita, pelos textos de todos os principais pensadores, até aterrissar nas investigações sobre o inconsciente, o novo nome para o daimon, nosso verdadeiro senhor. O que é um espírito-livre senão o escravo de si mesmo, ou melhor, aquele bom discípulo de si mesmo, que sabe dominar seus impulsos (ou assiste, enquanto impulsos cegos, a este domínio que vem aparentemente de fora, mas que é ele mesmo?), malgrado seu, e sabe ouvir os conselhos da sua verdadeira personalidade, desconhecida em seu todo até pela própria vida consciente do indivíduo? É o homem ético e abnegado que vê os filisteus de cima, meras manchas topográficas – esses filisteus que se julgam alpinistas de elite!

E ainda nem falei da metade final! O intelecto é o cocheiro. Que intelecto – depois que a duras penas aprendemos a desconfiar desse intelecto lato sensu desde Aristóteles até Kant? Decerto não é o intelecto cartesiano, o intelecto dos ceticistas dogmáticos, o intelecto dos Iluministas franceses, dos ateístas franceses – cristãos amargurados! –, o intelecto dos cabeças de vento do séc. XIX tão criticados por Nietzsche, a raça dos eruditos alemães! Não é o intelecto dos românticos que sucederam a Hegel, nem do próprio Hegel, o Aristóteles de nossa era. Mas um Goethe, que se equilibrou entre o Romantismo moderno e a serendipidade dos antigos, este está acima do gradiente que criticamos aqui! Dele que é o Fausto, já antigo e do folclore, mas que de sua pena é o mais célebre – mais um Jesus Cristo depenado por seu daimon errado. Mefistófeles é só um agente externo, a sociedade, o gênio da lâmpada dos que querem vencer na vida ganhando na mega-sena, não o demônio interior verdadeiro do sábio. E o ícone intelectual que ainda subsiste para nós na terceira década do séc. XXI – a fraude chamada Sigmund Freud, este compartimentador do inconsciente, que transformou num mapa ou num cubículo as forças incompreensíveis e virtualmente ilimitadas que nos regem – fariseu dos fariseus, pois como judeu esclarecido este homem sabia ser um filisteu, e continuou interpretando seu papel jocoso por maldade e ganho pessoal. O ápice do racionalismo deletério – o Descartes pós-descoberta explícita do daimon, pela primeira vez, desde Sócrates-Platão. E quantos séculos ele não terá retardado o estado das coisas? Não decerto para os poucos privilegiados, que vêem por trás da opacidade de sua pseudanálise, que enxergam por detrás dessas paredes (pontos cegos do indivíduo médio).

E as correntes de pensamento continuaram, na segunda metade do século XX, errando em pontos fundamentais, aprisionando esse self hindu. Marxistas desfiguradores do princípio maiêutico-dialético provisoriamente resgatado no XIX… Não faltava mais nada! A filosofia continental se fecha e vive de comentadores dos clássicos – talvez devêssemos comemorar. Já sabiam os últimos clássicos e já sabem os melhores comentadores que as próximas respostas úteis (úteis para nós, os anti-utilitários) devêm do Oriente, que, contrariando a projeção geológica de que os continentes africano e americano à deriva estariam se aproximando coisa de 10cm por ano, parece estar vindo a nosso encontro a galope… Portanto, para arrematar: o self hindu não é esse tipo de intelecto, só para deixar claro!

A mente simplesmente como os freios (rédeas). No sentido do poema a mente me parece apenas essa faculdade consciente dos eleitos que efetuam a boa jornada. A mente de Dédalo, o pai do imprudente Ícaro, a prudência altruísta, sem ambições solares, mas orgulhosa o suficiente para não recair em abismos.


 

“The senses, they say, are the horses,

and sense[d?] objects are the paths around them;

He who is linked to the body (Ātman), senses, and mind,

the wise proclaim as the one who enjoys.”

Quem é este que encontrou a eternidade verdadeira no único mundo possível senão “the one who enjoys”? Que momento há para gargalhar se não o presente? É verdade que a carruagem segue um percurso, mas não estamos atrás de nenhum destino particular. Como Ulisses, apesar das aparências, também não estava. Sobre cavalos, poderia até citar David Lynch, para quem, em Twin Peaks, o cavalo branco era o símbolo da morte próxima e também do vício, representado pelo hábito cocainômano da protagonista (uma protagonista que morre antes mesmo da série começar, eis uma quebra de normas!), nas duas primeiras temporadas apresentado de forma mais sugestiva, vaga, anedótica e espaçada. Na terceira temporada, no entanto, ganhamos também um poema sobre eles, os cavalos brancos, que nos brindam com muito mais associações, ou pelo menos com um termômetro para julgar as sugestões das primeiras temporadas: …The horse is the white in the eyes / and dark within, embora eu tenha omitido a primeira metade desta outra quadra (!), para não me estender com conteúdo não-relacionado aos Vedas (se é que existe um que não o seja). Novamente o contraste entre o preto e o branco, a luz e as trevas, elementos da odisséia, dialética que leva à verdade. Mas, cavalo branco ou não, alado ou não, essa charrete mitológica também tem o seu, ou os seus. Embora pareça pouco funcional, podemos dizer que são 5, os cinco cavalos são os 5 sentidos. Cinco cavalos que puxam servilmente a carruagem (você). Se a vacuidade emocional dos filisteus de nosso tempo é uma imagem de cortar o coração, (!) não nos enganemos: os sentidos, raiz dos sentimentos, não são desprezíveis para o sábio – acontece que aqui eles têm tratamento pejorativo, sem dúvida. Os cavalos ou os pégasos cavalgam ou flutuam por uma estrada ou por um arco imaginário no firmamento. A estrada do Um de Parmênides. A mente precisa subordinar os cavalos: o cavalo que olha é na verdade cego; o cavalo orelhudo é na verdade surdo; o cavalo frenético e suscetível tem na verdade a epiderme dormente; o cavalo narigudo não tem faro; e o cavalo linguarudo nem saberia se ingere capim ou torrões de açúcar. Sem uma coordenação estes cinco não são nada. E para quem sabe coordená-los, veja, eles são tudo! A via de acesso ao nosso outro mundo, que está aqui. Uma via insuficiente por si só, mas indispensável para a alma. Há quem ache que o presente são os próprios sentidos. Rematados tolos. Eles são a paradoxal via para o invisível, o que eles percebem são apenas os objetos e os contornos da estrada para o presente.

Acaba de me chamar a atenção o fato de que, consultando o dicionário, obtive que “obscuro” é um antônimo de presente. E acima se contrapôs a parte do olho que enxerga, a retina, à brancura dos cavalos, prenúncio de armadilha. Pois o que não seria essa fala na boca de um dos agentes do Black Lodge de David Lynch, nesse contexto de cavalgar por uma senda necessariamente perigosa, senão uma grave advertência sobre a mais próxima vizinhança entre o enxergar bem e o viver com um antolho nos olhos? E eu que achei que já havia secado este poço (esta é a hora dos fãs de Twin Peaks mais ligados rirem bastante)!


“When a man lacks understanding,

and his mind is never controlled;

His senses do not obey him,

as bad horses, a charioteer.”

 

Apenas um lembrete, já que tudo isso já foi bem-comentado e o trecho é simples: o cocheiro (o daimon, o Ātman) é muito mais que a mente. É evidente que esta não é apenas uma enumeração paralela de uma hierarquia dupla, é mais complexo que isso. [De modo simples: cocheiro/o inconsciente (guia maior) > homem/vida consciente/carruagem > mente/corpo/intelecção > cavalos/sentidos (guias menores).] Maus cavalos não impossibilitam o sucesso da viagem (zero cavalos sim); uma mente em frangalhos, um corpo lasso e a estupidez (tudo junto conotando uma carroça em pedaços), sim.


“When a man lacks understanding,

is unmindful and always impure;

He does not reach that final step,

but gets on the round of rebirth.”

Renascer tem quase sempre conotações positivas. Não aqui, seja para o hinduísmo conforme os exegetas hindus seja para mim, que me arrisco a uma interpretação ainda alhures, conectada a um outro mundo no aqui e agora. Nada pode ser pior do que o renascimento contínuo neste contexto. É o mesmo que ensinar a doutrina do eterno retorno para os fracos em Assim Falou Zaratustra. A bênção de uma “vida” eterna não é nada no colo de mortos-vivos. A sua odisséia não é completada, é só uma grande tortura sem-sentido. OM omento presente não tem um último degrau, mas o último degrau é necessário para os sentidos do homem (sua parte menos importante).


RESUMO DO CREDO HINDU SEGUNDO RAFAEL DE ARAÚJO AGUIAR (LEMBRANDO QUE UM LIMITE MÁXIMO – QUE CHAMAMOS DE DEUS – QUE NÃO SAIBA RIR DE SI É INÚTIL, TANTO EXISTINDO COMO APENAS ALMEJANDO EXISTIR, DÁ NO MESMO):

No que os intérpretes (todos os já consultados por mim, pelo menos) do hinduísmo e eu discrepamos é: para eles, sair da roda da existência é a libertação. Eu acredito que os Vedas genuinamente pregam, no lugar, o seguinte:

Om. Quando se diz que sair da roda da existência é a libertação, está-se dizendo isso para os tolos; pois são os tolos que lêem ensinamentos nos livros e sempre os absorvem da pior forma. Desta feita, não proibiremos a leitura aos tolos, mas nos certificaremos que eles sempre retirarão deste manancial de sabedoria a interpretação mais literal e espúria possível: para eles, escapar da roda da existência via santidade é a libertação suprema. Isto não é Brahman, mas seria pecaminoso contra a própria vida ensinar a verdadeira religião para aqueles que não a merecem. O texto está redigido de forma que os merecedores de absorvê-la saberão interpretar nosso único credo a contento. A libertação é oni-presente e inevitável, sempre esteve aqui e agora e sempre estará para o leitor puro e consciente (aquele que aspira à sabedoria na vida). Isto é Brahma. Não há reencarnações, esse é apenas um dogma regulador para os hOMens mais vis. O dOM da vida é único e especial, pois a morte não é o que se entende vulgarmente pela morte: ela não encerra nada. O presente é eterno. A realidade é una. Não há progressos, regressos, ciclos ou aléns. O fato de indivíduos nascerem e morrerem confunde as massas, porque quem se crê indivíduo tenta se colocar no lugar de outro indivíduo, no que sempre falhará até os mínimos detalhes. É preciso entender que a existência não é algo linear sobre o qual o tempo – condição de possibilidade da própria existência, mas apenas uma de suas engrenagens – tenha qualquer poder. O tempo só funciona de acordo cOM o próprio desígnio inerente do que se chama realidade ou existência. Ele, o tempo, serve a e é inseparável da vida mesma. E a individualidade, o nascer e perecer são elementos, fundamentos da existência. Não significa que os indivíduos crus sejam Brahman (a existência mesma). Mas estão equipados para entender Brahman e se tornar Brahman. Pois Brahman pensou em tudo desde o sempre, já que o tempo é apenas uma engrenagem sua e ‘sempre’ é apenas uma palavra vazia fora da percepção dos hOMens, ligada às grandes limitações dos sentidos. Início e fim só existem para os indivíduos que são tolos. Brahman só pode ser usufruído pelo que chamam de presente. A vida dos tolos é um eterno sofrer, e o que é mais irônico: um sofrer baseado em algo que não existe – sua dilaceração, sua aniquilação, sua morte. O pavor do fim. Pois eles não sabem que são eternos, e isso gera a contradição muito lógica de que eles sofrem eternamente devido mesmo a esta ignorância, que em certa medida é obra deles próprios, pois eles também são Brahman, em crisálida. A forma de reestabelecer a harmonia e a ressonância cOM Brahman, o real, é, cOMpreendendo o real, efetivá-lo (sendo real, vivendo o presente, isto é, a eternidade). Esta condição carece de sofrimento penoso; o que (os tolos) chamam de sofrimento, na vida de quem entendeu Brahman é apenas atividade e saúde, a plena realização do Brahman, separado em indivíduos apenas formalmente, para apreciação dos eternamente tolos, tolo Brahman brincalhão (a verdade é que cada um que cOMpreende Brahman é Brahman, e Brahman é indivisível)! Por que nós, Brahman, dar-nos-íamos ao trabalho de escrever de forma tão límpida para nós mesmos, Brahman, o que é Brahman, se Brahman (os tolos, agora, os Brahman não-despertos e necessários ao Brahman) ainda assim não irá entender, da mesma forma que lendo poesia e enigmas? Pois este ensinamento carece da possibilidade de ser entendido pela mera literalidade e baixeza vital. É preciso ler mais do que palavras, porque Brahman é mais do que palavras. O “inferno” de Brahman é que Brahman é tudo, e a tolice é parte indissociável deste único e melhor dos mundos, o sempre-existente. O inferno de Brahman é Brahman, mas Brahman não se importa, o que é, aliás, muito natural e desejável. Brahman é o mais vil e o mais alto, e nunca se pára de cair e nunca se pára de subir segundo o axiOMa inquebrantável de Brahman, o Um ou Ser ou Ente. Brahman é perfeito e não quer se liberar de Brahman. E nem poderia se assim desejasse. Om.

Digo que Brahman em algum momento através de mim achou de bom tom ser mais literal, para satisfazer Sua vontade (e a minha), quebrando as regras num sentido e duma forma infinitesimal que não descaracteriza Brahman, num limiar bastante desprezível do que os tolos chamam de tempo-espaço que eu traduziria em palavras como sendo minha vida, os anos que eu vivo (da perspectiva de uma terceira pessoa)¹ nos lugares que eu vivo em torno de quem eu vivo (meus amigos, coetâneos e leitores).

¹ O que é a terceira pessoa (tanto do ponto de vista metafísico quanto do ponto de vista gramatical de todas as línguas)? É a junção fictícia das duas primeiras pessoas. Eu sou a terceira pessoa de vocês; vocês são a terceira pessoa para mim. E no entanto a primeira pessoa sou eu (vocês, isoladamente) e a segunda pessoa são vocês em conjunto (eu e os outros, para vocês, individualmente).


“When a man’s mind is his reins,

intellect, his charioteer;

He reaches the end of the road,

That highest step of Vishnu.”

Com esse trecho não vou gastar saliva. Irei apenas traduzi-lo para o formato da prosa familiar a nossa cultura, omitindo as palavras desnecessárias para a compreensão total (não faz sentido, na tríade homem-mente-intelecto, pelo menos nessa tradução em inglês, conservar mind e intellect; só man já é mais do que o bastante):

“When a man (…) is (…) his charioteer, he reaches the end of the road, that highest step of Vishnu.”


“Higher than the senses are their objects;

Higher than sense[d?] objects is the mind;

Higher than the mind is the intellect;

Higher than the intellect is the immense self;”

“Mais elevados que os sentidos são as coisas que percebemos por via dos sentidos, o mundo visível; [Que eu citei acima, na hierarquização simplificada, como intelecção – esta parte do mundo visível não fazendo referência ao próprio sujeito, e para sermos sujeitos está implicado que tem de haver o binômio sujeito-objeto, pode ser omitida, inclusive porque a mente, como veremos abaixo, interpreta automatica-mente todas as percepções dos 5 sentidos, integrando-as, e não se pode falar de mundo visível (veja como nos expressamos sempre hiper-valorizando os olhos!)/sentido sem que haja a mente do ator dotando este mundo de sentido (bússola das sensações).]

Mais elevada que o mundo visível é a mente;

Mais elevado que a mente é o intelecto; [Aqui sinto que nosso pensar ocidental entra em colisão com o vocabulário hindu – ou será problema da tradução para o inglês? –, pois mente e intelecto estão indissociados de acordo com nossa maneira de representar a ambos. A terceira linha, como a segunda linha, devem ser omitidas numa tradução explicativa superior.]

Mais elevado que o intelecto é o imenso self.”

Para melhorar, destarte:

“Mais elevada que os sentidos é a consciência;

Mais elevado que a consciência é o inconsciente.”

(mundo animal < mundo humano < mundo divino [somos divinos!]) (*) O mais irônico, se seguíssemos o ‘roteiro’ do Veda seria que posicionaríamos o mundo mineral acima do animal, i.e., o mundo visível, os objetos, as coisas, a estrada que os cavalos percorrem como sendo mais importantes até que nosso tato, audição, visão, olfato e paladar, o que é absurdo, pois não vivemos em subserviência aos objetos, e sim o contrário: somos nós que os criamos graças a nossa condição de seres vivos, por assim dizer.

A palavra que mais pode gerar confusão na tradução aperfeiçoada acima é a última. O inconsciente é o sábio que mora em nós sem que possamos ou devamos cobrar aluguel. Na verdade é ele que nos sustenta, em grau ainda mais surpreendente que a consciência sustenta os meros instintos. Porém, o INCONSCIENTE sofreu muitas malversações nos últimos tempos. Não temos palavra melhor para caracterizar “o verdadeiro senhor da consciência”, mas infelizmente a psicanálise poluiu imensamente essa palavra, para não falar das (más) psiquiatrias, psicologias e filosofias (jamais leiam Von Hartmann, um homem que interpretou Schopenhauer da pior maneira possível e teve grande influência sobre os ‘apreciadores da filosofia’). É preciso decantar e esterilizar a palavra para reutilizá-la, não temos escolha, e na verdade não devíamos nos subjugar a algumas poucas gerações de tolos, ou teríamos de reinventar nomes para quase todas as coisas. Mesmo assim, para iniciar esse processo e a revalorização do termo inconsciente, bem-descrito no Veda como imenso, muito mais abrangente que a consciência (como o oceano perante uma piscina), vindo a ser em última instância tão importante que pode ser igualado a Brahman, já que qualquer entidade separada de nós e portanto de nossa instância mais elevada seria apenas criar quimeras e fábulas que só multiplicariam as complicações, quando sabemos que o que o hinduísmo diz é que somos Brahman, ao contrário do cristianismo, que estabelece um Deus infinitamente inacessível ao homem, tão inacessível que se tornou a religião favorita do niilista ocidental,¹ quer dizer, maioria da população, que é niilista sem o saber… Em suma, quero dizer que de uma forma ou de outra, se quisermos respeitar o credo hindu, devemos equiparar a noção “despoluída” de inconsciente ao Todo desta querida religião. Seja falando simplesmente inconsciente, seja empregando, se se quiser, o termo inconsciente coletivo de Jung.

¹ Podemos até dizer que quanto mais crente se é, mais ateu! Só uma religião tão mesquinha seria capaz de provocar a morte teórica de deus, gerando tamanho estrago civilizacional que os filósofos tiveram de interferir nos negócios dos padrecos!

Por outro lado, se ainda assim o leitor fizer questões de sinônimos, como mais acima, para me referir a ‘inconsciente’, recorreria a:

BRAHMAN = OM = INCONSCIENTE (COLETIVO) (Filosofia, Psicologia, Jung) = UM (Parmênides) = DAIMON (Sócrates) = Idéia (Platão)¹ = MUNDO (vulgar) = OUTRO MUNDO (Filosofia Ocidental)² = VONTADE DE POTÊNCIA ou VONTADE NÃO-UNA ou VONTADE NÃO-LIVRE (Nietzsche)³ = VIDA DO SÁBIO (hinduísmo e outros sistemas) = ETERNIDADE ou PRESENTE ETERNO4

¹ Como Sócrates não escreveu, estamos autorizados a referir o daimon socrático ao próprio gênio de Platão: tão “egoísta” que criou dois nomes para Brahman ou aquilo que há de mais sagrado!

² Emprego aqui o Outro Mundo no sentido “recuperado” que já demonstrei, em relação ao Além da maioria das religiões: o Outro Mundo é o mundo das Idéias de Platão, localizado na alma do sábio, e portanto neste mundo mesmo, no presente, aqui e agora. Esse é o tesouro máximo do hinduísmo: uma religião de massa que não nega o amor à vida e não incita à hipocrisia e à mentira, prometendo recompensas num futuro indefinido. O que é do sábio sempre foi, é e será do sábio. A eternidade já foi alcançada. Desde pelo menos Schopenhauer ou Kierkegaard (admito que Kant é um caso talvez especial; já Hegel acreditava apenas num canhestro progresso da História, sem entender que o presente já havia trazido todas as evoluções que ele só podia atribuir ao futuro da Europa), após o longo e sombrio hiato entre Platão e o mundo moderno (quase ainda ontem!), chegando ao trabalho de autores definitivamente afirmadores de um e somente um mundo, este aqui, como Husserl, Heidegger, os existencialistas, praticamente todos os filósofos dignos do século passado e deste, o Outro Mundo dos fanáticos religiosos e dos Escolásticos – considerados filósofos apenas nominalmente, meros escribas de patrões temporais (a Igreja) – foi abandonado em prol de uma nomenclatura despida de conotações deletérias, fraudulentas e niilistas: o Outro Mundo de que falo, sinônimo da nova Zeitgeist de retorno ao Oriente, é o Outro Mundo que eu interpreto estar exposto nos Vedas: o mundo do sábio que chegou à realização de que a eternidade é o presente. O reencantamento do mundo; por isso também incluo a palavra mundo, porque é no mundo que vivemos, e em nenhum outro, em que tudo é possível. Este mundo é o Um.

³ O termo “vontade de potência” gera confusão. Primeiro porque faz parte do espólio de Nietzsche, que provavelmente teria mudado a expressão antes de publicá-la ou pelo menos não a elegeria como título de sua próxima obra. Segundo, por culpa do estudante filisteu de filosofia, que tende a associar “potência” (que já é uma adaptação à tradução portuguesa de “poder” na tentativa de evitar ambigüidades e enganos!) com o conceito de poder/monopólio da violência do Estado na Política, e em decorrência a doutrinas absolutamente anti-nietzscheanas como “sobrevivência do mais forte aplicada à Ciência Política”, nazifascismo, psicologias de auto-ajuda (como se se tratasse aqui de uma ‘força de vontade’ individual tendente ao infinito, calcada na imaginação desconexa da materialidade do mundo!), etc. A terceira problemática, e que quis evidenciar empregando sinônimos como VONTADE NÃO-UNA e VONTADE NÃO-LIVRE, é a falsa equiparação que se faz entre a Vontade schopenhauriana e a Vontade propriamente nietzscheana. Como Nietzsche é influenciado por Schopenhauer, muitos filósofos até razoavelmente competentes podem cair na cilada de não enxergarem onde está uma linha de ruptura definitiva do primeiro pensador com este último. E é importante tocar no assunto, já que Schopenhauer teria cunhado o termo Vontade justamente influenciado, por sua vez, por suas leituras orientalistas vinculadas ao hinduísmo! Há aqui, pelo que se vê, uma espécie de mal-entendidos em cascata. Desfaçamos esse nó górdio de vez! Se eu estiver certo e Schopenhauer errado (e uma coisa é decorrente da outra, pois temos pontos de vista divergentes), o que Schopenhauer entendeu dos Vedas e particularmente do budismo que se desenvolveu a partir da Índia, é exatamente a leitura leiga, ou a leitura tola e literal, da ascensão rumo à Verdade bramânica. Isso porque para Schopenhauer a doutrina budista é um quietivo da vontade. Sua Vontade, em letra maiúscula, é a entidade metafísica que rege secretamente todos os fenômenos do mundo visível e observável (que ele chamará de Representação). O mundo da representação de Schopenhauer se assemelha muito ao Samsara, o inferno hindu, em que não há um propósito para a existência. Aí entra a volição individual do homem: ao se aperceber da futilidade deste mundo (e percebendo, no caso de Schopenhauer – este um grande mérito seu) que não existe um outro mundo, tudo que resta ao indivíduo informado, ou ao sábio, é negar a vontade, com letra minúscula, o outro mundo que existe neste mundo. Ora, mero produto de um mundo sobre o qual ele não tem o menor controle, o asceta budista ao menos se empenha em emascular sua vontade, ou seja, a parcela dessa grande e única Vontade que configura seus instintos e portanto seu impulso vital, tratando, em primeiro lugar, de se guardar de gerar prole (instinto da reprodução e perpetuação da vida); em segundo lugar – e não cabe aqui citar o suicídio, pois Schopenhauer sabe que não há fuga da existência, ele fala de uma mortificação da vontade individual a despeito de que no mundo aparente nada mude – de refugiar-se na ascese espiritual, descartando o quanto puder traços de egoísmo, evitando agir sobre este mundo que não tende a nada e é só uma sucessão indefinida de acontecimentos vãos e sem valor. Uma forma de conseguir reduzir sua vontade virtualmente a zero (além de escrever um tratado filosófico sobre isso), para Schopenhauer, é que o sábio se dedique a refugiar-se na arte; principalmente na Música. Schopenhauer vê na música o elemento fenomênico (sensível) mais próximo da inacessível Vontade cega regedora do universo. Através dela o ser humano pode perpassar pelo circuito de todas as emoções, e ao mesmo tempo não viver, isto é, limitar-se a sentir paixões sem qualquer conseqüência prática ou interferência no mundo exterior. Para Schopenhauer todo grande artista é um negador da vida, um budista mascarado. Discordo frontalmente desse ponto de vista. Como eu acredito no Veda como uma alegoria que quer significar exatamente o oposto – a valorização do presente e da vida –, é necessário pontuar: minha principal influência filosófica é Nietzsche, e sua vontade opera em contraposição máxima ao “niilismo passivo” schopenhaueriano. Nietzsche quer restaurar as condições do grande homem, da grande cultura, da grande civilização, algo que o Ocidente não é mais capaz de proporcionar. Daí se explica que a filosofia oriental tenha, por tabela, exercido impacto proeminente no pensar de Nietzsche. Sua vontade é não-una porque diferentemente da Vontade indivisível, “em bloco”, de Schopenhauer, Nietzsche enxerga esse elemento metafísico como sendo manifestações completamente aleatórias e independentes entre si, de modo que o que realmente há não é uma tirania da Vontade sobre este mundo material, mas a presença de vontades dispersas, cada uma unilateral, procurando exercer seu “ponto de vista” sobre as demais, e conseguintemente sobre o mundo material. Esta vontade que “não é livre” (são palavras do próprio Nietzsche), ou todas essas porções infinitesimais de vontade, só sabe uma coisa: ser aquilo que ela é; forçar seu caminho, chegar a seus últimos limites; e os últimos limites são as outras vontades. Essas vontades não são entes abstratos absolutos, quer seja, não existem desde sempre e para sempre, consideradas individualmente. Conforme o jogo de forças, que seria apenas o espelho do jogo de forças do mundo material (daí ser possível a Nietzsche descrever uma vontade que pode ser apenas nomeada por hipótese, lembrando que os sentidos, guiados pela intelecção, no homem sábio, são a via para a Verdade, exatamente como nos Vedas, e exatamente como em todo e qualquer grande filósofo; esta é uma lei), vontades antes autônomas podem se ver reagrupadas (talvez uma vontade mais poderosa englobou ou absorveu outra, vencida), como um “tecido de vontade” pode se desmembrar em múltiplas vontades com novos vetores e potencialidades… Esse jogo não termina, pois jamais houve nem haverá um vencedor. É uma “guerra democrática”, já que uma só vontade jamais se tornará soberana (a Vontade no sistema schopenhaueriano é tirânica, soberana, pois não há oposição dela consigo mesma). Não só a vida é regida pela vontade, mas ela é evidentemente seu campo de atuação primordial. Cada instinto nosso pode ser interpretado como a manifestação aparente de uma vontade. Isso explicaria, o que Schopenhauer deixou em aberto, por que num mesmo indivíduo tantas volições contraditórias precisam combater entre si para se manifestar, num jogo de sucessões intermináveis. Podemos ter uma personalidade definida e coerente, mas basta lembrar que essa é só nossa vida consciente. Por debaixo do pano “n” vontades lutam para fazerem-se valer, partindo do inconsciente até serem traduzidas no reino visível ou “mundo das aparências”. Acontece que a contraposição ao mundo das aparências, onde atuam as vontades, não é outro reino senão o ideal, o fictício, forjado principalmente pelas grandes religiões do passado do homem. O Cristianismo, o próprio Budismo são inimigos do homem que encontrou a Verdade na revelação do mundo como vontades em eterno conflito. Nietzsche reconhece que esta é a vida e ela não deveria ser diferente do que é no presente; necessariamente o que torna o homem burguês decadente haverá de ser vencido um dia, por novos valores, novas vontades, novas potências. Embora tudo nasça, se desenvolva, atinja um auge, decline e finalmente morra, o fato de as vontades se entrechocarem o tempo todo, de a realidade da Vontade de Potência ser “estar sempre em contradição consigo mesma”, ambos os fatos são o fundamento da existência, e isto é o que há de constante neste grande pensamento. Exatamente como nos Vedas. Por esse lado, Nietzsche parece ser o inimigo de um credo que buscaria a ascese suprema, a libertação, a evasão do ciclo de reencarnações, a fusão com Brahman. Mas tudo depende de se Nietzsche – que não foi explícito nesse tocante – entendeu os Vedas dessa forma ou se “empatou” com minha conclusão: os Vedas foram, até hoje, mal-interpretados. Eles são um hino à vida, coincidentes com a filosofia nietzscheana. E o que é mais espantoso é que Nietzsche, que tanto se bateu com Platão, pode (pode! não sabemos bem o que ele deixou de declarar deliberadamente – coisa de filósofos!) não ter percebido que a dialética-maiêutica de Platão, sua teoria das reminiscências e das Idéias, tudo aquilo que o alemão parece ter associado, a princípio, à negação da vida em prol de “meras conjeturas servíveis apenas num Além-mundo”, é no fundo uma filosofia gêmea a sua! São duas aproximações que redundam nas mesmas conclusões. O primeiro e maior filósofo do Ocidente encontra em Nietzsche seu acabamento, e o acabamento da filosocia ocidental como um todo, como são muitos os que o afirmam. Ou podemos considerar Nietzsche um iniciador, e Platão o responsável pelo acabamento? Não faz diferença, quando a filosofia (a busca pela sabedoria) é atemporal e não tem fim ou começo. As filosofias mais sábias e honestas tenderão a chegar às mesmas conclusões, por mais que seus métodos e termos-chaves pareçam tão distintos e antípodas – esse pseudo-antagonismo não resiste a uma análise mais detida, não são filosofias ou fés, mas a Fé, a Filosofia Verdadeira. E não é um império dual, mas um triunvirato, se eu estiver certo: o hinduísmo corrobora, antes mesmo da História do Ocidente devir, estes dois maiores filósofos, o alfa e o ômega da historiografia da disciplina; nossos legítimos contemporâneos. Nietzsche declarou que Heráclito podia ter enunciado seu eterno retorno. Talvez seja o ponto cego inerente a cada filósofo que ele não tenha visto algo tão evidente para nós: Parmênides e Platão são os legítimos filósofos do eterno retorno da Antiguidade. A teoria das reminiscências é muito afim ao karma hindu e à proposta ética de Nietzsche para passarmos esta semelhança por alto. De onde quer que se parta, o Um parmenídeo, a Idéia platônica, o daimon socrático, a vontade de potência ou o privilégio da fusão do sábio com o verdadeiro invisível dos livros sagrados da Índia, a rota percorrida parece exatamente a mesma.

Para uma explicação mais detalhada das vontades em N. e S., recomendo meu post dedicado à filosofia de Schopenhauer (HISTÓRIA DAS IDÉIAS 3) ou ainda meu livro VONTADE DE INTERPRETAÇÕES (à venda em https://clubedeautores.com.br/livro/vontade-de-interpretacoes-2). E sim, o título do meu livro foi escolhido sarcasticamente, muito em virtude das distorções voluntárias ou não de exegetas quanto ao termo vontade de potência!

4 1) Eternidade é a palavra mais fácil a que atribuir autor: pode ser determinada como de uso vulgar desde os tempos mais imemoriais;

2) Esta nota de rodapé existe em razão do segundo termo, seu equivalente, se bem que, ao mesmo tempo, enfatizador da obviedade de que em havendo eternidade só pode haver uma eternidade presente. Isso porque não nos interessa aqui considerar a divisão tripartite do tempo entre passado, atualidade e futuro, o que seria jogar pela janela toda essa interpretação, julgo eu, em alto nível dos Vedanta, e aliás regressar às noções cavernícolas de tempo para Isaac Newton, sendo que Immanuel Kant destroçou pouco depois qualquer possibilidade desse “tempo em linha reta de jardim de infância” ter qualquer validade acadêmica séria. Como não sou Arnold Schwarzenegger me recuso a retornar ao jardim de infância, ainda que seja para dar aulas que gerem mais polêmica que o tira no filme! Afinal de contas, se quiséssemos falar de pseudo-eternidades (conceitos vulgares a-filosóficos) poderíamos partir para análises historiográficas de como não fazemos rigorosamente idéia de quantos anos há para trás ou para frente no universo, debate aliás absurdo e completamente improdutivo que é uma obsessão quase sexual e do subgênero sado-masoquista (uma parafilia) desses “especialistas sem espírito” (Weber) chamados físicos modernos, que falam com pompa e autoridade sobre asneiras como “big bang ou singularidade” (o ‘Adão e Eva’ dos filisteus™), “universo antes do universo existir, (!) previamente ao início do tempo, (!!) sob a forma de um ponto de densidade infinita (!!!)” ou ainda como “uma suposta idade atual do universo na casa dos 13 ponto sei lá quantos bilhões de anos”… Tampouco me interessa, aliás, tampouco interessa a qualquer habitante do planeta Terra, para sermos francos, quantos bilhões de anos o sol demorará para “queimar”, “explodir” ou “simplesmente se apagar”, primeiro porque no ritmo do capitalismo a Terra queimará “sem ajuda” antes, muito, muito antes; segundo porque não está provado – já que os cientistas amam de paixão esta palavra –, mesmo assumindo a absurdidade da hipótese de um universo com início-meio-fim proposta por físicos que quebra as próprias leis da física,(*) que não poderia haver uma – na falta de termo melhor, e de empréstimo da astronomiaprecessão das condições de ‘sobrevivência’ do sistema solar, para começo de conversa, quando eventos teoricamente prováveis em escala de bilhões de anos segundo nossos melhores matemáticos, estatísticos, físicos e químicos não poderiam ser descartados por inumeráveis fatos intervenientes no decorrer de todo esse tempo (5 bilhões de anos de vida restantes para nosso Astro-Rei!) no próprio reino da ciência estritamente acadêmica, ainda mais levando em conta que não há disciplina que não sofra grandes revoluções de paradigmas em um módico intervalo de décadas! Para se ter idéia, se preservássemos todas as condições de realização do Campeonato Brasileiro de Futebol numa estufa, dando vida eterna aos jogadores, dentro de bilhões de anos até o Coritiba, atual equipe de várzea, viria a ser campeã dos pontos corridos um sem-número de vezes com até 100% de aproveitamento em alguma das ocasiões!!! Bilhões de anos é uma quantidade de tempo imensurável. Tudo e qualquer coisa acontece num “período” tão vasto (é tão vasto que ouso dizer que nenhuma mente humana foi formatada para conceber quão verdadeiramente vasta é a quantidade de 1 milhão de anos, de modo que se multiplicarmos isso por mil podemos ter certeza de que todos os lobos do planeta terão sido extintos pelo mero apetite de uma única criança chamada Chapeuzinho Vermelho).

Para chegarmos direto ao ponto (que não é um ponto de densidade infinita que estourará, devido a uma maldosa singularidade, justo na sua cara, fique tranqüilo!), avancemos. Obviamente não fui eu quem cunhou a expressão PRESENTE ETERNO, mas no momento eu não saberia dizer quem foi o primeiro a utilizá-la, e no sentido aqui proposto. Tenho razoável confiança de que Nietzsche chegou a utilizar este binômio; de qualquer forma, não sendo o caso, foi ele quem influenciou autores do séc. XX a forjá-lo neste sentido que tenho em mente, se for mesmo verdade que já não o tomaram de empréstimo. Mas suspeito que antes de Nietzsche esta expressão, para um sentido parecido em Metafísica, já estava em voga. Ainda preciso pesquisar a respeito.

(*) DESABAFO EM CAPS LOCK

ME DIGAM EM QUE HOSPÍCIO JÁ SE VIU TAMANHA LOUCURA! MAS FALAR NISSO EM TEMPOS DE IVERMECTINA PARA TRATAMENTO DA COVID, EU SEI, CHEGA A SER UMA BLASFÊMIA, PORQUE DESCREDIBILIZA A CIÊNCIA ESTABELECIDA, EMBORA “ISSO” QUE OS FÍSICOS CHAMAM DE “TEORIA DO BIG BANG” PASSE LONGE DE SER MÉTODO E DE SER CIÊNCIA, MOLE OU DURA! ACONTECE QUE UM DIA, A LONGO, PRAZO, ISSO DEVERÁ SER ENDEREÇADO E DISCUTIDO, ENTÃO EU ARREMESSO A PRIMEIRA PEDRA SEM PUDOR E SEM MEDO – CIENTE DO MEU LEGADO – DE SER CHAMADO POR ALGUM CABEÇA-DE-BOI DE negacionista, MINHA CONTRA-DEFINIÇÃO POR EXCELÊNCIA! PORQUE, INFELIZMENTE, QUEM TEM VOZ NESSE DEBATE ATUALMENTE E QUE ATAQUE A TEORIA DEMENTE DO BIG BANG É OU CRIACIONISTA (COMO SE INVENTAR COISAS TÃO ESTAPAFÚRDIAS COMO UM PONTO DE DENSIDADE INFINITA PARA EXPLICAR A ORIGEM DA EXISTÊNCIA NÃO FOSSE DEIXAR OS COMUNS DOS MORTAIS DE CABELO EM PÉ, LOUCOS PARA ENTRAREM NUMA IGREJA E PEDIREM SOCORRO A UM PASTOR!) OU TERRAPLANISTA, OU SEJA, ESCÓRIA DA ESCÓRIA, AINDA MAIS DEMENTES QUE OS “FÍSICOS CONTEMPORÂNEOS”…

* * *

Mas ainda não acabou a hierarquia do texto sagrado! A ele devemos regressar:

“Higher than the immense self is the unmanifest;

Higher than the unmanifest is the person;

Higher than the person there’s nothing at all.

That is the goal, that’s the highest state.”

Acontece que eu equalizei o immense self ou inconsciente a todo o imanifestável, como foi visto exaustivamente acima! O Nada. Quase consigo acreditar que esses trechos dos Vedas sofreram interpolação de fanáticos de época posterior. Olhando dessa maneira, parece que os vaticínios de Schopenhauer fariam todo o sentido! Mas não percamos de vista que o Veda é um poema e não deve ser mal-interpretado. Tendemos a ler o “nada” deste escrito tão antigo como o nada da filosofia contemporânea, o que é um erro. Claro que não posso justificar em mil anos a segunda linha. Persons, se estivermos falando de individualidades, consciências, já ficaram muito abaixo na hierarquia. Por isso a diferença no matiz dos verdes: quanto mais escuro, mais censurável. Se acima do inconsciente ou, que seja!, daquilo-que-não-pode-ser-manifestado, só há o nada, ou não há nada, não significa que o último passo já foi dado? E não foi isso que foi dito no verso sobre Vishnu mais acima? A meta é chegar à realização do presente como a felicidade máxima: mais que isso é impossível, é absurdo. A pergunta pode até ser colocada: Existe outro degrau? Mas a resposta invariável é: Não.


“Hidden in all the beings,

this self is not visibly displayed.

Yet, people of keen vision see him,

with eminent and sharp minds.”

Pode até mesmo ser que o “nada” se refira apenas aos tolos. Sabemos que o invisível que o sábio vê no topo de todas as coisas do mundo, do único mundo, é Brahman, são as vibrações do Om. É o self no sentido hinduísta. E por que voltariam a citar “this self” quando, supostamente, a hierarquia ainda “subiu mais”, citando “unmanifest” depois, e “persons” (sic)? Porque os quatro versos de “Higher than the immense self…” a “…that’s the highest state.” são de importância relativa quase nula se compararmos a tudo o que precede e sucede!


“A razor’s sharp edge is hard to cross—

that, poets say, is the difficulty of the path.”

E no entanto não basta ensinar, como eu já disse. A jornada não pode ser ensinada. Quantos tolos não existem para cada Platão? Quantos puderam entender Platão? Quantos especialistas em Platão (oxímoro) me dirão que estou correto sobre Platão? A eternidade não é uma descoberta no estilo Eureka!. Posso enunciá-la quantas vezes quiser. Alguém a terá mesmo obtido, na forma como descrevi? Eu mesmo, vivo no presente sem me autoenganar, em minha potencialidade máxima, isto é, na potencialidade máxima que cabe ao homem? Sobre isso, Bíblias demais já foram escritas para que incorramos nas mesmas e repisadas fraudes… Fechando o parágrafo com uma piadinha: desde Gutenberg, nenhuma bíblia foi escrita. Os copistas perderam o emprego!


“It has no sound or touch,

no appearance, taste, or smell;

It is without beginning or end,

undecaying and eternal;

When a man perceives it,

fixed and beyond the immense,

He is freed from the jaws of death.

*

The wise man who hears or tells

the tale of Naciketas,

an ancient tale told by Death,

will rejoice in Brahman’s world.”

Quem senão a Morte (o Nada, pois nada está acima de Brahman) poderia contar o antigo conto (tale também pode ser traduzido como história ou conversa – o que é muito revelador sobre Platão e o método dialógico)?


“If a man, pure and devout, proclaims this great secret

in a gathering of Brahmins,

or during a meal for the dead,

it will lead him to eternal life!”

E assim termina o monumental capítulo do Upanishad chamado Katha, ou pelo menos a parte que mais nos interessa.

[ MILÉSIMO POST DO SECLUSÃO ANAGÓGICA ] THE ILLUSION OF THE END – Jean Baudrillard, 1994 (altamente comentado) [ #1000 ]

14/10/16 a 06/11/16

English translation from French by Chris Turner. Tradução do inglês ao português por mim.

history has become impossible because telling (recitatium) is, by definition, the possible recurrence of a sequence of meanings.”

No event can withstand being beamed across the whole planet.” “to pursue the same train of thought: no sexuality can withstand being liberated, no culture can withstand bein hyped, no truth can withstand being verified, etc.”

Matter shows the passing of time. To put it more precisely, time at the surface of a very dense body seems to be going in slow motion. Beyond a certain limit, time stops and the wavelenght becomes infinite.”

Qual seria o sentido de crianças nascendo mesmo após meu nascimento? I.e., do ponto de vista do combate ao niilismo. Porque se, para mim, mesmo os adultos são bebês gigantes com idéias de ter filhos e netos, trancados no ciclo da esterilidade, cuja trilha sonora é um grito estridente duma criança levada que ralou o joelho no parque… O tempo está estacionado na vaga dos deficientes.

Deep down, one cannot even speak of the end of history here, since history will not have time to catch up with its own end. Its effects are accelerating, but its meaning is slowing inexorably.”

Há uma terceira hipótese (…) o efeito estereofônico. Nós somos todos obcecados por alta fidelidade, pela qualidade da ‘reprodução’ musical. Nos consoles de nossos estéreos, abastecidos de tuners, amplificadores e microfones, misturamos, ajustamos, multiplicamos faixas em busca da batida perfeita. Isso ainda é música? Onde está o limite da alta fidelidade além do qual a música desaparece enquanto tal?” “ela desaparece em seu próprio efeito especial.” “É o êxtase e o fim da musicalidade.”

that famous feedback effect, which is produced in acoustics by a source and a receiver being too close together”

a short-circuit between cause and effect like that between the object and the experimenting subject in the microphysics” Re-re-re-re-re:RE:FWD:ENC-re-remaster of Reality

Cada bebê recria a sua Matrix. E só atinge o real em retrospecto. A revolução é mera nostalgia e arrependimento – e se?

We shall never get back to pre-stereo music (except by an additional technical simulation effect)”

Quem se recusa a esperar, espera do mesmo jeito.

Quem espera ardorosamente, na verdade faz tudo menos esperar.

Qual é a sua importante resolução?

800×600.

Baudrillard, o eterno canalha indiscordável. O autor da fascinação. Odiamo-lo, mas sempre concordamos com ele. Queremos profundamente que ele não esteja certo, mas pressentimos que está. A pobreza, recorrência e esterilidade – deliberada? Haha, qual a diferença? – de seu discurso nos resume, nos explica. Não podemos sequer simular que o superamos, ele é onipresente. Ele não foi o primeiro discurso branco (white noise, white text, white logos) intentado, mas é o primeiro consumado. Seria uma contradição dizer que é uma singularidade histórica? Ele desafia a máxima do “é possível ser filósofo a qualquer tempo”; estabelece-se como o último. Ou o primeiro de nós. Se ainda é possível não ser um Baudrillard, nascemos na época errada. É possível iniciar de forma diferente, mas ele é a conseqüência inelutável. Quando se tornar velho não será viável refutá-lo, porque então não terá o mesmo sentido a palavra “contradição”.

on edge – that is, both overexcited and indifferent”

Keith Beaumont, Alfred Jarry: A Critical and Biographical Study

A ARTE DA DETERRÊNCIA: Empurrando as revoluções com a barriga. Temos ainda muita gordura petrolífera para queimar. Deterrence is a very peculiar form of action: it is what causes something not to take place.

Marvel apresenta: O Homem que Congelou a Roda da História

Teria Alexandre realmente feito história? Historicamente feito realidade? Ponha um grande homem na frente de uma criança de 3 anos e veja-o convertido subitamente num pateta universal.

Kant, O Pataphýsico do Meião

Teleologia das 4 Patafísicas

Fenomenologia Ubuana

Patafísica Concreta

Patafisicismo Histórico-Dialético Positivista

Catecismo Patafísico

Patafisiquismo Empírico

Tu não vales meia metafa – BQT Somewhere

½ ½ ½ 3 legs

3 lags of a

2nd Messiah

A patafísica de Cristo final lapada na rachada

Os Fundamentos da Patafísica Moderna – Novo A Mosca?

apenas subtítulo… A Mosca Filosófica & Outras Estórias…

FM & Outras Estações

Neminhanamoradamelevasério

A Música Patofúsica

A liquidação da Patafísica

a $1,99

Morrenvenenado

Jarry, Exploits and Opinions of Dr. Faustroll

Veículo Cerebral Só Visível no Invisível Mapa Mental do Gênio

A Patafísica Antológica – Recipiente Líq. II – The Fly…And Other Detritus

O EXPERIMENTO ANTICAPES

ASSINE A PESTIÇÃO POR UMA VIDA

já com 0 assinaturas!

O universo é insetocêntrico.

A mariposa gira ao redor do Sol, desse Galileu Copo&Nico, o cientista com Asas – mas não seria o inverso, ó vôo relativo?

Os homens sobrevoam sua cabeça estacionária cheia de merda, tenho a certeza.

A cabana sobrevoa sua banana

A mucama voasub sua cruz

A Multiplicidade Concreta das Bolhas Atômicas

A Guerra Quente Nua que Há – Que Continua

A decência da Subida ao Vácuo

A Meridionauta Contra o Austronato

Eu não me recordo do título do meu livro;

Eu não me livro do título que recordo.

A força anormal que contrapõe a anti-gravidade.

D-Sire

Resided on The (D) Resistance

Past Tense

Nowadays Tranquility

Rope you find the hope

Todo Rousseau tem o seu Locke-fechadura.

Todo rousse tem o seu au mericano.

Pp. 18-9: “escape the heavy form, the gravity of ‘desire’, conceived as positive attraction, by the much more subtle eccentricity of seduction (…) the last gasp escape from the body of molecules that are much too light [not dark!]

Pope’s eye beholding the espinafrican. SPIN NACH(E)

O africano giratório

seclusion of reality

SECLUSÃO ANAGÓGICA – ótimo título em termos de oferta e demanda se é que mentende. (22/10/16, momento em que escolhi o título do blog.)

If, by some strange revolution, we set off in the opposite direction and turn inwards into this dimension of the past, then we can no longer represent that something to ourselves. The beam of memory bends, and makes every event a black hole.”

Depois da Ciência Histórica, na velocidade de alguns Hegels, a Probabilidade. Depois da Ciência Probabilística, no ridículo espaço de uns 15min, o link jornalístico sem maquiagem.

Como artistas, não nos sobra nem a energia para terminar nosso quadro.

Celebration and commemoration are themselves merely the soft form of necrophagous cannibalism, [necromicrophysics] the homeopathic form of murder by easy stages. This is the work of the heirs whose ressentiment towards the deceased is boundless. (…) complete works, the publication of the tiniest of unpublished fragments (…) active age of ressentiment

Um jogo quântico de RPG em que jogar o dado é banal.

A aristocracia celebra sua própria queda, porque só a aristocracia celebra. Mais, só a aristocracia cai.

We eliminate St.-Just from the Dictionnaire de la Révolution. ‘Overrated rhetoric’, says François Furet, perfect historian of the repentance of the Terror and the glory.”

the centenary of a death. With Rimbaud, Van Gogh and Nietzsche, 1991 will have been exceptional in terms of vile acts of desecration.”

If the left were a species, and culture obeyed the laws of natural selection, it would have disappeared long ago.” Fortunately for us, we are zombies.

Ficarei cego e exorcizado após tudo ter lido. Até um Diogo, um Ueslei, sangue do meu sangue, reprovaria incêndios bibliotecários… Alexandria, o pecado do sapato de ponta fina.

HELLCICLAGEM O Incinerador de Sonhos, que levará junto alguns resíduos. Velocidade Alucinante do Sereno

Preguiça, o Primeiro Não-Pecado dos Meus-Filhos

P. 24: “The century is becoming intellectual today just as it became bourgeois a century ago.”

the word ‘burgeois’ – which now exposes only the person who uses it to ridicule”

The little trick of placing the nude from Manet’s Déjeuner sur l’herbe opposite Cézanne’s Card Players, as one might put an admiral’s hat on a monkey, is nothing more than the advertising-style irony currently engulfing the world of art.” The Facebookians

É como se a história estivesse pilhando em meio ao seu próprio lixo em busca da redenção lixosa.”

Onde jogaremos o Marxismo, que vem a ser aliás o pai dos lixos da história? (Ainda há alguma justiça aqui, já que as mesmas pessoas que geraram o lixo caíram dentro da lixeira.) Conclusão: se não há mais lixos históricos, é porque a história propriamente dita se tornou um lixo.

Quando o gelo congela, todo o excremento emerge à superfície. Então, quando a dialética congelou, todos os dejetos sagrados da dialética vieram à tona.”

O PROBLEMA DA ECONOMIA DOS RESTOS OU DO RESTO: “ideologias defuntas, utopias abandonadas, conceitos mortos e idéias possibilizadas, que continuam a poluir nosso espaço mental. A recusa histórico-intelectual cria um problema ainda mais sério que os restos industriais. Quem vai nos livrar da sedimentação de séculos de estupidez? (…) O imperativo ecológico é que todos os resíduos devem ser reciclados.”

O Corpo Que Bóia, Inanimado, na Lagoa Rodrigo de Freitas, hitchcockian classic.

Ionesco, Amédée, ou Comment s’en Débarrasser (peça)

Um velho nostálgico conta o quê? Vintage!

Democracy itself (a proliferating form, the lowest common denominator of all our liberal west common societies); this planetary democracy of the Rights of Man, is to real freedom what Disneyland is to the imaginary.”

O que foi superplantado está sob a terra.

sóbrio elefante e a tartaruga de meia-idade

Onde estão os fragmentos póstumos resultantes da exumação do cadáver do Baudrillard?

History has only wrenched itself from cyclical time to fall into the order of the recyclable.”

A China e sua burocracia de dragões fossilizada é logo ali!

the problem of liberty quite simply cannot be posed here any longer. In the West, freedom – the Idea of Freedom – has died a natural death: In the East it was murdered, but there is no such thing as the perfect crime.”

Philippe Alfonsi, Au nom de la science (livro sobre a ‘memória d’água’!)

glasnost? it is almost a post-modern remake of our original version of modernity (…) all the positive and negative signs combined: not just human rights, but crimes, catastrophes and accidents which are all joyously increasing in the ex-USSR since the liberalization of the regime.” “The irony of the situation is such that it will perhaps be us who are one day forced to rescue the historical memory of Stalinism, while the countries of Eastern Europe will no longer remember the phenomenon.”

We are in the process of wiping out the entire 20th century, effacing all the signs of the Cold Wars one by one, perhaps even all trace of the Second World War and of all the political or ideological revolutions of the 20th century. The reunification of Germany is inevitable (…) a rewriting which is going to take up a large part of the last 10 years of the century. At the rate we are going we shall soon be back at the Holy Roman Empire.”

Restoration, regression, rehabilitation, revival of the old frontiers, of the old differences, of particularities, of religions – and even resipiscence [re-sapiência] in the sphere of morals.”

Ecstasy and beatification should not be confused.”

the astonishing pre-eminence in the media of the figure of the Pope, who travels the whole world (even the Islamic Sahel!) blessing all forms of crossbreeding and repentance, while ensuing that durable forms of voluntary servitude are in place.”

we are witnessing the striking illustration of what Hegel calls ‘the life moving within itself, of that which is dead’ [Das sich in sich selbst bewegende Leben des Totes.].”

the strange ease with which all the communist regions collapsed: they had only to be touched for them to realize that they no longer existed. It was like a cartoon, where the tightropewalker, teetering over the abyss, suddenly sees his rope is gone and immediately falls, passing without transition from the imaginary to the real (this the basic mechanism of cartoons).”

Freud saw very well those strange attractors that are condensation, displacement, ellipsis and reversibility. Forms, not values. And recent events have to be seen in terms of a theory of forms, rather than any kind of theory based on relations of force. The communist systems did not succumb to an external enemy, nor even to an internal one (had that been the case, they would have resisted), but to their own inertia; taking advantage of the opportunity, as it were, to disappear (perhaps they were weary of existing.)” “Now, this form of superconductivity of events is a marvellous one, like the form of the joke

The non-existence of governmental power is, admittedly, less visible in the West, on account of its great dilution and the transparency which enables it to survive. In the East, it was opaque and highly concentrated, to the point that, as with an unstable crystal, only an extra little dose was needed for it to liquefy.”

Behind the apparent victory of the West, it is clear, on the contrary, that the strategic initiative came from the East, not by aggression this time, but by disintegration, by a kind of offensive self-liquidation, catching the whole of the West unaware. By force of circumstance, which may have equated with a perception of his own weakness, Gorbachev was able to take this strategic tack of disarmament, the real deconstruction of his own bloc, and thereby of the entire world order. This was, in a way, dying communism’s witty parting shot

Let us beware of the naïve vision of a frozen history suddenly awakening and automatically heading once again, like a turtle, for the sea (for democracy).” “The East gobbling up the West by blackmailing it with poverty and human rights.”

Chernobyl whose radioactive cloud prefigured the collapse of the wall and the progressive contamination of the Western world. Bush may well disarm in the pretence of having won the Cold War, but it is the USSR and Gorbachev who invented the real bombe à depression, the surest one, the one which turns its own depression into a bomb.”

German¹ would describe this kind of transcendent high spirits, of historical rejoicing in sudden change, as Übermut. [além-coragem; super-ânimo]You have the Mut, you have the guts.

¹ Pode se referir a:

a) Aleksei Yuryevich German (Russian: Алексей Юрьевич Герман, IPA: [ɐlʲɪkˈsʲej ˈjʉrʲjɪvʲɪdʑ ˈɡʲermən]; 20 July 1938 21 February 2013) was a Russian film director and screenwriter. In a career spanning five decades of filmmaking, German completed 6 feature films,(*) noted for his stark pessimism, long, serpentine sequence shots, black and white cinematography, overbearing sound design and acute observations of Stalinist Russia.

(*) 1967 – Sedmoy sputnik (The Seventh Companion)

1971 – Proverka na dorogakh (Trial on the Road)

1976 – Dvadtsat dney bez voyny (Twenty Days Without War)

1984 – Moy drug Ivan Lapshin (My Friend Ivan Lapshin)

1998 – Khrustalyov, mashinu! (Khrustalyov, My Car!)

2013 – Trudno byt’ bogom (Hard to Be a God) (original title History of the Arkanar Massacre)“Trial on the Road (1971) is the film that made Alexei German famous. It was banned for 15 years and was shelved by the Ministry of Culture of the Soviet Union until its release (1986) during the Gorbachev era.”

b) Yuri Pavlovich German: “His best-known work, Ivan Lapshin (1937), was a police novel in a provincial setting whose main theme was the integration of criminals into society through order and labor. In this sense it resembles old bandit tales in which outlaws are reintegrated into society by colluding with the authorities. The novel incorporates a vision of collectivity (the policemen live in a commune), rationalism, culture, and social tranquility unperturbed by the black discord of crime. For good measure, Lapshin acts as mentor to his junior colleague. All of this is captured, with a twist, in the brilliant film version, My Friend, Ivan Lapshin made by the author’s son, Alexei German in the 1980s.”

c) Lindsey Ann German (born 1951) is a British left-wing political activist. A founding member and convenor of the British anti-war organisation Stop the War Coalition, she was formerly a member of the Socialist Workers Party, sitting on its central committee and editor of its magazine, Socialist Review.” Obras que Baudrillard pudesse ter lido até escrever Illusion of The End: Sex, class, and socialism (1989); Why we need a revolutionary party (1989).

Evil takes advantage of transparency (Glasnost).” eviral

it shows through in all things when they lose their image, when they no longer offer any substance, when they become both immanent and elusive from an excess of fluidity and luminosity.”

não será mais a violência da Idéia, mas o vírus da queda da imunidade.”

A communism that dissolves itself is [in!] a successful communism.”

what’s after the God of the social?

O doente que não pára de enfraquecer; sem morrer. Adoecendo até as raias do absurdo. Já é um ser-doença, com um espectro de homem como parasita. Alergia assintomática. Inatestável. Imanente ao mundo dos desespecializados. Chiclete da alma. Mago do trouxa. Olhando-se no espelho? Rachaduras nos 4) encantos.

Dissidents cannot bear a thaw. [o descongelamento] They have to die, or else become president (WalesaHavel²), in a sort of bitter revenge which, at any event, marks their death as dissidents” Lula, Mandela… Se o Lula não se tornou o establishment (não foi engolido pela Globo após um, dois, três mandatos, etc.), podemos nos considerar felizes por isso: morrerá para se eternizar como um dissidente do espectro progressista, sempiterno ícone desse projeto de país de meio-milênio!

¹ Presidente da Polônia nos anos 90.

² Caso curioso, porque foi presidente da República Tcheca, novo país, mas eleito tanto pelos cidadãos da Rep. Tcheca quanto pelos da Eslováquia, ex-território. Morreu em 2011.

They whose strength was in silence (or censorship) are condemned to speak and be devoured by speech.” Andrei Sakharov;¹ Zinoviev.

¹ Físico nuclear que depois virou ativista pró-desarmamento – quantas camadas de ironia não há nessa sinopse? Obviamente o Ocidente vai laureá-lo com o Nobel da Paz em 1975, como não! E depois distribuir um outro prêmio anual com seu nome, como se faz sempre com heróis advindos da Cortina de Ferro (fabricados à la Tio Sam).

Cioran: history is dying for want of paradoxes

ThirdWorld War”

For the human and ideological failure of communism by no means compromises its potency and virulence as an anthropological model. (…) stratégie du pire imposed on everyone as the last immune defense.”

It would be the opposite of Orwell’s prediction (strangely, he has not been mentioned of late, though the collapse of Big Brother ought to have been celebrated for the record, if only for the irony of the date Orwell set for the onset of totalitarianism which turned out to be roughly that of its collapse). Even more ironic is that we are threatened by the democratic rewriting of history: the very images of Stalin and Lenin went away, streets and cities renamed, statues scattered, soon none of all that will have existed.”

Eliminating the planet’s blackspots [ironia africana] as we might eliminate spots from a face: cosmetic surgery elevated to the level of the political, and to Olympic performance levels.”

A zona única chamada Infernéu, o Além-agora.

Fusion always turns into confusion, contact into contamination.” “networks transmit viruses even faster than information”

It is Dracula against Snow White (the Dracula myth is gathering strength all around as the Faustian and Promethean myths fade).” “The danger is to feed them too quickly, since this kills them.”

We had never seen anything like this before – the strongest State and largest army in the world fainting right away.” “What should have been a source of universal rejoicing passed off almost without interest – a sign of the nullity of the age.” “The end of empires means the unrestricted reign of slave micro-systems.” “The energy of the corpse is recycled, just as Jarry had dead man pedalling”

even the recognition of death, the intuition of that death (of the political) is impossible, since it would reintroduce a fatal virus into the virtual immortality of the transpolitical. [os mini-Estados condenados eternamente à imanência] There is the same problem with freedom: a non-violent, consensual, ecological micro-servitude, [a Gaia] which is everywhere the successor to the totalitarian oppression. [‘Seu porco estalinista, jogue esta casca de banana no lixo, seu genocida das futuras gerações!’]Incrível que eu o tenha digitado em 25/10/16, insuspeito do genocídio (nada ecológico, é claro) que se aproximava… No momento em que digito este trecho para publicação no Seclusão, 0h15 de 6 de maio de 2023, uso máscara, uma KN95, porque sou terrivelmente alérgico a ácaros e estou remexendo em papéis velhos, onde anotei estas aspas de Baudrillard… É como reviver aqueles meses de agonia… um pouco. Comentando também sobre Stalin, quando ele definitivamente volta à baila significa: a História voltou a andar. Des-revisionismo em ação.

É preciso desistir de algo a fim de verdadeiramente alcançá-lo. (Só os grandes homens entenderão.)

O fato de Marx ter errado o vencedor não depõe contra a exatidão da análise marxista de forma alguma, só acrescenta a ironia objetiva que faltava. O destino cuidou do assunto. Foi como se um gênio mau [evil genie] tivesse substituído um pelo outro – o comunismo pelo capitalismo – no último momento.” “Uma admirável divisão do trabalho: o Capital realizou a tarefa do Comunismo e este morreu no lugar do Capital. Mas isso pode facilmente revirar.” “Mas isso também é parte da ironia da história: a inversão do propósito final – a ilusão final.”

O Capital canibalizou toda a energia negativa, a da história e a do trabalho, numa – literalmente – operação sarcástica (…) O que vemos diante de nós é o triunfo paródico da sociedade sem classes (…) o cozinheiro [chef] se torna chefe de Estado, ou quase (já vimos pior desde que Lenin proferiu este seu velho sonho). (…) de qualquer forma, quando o Estado deixa de ser Estado, o cozinheiro deixa de ser cozinheiro. Como Brecht disse, o fato da cerveja não ser mais cerveja é harmoniosamente compensado pelo fato do cigarro não ser mais cigarro também. Logo, a ordem irônica está salva.”

Gorbachev is giving up Marxism! Fantastic! But what does <giving up> mean? Can you give up Marxism in the way you give up tobacco or alcohol? Can you give up your father and mother? Can you give up God? In its time, the Church has come close to giving up the Devil or the Immaculate Conception, but this has not occurred. Renunciation is the symmetrical and opposite movement to faith – as absurd and useless. If things exist, there is no use believing in them. If they do not exist, there is no use renouncing them.” “What if one day the West too were to renounce capitalism?” « Et si un jour l’Occident était forcé de ressusciter le marxisme, qui fait quand même partie du patrimoine, que diable (le Diable aussi d’ailleurs) ! »

« desimulation » pela primeira vez no autor (p. 54).

virtual is what puts and end to all negativity”

The highest pressure of news corresponds to the lowest pressure of events and reality [le réel].”

only information has sovereign rights, since it controls the right to existence.”

Vingança pela quietude da alma.

There is no worse mistake than taking the real for the real and, in that sense, the very excess of media illusion plays a vital disillusioning role. In this way news could be said to undo its own spell by its effects.” “Television and the media world render reality [le réel] dissuasive, were it not already so.”

soaking up the sulky sucking

Saddam, who will in the end have been nothing but that fairground dummy you shot at from point-blank range, had to be saved.” Anedota: Baudrillard morreu 3 meses após Hussein.

A TV é imunizadora.” E as redes sociais são ataques à imunidade. A predominância das redes sobre a televisão é irreversível e natural.

the most odious Realpolitik: the Shi’ites, the Kurds, the calculated survival of Saddam…”

The Stoics contest the very self-evidence of pain, when the body’s confusion is at its height. Here, we must contest the very self-evidence of war, when the confusion of the real is at its height.”

In a little time it will be possible to read La guerre du Golfe n’a pas eu lieu [1991] as a science-fiction novel (…) Like Borges’ chronicling of cultures which never existed.” “Anyhow, the book has fallen – quite logically – into the same black hole as the war.” É este humor buraco negro que tanto admiro no meu ídolo Jean Baudrillard. Somos escritores-gêmeos. Não o digo para prodigalizar meu talento, mas nosso temperamento e falsa auto-depreciação são idênticos – talvez eu não saiba, mas modelei os meus nos dele, pois meu primeiro contato com sua obra foi ao redor de sua morte, quando eu chegava a meus 20.

It was the simulacrum of Helen that was at the heart of the Trojan War. The Egyptian priests had held on to the original (we do not know what became of it) when she set out again with Paris for Troy.” “the universal form of beauty is as unreal as gold the universal form of all commodities.”

P. 66: “Dianismo” [conceito meu, Princess Diana]: o demagogismo do discurso de ajuda ao próximo, sobretudo às crianças sem pais (pais = dinheiro) do famélico Quarto Mundo. Carência alheia como atalho covarde para a fama. Espetacularização do indigentismo.

…AND REPENTANCE FOR ALL

Laras Crofts nos escombros de outras sociedades…

Lúcia Maria no Lixão com Grafites Residuais na Ilha dos Porcos-Subomens

Sebastiões Salgados, Uni-Vos!

Como é doce o som da fome e do caos!

Há CPFs e CNPJs que vivem só de “denúncia anônima”.

annihibalism

The sacrifices we offer in return are laughable (a tornado or two, a few tiny holocausts on the roads, the odd financial sacrifice)”

the demographic catastrophe, a veritable epidemic which we deplore each day in pictures.”

One day it will be the Whites themselves that will give up their whiteness.”

Because it is unable to escape it, humanity will pretend to be the author of its destiny.”

Uma memória hipertélica que armazena todas as informações num estado constante de recuperabilidade instantânea, excluindo qualquer trabalho de luto, qualquer resolução do passado. O Inconsciente é já algo desse tipo. Ele não conhece passado nem esquecimento, não é arcaico nem arqueológico. Ele é, ao contrário, um perpétuo presente, uma instantaneidade de todos os eventos físicos, que aparecem em sua superfície em uma contínua, potencial passagem ao ato. Paradoxalmente, por conta desse zeloso esforço para trazer de volta à tona, de uma maneira forçada, o que nós mesmos nem lembramos mais, vivemos num mundo tanto sem memória como sem esquecimento. Isso é como o céu – ou o inferno – deve ser: o reconhecimento maciço, a cada momento, de todos os padrões de nossa vida. A imortalidade penitente e penitenciária, a imortalidade carcerária de uma memória implacável.”

75: ainda sobre as Lascaux “simulacra” caves.

Quando confrontados com as pinturas nas cavernas, os povos do século XVIII não podiam acreditar nelas. Eles as viam como uma mistificação criada por libertinos para ridicularizar a Bíblia (dizia-se que as cavernas haviam sido pintadas para fazer com que os outros acreditassem numa humanidade ante-cristã).”

Assim como com aqueles objetos de que Freud fala, que, por estarem o mais próximos dos órgãos sexuais femininos, fazem o seu papel durante as alucinações sexuais, fetichizamos fósseis e relíquias porque eles são o que há de mais parecido com nossa origem perdida e são-nos substitutos de uma possível origem.

Secretamente, preferimos não ser mais confrontados com o original. Tudo que queremos é o copyright.”

OS HUMANO-BACTÉRIAS: “Será que o total do futuro vai se exaurir nessa síntese artificial do passado? Quem sabe aonde este gigantesco movimento retrógrado poderá nos levar? Seria ele uma fase efêmera em nossa pós-história, e, conseqüentemente, um fenômeno cultural, ou será um desenvolvimento de significância ainda mais profunda, relacionando-se com o destino da espécie, ou até além, com oscilações de um tipo cósmico? (Com o girino, logo que o ápice da sexuação é atingido, há involução rumo a formas mais precoces de reprodução. Estaria o ser humano reinventando a clonagem biológica no ponto final de uma história sexuada?)”

Somos sou a última singularidade

logo serei inconfundível com o protótipo de último homem, que não poderá mais se reproduzir.

Que espécie de quadro irá se mover sozinho?

Estrelas continuarão estourando?

Idealization always goes with abjection, just as charity always goes with destitution.”

A natureza vira coisa (modernidade) para depois virar sujeito (pós-modernidade) (mau sinal): não há outro; há apenas sujeitos – e, logo, logo, só sujeitos sem objetos.”

Biosphere 2, o primeiro “zoológico humano”, Arizona. Status: fracassado.

https://en.wikipedia.org/wiki/Biosphere_2

Especially during the first year, the 8 inhabitants reported continual hunger. Calculations indicated that Biosphere 2’s farm was amongst the highest producing in the world <exceeding by more than 5x that of the most efficient agrarian communities of Indonesia, southern China, and Bangladesh’.” Ou é mentira ou realmente os americanos são obesos incuráveis…

They consumed the same low-calorie, nutrient-dense diet that Roy Walford had studied in his research on extending lifespan through diet.” Mas faltou carne.

The oxygen inside the facility, which began at 20.9%, fell at a steady pace and after 16 months was down to 14.5%. This is equivalent to the oxygen availability at an elevation of 4,080 metres (13,390 ft). Since some biospherians were starting to have symptoms like sleep apnea and fatigue, Walford and the medical team decided to boost oxygen with injections in January and August 1993.”

After Biosphere 2’s first mission, extensive research and system improvements were undertaken, including sealing concrete to prevent the uptake of carbon dioxide. The second mission began on March 6, 1994, with an announced run of 10 months.”

On April 1, 1994, a severe dispute within the management team led to the ousting of the on-site management by federal marshals serving a restraining order, and financier Ed Bass hired Steve Bannon, then-manager of the Bannon & Co. investment banking team from Beverly Hills, California, to run Space Biospheres Ventures.”

At 3 a.m. on April 5, 1994, Abigail Alling and Mark Van Thillo, members of the first crew, allegedly vandalized the project from outside, opening one double-airlock door and 3 single door emergency exits, leaving them open for about 15 minutes. Five panes of glass were also broken. Alling later told the Chicago Tribune that she ‘considered the Biosphere to be in an emergency state … In no way was it sabotage. It was my responsibility.’ About 10% of the Biosphere’s air was exchanged with the outside during this time, according to systems analyst Donella Meadows, who received a communication from Alling saying that she and Van Thillo judged it their ethical duty to give those inside the choice of continuing with the drastically changed human experiment or leaving, as they didn’t know what the crew had been told of the new situation.”

Mission 2 was ended prematurely on September 6, 1994. No further total system science has emerged from Biosphere 2 as the facility was changed by Columbia University from a closed ecological system to a ‘flow-through’ system where CO2 could be manipulated at desired levels. § Steve Bannon left Biosphere 2 after 2 years, but his departure was marked by an ‘abuse of process’ civil lawsuit filed against Space Biosphere Ventures by the former crew members who had broken in. Leading managers of Biosphere 2 from the original founding group stated both abusive behaviour by Bannon and others, and that the bankers’ actual goal was to destroy the experiment. During a 1996 trial, Bannon testified that he had called one of the plaintiffs, Abigail Alling, a ‘self-centered, deluded young woman’ and a ‘bimbo’. He also testified that when the woman submitted a 5-page complaint outlining safety problems at the site, he promised to shove the complaint ‘down her throat’. Bannon attributed this to ‘hard feelings and broken dreams’.”

Os fascistas estragam tudo que tocam. Descrição de Baudrillard agora: “Outside Tucson, in Arizona, right in the middle of the desert, a geodesic glass and metal structure accommodating all the planet’s climates in miniature, where 8 human beings (4 men & 4 women, of course) are to live self-sufficiently, in a closed circuit, for 2 years, in order – since we are not able to change our lives – to explore the conditions for our survival.”

Man is also a scorpion, just as the Bororo are arara(*) and, left to himself in an expurgated universe, he becomes, himself, a scorpion.

(*) Arara is a name of Tupi origin for a bird of the genus Ara which includes the macaws (French: aras).”

Secretamos significados como o escorpião secreta seus venenos.

Segredamos significados como o escorpião secreta seus venenos.

Homem, o grande cretino.

That is the terroristic dream of the transparency of good, which very quickly ends in its opposite, the transparency of evil. § We must not reconcile ourselves with nature.”

espaço siderreal – certamente não são Adão e Eva ressuscitando: “The elimination of all sexual reproduction: it is forbidden to reproduce in Biosphere 2; even contamination from life [le vivant] is dangerous; sexuality may spoil the experiment. Sexual difference functions only as a formal, statiscal variable [não podiam furunfar nem com camisinha?! condomnados ao celibato!] (…) if anyone drops out, a person of the same sex is substituted.” “glass coffin” coma cosmético

O GRAU 1 BILHÃO DA ESCRITURA – O SUPER-U****I – o maior filósofo se torna o mais inconseqüente dos títulos.

Como pode alguém ofender alguém de blasé a sério? Que se acredite que se ofenda alguém que nunca se ofende é um atestado de desespero.

Nada a temer em temer o nada.

God, for his part, if he exists, does not believe in his existence, but he allows the subject to believe in it, and to believe he [god] believes in it, or [the subject] not to believe that – but not to believe he [god] does not believe in it (Stavrogin [personagem dostoievekiano, Os Demônios]).” Genial!

RESUMO LÓGICO DAS IMPLICAÇÕES DO EMPOLADO RACIOCÍNIO DE STAVROGIN E O SENTIDO DE “TUDO É PERMITIDO” NA OBRA DE DOSTOIEVSKY

1. Deus existe; Deus não acredita na própria existência; Deus permite que o homem acredite na existência de deus ou não, mas não na segunda verdade fundamental.

1.1 O homem acredita na existência de deus.

1.1.1 O homem acredita que deus acredita na própria existência.

1.1.2 O homem acredita que deus não acredita na própria existência.

1.2. O homem não acredita na existência de deus.

1.2.1 O homem acredita que deus, se existisse, acreditaria na própria existência.

1.2.2 O homem acredita que deus, se existisse, não acreditaria na própria existência.

2. Deus não existe.

2.1 O homem acredita na existência de deus.

2.1.1 O homem acredita que deus acredita na própria existência.

2.1.2 O homem acredita que deus não acredita na própria existência. Este homem na verdade é um grande ateu, pois um deus que não acredita na própria existência seria pior que a não-existência de um deus.

2.2. O homem não acredita na existência de deus.

2.2.1 O homem acredita que deus, se existisse, acreditaria na própria existência.

2.2.2 O homem acredita que deus, se existisse, não acreditaria na própria existência. Este homem é, finalmente, um grande ateu, o único ateu em sentido estrito, pois um deus que não acreditasse na própria existência, pensa ele, não deveria sequer ser pensável. Seria pior e mais absurdo que a não-existência de um deus, seria como uma confissão de não-onipotência por parte deste suposto deus.

2 conclusões:

a) As possibilidades éticas são maiores sem Deus (tudo é permitido).

b) Seria possível provar a inexistência de deus (jamais a existência)¹ ao se encontrar um só indivíduo que acredita que deus² não acredita em si próprio. É o caso do personagem da novela niilista de Dostoievsky. Seu niilismo absoluto, sua negação ultimada da realidade, não se escora no ingênuo fato de que não acredite num deus, mas que para ele, como um homem uma vez fanático e que pensou a idéia de Deus até as suas últimas conseqüências, esse deus se tornou impossível. Na percepção alcançada por Stavrogin, todos os casos são iguais, apenas ele e homens análogos a ele, um novo homem, são um outro: se Deus existe, quem acredita nele ou não são iguais; se Deus não existe, e Deus não existe, pois Stavrogin recebeu essa iluminação e nova sabedoria, ateus e crentes que acreditam que deus acredita em si próprio são iguais (inofensivos); mas ateus e crentes que acreditam que deus não acredita(ria) em si próprio, estes são niilistas radicais, os únicos ateus na verdadeira acepção da palavra. Igor Karamazov (outro romance) se questiona: Tudo é permitido?, mas Stavrogin responde, em Os Demônios.

¹ Pois todos os indivíduos precisariam respeitar as vedações em 1.1 e 1.2. Mas mesmo que todos na Terra em dado dia as respeitassem, não quereria dizer que jamais um indivíduo no passado as respeitou; e nem que nunca haverá de nascer um indivíduo que não as respeite.

² O deus existente, para o crente, ou inclusive apenas uma abstração, a hipótese de deus, de um deus que não acreditasse em si mesmo, para o não-crente.

Não exageremos a importância deste raciocínio lógico elaborado, no entanto: não podemos provar crenças (talvez apenas a nossa própria, e ainda assim podemos desconfiar de que às vezes mentimos para nós mesmos).

P. 94: “Todos esses corpos de pensamento [Stirner e seu individualismo soberano, Marx e a luta coletivista na História, Nietzsche, seu Übermensch e a transvaloração de todos os valores demasiado humanos] tiveram profundas conseqüências para o mundo – nenhum se converteu em realidade.

um <além> que não é aquele da religião, mas um <além> do humano que permanece dentro e com o humano (…) uma ilusão talvez, mas uma ilusão superior.” “Contrariamente à ilusão transcendental das religiões, o jogo das aparências é supra-humano”

Se a história tivesse um fim, esse fim já teria sido alcançado… Um dia me arrependerei dos meus atuais prognósticos e escreverei o livro HEIDEGGER ESTAVA CERTO? A tecnologia nos comeu sem volta. Quem dera Baudrillard estivesse errado…

O que atualmente toma o lugar da transmutação é a transcrição da Idéia em uma operação técnica (…) O que mostra que Nietzsche, por um lado, estava certo: a raça humana, deixada a si mesma, com efeito só sabe se reduplicar e destruir.”

fetichismo técnico (…), meramente a paródia da aceitação do seu destino, através de uma manipulação biológica que é meramente a caricatura da transvaloração dos valores.” “Desnecessário dizer, essa transvaloração de valores de que Nietzsche fala não teve lugar, exceto precisamente no sentido oposto – não para além, mas deste lado, aquém, do bem e do mal

Não mais uma fetichização de divindades, grandes idéias ou narrativas, mas de diferenças mínimas e de partículas. (…) As fronteiras entre o humano e o inumano estão desvanecendo, de fato, mas essa perda de nitidez se dá numa espiral rumo ao sub-humano (…) Verklärung des Untermenschen. Transfiguração do sub-homem.”

Essa reabsorção da metáfora da vida na metástase da sobrevivência é efetuada por uma progressiva redução ao menor denominador comum.”

Paradoxalmente, é a irrupção da biologia, i.e., da ciência da vida, que marca essa irrupção do não-vivo (…) Bem como a irrupção da psicologia marca o fim da transcendência da alma e sua suplantação por uma desconstrução analítica do mundo interior. Bem como a irrupção da ciência anatômica marca o fim do corpo e da morte como metáforas e suas entradas em cena como realidade e fatalidade biológicas.”

Podemos ainda falar do inconsciente, dado o prospecto do homem vindo a ser definido geneticamente? Mesmo a imortalidade do inconsciente, tão cara a Freud, está sob séria ameaça.”

RELEMBRE DEDÊ (TESE, vide mais abaixo): “Não mais imortal em termos de alma, que já desapareceu, nem mesmo em termos de corpo, que está para desaparecer, mas em termos de fórmula, imortal em termos de código.”

The trend in physics itself is towards the reduction of this interstitial void. It is the dream of that science to render matter totally concrete, to wrest all its energy from it by impelling it to limit-densities, densities artificial and monstrous.” Como congelar a luz, o novo absurdo alquímico.

From within, a culture is immortal; it seems to approach its end in an asymptotic curve. It has, in fact, already disappeared. The elevation of a value to universality is a prelude to its becoming transparent, which itself is a prelude to its disappearance.”

the single-handed ocean crossings, which are our modern equivalent of climbing Annapurna, [pico da cadeia de montanhas do Himalaya (circa 8000m); escalado pela primeira vez em 1950] are posthumous fantasies.”

Peter Schlemihl had at least sold his shadow to the devil; ours we have simply lost.” “The atomic shadow, the only one left to us: not the sun’s shadow, nor even the shadows of Plato’s cave, but the shadow of the absent irradiated body, the delineation of the subject’s annihilation, of the disappearance of the original.”

Alain Ehrenberg, La fatrigue d’être soi

the hero of subjectivity, of breaking with the old, of free will and Stirner’s radical singularity, is well and truly dead.” “This is the age of the daily invention of new particles. (…) freedom is merely the statistical end-product of impacts between singularities and no longer, therefore, in any sense a philosophical problem.”

His [the individual of today] only aim is the technical appropriation of the self. He is a convert to the sacrificial religion of performance, efficiency, stress and time-pressure – a much fiercer liturgy than that of production – total mortification and unremitting sacrifice to the divinities of data [l’information], total exploitation of oneself by oneself, the ultimate in alienation. § No religion has ever demanded as much of the individual as such, and it might be said that radical individualism is the very form of religious fundamentalism.” “By comparison, with this voluntary holocaust, [do sujeito atomizado liberal] this escalation of sacrifice, the so-called return of religion which we pretend to fear – these occasional upsurges of religiosity or traditional fundamentalism – is negligible. It merely conceals the fundamental integrism of this consensual society (…) Religious effects are taken too seriously in their religious dimension and not seriously enough as effects, that is, as making the true process.” “each one reviving for itself, in its micro-universe, the now useless totalitarianism of the whole.”

LIVRES COMO PEIXES NÃO-CONSTRANGIDOS EM SEUS AQUÁRIOS: “Liberty operates in a field that is limited and transcendent, in the symbolic space of the subject, where he is conformed with his own finality, his own destiny, whereas liberation operates in a potentially unlimited space. It is a quasi-physical process (…) That is why liberty is a critical form, whereas liberation is a potentially catastrophic form. The former confronts the subject with his own alienation and its overcoming. The other leads to metastases, chain reactions, the disconnection of the subject. Liberation is the effective realization of the metaphor of liberty and, in this sense, it is also its end. (…) Not the free subject any longer, but the liberal individual. (…) From liberty to liberation, from liberation to liberalization. The extreme point of highest dilution, minimal intensity” “And, in the process, the concept of alienation disappears. This new, cloned, metastatic, interactive individual is not alienated any longer, but self-identical. He no longer differs from himself and is, therefore, indifferent to himself. This indifference to oneself is at the heart of the more general problem of the indifference of institutions or of the political, etc., to themselves § The indifference of time: the non-distance between points in time, the promiscuity of points in time, the instantaneousness of real time. Boredom. § The indifference of space: the televisual, remote-controlled contiguity and contamination of all points in space, which leaves you nowhere. § Political indifference: the superimposition, the proliferation of all opinions in a single media continuum. § Sexual indifference: indistinguishability and substitution of sexes as a necessary consequence of the modern theory of sex as difference.” “this identitary individual lives on the hymning and hallucinating of difference, employing to that end all the devices for simulating the other.” Certamente Baudrillard ganharia o rótulo de fascista e transfóbico pela parte “amorosa” (inofensiva, cripto-neoliberal) da esquerda de hoje. A parte <<<revolucionária>>> (com o perdão da sobreposição das aspas) da esquerda e do <<<progressismo>>>.

ESQUEÇA DEDÊ (ANTÍTESE, vide acima): “This identity syndrome has a particular form of madness specific to it. To the <free> individual, the divided subject, there corresponds the vertical madness of yesteryear: psychical madness, the transcendent madness of the schizophrenic (…) [but] horizontal madness (…) [is] autism.”

Trecho de BAUDRILLARD, Jean. The Illusion of The End (1994) e, a seguir, especulações e desdobramentos meus sobre a figura do autista que devora o seu duplo e absorve seu irmão gêmeo, seja na vida real ou na ficção, com ou sem êxito:

[Not anymore] the delirium of the schizophrenic [personalidade cindida] but of the isophrenic, [idêntico tão-só a si mesmo] without shadow, other, transcendence or image (…) the autist who has devoured his double and absorbed his twin brother¹ (being a twin is, conversely, a form of autism à deux). (…) deprived of hereditary otherness, affected with hereditary sterility, they have no other destiny than desperately to seek out an otherness by eliminating all the Others one by one (whereas <vertical> madness [o tipo antigo da loucura, a família da esquizofrenia, formas arquetípicas do <desejo> de Gilles Deleuze & Guattari] suffered, by contrast, from a dizzying excess of otherness). The problem of Frankenstein, for example, is that he has no Other and craves otherness. This is the problem of racism.”

¹ The Black-Zamasu Syndrome! a Ou a Era Messi?b

O ANTES & DEPOIS DO “PERSONAGEM DUPLICADO” ZAMASU

a Black & Zamasu: dois lados de uma mesma moeda: Dois personagens de mangá/anime que são, no enredo, a mesma pessoa, porém provindos de universos alternativos (o que seria muito demorado explicar em suas minúcias), “um deles” mortal, um tanto impulsivo e dotado de um corpo “ágil e perfeito” (em que residiria essa agilidade e perfeição será deslindado a seguir – este mortal de que falo é chamado de “Goku Black” pelos demais personagens da trama), “outro deles” imortal, possuidor de extensos conhecimentos sobre o universo e não obstante dotado de um corpo um tanto menos versátil que o de sua contraparte espelhada (este é Zamasu, a identidade ‘original’ do ‘falso duo’). “Ambos” formam um par astuto e eficiente, pode-se dizer que “se completam” de forma platônica.

A solução final encontrada pelo(s) personagem(ns) desdobrado(s) Black-Zamasu na sua tentativa de cumprir o ambicioso propósito que persegue(m) com afinco na estória – o singelo plano da extinção da humanidade não só na Terra como em todo o universo (Ningen Zero Keikaku,(*) ‘Plano Zero Humanos’), e com humanos, nesta narrativa, não entender apenas criaturas antropomórficas, os terráqueos, mas todos os seres que a filosofia existencialista classificaria como conscientes de que um dia irão morrer dada “sua natureza meramente finita, recalcitrante e imperfeita, de pecadores natos, enfim”, como diria o vilão ou a dupla de vilões em questão –, envolve a precipitada decisão de “fundir-se consigo mesmo”, acarretando a transformação de duas entidades em uma.

(*) Acho divertida a inadvertida – cacofonia intencional – coincidência acústica que a transposição da obra para o português acaba gerando: ningen, sendo o japonês para ‘humano’, corresponde exatamente à idéia que Black-Zamasu tem/têm do homem: um zé(ro)-ninguém.

Este Narciso que conseguiu mergulhar no espelho d’água e não se afogar, este Fausto do universo ficcional de Dragon Ball, após vender a alma para chegar aonde quer, percebe tarde demais que o “diabo” (neste caso ele mesmo) o ludibriou na barganha, ao constatar que, uma vez fundido com sua cara-metade, sua principal vantagem tática na trama até aquele momento é, como num simples passe de mágica, desfeita: seu senso de cooperação com um Outro (ainda que esse outro fosse apenas ele desdobrado), sua sincronia e trabalho em equipe ideais na paciente execução de um projeto maquiavélico, acabam dando lugar a uma criatura “semi-imortal e auto-suficiente”. Ora, só que não existe a semi-imortalidade (algo intrinsecamente inútil, inferior à imortalidade) nem uma auto-suficiência genuína.

A sutil tragédia desta estória, nem sempre capturada pelo leitor/espectador, está em que a fim de chegar tão longe em seus planos diabólicos Zamasu teve de roubar o corpo do artista-marcial “perfeito”, Goku, o protagonista, que encarna o próprio sentido do humano arquetípico, cheio de defeitos, carências e tolas expectativas, dotado de uma fé cega e ingênua no futuro a despeito da certeza da morte e até de uma certa dose de despeito pelo conceito de divindade (justamente o que nos torna cônscios de nossa capacidade inerente de nos corrigirmos e nos superarmos diversas vezes ao longo de nossa curta vida), conjunto de características tão abominado pelo mesmo Zamasu. A parte “humana” de Zamasu, Goku Black, ao ser incorporada ao próprio Zamasu original, constituindo a partir daí um corpo só, desestabiliza seu Ser Eterno. Seu novo invólucro, em vez de onipotente, se revela uma falsificação, um embuste. Zamasu, o Uno, não dispõe mais da vida eterna.

E este nem é o pior de seus problemas após a fusão: logo se evidencia que, contra os humanos – raça que aprende com os erros e enquanto não perece ousa tentar outra vez, mesmo sem ter idéia do desfecho, de se seus esforços serão inúteis ou não, entregando, de qualquer maneira, tudo de si –, a própria habilidade de Zamasu, da parte do Goku Black em Zamasu, que ele tomou emprestada do corpo mortal de Goku quando uma de suas metades se transformara em Black no passado, a habilidade do contínuo e incessante auto-aperfeiçoamento pessoal, não passa de uma cópia barata da versão dos humanos autênticos dessa mesma habilidade. Zamasu, principalmente agora que contaminou sua antiga parte “humana” (parte que, reitera-se, era um mal necessário para que ele sobressaísse no combate) com traços divinos (e não o contrário: em Zamasu, é o humano que decai graças a sua metade deus, e não o inverso!), não possui a vontade e a determinação necessárias que lhe possibilitariam, em última instância, ultrapassar seus próprios limites.

Ao escolher se fundir consigo próprio, Zamasu apenas antecipou o fim do combate: se tornou um adversário facilmente vencível, incapaz de acompanhar o ritmo das proezas dos rivais e de compreender o ethos do inimigo. (Em sua cabeça, devia se perguntar: Por que eles lutam comigo, em intensa solidariedade uns com os outros o tempo todo, mesmo quando se acham em nítida desvantagem na correlação de forças? E por que eles não desistem nunca de realizar o impossível? O que faz criaturas tão frágeis e insignificantes se comportarem de maneira tão absurda e ao mesmo tempo exibirem uma invejável serenidade no olhar? Que impulso é esse que os move, que nem mesmo um deus como eu entende?!) O resultado final icônico do embate é que Black-Zamasu termina cortado em dois por um dos humanos que o antagonizam. Seu corpo imortal tinha o dom da auto-regeneração, mas sozinho não poderia vencer os humanos super-poderosos da trama fantástica. Quando se fundiu consigo mesmo, seu novo corpo semi-imortal foi aos poucos se deformando e perdendo aquela capacidade restauradora, embora ele calculasse que o ganho de poder resultante da fusão decidiria a guerra a seu favor.

Aquilo que fôra cortado pela espada de um humilde ser humano (a espada, apenas uma espada como qualquer outra, nada mais é do que o símbolo da inquebrantável perseverança dos mortais) não era bem a carne de Zamasu, a dizer verdade, mas seu espírito, sua própria essência, e este profundo ferimento metafísico se mostrou uma chaga incurável.

A evolução tremendamente satisfatória (em sua ascensão e queda) do multifacetado e secretamente atormentado Zamasu – esse Prometeu negativo, esse deus presunçoso e anti-socrático, que “não sabia que nada sabia” –, e seu estratagema cínico de forjar uma hipócrita aliança com seu duplo ou Doppelgänger, um duplo que ao mesmo tempo que imitava os seres humanos teria de ser seu principal instrumento para finalmente extingui-los, tornam este personagem, de longe, no melhor antagonista jamais apresentado por esta série shounen de lutinhas acéfalas, em que normalmente imperam a superficialidade mais boçal e os velhos clichês maniqueístas.

OBS: Deve haver uma mística ligação entre Jean Baudrillard e Dragon Ball, pois não é a primeira vez que eu associo a ambos – e ser mais distintos um do outro é impossível! – em posts do Seclusão (aqui vai a pista de uma possível explicação racional: novamente o assunto abordado se refere à ‘síndrome de deus’ de que padece o animal homem em todas as culturas conhecidas)!

Vide o contexto completo da primeira “analogia” entre aspas de Baudrillard e personagens de Dragon Ball em https://seclusao.art.blog/2021/12/20/ss-em-3-atos/.

b Lional “La Pulga” Messi: O conhecido jogador de futebol foi tachado por muitos “entendidos” de “autista” nos seus anos iniciais de carreira porque ‘se comunicava’ e ‘atuava’ de forma supostamente bizarra e muito diferente da habitual, tanto nos gramados quanto na vida privada. Diferente até de outros gênios do passado, principalmente do ícone-mor argentino, o extremamente sociável e integrado com o seu povo, extrovertido e burlesco Diego Maradona, que por muitos anos foi uma sombra na trajetória de Messi.

Vemos, num dégradé perfeito, como Lionel Messi foi se tornando, com a idade, cada vez mais e mais maradônico, seja porque assim quisemos passar a enxergar após começarmos a prestar mais atenção ou porque o meia-atacante foi se tornando, sem afetação, de modo orgânico e natural, grande e irreverente tal qual seu ídolo de infância, não só através de suas quebras rotineiras de recordes e a técnica cada vez mais precisa e apurada, como também pela maturidade com que aprendeu a chamar toda a responsabilidade e estrelato para si, aglutinando os companheiros pelo bem maior da equipe e confrontando com personalidade e malemolência os críticos e adversários, cada vez mais estupefatos e rendidos.

Messi soube se desdobrar, enquanto se movimentava como uma flecha durante os jogos, separou o Messi indivíduo comum do Messi lendário, o cidadão do mago protagonista de espetáculos, se situou num ângulo favorável, numa distância confortável, diante do espelho em que se punha a observar seu próprio Outro, que na verdade são duas coisas distintas, seus dois Outros – 1) o seu futuro como será contado pela História, que só pode ser decidido por ele mesmo; 2) e aquela antiga sombra ou reflexo pertencente ao passado, que mais parecia um destino inexorável a pesar como uma bigorna sobre as suas costas, ele, Diego Armando Maradona. Por muito tempo, no entanto, pensaram, e talvez Messi tenha pensado, que seus dois Outros eram um só: Messi é Maradona; mas se Messi não tem uma Copa, então Messi não é Maradona… então,a na realidade, Messi não é ninguém… Não!… Messi será Maradona!… contanto que… Entende-se onde quero chegar.

Os anos profissionais de um jogador de futebol passam muito mais depressa que nossa já efêmera vida. E, para Messi, sua trajetória como jogador, o capítulo mais importante de sua biografia, culminou com a decretação oficial de sua “santidade atlética”, a atribuição sem direito a controvérsia de seu status de craque atemporal, diante de toda a imprensa e da atual geração de torcedores do esporte mais popular do planeta, após a apoteótica exibição na final da Copa do Mundo de 2022, no momento em que erguia a Taça Fifa. Hoje, mesmo antes da aposentadoria, Messi já é apontado (e não apo-se-ntado, leia bem!) – e por não poucos, talvez pelos mesmos que antes tentavam explicar suas performances sobrenaturais apelando para diagnósticos clínicos! – como “melhor que Maradona” enquanto jogador e “tão influente e carismático quanto Dieguito” fora das quatro linhas, façanha notável, outrora até impensável, quando nos damos conta de que na Argentina Diego Maradona é venerado como um deus…

* * *

O MAL SOMÁTICO DA HUMANIDADE: “everything is already there, everything has already taken place. § We are thus immortal survivors, since the second existence is without end. It has no end because the end is already the beginnin.” “The process of de-humanization is complete and the clear effect of this phenomenon is that we no longer possess the psychical, ethical and spiritual resources which would enable us to realize this fact (Romain Gary).”¹

¹ wikia: “Romain Gary, 1914–1980, also known by the pen name Émile Ajar, was a French novelist, diplomat, film director, and World War II aviator. He is the only author to have won the Prix Goncourt under two names. He is considered a major writer of French literature of the second half of the 20th century.” “In a memoir published in 1981, Gary’s nephew Paul Pavlowitch claimed that Gary also produced several works under the pseudonym Émile Ajar. Gary recruited Pavlowitch to portray Ajar in public appearances, allowing Gary to remain unknown as the true producer of the Ajar works, and thus enabling him to win the 1975 Goncourt Prize, a second win in violation of the prize’s usual rules.” chad move here!

R.G., Les Racines du ciel

Our systems are thus doubly chaotic: they operate both by exponential stability and instability.”

A DIALÉTICA DO REJUVENESCIMENTO: “Sensitivity to initial conditions should not be confused with fate or predestination.” “In predestination, the end is there before the beginning and every effort to move away from the end brings that end closer. [Édipo Rei, etc.]

Meteorology is chaotic; it is not a figure of destiny.”

the destiny of simulation which one may, in effect, read as a form of catastrophe of reality, this dizzyng whirl of the model, the virtual and simulation carrying us further and further from the initial conditions of the real world

Chaos is a parody of any metaphysics of destiny. It is not even an avatar of such a metaphysics. The poetry of initial conditions fascinates us today, now that we no longer possess a vision of final conditionsO Ragnarok é sempre só um Big Bang.

Destiny is the ecstatic figure of necessity. Chaos is merely the metastatic figure of Chance. [a contingência se espalhando como um câncer]

the hidden order of strange attractors” “Condemned to an intense metabolism” “They are condemned, precisely, to the epidemic, to the endless excrescences of the fractal [vertigo] and not to the reversibility and perfect resolution of the fateful [fatal]. We know only the signs of catastrophe now.” Não é como um eterno retorno com sentido, mas apenas um loop de arcade game de Atari…

“…definitive doom, which we could at least consume as spectacle. Just imagine the extraordinary good luck of the generation which would have the end of the world to itself.” “we came too late for the beginning.”

You live too fast, you live too soon. Apoteozzy

Ó TESOURA AMIGA!

CORTO EU A LINHA PELUDA?

April of the pigs

O universo é como um ano-novo.

history itself has become interminable. when we speak of the <end of history>, the <end of the political>, the <end of the social>, the <end of ideologies>, none of this is true. The worse of it all is precisely that there will be no end to anything, and all these things will continue to unfold slowly, tediously, recurrently, in that hysteresis of everything which, like nails and hair, continues to grow after death.”

homepathic end, an end distilled into all the various metastases of the refusal of death.”

This revival of vanished forms, this attempt to escape the apocalypse of the virtual, is an utopian desire, the last of our utopian desires.” Nada será como antes.

the illusion of the end of that book

can we not imagine that, in history itself, previous states never disappeared, but present themselves again in succession, as it were, taking advantage of the weakness or excessive complexity of the present structures?”

The reabilitation of old frontiers, the old structures, the old elites will never have the same meaning. If, one day, the aristocracy or royalty recover their old position, they will, nonetheless, be <post-modern>.”

Magic Country, Future World, Gothic, Hollywood itself reconstructed 50 years on in Florida, the whole of the past and the future revisited as living simulation. Walt Disney is the true hero of deep-freezing, with his utopian hope of awakening one day in the future, in a better world. But that is where the irony bites: he had not foreseen that reality and history would turn right around. And he, who expected to wake up in the year 2100, might well, following out his own fairytale scenario, awaken in 1730 or the world of the Pharaohs or any one of his primal scenes.”

Communism will have had no historical end; it will have been sold off, knocked down like useless stock.”

The sales used to come after the feast days but now they precede them. It’s the same with our century”

This is like the parable of the Russian cosmonaut forgotten in space, with no one to welcome him, no one to bring him back – the sole particle of Soviet territory ironically overflying a deterritorialized Russia. Whereas on Earth everything has changed, he becomes pratically immortal and continues to circle like the gods, like the stars, like nuclear waste.”

Nostalgia had beauty because it retained within it the presentiment of what has taken place and could take place again. It was as beautiful for never being satisfied, as was utopia for never being achieved.”

the literal manifestness of the end”

We are, then, unable to dream of a past or future state of things. Things are in a state which is literally definitive (…) deprived of its end. Now, the feeling which goes with a definitive state, even a paradisiac one – is melancholic.”

there remains the completely improbable and, no doubt, unverifiable hypothesis of a poetic reversibility of events, more or less the only evidence for which is the existence of the same possibility in language.”

Canetti diz que a vingança é supérflua; torna-se desnecessária devido à inexorável reversibilidade das coisas.”

It isn’t just terrorists who repent. Intellectuals showed them the way, the Sartreans and others having been in the van of repentence from the 50s onwards.”

Arte total = arte mais fraca

If nothing exists now but effects, we are in a state of total illusion (which is also that of poetic language). If the effect is in the cause or the beginning in the end, then the catastrophe is behind us. This reversing of the sign of catastrophe is the exceptional privilege of our age. It liberates us from any future catastrophe and any responsibility in that regard. The end of all anticipatory psychoses, all panic, all remorse! The lost object is behind us. We are free of the Last Judgement.” Lost Judgement

INVERSÃO CONTRA FIM: “Anastrophe versus catastrophe”

Might we not transpose language games on to social and historical phenomena: anagrams, acrostics, spoonerisms, rhyme, strophe and cata-strophe [a estrofe que transtorna]?”

In these times of a retroversion of history, the palindrome,¹ that poetic, rigorous form of palinode,² could serve as a grille de lecture (might it not perhaps be necessary to replace Paul Virilio’s dromology³ with a palindromology?). And the anagram, that detailed process of ravelling, that sort of poetic and non-linear convulsion of language”

¹ Frase idêntica num sentido ou noutro, como a famosa SOCORRAM-ME SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS.

² Re-citação de outro trecho do mesmo autor ou poema (quando muito grande), dentro do próprio poema.

³ A ciência da velocidade. Tão rápido que assa a virilha.

pure materiality of time” “The illusion of our history opens on to the greatly more radical illusion of the world. VdP, fim da exposição inicial sobre o niilismo.

we no longer have the choice of advancing, of persevering in the present destruction, or of retreating – but only of facing up to [reconhecer, aceitar, lidar com] this radical illusion.”

Voltar é impossível. Déjà vu em extinção. E dar um passo dianteiro kantiano ainda mais difícil,

Irreverente realidade do irreal.

Presente terno,

Uma música que não sai do refrão.

That’s what life means, said a Brazilian singer and composer…

GLOSSÁRIO:

fallow: terra deixada em descanso no sistema de cultivo rotativo (também conhecida como “pousio”)

lorry: caminhão-de-lixo

A QUARTA TEORIA POLÍTICA. Ou “Nunca assuma que entendeu Platão” – Alexandr Dugin

A QUARTA TEORIA POLÍTICA. Ou “Nunca assuma que entendeu Platão” – Alexandr Dugin

Observação inicial: a edição encontrável na internet em português precisa urgentemente de um revisor! Eu mesmo ‘melhorei’ muitas e muitas aspas abaixo. Às vezes demarquei minha intervenção com colchetes, às vezes não…

É significativo que o livro Contra o Liberalismo, pelo bem-sucedido intelectual francês Alain de Benoist, que também é publicado em russo pela editora Amphora, possui como subtítulo Em direção à Quarta Teoria Política.”

PRESSUPOSTO MUITO RASO E POBRE: “E se para alguém essa é uma questão de liberdade de escolha, a realização da vontade política, que sempre pode ser dirigida tanto a uma asserção e sua negação, então – para a Rússia – essa é uma questão de vida e morte, a eterna questão de Hamlet. Se a Rússia decidir ‘ser’, então isso significa automaticamente a criação de uma Quarta Teoria Política. Do contrário, para a Rússia resta apenas a opção de ‘não-ser’ e então deixar o palco histórico e mundial, e se dissolver no mundo global, nem criado nem governado por nós.”

Se, nos séculos anteriores, religião, dinastias, Estados, classes e Estados-nações desempenharam um enorme papel na vida de pessoas e sociedades, então, no século XX, a política passou a um reino puramente ideológico, tendo redesenhado o mapa do mundo, de etnias e civilizações de uma nova maneira.”

Todas as ideologias políticas, tendo alcançado o pico de sua distribuição e influência no século XX[,] foram o produto da nova Era Moderna, incorporando o espírito da modernidade, ainda que de diferentes modos e mesmo através de diferentes símbolos.”

A primeira teoria política é o liberalismo. Ele emergiu primeiro, tão cedo quanto o século XVIII[,] e acabou sendo a ideologia mais estável e bem-sucedida, tendo finalmente prevalecido sobre seus rivais nessa batalha histórica.”

…o desejo dos conservadores de liderar uma revolução ao invés de resistir a ela, levando sua sociedade na direção oposta, i.e. Arthur Moeller van den Bruck, Dmitry Merezhkovsky, etc.” Quem foram?

(*) “Arthur Wilhelm Ernst Victor Moeller van den Bruck (23 April 1876 – 30 May 1925) was a German cultural historian, philosopher and writer best known for his controversial 1923 book Das Dritte Reich (The Third Reich), which promoted German nationalism and strongly influenced the Conservative Revolutionary movement and then the Nazi Party, despite his open opposition and numerous criticisms of Adolf Hitler.” <Neocon> da época!

(**) “Merezhkovsky became a 9-time nominee for the Nobel Prize in literature, which he came closest to winning in 1933. However, because he was close to the Nazis, he has been virtually forgotten after World War II.”

Conclusão: a princípio, não nos interessam.

O fascismo emergiu depois das outras grandes teorias políticas e desapareceu antes delas. A aliança da primeira teoria política com a segunda teoria política, bem como os equívocos geopolíticos suicidas de Hitler, o derrubaram no meio do caminho.” E no entanto Hitler não era o fascismo.

DUGIN E SEU ÍMPETO DE ESCREVER UM ROMANCE (B): “Portanto, esse fantasma vampiresco sangrento, tinindo com uma aura de ‘maldade global’, é atraente aos gostos decadentes da pós-modernidade, ainda amedrontando a humanidade em grande medida.”

So far, so Fukuyama… So What?

Ele não era tão dogmático quanto o marxismo, mas não era menos filosófico, gracioso e refinado. Ideologicamente ele se opunha ao marxismo e ao fascismo, não apenas empreendendo uma guerra tecnológica pela sobrevivência, mas também defendendo seu direito de monopolizar sua própria imagem do futuro.” Até aí, nenhuma diferença em relação aos outros dois.

BOLSONARISMO: “…e a ideologia dos ‘direitos humanos’ se torna amplamente aceita, ao menos em teoria e é praticamente compulsória.” E ao menos em teoria é na prática compulsória. Vivas a Dugin ou a seu péssimo tradutor!

governo mundial” “globalismo”

grande narrativa”

identidade…até mesmo de gênero”

O ‘fim da história’ de Fukuyama chega, a economia na forma do mercado capitalista global substitui a política, e estados e nações são dissolvidas no caldeirão da globalização mundial.” “economia como destino”

A necessidade da Quarta Teoria Política deriva dessa avaliação.” Muitíssimo conveniente.

O filósofo francês Alain de Benoist chama isso de ‘la gouvernance’, ou ‘microgerenciamento’.”

Alguns poderiam argüir que os liberais mentem quando falam sobre o ‘fim da ideologia’ (este foi o tema [do] meu debate com o filósofo Aleksandr Zinoviev)” Não, eles realmente acreditam nisso.

Zinoviev: só mais um “russo propagado e ‘amado’ pelo Ocidente por ser contrário à URSS: “…was one of the symbols of the rebirth of philosophical thought in the Soviet Union. After the publication in the West of the screening book Yawning Heights, which brought Zinoviev world fame, in 1978 he was expelled from the country and deprived of Soviet citizenship. He returned to Russia in 1999. [and died in 2006]Yawning books…

ideologia fato existencial

virtualidade”

Ó, fez o dever de casa! leu Baudrillard!

ver a resenha do período soviético como uma versão ‘escatológica’ especial da sociedade tradicional por Mikhail S. Agurskii ou Sergei Kara-MurzaContemporâneos sem muita relevância.

Esse [quarto] ponto de partida é possível (…) porque ele emerge do livre-arbítrio do homem, de seu espírito, ao invés de um processo histórico impessoal.” Eu conto ou vocês contam?

Também leu Nietzsche, mas não sabe dar meio passo além (atrás sabe muitos): “Porém, essa essência é algo completamente novo, previamente desconhecido e apenas deduzido intuitiva e fragmentariamente durante as fases primitivas da história e do conflito ideológicos.”

é impossível determinar onde a Direita e a Esquerda estão localizadas em relação ao pós-liberalismo. Há apenas duas posições: conformidade (o centro) e dissenso (a periferia). Ambas as posições são globais.”

A pedra que os construtores rejeitaram veio a tornar-se pedra angular” (Marcos 12:10) Hahaha! A Bíblia, é sério isso?!

O DESAFIO FANTASMA: O INIMIGO AGORA É TODOS: “A Quarta Teoria Política lida com a nova reencarnação de um velho inimigo. Ela desafia o liberalismo, muito como a segunda e terceira teorias políticas do passado, mas ela o faz sob novas condições.”

Teoricamente, o fim da história poderia ter sido diferente: um ‘Reich planetário’, se os nazistas tivessem vencido, ou o ‘comunismo global’, se os comunistas estivessem certos.” Um filósofo juvenil. Eu poderia ter escrito isso 15 anos atrás, e nem por isso me orgulharia da ‘obra’…

Alexandre Kojève¹ foi um dos primeiros a prev[ê-lo]; suas idéias foram depois reproduzidas por Francis Fukuyama.”

¹ “Although not an orthodox Marxist, Kojève was known as an influential and idiosyncratic interpreter of Hegel, reading him through the lens of both Karl Marx and Martin Heidegger. The well-known end of history thesis advanced the idea that ideological history in a limited sense had ended with the French Revolution and the regime of Napoleon and that there was no longer a need for violent struggle to establish the ‘rational supremacy of the regime of rights and equal recognition’.” Principais obras: Introduction to the Reading of Hegel: Lectures on the Phenomenology of Spirit, Outline of a Phenomenology of Right, Carl Schmitt and Alexandre Kojève Correspondence, ‘Colonialism from a European Perspective’, Essai d’une histoire raisonée de la philosophie païenne, Kant, Le concept, Le temps et le discours.

Por essa razão, a questão da modernidade, e, incidentalmente da modernização, pode ser removida da agenda. Agora a batalha pela pós-modernidade começa.” “A ditadura das idéias é substituída pela ditadura das coisas, senhas de login e códigos de barra.” Muh…

Nós devemos apenas averiguar a localização desses novos pontos vulneráveis no sistema global e decifrar suas senhas de login de modo à hackear seu sistema.” Ele NÃO disse isso!…

Em qualquer caso, primeiro e mais importante, nós devemos entender a pós-modernidade e a nova situação não menos profundamente do que Marx entendeu a estrutura do capitalismo industrial.” Hm, boa sorte…

A segunda e terceira teorias políticas são inaceitáveis como pontos de partida para resistir ao liberalismo” Se você diz…

Perdendo, elas provaram que não pertenciam ao espírito da modernidade, o qual, por sua vez, levou à matrix pós-liberal.” Hahaha

Fazer uma leitura cruzada delas seria muito mais produtivo: ‘Marx através de uma perspectiva positiva da Direita’ ou ‘Evola através de uma perspectiva positiva da Esquerda’.” Você chegou demasiado tarde à moda dos crossovers… Isso já cheira à naftalina.

Essa fascinante iniciativa ‘nacional-bolchevique’, no espírito de Nikolai V. Ustrialov ou Ernst Niekisch, não é suficiente por si mesma.” O sufixo da segunda palavra está errado!

Esse exercício metodológico é útil como um aquecimento antes de começar uma elaboração completa da Quarta Teoria Política.” Sinto lhe dizer, mas este jogo você irá perder…

A Tradição (religião, hierarquia, família) e seus valores foram sobrepujados na aurora da modernidade.” Mesmo? Porque não parece…

Em verdade, todas as três teorias políticas foram concebidas como construções ideológicas artificiais por pessoas que compreenderam, de vários modos, ‘a morte de Deus’ (Friedrich Nietzsche), o ‘desencanto do mundo’ (Max Weber) e o ‘fim do sagrado’.” Aqui o autor se contradiz ferozmente: duas dessas teorias nasceram antes de Deus morrer… A única realmente órfã foi o fascismo.

Em qualquer caso, a era da perseguição à Tradição acabou, ainda que, seguindo a lógica do pós-liberalismo, isso provavelmente levará à criação de uma nova pseudo-religião global, baseada nos restos de cultos sincréticos disparatados, no ecumenismo caótico desenfreado e na ‘tolerância’.”

Agora é seguro instituir como programa político aquilo que foi banido pela modernidade.” Agora é seguro sair de seu quarto, seus papais não estão mais bravos…

Não é por acaso que os heróis da pós-modernidade são ‘aberrações’ e ‘monstros’, ‘travestis’ e ‘degenerados’ – essa é a lei do estilo.” Hahaha

Agora esta não é simplesmente uma metáfora capaz de mobilizar as massas, mas um fato religioso – o fato do Apocalipse.” “Se nós rejeitamos a idéia de progresso inerente à modernidade (que como nós vimos, acabou), então tudo que é antigo ganha valor e credibilidade simplesmente por ser antigo. ‘Antigo’ significa bom e quanto mais antigo – melhor.” É um niilista de capciosa má-fé que mergulha rápido em suas conclusões, com medo de tropeçar pelo caminho.

E[,] finalmente, nós podemos identificar a mais profunda – ontológica! [!] – fundação para a Quarta Teoria Política. Aqui, nós devemos prestar atenção não apenas em teólogos e mitologias, mas também na experiência filosófica reflexiva de um pensador particular que fez uma tentativa única de construir uma ontologia fundamental – o estudo mais resumido, [?] paradoxal, profundo e penetrante do Ser. Eu estou me referindo à (sic)¹ Martin Heidegger.”

¹ Um adolescente deve ter traduzido essa obra!

Uma breve descrição do conceito de Heidegger [breve, e portanto mutilada] é como segue. Na aurora do pensamento filosófico, as pessoas (mais especificamente, os europeus e, ainda mais especificamente, os gregos), [e não qualquer grego – só os filósofos, a nata da nata] levantaram a questão do Ser como ponto focal de seu pensamento. Mas, pela sua tematização, elas se arriscaram a se confundir [?] pelas nuances do relacionamento complicado entre Ser e pensamento, [caberia melhor: ser e aparência; idéia e devir, etc.] entre puro Ser (Seyn) e sua expressão na existência – um ser (Seiende), entre Ser-no-mundo (Dasein – ser-aí) e Ser-em-si (Sein). [não explica as 3 categorias – não explica porque, a seguir, Platão…] Essa falha […falhou – falhou mesmo? Ou simplesmente se deu conta e chegou ao limite possível?] já ocorreu no ensinamento de Heráclito sobre a physis e o logos. [Tampouco explica no que consistiria a falha de Her. nem detalha a natureza e a razão em Her., para não dizer em outros pré-socráticos mais importantes] Logo,” QUE LOGO, QUE NADA! Você não pode resumir 2 milênios de Ontologia em um parágrafo mesquinho. Mas ele procede a esse tipo de “se …isso e aquilo… então forçosamente e inequivocamente …isso…”, infantilmente, ao longo de toda a obra. Vá mais devagar, respire!

O Um Parmenídeo é exatamente a explicitação desse problema dualista inextricável. A via da opinião e a via da Verdade, interdependentes, embora não simetricamente. Isso Dugin passa por alto…

Logo, ela é óbvia na obra de Parmênides¹ e, finalmente, em Platão, que colocou as idéias entre o homem e a existência [difiro – grosso modo, a idéia é “deus”, enquanto o máximo, mas alcançável pelo homem, daí a problemática da palavra, que remete qualquer leitor moderno simplesmente a um Deus onipotente, em 1º lugar… A idéia não está entre, está acima, e a existência tampouco está separada do homem, como este é um contínuo com a própria idéia, que só existe por ele e para ele enquanto ele flui no tempo, a idéia sendo o que existe eternamente nesta passagem do tempo, sempre perdido mas sempre passível de ser recuperado…] e que definiu a verdade como sua correspondência, a teoria referencial do conhecimento, essa falha alcançou sua culminação.”²

¹ A falha é óbvia em Parmênides! Quem teve estatura até hoje para entender Parmênides? Apostaria que não um Dugin. Onde estão os esboços e rascunhos mais longos de onde Dugin tirou esse resumo prensado de desenvolvimentos tão complicados?

² De modo algum. A teoria referencial do conhecimento seria como Aristóteles apreendeu (mal) a filosofia de seu mestre. Em Platão há o Absoluto, deus é a medida de todas as coisas, não se trata de um reflexo, ou melhor, de uma protoforma, cujo reflexo imperfeito, o conhecimento, está relegado a se desenvolver em bases mais baixas e segregadas.

Isso deu origem a uma alienação que eventualmente levou ao ‘pensamento calculista’ (das rechnende Denken) e então ao desenvolvimento da tecnologia.” Se isso está em Heidegger, não foi desenvolvido nas obras que eu li. Mas não se pode culpar Platão por Descartes (‘calculista’) e sucessores…

Pouco a pouco, o homem perdeu de vistas o puro Ser e entrou no caminho do niilismo. A essência da tecnologia (baseada no relacionamento-técnico-com-o-mundo) expressa esse niilismo continuamente cumulativo. Na Nova Era, essa tendência alcança seu pináculo – o desenvolvimento técnico (Gestell) finalmente substitui o Ser e coroa o ‘Nada’. Heidegger odiava amargamente o liberalismo, o considerando uma expressão da ‘fonte calculista’ que reside no coração do ‘niilismo ocidental’.” Ok. Nada tenho a objetar nesta sentença. Porém, até aí ainda podemos imaginar um Heidegger – e um Nietzsche – marxistas…

A pós-modernidade, que Heidegger não viveu para ver, é, em todos os sentidos, o esquecimento último do Ser, é aquela ‘meia-noite’, quando o Nada (niilismo) começa a escorrer de todas as rachaduras.” Heidegger não viveu para ver, mas Nietzsche viu em vida (um dos grandes paradoxos de nosso bem-posicionado filósofo do séc. XIX).

Porém essa filosofia não era desesperançosamente pessimista. Ele acreditava que o próprio Nada é o outro lado do puro Ser, o qual – de modo tão paradoxal! – lembra a humanidade de sua existência.” Sim, basta ler Nie.

Se nós decifrarmos corretamente a lógica [nada aristotélica] por trás do desdobramento do Ser, então a humanidade pensante [Quem é a humanidade pensante? Uma, duas, três pessoas? O governo russo?] poderá salvar a si mesma com máxima rapidez no momento de maior risco.” A paz mundial rapidamente pactuada após a II Guerra por meio da proliferação de armas nucleares não teria sido uma rápida solução num momento de maior risco (holocausto nuclear)? E no entanto como explicar que a pós-modernidade é um fenômeno posterior a esse impasse resolvido? Enfim, o problema é que já pode ter passado muito da “meia-noite”…

Heidegger usa um termo especial, ‘Ereignis’ – o ‘Evento’, para descrever esse retorno súbito do Ser. Ele ocorre exatamente à meia-noite da noite do mundo – no momento mais escuro da história. O próprio Heidegger constantemente vacilava quanto a esse ponto já ter sido alcançado ou – ‘ainda não’. O eterno ‘ainda não’…” Como todos nós, demasiadamente humanos e filósofos.

A filosofia de Heidegger pode provar ser aquele eixo central conectando tudo ao seu redor – das segunda e terceira teorias políticas reinterpretadas ao retorno da teologia e da mitologia.” Um salto súbito, sem dúvida, bem duginiano…

Assim, no coração da Quarta Teoria Política, em seu centro magnético, está a trajetória da Ereignis (o ‘Evento’) iminente, que incorporará o retorno triunfante do Ser no exato momento em que a humanidade o esquece de uma vez por todas a ponto de que seus últimos traços desaparecem.” O advento do EVENTO não é algo hegeliano, ideal, fatídico. Não adianta ser supersticioso e otimista quanto a isso. Marx e Nietzsche não foram. Isso é Cristianismo, i.e., o Deus obsoleto está vivo demais nessa crença da iminência fatal…

Primeiro, o Estado global e o governo mundial estão gradualmente abolindo todos os Estados-nações em geral.” Não existe Estado global ou governo mundial. Hipóstase. O Estado-nação segue soberano. Para alegria do autor, um deles se chama Rússia. Só um bobo-da-côrte em aula de introdução ao pós-modernismo poderia comprar a idéia inversa.

Mais importante é o fato de que a totalidade da história russa é um argumento dialético com o Ocidente e contra a cultura ocidental, a luta pela defesa de nossa própria (muitas vezes apenas intuitivamente compreendida) verdade russa, nossa própria ideia messiânica e nossa própria versão do ‘fim da história’” A existência desse livro em um idioma não-russo é a maior das contradições. Será que a verdade russa não é exatamente a verdade platônica que quem não nasceu para entender Platão se nega (metaforicamente, claro, já que disso não é capaz, não adianta querer) a intuir?

As mentes russas mais brilhantes viram claramente que o Ocidente estava se dirigindo para o abismo.” Me parece que o ser-russo não é exatamente uma nacionalidade

Dugin acertadamente contesta que a Rússia se tornou o paraíso do neoliberalismo nos anos 90.

A atual crise econômica global é apenas o começo. O pior ainda está por vir. A inércia dos processos pós-liberais é tamanha que uma mudança de curso é impossível: para salvar o Ocidente, a ‘tecnologia emancipada’ irrestrita (Oswald Spengler) buscará por meios tecnológicos mais eficientes, porém meramente técnicos.”

a economia globalista e as estruturas da sociedade pós-industrial tornam a noite da humanidade mais e mais negra.” Mas afinal não havíamos chegado à meia-noite, ó poeta?

NOITES BRANCAS: “Ela é tão negra, na verdade, que nós gradualmente esquecemos que está de noite. ‘O que é luz?’ se perguntam as pessoas[,] jamais a tendo visto.” É isso o que acontece com quem não sabe que não sabe Platão, e volta ao início do conto da caverna…

É claro que a Rússia precisa seguir um caminho diferente. O seu próprio. Aqui está a questão e o paradoxo. Escapar da lógica da pós-modernidade em um ‘único país’ não será tão simples.” Será impossível, adolescente.

Nessa situação, o futuro da Rússia depende diretamente de nossos esforços para desenvolver a Quarta Teoria Política.” Claro. A minha idéia. A idéia que eu criei. Fichtiano!

É difícil dizer como o processo de desenvolver essa teoria acabará.”

Uma coisa é clara: não pode ser um esforço individual ou um que seja restrito a um pequeno grupo de pessoas.” Então já começou muitíssimo mal.

O esforço deve ser compartilhado e coletivo. Dessa maneira, os representantes de outras culturas e povos (tanto na Europa como na Ásia) poderão verdadeiramente nos ajudar, já que eles sentem a tensão escatológica do momento presente de um jeito igualmente agudo e estão tão desesperadamente procurando por um caminho para fora do beco sem-saída global.” Dugin comete um erro crasso: distinguir neoliberalismo de Europa. Distinguir Estados Unidos da América de Europa. União indissolúvel.

É importante lutar contra o liberalismo aqui e agora; é importante identificar suas vulnerabilidades; é importante forjar uma visão de mundo alternativa – mas o futuro está em nossas mãos e é aberto ao invés de pré-determinado.” Vejo que me leu ali em cima!

Wallerstein, em vários graus, é um mecanicista, como qualquer marxista, enquanto de Benoist é um organicista e holista, como qualquer (verdadeiro) conservador.” Palavras ao vento significando nada.

O último item ao qual eu gostaria de chamar atenção em relação às ideias de Alain de Benoist e sua relevância é a compreensão do conceito do ‘Quarto Nomos da Terra’ de Carl Schmitt – isto é, o relacionamento entre ciência política e ‘teologia política’ com geopolítica e o novo modelo da organização política do espaço.” Carl Schmitt, nazista (terceira teoria política). Conservador. E liberal. Todo liberal é conservador. Todo conservador é liberal ou produto a longo prazo do liberalismo (fascismo).

Eu realmente não compreendo por que certas pessoas, quando confrontadas com o conceito de ‘Quarta Teoria Política’, não correm imediatamente para abrir uma garrafa de champagne e não começam a dançar e se regozijar, celebrando a revelação de um novo horizonte.” Não era pra rir? Tem certeza? Isso já está mais chulo que Bukowski.

Em certo sentido, o liberalismo incorpora tudo que estava no passado. A ‘Quarta Teoria Política’ é o nome para uma descoberta, para um novo começo.” “Conservador”! Aquele que não sabe sequer nomear sua doutrina deveria saber quanto vale sua doutrina.

Os comunistas ‘não passaram’ também. Agora, o que resta é que os liberais ‘não passem’ e ‘eles não passarão!’ (No pasarán!).” Mas que porcaria eu estou lendo?

Ainda de menos (sic) úteis são as sombras escuras do Terceiro Reich, seus ‘cadáveres independentes’,(*) inspirando apenas a brutal juventude punk¹ e os sonhos perturbadores e pervertidos de adeptos do sadomasoquismo.

(*) Nota da Tradução: O autor usa a palavra nezalezhnye em referência à revolução laranja na Ucrânia e às simpatias nazistas entre certos ucranianos do oeste.” Sim, os ucranianos são uma bosta, mas era para eles serem russos, não era? Onde está o pan-eslavismo? Curiosamente, o Donbass está mais a leste

¹ Não estudou movimentos sociais. Confunde punk com oi!. Isso para um autor de mentalidade púbere é tanto mais imperdoável…

Conseqüentemente, nós [nós quem?] sugerimos avançar de modo a sairmos da fase niilista da ‘Quarta Teoria Política’ [então a própria QTP tem sua fase adolescente? onde a noite é mais e mais escura, etc.?] em direção à positividade.” De qual tipo? Coachismo quântico ou o bom e velho Comte?

O sujeito histórico da segunda teoria política é a classe. A estrutura de classes da sociedade e a contradição entre a classe exploradora e a classe explorada são o núcleo da visão da história dramática dos comunistas. História é luta de classes. A política é sua expressão. O proletariado é um sujeito histórico dialético, que é chamado a se libertar da dominação da burguesia e a construir uma sociedade sobre novas fundações. Um indivíduo singular é concebido aqui como parte de uma totalidade de classe e adquire existência social apenas no processo de aquisição de consciência de classe.” Finalmente um bom parágrafo!

No fascismo, tudo é baseado na versão direitista do hegelianismo, já que o próprio Hegel considerava o Estado Prussiano como o ápice do desenvolvimento histórico no qual o espírito subjetivo era aperfeiçoado. Giovanni Gentile,¹ um proponente do hegelianismo, aplicou esse conceito à Itália fascista.”

¹ “Described by himself and by Benito Mussolini as the ‘philosopher of Fascism’, he was influential in providing an intellectual foundation for Italian Fascism, and ghostwrote part of The Doctrine of Fascism (1932) with Mussolini.”

raça + nação = ração

Coloquemos tudo aquilo que sabemos sobre o sujeito histórico fora da estrutura das ideologias clássicas, realizando o método husserliano de epoché e tentemos definir empiricamente aquele ‘mundo vital’, que abrirá (sic) diante de nós”

Se nós considerarmos a história política no estilo da ‘Escola dos Annales’ (método de Fernand de Braudel), então nós temos a chance de descobrir uma imagem um tanto polifônica, expandindo nosso entendimento do assunto.” Vamos reinterpretar César com as fontes que temos agora?

…na área das hipóteses exóticas de Deleuze e Guattari sobre o rizoma, um ‘corpo sem órgãos’, ‘micropolítica’, etc.[,] ou sobre o horizonte da proto-história com Baudrillard e Derrida (texto, desconstrução, ‘différance’, etc.). Eles nos oferecem novas (dessa vez, totalmente não-conservadoras) capacidades. Portanto,”

Se o sujeito é Dasein, então a ‘Quarta Teoria Política’ constituiria uma estrutura ontológica fundamental que é desenvolvida sobre a base da antropologia existencial.” Se…então. Onde eu enfio o nome que invento no meio. Se Mario é Zelda, então eu sou Pikachu.

Naturalmente, este é apenas um esboço apressado das áreas de interesse na nova ciência política.” Naturalmente você deveria melhorar seu livro mais uns 20 anos para que ele ao menos merecesse se acomodar em prateleiras de livrarias.

começando a partir de certo ponto, o desenvolvimento da ‘Quarta Teoria Política’ ganhará características razoavelmente científicas e racionais, as quais, por agora, mal são discerníveis por trás da energia de intuições inovadoras e da super tarefa (sic) revolucionária [conservadora!] de destruir as velhas ideologias.” Espera, você não era o inimigo da técnica e da ideologia do progresso?

o antissemitismo de Hitler e a doutrina de que os eslavos são ‘sub-humanos’ e devem ser colonizados é o que levou a Alemanha a entrar em guerra contra a URSS (pelo que nós pagamos com milhões de vidas), bem como ao próprio fato de que os próprios alemães perderam sua liberdade política e o direito de participar na história política por um longo tempo (senão para sempre) (agora resta para elas apenas a economia e, na melhor das hipóteses, a ecologia).” A pura verdade. Mas não creio que o alemão de hoje se ressinta disso.

O racismo hitlerista, porém, é apenas um tipo de racismo – esse tipo de racismo é o mais óbvio, direto, biológico e, portanto, o mais repulsivo. Há outras formas de racismo – racismo cultural (afirmar que há culturas superiores e inferiores), civilizacional (dividir os povos entre aqueles civilizados e os insuficientemente civilizados), tecnológico (ver o desenvolvimento tecnológico como o principal critério de valor societário), social (afirmar, no espírito da doutrina protestante de predestinação, que os ricos são melhores e superiores quando comparados com os pobres), racismo econômico (em cuja base toda a humanidade é hierarquizada segundo regiões de bem-estar material) e racismo evolucionário (para o qual é axiomático que a sociedade humana é o resultado de um desenvolvimento biológico, na qual (sic) os processos básicos de evolução das espécies – sobrevivência dos mais aptos, seleção natural, etc. – continuam hoje).” Alargou demais o escopo. Não existe racismo econômico quando quem tem capital é muçulmano, etc. Não ter dinheiro não se liga à raça (fora da causalidade racista que torna a raça discriminada pobre). Racismo cultural/civilizacional ou tecnológico internacional é xenofobia. Quando há discriminação tecnológica entre pares de uma mesma comunidade, trata-se de luta de classes, nada que ver com racismo. Já o racismo ‘evolucionário’ descrito acima foi um mélange de luta de classes com racismo ortodoxo (exatamente o hitlerismo). Sequer precisou citar cizânias religiosas, porque todas elas podem ser explicadas com base em xenofobia, racismo clássico e luta de classes.

Assim, o próprio politicamente correto e suas normas são transformados em uma disciplina totalitária de exclusões políticas, puramente racistas.” Papo de racista envergonhado.

Até mesmo africanos sofrem acusações de fascismo.” Ora, ora, mas é racista alegar que só o homem branco é capaz de chafurdar na lama e propagar as maiores burrices! Quer-se dizer que o negro não pode aprender um método com um branco, no fundo! E reproduzi-lo a posteriori no próprio país, o que sem dúvida muitos tiranos africanos fizeram.

Os tipos mais novos de racismo são o glamour, a moda e seguir as últimas tendências informacionais.” Isso se chama capitalismo!

A asserção de que o presente é melhor e mais gratificante do que o passado e a garantia de que o futuro será ainda melhor do que o presente representa a discriminação do passado e do presente, a humilhação daqueles que vivem no passado e um insulto à honra e dignidade das prévias gerações, e um certo tipo de violação dos ‘direitos dos mortos’.” Para um combatente anti-direitos humanos, é bem chiliquento! Racismo contra o tempo!?! Chega!!!!…

Nós não temos preconceito quanto aos mortos, ou não viveríamos em torno de Deus.

A globalização então não é nada mais que um modelo de etnocentrismo euro-ocidental, ou melhor, anglo-saxão, globalmente distribuído, o qual é a manifestação mais pura da ideologia racista.” Uau, demorou 74 páginas!

Como uma de suas características essenciais, a ‘Quarta Teoria Política’ rejeita todas as formas e variedades de racismo e todas as formas de hierarquização normativa de sociedades com base em fundamentos étnicos, religiosos, sociais, tecnológicos, econômicos ou culturais.” Isso é que é uma aldeia global!

Esse tipo de tentativa é não[-]científico e anti-humano.” ENTÃO é um direito humano buscar progressivamente o seu fim? LOGO, pare de me confundir, seu canalha! Sempre lembrando que é o não-superior povo russo que tem a missão de liderar a nova humanidade rumo à redenção! O russo não é melhor nem pior, ele é diferente… Ponto de vista glamouroso e na moda.

se o antirracismo diretamente atinge a ideologia do nacional-socialismo (i.e., a terceira teoria política), então ele também indiretamente alcança o comunismo, com seu ódio de classeÉ uma big mula mesmo… Seria o liberalóide um racista quando chama o comunista de comedor de criancinhas? Anti-pedofilia é racismo também (a raça das crianças!)??!?

Sem o racismo, o nacional-socialismo não é mais nacional-socialismo – seja teórica ou praticamente – ele é neutralizado e descontaminado. Nós podemos agora proceder sem medo de objetivamente analisá-lo em busca daquelas idéias que podem ser integradas na ‘Quarta Teoria Política’.” Entendi. Sua salvaguarda para ser homofóbico e misógino (que, obviamente, não são racismos – o estranho é até mesmo Dugin concordar, depois de ver racismo até em objetos inanimados transparentes)!

Primeiro e mais importante, as idéias comunistas do materialismo histórico e a noção do progresso unidirecional são inaplicáveis a nossos propósitos.” 1) Explique materialismo histórico; 2) Onde e quando progresso unidirecional é aplicado por autores marxistas?

O reducionismo materialista e o determinismo econômico compreendem o aspecto mais repulsivo do marxismo.” Quando o que mais repugna numa doutrina é o que nela não existe, contra o que ela mesma luta, já se sabe o que ser, fazer e seguir: tal doutrina.

Na prática, ele se expressou pela destruição da herança espiritual e religiosa daqueles países e sociedades nos quais o marxismo venceu historicamente.” Até hoje um total de zero países. O país que mais destruiu sua própria herança teológico-espiritual foram os Estados Unidos da América. Os anglo-saxões, como você reconheceu mais acima!

Um desprezo arrogante pelo passado…” Como em sua tese da meia-noite e da Nova Era Pluriversal!

…e a idéia de classe como o único sujeito histórico” – no capitalismo!

A crítica potencial do marxismo é extremamente útil e aplicável.” Principalmente para a Casa Branca. Ou dizer isso é racismo?

O marxismo que podemos aceitar é o marxismo sociológico-mítico.” O marxismo existente na sua própria cabeça de charlatão.

A primeira e mais proeminente contradição é a previsão não cumprida de Marx sobre o tipo de sociedades que são as mais aptas para as revoluções socialistas. Ele estava confiante de que essas ocorreriam nos países industrializados europeus com elevado nível de manufatura e um alto percentual de proletariado urbano.” Não leu Marx. Marx afirmou que a Inglaterra reunia as condições para a revolução socialista em uma das infinitas passagens de sua obra. Quantas frases contraditórias e picadas eu já não contrapus, colocando Dugin contra Dugin, e vencendo-o, em exíguas 83 páginas de letra grande?

Tais revoluções eram excluídas de ocorrer em países agrários e países com o modo asiático de produção devido a sua falta de desenvolvimento.” Falso. O modo asiático de produção foi reconhecido como ‘ainda desconhecido pelo Ocidente’ e ‘inclassificável até o presente momento’ por Marx e seus sucedâneos. Marx avaliava socraticamente a epistemologia revolucionária: eu sei que nada sei, sei que nos faltam dados. A humildade do sábio – o antípoda de Dugin.

No século XX, tudo ocorreu exatamente ao contrário.” O axioma dourado de todo liberal ao “refutar” o socialismo.

o proletariado se dissolveu na classe média e desapareceu dentro da sociedade de consumo contrariamente às expectativas e projeções.” Da Internacional Comunista, que pensava impossível uma revolução meramente nacional se contrapor ao mundo inteiro. Portanto, quem nutria falsas expectativas e projeções eram os dirigentes soviéticos encastelados em seu Capitalismo de Estado sempre na defensiva num cenário de uma pré-Guerra Nuclear.

…a obra de Alain de Benoist Contra o Liberalismo: Em Direção à Quarta Teoria Política, à qual eu continuo me referindo constantemente e conscientemente em minha explicação.” Seu livro é um mero apenso ao do seu mestre.

A neurose e os medos localizados no núcleo patogênico da filosofia liberal são vistos claramente em A Sociedade Aberta e seus Inimigos, uma obra pelo clássico do neoliberalismo, Karl Popper. Ele comparou o fascismo e o comunismo precisamente com base no fato de que ambas as ideologias integram o indivíduo em uma comunidade supraindividual, em um todo, em uma totalidade, o que Popper imediatamente qualificou como ‘totalitarismo’.” Nada que feda mais a big tech!

Em qualquer caso, a ‘Quarta Teoria Política’ pode interpretar as fobias de Popper (que o levaram, e a seus seguidores, a conclusões anedóticas – bastantes reveladoras são suas críticas patéticas a Hegel no espírito de relações públicas negativas e as acusações de fascismo dirigidas a Platão e Aristóteles!) a seu favor.” Popper é de fato um grande doente.

A ‘Quarta Teoria Política’ deveria ser a teoria da liberdade absoluta, mas não como no marxismo, na qual ela coincide com necessidade absoluta (essa correlação nega a liberdade em sua própria essência).” Como ‘nega’? Liberdade absoluta e necessidade absoluta são sinônimas.

Tendo deixado os limites da individualidade, o homem pode ser esmagado pelos elementos da vida, pelo caos perigoso. Ele pode querer estabelecer ordem. E isso está inteiramente em seu direito – o direito de um grande homem (‘homo maximus’) – um homem real de Ser e Tempo.” Um facho puro e simples.

É claro, na maioria das vezes, o homem tende para a existência ‘inautêntica’ do Dasein, tentando se esquivar da questão, para sucumbir à fofoca (Gerede) e à auto-zombaria. O Dasein liberado pode não escolher o caminho para o Ser, pode se ocultar em um esconderijo, pode, novamente, desarrumar o mundo com suas alucinações e medos, suas preocupações e intenções. Escolher o Dasein pode corromper a própria ‘Quarta Teoria Política’, transformando-a em uma auto-paródia.” Portanto…

Este é um risco, mas Ser é um risco, também.” “Porém, apenas o multiplicador de liberdade fará da escolha do Ser autêntico uma realidade – apenas então as apostas serão verdadeiramente grandes, quando o perigo for infinito.” Melhor deixar isso com o capitalismo; ele está se saindo muito bem destruindo a Terra e tornando nossa extinção cem por cento certa, virtual e infinitamente iminente. Como jovens e brutais punks!

a ‘Quarta Teoria Política’ não deve se apressar de modo a se tornar um conjunto de axiomas básicos. Talvez seja mais importante deixar algumas coisas por dizer, encontradas em expectativas e insinuações, em alegações e premonições.” Em mil anos você volta…

enraizado na visão de mundo científica, societária, política e social das ciências humanas e naturais dos séculos XVIII e XIX, quando a idéia de progresso, desenvolvimento e crescimento foi tomada como um ‘axioma’ que não estava sujeito à dúvida.”

A liberal americana Ayn Rand (Greenspan foi um de seus maiores admiradores) criou toda uma filosofia (‘Objetivismo’) baseada na seguinte ideia brusca: se alguém for rico, então ele é bom. Ela alcançou os limites da idéia weberiana sobre a origem do capitalismo na ética protestante e disse que o <rico> é sempre e necessariamente o <bom>” “Pessoas como Greenspan e o atual presidente da Reserva Federal Americana, Bernanke, são ‘objetivistas’ – isto é, aqueles que interpretam a modernização, o progresso, o crescimento econômico e o desenvolvimento seguindo a veia liberal.”

Nietzsche era um evolucionista e acreditava que, com base na lógica do desenvolvimento das espécies, o homem seria substituído pelo Super-Homem” Idiota.

O cientista americano Gregory Bateson, um teórico da etnossociologia, cibernética e ecologia, psicanalista e lingüista, descreveu o processo monotônico em seu livro Mente e Natureza.” Por que não cita apenas Bateson? Qual meu interesse em saber sua profissão, formação ou nacionalidade?

Bateson concluiu que quando esse processo ocorre na natureza ele imediatamente destrói a espécie; se estivermos falando de um aparato artificial, ele quebra (explode, entra em colapso)” “Resolver o problema dos processos monotônicos foi o principal objetivo que surgiu no desenvolvimento dos motores a vapor. Acontece que a sutileza mais importante nos motores a vapor é o feedback de retransmissão. Quando o processo alcança velocidade de cruzeiro, é necessário reiniciar o abastecimento de combustível, senão o processo monotônico tem início, tudo começa a ressonar e a velocidade do motor se eleva causando sua explosão. Foi precisamente essa solução de evitar o processo monotônico na mecânica que foi o principal problema teórico, matemático, físico e de engenharia durante a primeira fase da industrialização.”

DIVERGÊNCIAS QUANTO À CLASSIFICAÇÃO <SOCIÓLOGO>: “Émile Durkheim, Pitirim Sorokin e Georges Gurvitch,¹ os maiores sociólogos do século XX, os classicistas do pensamento sociológico, [?] afirmavam que o progresso social não existe, em contraste aos sociólogos do século XIX, como Auguste Comte ou Herbert Spencer.” O único sociólogo do séc. XIX foi Marx. Os outros estão muito abaixo da crítica, ainda que em si ‘sociólogo’ nem seja uma denominação elogiosa.

¹ Nunca os li. Sorokin: tentar Sociological Theories of Today (1966). Gurvitch: arriscar The Social Frameworks of Knowledge (1972).

Em relação a estudos culturais e filosofia, Nikolai Danilevsky, Oswald Spengler, Carl Schmitt, Ernst Jünger, Martin Heidegger e Arnold Toynbee demonstraram que todos

os processos na história da filosofia e na história da cultura são fenômenos cíclicos.”

Logo que afirmemos que a cultura americana ou russa é melhor do que a dos chukchi ou dos habitantes do norte do Cáucaso nós agimos como racistas.”

No fim, mesmo Nietzsche incorporou sua idéia da vontade de poder no conceito de eterno retorno.” Uau, como você é esperto, Dugin Jones!

O liberalismo é uma ideologia igualmente ultrapassada, cruel e misantrópica como as outras duas.” Falsas simetrias tampouco são signos de qualquer “avanço”, mesmo o avanço do puro anel…

Inevitavelmente, todas as 3 teorias foram baseadas na filosofia de Hegel. Depois de Hegel, o significado da história tornou-se o fato de que o Espírito Absoluto apartou-se de si mesmo, enfatizando-se na substância, a qual se externalizou na história, dialeticamente, até se transformar na sociedade iluminada, na monarquia esclarecida.” Carroça na frente dos bois. Quem veio primeiro, Luís XIV ou Georg Wilhelm Friedrich?

Na estrutura do nacional-socialismo, o hegelianismo foi externalizado no conceito do Reich Final” “A Quarta Teoria Política descarta completamente a ideia de irreversibilidade da história.” Defina irreversibilidade.

UM GRANDE NADA: “Nós podemos definir muitos pré-conceitos com relação à reversibilidade do tempo e Dasein/Traiectum, por isso podemos definir vários conceitos políticos do tempo e cada um deles pode ser conectado em um atual projeto político, de acordo com os princípios da Quarta Teoria Política.”

Husserl propôs estudar o tempo com o exemplo da música. A consciência de ouvir uma peça musical não é baseada na estrita identificação das notas soando em um momento concreto e discreto. Ouvir música é algo diferente de ouvir uma nota que soa agora, no presente. A consciência da música é acessada relembrando as notas passadas também, que estão se dissolvendo pouco a pouco no nada, mas sua ressonância, o eco, continua na consciência e dá à frase musical o senso estético.” “Clio e Polímnia são irmãs. Essa lembrança é necessária para dar ao presente o sentido. A anamnese de Platão tinha a mesma função.”

Isso é o novum – incompreensão espontânea do que está acontecendo.”

Esse curto-circuito faz com que todo tipo de dualidades surjam – as lógicas e as temporais. A necessidade de parar esse trauma é manifesto na criação do tempo, a articulação dos três momentos do tempo. O tempo é necessário para ocultar o presente, que é a experiência traumática da autorreferência da consciência pura. A intencionalidade e os juízos lógicos estão ambos enraizados nessa evasão da consciência em relação à dor do vazio presente no qual a consciência se apresenta a si mesma.” “A tensão é imediatamente aliviada pela expansão em todos os tipos imagináveis de dualidades que constituem as texturas dos processos contínuos.” “A consciência constitui o tempo correndo do insuportável encontro consigo. Mas esse encontro é inevitável, então o presente e sua alta precisão de percepção existencial nascem.”

Se uma mente adormece a realidade carece do gosto da existência presente. Ela está completamente imersa no contínuo e ininterrupto sonho.” Sim, e daí? Por que isso implica num livro de teoria política? Isso é curso didático de ontologia existencialista!

O objeto não tem futuro. A terra, os animais, as pedras, as máquinas, não têm futuro.” “Sem a consciência autorreferente não pode haver tempo.” “O tempo é a identidade final do homem.” “Se falta o futuro, o sujeito não terá o espaço de se evadir, de fugir do encontro impossível consigo mesmo, do curto-circuito mencionado acima. O momento congelado do presente sem o futuro é o da morte.” “A crônica dessa fuga é o sentido da história.” “O futuro faz sentido. Ele possui sentido mesmo antes de se tornar presente.” “se ele não acontecer, ele também é algo carregado com sentido, e auxílio para explicar o que se passa.” “A profecia não-realizada possui exatamente a mesma importância que a realizada.” “A história não é apenas a memória do passado. Ela também é a explicação do presente e a experiência do futuro. Quando nós compreendemos bem a história e sua lógica, nós podemos facilmente adivinhar o que seguirá, o que vai acontecer, que nota [musical] será a próxima.” “O poder do trauma afasta a atenção e o mundo vital até a periferia, que se tornou o círculo-tempo com o futuro se tornando passado, e daí em diante eternamente.” “Há o tempo tomado como a espera perpétua de algo por vir. É o tempo messiânico quiliástico. [milenarista]

As histórias de diferentes sociedades são distintas. Exatamente como distintas são as peças, os músicos, os compositores, os instrumentos, o gênero musical e os tipos de notações. É por isso que a humanidade como um todo não pode ter um futuro. Ela não tem futuro. O futuro da humanidade é bastante desprovido de sentido porque carece completamente do valor semântico, do sentido.” Também não existe ‘povo russo’ algum.

O fato de que cada povo, cada cultura, cada sociedade possui sua própria história transforma o tempo em um fenômeno local. Cada sociedade possui sua própria temporalidade. Todos os momentos dela são diferentes – passado, presente e futuro.”

É duvidoso que uma sociedade seja capaz de compreender outra sociedade no mesmo nível em que ela é compreendida por seus próprios membros. Tal possibilidade pressupõe a existência da meta-sociedade, a sociedade ‘Deus’, que poderia operar com as máximas profundezas da consciência da mesma maneira que a consciência opera com a atenção, com a noesis, com a intencionalidade, com a lógica e o tempo, e finalmente com o mundo. Obviamente, a sociedade ocidental é particularmente marcada por tal abordagem etnocêntrica e pretensão universalista enraizadas no passado racista e colonialista. Mas no século XX foi certamente provado que isso é completamente infundado e falso. Os estruturalistas, os sociólogos, os antropólogos culturais, os pós-modernistas, os fenomenologistas, os lingüistas, os existencialistas e daí em diante ofertaram argumentos convincentes demonstrando a natureza interior de tal atitude enraizada na vontade de poder e na imposição paranóica de sua própria identidade sobre a do outro. É a doença chamada racismo ocidental.”

O passado, o presente e o futuro das sociedades históricas não podem ser expostos por qualquer meta-cultura: elas jazem fundo demais e são defendidas dos olhos estrangeiros pelo poder destrutivo do momento autorreferencial, pela coragem da máxima tensão.” “O fim da história é o encerramento lógico do universalismo. O fim da história é a abolição do futuro. A história prossegue e alcança seu estado terminal. Não há mais espaço para continuar. Então com o futuro toda a estrutura do tempo é abolida – não apenas o futuro, mas também o passado e o presente. Como isso pode ser possível? Nós poderíamos compará-lo com o toque simultâneo de todas as notas, sons e melodias existentes, o que nos dará cacofonia, bater e ranger de dentes. Ao mesmo tempo, provocará silêncio absoluto, surdez e acidez.” “o curto-circuito crescerá exponencialmente sem possibilidade de ser dissipado.”

De modo a prevenir a ignição e o golpe potencializado pelo encerramento da perspectiva temporal e lógica do alívio, o mundo global tentará aprisionar a consciência nas redes e na virtualidade, na qual ela poderia fugir da pressão interna

do autoencontro sem problemas. Se tiver sucesso, o novo mundo do reino das máquinas será criado.” Nada garante essa tão fetichizada autonomia e prevalência da Técnica. Parece o relato de uma outra cultura sobre o Ocidente, mas essa é a perspectiva ocidental sobre o próprio declínio.

Ao invés de fogo nós teremos eletricidade. Algumas pessoas acreditam que Fukuyama já é um robô.” Fukuyama é menos que um robô: irrelevante. É como um canal de notícias: não teve, não tem e não terá qualquer papel.

O futuro comum não é futuro. A globalidade cancela o tempo. A globalidade cancela a subjetividade transcendental de Husserl ou o Dasein de Heidegger. Não há mais tempo, nem ser.” Não havendo diferenças de tempo entre os seres, não há Ser.

O tempo durará e o mundo como a experiência do presenciamento real será apoiado pela estrutura da subjetividade profunda.”

a formalização no Estado nacional reflete correta e exaustivamente a estrutura do sujeito transcendental como criador de história? Será o tempo histórico futuro necessariamente nacional (como na modernidade), ou ele encontrará novos caminhos? Ou talvez ele retorne às formas pré-modernas?” Só se pode concordar com a sentença duginiana de que “o tempo é reversível” se com isso ele quer dizer coisas como: Hobbes é reversívil.

As civilizações são comunidades culturais e religiosas – e não nacionais. Nós poderíamos imaginar o passo para trás – na direção pré-nacional (integração islâmica); o passo para frente – na direção pós-nacional (União Europeia ou União Eurasiática)” Já acreditei que UE significasse algo distinto ou paralelo a “Estado-nação”; hoje, não mais. O –asiática de União Eurasiática tem incomensuravelmente mais peso que o Eur-.

…ou poderíamos tolerar a civilização na forma do Estado Nacional (como com a Índia, China ou Turquia).” Errado pensar que a China é um Estado como todo outro Estado moderno, ou que sempre será. Nivelar a situação do imenso país do hinduísmo e um território europeu “alienígena” como o turco é outra temeridade ou desonestidade intelectual. Tanto quanto estereotipar o homem russo e chamar esse tratado de neofascista, vendo que não é, mas também vendo que nada tem de tratado político.

Quando alguém está vivo ele pode mudar não apenas o futuro, mas também o passado. O gesto ou movimento significativo realizado no presente acrescentará novo sentido ao passado. Apenas após uma morte resoluta o passado de alguém se torna propriedade de outro. (…) Assim a história é música e obra da Musa.”

Diferença não significa automaticamente choque e conflito. A história conhece a guerra. A história também conhece a paz. Guerra e paz existiram sempre. Guerra e paz sempre existirão. Eles servem para reviver a tensão, o estresse do presente. Elas liberam e subjugam o horror e a morte.”

A segunda opção é a globalização. Ela cancela o futuro. Ela demanda a chegada do pós-humano.” Blá-blá-blá… Sabemos que isso não existe. Mesmo o supra-homem é demasiadamente humano perto do “pós-humano literal” como o Ocidente necrosado o quereria imaginar.

Ao invés do tempo, seus duplos aparecem. Os duplos do passado, presente e futuro.” O verdadeiro inverno nuclear.

O bloqueio do sujeito transcendental lhe permite mudar o passado do mesmo modo que se coloca um vídeo alternativo no tocador. Uma versão alternativa da sociedade poderia ser carregada como prequela.”

Era uma vez eu e meu duplo. Bebemos e vimos quatro de nós.

NÃO FUGIU DA LUTA DE CLASSES: “Lidar com o presente é um pouco mais complicado e sofisticado. Para removê-lo, nós devemos não apenas bloquear a subjetividade transcendental, nós devemos erradicá-la. [irreversível?] Isso presume a transição do humano ao pós-humano.”

Vamos assumir que a multipolaridade desapareceu, a história terminou e o projeto da globalização tornou-se uma realidade. Como será organizado o exorcismo final da subjetividade transcendental? Como será implementada ‘a decisão final’ sobre a abolição de Dasein? Antes de tudo, enquanto a sociedade e o homem estiverem presentes, eles devem tomar essa decisão em relação a si mesmos. É impossível fazer apelo a um outro alguém o qual poderia ser culpado por isso ou elogiado. A referência ao outro é aceitável somente quando nós temos o mesmo. Se nós estamos perdendo qualquer identidade, nós não iremos mais ter a alteridade. Então o fim da história é feito por nós e sobre nós mesmos e ninguém mais.”

Assim, com a figura do outro sendo excluída resta explicar como o homem pode realizar o último gesto de autodissolução e como ele pode transferir as iniciativas de existência para o mundo pós-humano, que desaparecerão imediatamente após o último homem – não haverá mais testemunhas.” Só se a existência for um erro. E até onde sabemos, via lógica da essência da existência, Schopenhauer estava errado. O otimismo supremo do pessimismo filosófico é que a “realidade vence”, i.e., o último homem é sempre passageiro.

A globalização e o fim da história não podem ser reduzidos à vontade de alguém que teria sido diferente daquele (sic) que é a fonte do tempo. Pelo menos nos limites de (sic) filosofia imanente.” A tradução nunca ajuda!

nas profundezas da subjetividade transcendental, há outra camada que Husserl não cavou. Husserl estava convicto de que aquela descoberta feita por ele era a última. (…) Tinha [de] haver outra dimensão (…)

Nós podemos designá-la como o Sujeito Radical. Se a subjetividade transcendental de Husserl constitui a realidade através da experiência da manifestação autorreferencial, o Sujeito Radical deve ser encontrado não no caminho para fora, mas sim no caminho para dentro.

Ele se mostra apenas no momento da máxima catástrofe histórica, na drástica experiência do curto-circuito que dura por um momento mais longo e mais poderoso do que é possível suportar.”

Para ele, o tempo – em todas as formas e configurações – não é nada mais do que uma armadilha, o truque, o artificial, atrasando a real decisão. Para o Sujeito Radical[,] não somente a virtualidade e a rede, mas a [própria] realidade já é a prisão, o campo de concentração, o sofrimento, a tortura. O levo (sic) cochilo da história é algo contrário à condição na qual ele poderia ser, completar a si mesmo, se tornar.”

O Sujeito Radical é incompatível como todos os tipos de tempo. Ele veementemente demanda o anti-tempo, baseado no fogo exaltado da eternidade transfigurada na luz radical. Quando todo mundo se foi, restarão somente aqueles que não puderam ir.” “em essência nós simplesmente lidamos com uma versão atualizada e continuada do universalismo ocidental que foi transmitido desde o Império Romano, ao cristianismo medieval, à modernidade com o Iluminismo e [à] colonização, até o atual pós-modernismo e ultra-individualismo.”

A duradoura aliança entre os EUA e a Arábia Saudita representa o exemplo perfeito desse realismo na política externa na prática.”

A economia política chinesa está tentando reestabelecer sua independência da hegemonia global dos EUA e pode tornar-se o principal fator de competição econômica. Rússia, Irã, Venezuela e alguns outros países relativamente independentes que controlam grandes reservas dos recursos naturais remanescentes do mundo colocam um limite sobre a influência econômica americana. A economia da União Européia e o potencial econômico japonês representam dois possíveis pólos de competição econômica para os EUA dentro do esquema econômico-estratégico do Ocidente.” Pode esquecer!

Os neocons proclamando o Novo Século Americano estão otimistas em relação ao futuro Império Americano, porém no caso deles é óbvio que eles têm uma clara, se não necessariamente realista, visão de um futuro domínio americano. Nesse caso a ordem mundial será uma Ordem Imperial Americana baseada na geopolítica unipolar. Pelo menos teoricamente ela tem um ponto redentor: é clara e honesta sobre seus objetivos e intenções.”

Mais nebulosa ainda é a visão extrema de governança global prevista pelos promotores da globalização acelerada. Parece ser possível para efetivamente derrubar a ordem existente dos Estados-nações soberanos, mas em muitos casos isso somente irá abrir a porta para conflitos mais arcaicos, locais, de forças religiosas ou étnicas.”

1. Aqueles Estados que tentam adaptar suas sociedades aos padrões ocidentais e manter relações amigáveis com o Ocidente e os EUA, mas tentam evitar a dessoberanização direta e total; incluindo Índia, Turquia, Brasil e até certo ponto Rússia e Cazaquistão;

2. Aqueles Estados que estão prontos para cooperar com os EUA, mas sob a condição de não-interferência em seus negócios domésticos, como Arábia Saudita e Paquistão;

3. Aqueles Estados que, enquanto cooperam com os EUA, estritamente observam a particularidade de suas sociedades pela filtragem permanente do que é compatível na cultura ocidental com suas culturas domésticas e o que não é, e, ao mesmo tempo, tentando usar os dividendos recebidos por essa cooperação para fortalecer sua independência nacional, como a China e, às vezes, Rússia; (A Rússia é secundária nessa nova geopolítica, pois a China tem maiores condições de ser estritamente deste terceiro grupo.)

4. Aqueles Estados que tentam se opor aos EUA diretamente, rejeitando os valores ocidentais, a unipolaridade e hegemonia ocidental e americana, incluindo Irã, Venezuela [meu máximo respeito] e Coréia do Norte.”

Suas posições podem ser definidas como reativas. Essa estratégia de oposição reativa, variando da rejeição à adaptação, algumas vezes é efetiva, outras não.”

o sistema vestfaliano de Estado soberano”

Outro desses projetos pode ser definido como o plano neo-socialista transnacional representado na esquerda sul-americana e pessoalmente por Hugo Chávez. Este é uma nova edição da crítica marxista do capitalismo, fortalecida pela emoção nacionalista e, em alguns casos, como com os zapatistas e na Bolívia, por sentimentos étnicos ou críticas ecológicas ambientalistas. Alguns regimes árabes, como até há pouco tempo a Jamahiriya árabe líbia sob Qaddafi, podem ser consideradas na mesma linha. (…) A transição liderada pelos EUA e pelo Ocidente é vista por esse grupo como uma encarnação do imperialismo clássico criticado por Lênin.”

Os Estados-nações carecem de visão e ideologia, e os movimentos carecem de infra-estrutura e recursos suficientes para colocar suas idéias em prática. Se em alguma circunstância fosse possível superar essa fenda, levando em consideração o crescente peso demográfico, econômico e estratégico do mundo não-ocidental ou ‘o Resto’, uma alternativa para a transição liderada pelos EUA e pelo Ocidente poderia obter forma realista e ser considerada”

A diferença entre essas duas categorias é que o conceito político do homem é o conceito do homem ‘como tal’, que está instalado em nós pelo Estado ou pelo sistema político, enquanto o homem político é um meio particular, proposto para correlacionar com esse Estado.” “Nós acreditamos que somos causa sui e somente então encontramos a nós mesmos na esfera política.”

BOOMER DUGIN: “Uma discoteca contemporânea, o caos, pode ser considerada uma metáfora para essa trans-individualidade. É possível distinguir entre pares, figuras, passos, expressões, sexos durante a quadrilha ou ainda na dança de rock ‘n’ roll, que é a recente modernidade. [Logo fará 100 anos, o que quer que se chame de ‘dança de roque & rola’… diante dum cenário de esvaziamento das artes e de tecnologias e estéticas que se super-impõem na velocidade da luz, considero um século – ou pouco mais de 70 anos, vá lá – uma verdadeira eternidade…] Mas em uma discoteca há criaturas de sexo incerto, aparência indefinida e identidade vazia, com um lento e regular balançar ao tato da música.” A homofobia é um valor completamente globalista, completamente ianque e ocidental! Não se pode ser localista sem ser homossexual, já diziam os gregos, os verdadeiros universalistas! Se, não obstante, Dugin falou do caos de maneira positiva (o que fica complicado, pois não vejo como identidade vazia pode ser olhada com bons olhos…), o que fará com mais clareza na parte final da obra, digamos que sua metáfora patentemente leiga não foi das mais felizes…

assim a antropologia política, empregando essa ou aquela constituição do indivíduo, se dissipa e se dispersa no espaço da poeira rizomática.” “para denunciar ativamente a política, a vontade política é necessária. Isso revela que a pós-modernidade está carregada de significado político. E que está carregada com uma obsessão epistemológica e imperiosa pelo significado político da apolitização. Isto é, não é pura entropia da estrutura política, é um contra-projeto revolucionário, um esquema teórico da pós-antropologia política.” = Foucault; ou seja, muito aquém do que se espera de um autor contemporâneo…

o soldado político [noção de 1930, provavelmente de Schmitt (implícito no texto)] difere do comum pelo fato de que ele mata e morre pela política. Sua matança e morte pessoal se tornam um elemento existencial da manifestação da Política, assim, para ele, a Política adquire uma dimensão existencial. O político, diferente do soldado político, trata da Política, mas não mata ou morre por ela.”

As palavras de Nietzsche podem ilustrar seu papel na história do século XX: ‘Hoje, no século XIX, as pessoas fazem guerras por recursos e valores materiais, mas prevejo um tempo em que estarão matando por ideais’. Quando é este tempo? Está no século XX.” Mais uma interpretação errônea de Nietzsche. Ele nunca escreveu sobre pequena-política. O McCarthismo, poder-se-ia pensar, é uma guerra ideológica anti-comunista – mas nada disso existiria se não fossem os poços de petróleo e as armas nucleares… Então ainda estamos muito longe da consumação desse tempo. O século XX foi um tanto superestimado por Dugin.

Nós acreditamos que ao nível (sic) da antropologia política esse soldado político está confrontando o andróide pós-humano rizomático.” Basta trocar ‘nós’ por ‘não’ e temos uma sentença impecável.

E seu espaço antropológico está sendo ocupado [pós-modernos e seus gerúndios improfícuos…] por uma nova personalidade, uma personalidade muito astuta e suspeita, que não é o soldado político, mas, ao mesmo tempo, não está relacionado (sic) ao sub-indivíduo twitteiro sibilante e rizomático. Essa personalidade é o simulacro do homem político. É algo que imita o soldado político, do mesmo modo que a pós-modernidade imita a modernidade. (…) Isso é o porquê temos esse fenômeno do fascismo contemporâneo, que é um excelente ilustrador dessa condição.” HAHAHAHAHA! Ler isso num livro é surreal – é como estar lendo um comentário de internet. Estou cercado de sub-indivíduos!

Todo pedaço do fascismo, que constituiu a estrutura do soldado político, se perdeu depois de 1945. Cada e todo fascista declarado depois de 1945 é um simulacro. Os medos dos liberais, tomando a forma dos fascistas, são uma completa paródia, eles não diferem tanto das massas decompostas e semi-dissolvidas.”

É tanto a aflição fantasmagórica, a qual Baudrillard deu, (sic) descrevendo o mundo com categorias pós-históricas radicais, quanto o sentimento de que não estamos satisfeitos com esse invólucro, [deleuziano] com essa perspectiva pós-antropológica.” “Tendo trazido a questão da antropologia, devemos procurar uma solução e ao mesmo tempo reconhecer essa pós-antropologia, que é não esperar o vindouro vir e sim considerar que está-aí.”

a teologia política pressupõe a existência do telos político, que pode ser feito por humanos, como o Leviatã de Hobbes, [uma péssima solução – além disso teologia e teleologia são duas coisas diferentes, embora se pareçam, admitamos] ou por não-humanos, como o modelo católico do ‘imperium’, que estava próximo ao coração de Schmitt.”

É impossível falar sobre antropologia política enquanto se descreve o modelo pós-antropológico da política atual.” “nós observamos epistemas paradigmáticos que são empurrados e promovidos do mesmo modo como foram em quadros da política clássica. Eles permanecem aqui, estão ficando[,] e isso significa que a Política em seu sentido mais amplo está-aí, não é apenas que nem mesmo o homem ou sequer Deus estejam lá [fora do alcance da política moderna, agora que foi suplantada pela política pós-moderna].”

NEM DEUS NEM O SOCIUS (HOMEM) – corpo sem-órgãos ou humanista, ou outro modelo qualquer –, MAS SEMIDEUSES (avaliadores de valores):[minha] Angelopoliteia (política angelical), que é uma modificação da teologia política para a angeologia política. O que queremos dizer é que a esfera da Política está começando a ser controlada por e está começando a aterrar em confronto[s] das [entre as] entidades supra-humanas.” “Realmente há um centro de comando na pós-política, há atores, há decisões, mas eles estão todos desumanizados na pós-modernidade, estão além dos quadros da antropologia.”

DESTINO VS. ATOR POLÍTICO: “O resto não dependerá do homem[;] (…) será uma guerra de anjos, guerra de deuses, um confronto de entidades, não-amarradas pelas leis e padrões históricos e econômicos, que não se identificam com certas elites políticas nem religiões.” Porém, o mesmo poder-se-ia dizer do materialismo histórico radicalmente interpretado. Somos vontades não-livres.

A angeologia política deve ser pensada como uma metáfora que é também científica e racional.” Dugin não é muito bom com metáforas!

O anjo é o gênio? Não considerado como indivíduo superior, mas como o espírito aconselhador socrático, que intervém em momentos-chave? Enfim, demonologia política seria uma nomenclatura cem vezes mais interessante…

COMING FULL CIRCLE (PLATÃO-MARX): “Não há uma palavra como ‘coisa’ em grego e isso é muito importante, porque significa que o conceito de realidade é também ausente.” “existem as palavras gregas pragma, existente e prática para o latim res. Pragma é a ação e o objeto ao mesmo tempo. § É muito interessante: a totalidade da metafísica grega evolui entre ‘teoria’ como contemplação e ‘ação’ (praxis)[,] mantendo distância da grave subjetividade latina, ‘coisificação’ escondida no termo res.”

Se ampliarmos à (sic) mencionada dualidade do gráfico supracitado nos depararíamos com o modelo guénoniano de ‘princípio-manifestação’.” René Guénon: autor relativamente desconhecido. E no entanto o que se pesquisa sobre ele não é nada auspicioso (esotérico; leitura benquista por O. de Carvalho, o câncer do Brasil, etc.)… Não existem coisas como ‘dogmas’ em metafísica, noção que nos é apresentada como sendo dele, já num primeiro resumo sobre sua obra – a não ser para os charlatães; estes definem seus dogmas tão arbitrária quanto convenientemente a fim de se tornarem best-sellers imerecidos… Se é que devemos estudar as obras de alguém antes de julgá-lo com propriedade, porém, valeria a pena, a quem interessar possa, tendo tempo, checar esta sua 1ª obra (em que pese ser um ocidental, portanto devemos ser duplamente céticos quanto à possibilidade de um westerner compreender profundamente como os orientais compreendem eles mesmos sua própria metafísca – o interesse está muito mais no tema que no escritor): “In 1921, Guénon published his first book: an Introduction to the Study of the Hindu Doctrines [procurar a versão francesa]. His goal, as he writes it, is an attempt at presenting to westerners eastern metaphysics and spirituality as they are understood and thought by easterners themselves, while pointing at what René Guénon describes as all the erroneous interpretations and misunderstandings of western orientalism and “neospiritualism’ (for the latter, notably the proponents of Madame Blavatsky’s Theosophy). Right from that time, he presents a rigorous understanding, not only of Hindu doctrines, but also of eastern metaphysics in general.” “For all his intellectual skills might be, it seems unlikely that he succeeded just by himself or with the help of a few books in getting the profound and enlightening understanding of the Vêdânta he seems to have acquired by the age of 23.” As últimas aspas são de David Bisson. Muito suspeito, realmente!

Vamos relembrar a definição grega original de mito: mito é uma história contada durante o ritual. A dualidade mito e ritual é um dos itens básicos tanto da história da religião quanto da antropologia social e é amplamente discutida. Então vamos para a filosofia e vemos¹ mentalidade-atividade (esse par de termos é muito semelhante a teoria-prática). E finalmente, a tecnologia é bastante simples [?] – esta é a dualidade do projeto e sua realização.”

¹ “vamos para a filosofia e vemos” é uma construção frasal de oitava série em português. Creio nunca ser demais expor a ruindade desse ‘escritor’. Será que apenas russos com português como 2ª língua no campo da tradução se interessam por Dugin?

<A> TAREFA: “Não é por acaso que falamos sobre Dasein como o assunto da teoria política. Dasein é o exemplo sugerido e proposto por H. como uma aspiração para superar o dualismo sujeito-objeto” “O personagem principal do Dasein é ser ‘entre’.” Todo esse ‘tempo’ de livro e só agora faz esse tipo de observação…

Não devemos usar o sistema de dualismo político clássico, a topografia cientifica tanto nova como do tempo de Aristóteles,¹ ao falar sobre a Quarta Teoria Política e presumir este fato de que o sujeito e o núcleo, o exemplo básico do pólo da Quarta Teoria Politica[,] é Dasein.” Porque seria e não seria ao mesmo tempo.

¹ O pensamento lógico deve ser superado… logicamente.

Heidegger disse que se queremos compreender o Dasein devemos perceber e formar a ontologia fundamental, que seria não perder contato com as raízes ônticas do Dasein [o ‘metafísico banal’, o presente] e não ascender ou sublimar (cedo ou tarde) a qualquer coisa relacionada com a construção filosófica geral de 2 mil anos atrás (se seguirmos o caminho de Platão ou os mais recentes filósofos pré-socráticos até Nietzsche) em que o tempo moderno se baseia.” “Do ponto de vista da análise do Dasein, ambos, sujeito e objeto, são construções ontológicas, crescidas a partir do ‘entre’, inzwischen ôntico.”

Porém, há um grande problema: implicaria que a praxis marxiana não é já esse entre entre teoria-prática, o ‘-’ do dualismo. Dugin ejeta a praxis para sinonímia de prática stricto sensu, prática revolucionária, e nesse ponto erra sua exegese de Marx, pois o subestima.

Ao contrário do Hegelianismo, do Marxismo, teoria comunicacional e toda estrutura moderna, em princípio não estamos interessados em qualquer coisa sobre a linha entre teoria e prática.” “a questão da prioridade tanto da consciência como da matéria durante o período soviético é completamente idiota.” Se se dá primazia a alguma, sim; mas não há primazia, o resto é revisionismo. Dugin age como o mais idiota da escola dos liberais, que ele mesmo já criticou e ainda criticará neste livro, como Popper, o bruxo farsesco de Hollywood (alusão a Harry Potter), mais para bufão ou ‘clown da côrte pós-moderna’,¹ ao ‘refutar’ Marx via discurso sonambúlico ‘socialismo <<<real>>> na URSS fracassou’, etc.

¹ Acho que, mesmo sem ser espetacular, sou muito melhor com metáforas que nosso querido autor russo!

DO NADA… “Assim, devemos adiar tais itens como espírito e dimensão divina, e avançar em direção ao caos e outros itens orientados profunda e verticalmente.” E como sempre, Nietzsche é citado perto da palavra caos. Como fica claro no trecho sublinhado, Dugin quer de alguma forma ver a sociedade se tornar aquela discoteca cheia de identidades vazias dançando rockabilly ou o que quer que o valha…

O “MARX” DE MARX (não funciona): “O que é a Quarta Prática Política? É uma contemplação. O que é a manifestação da Quarta Prática Política? É um princípio a ser revelado.” Dugin pensa criar algo novo, e não retroagir a Hegel, ao estipular o seguinte, após o historicamente dado: Hegel – Marx (inversão de Hegel) – Dugin (inversão de Marx). Falácia primária. Quer fugir também de Weber (gaiola de ferro) ao remar de volta ao Alemão clássico (herdeiro ao mesmo tempo do Romantismo e do zero absoluto do romantismo em Kant): “É um princípio de atitude mágica [anti-burocrática, anti-cristã, anti-moderna] para o próprio mundo baseado na idéia de que o imaginável é o único com o que nos deparamos e tudo com que nos deparamos não é nada mais que um pensamento. Que tipo de pensamento é este? O pensamento puro.” Abstração kant-hegeliana. Espero não ler elogios à alquimia nas próximas páginas, cof, cof…

tínhamos aniquilado quaisquer outros espaços antes de declararmos, não na consumação, mas logo no início, antes de declararmos num contexto pré-ontológico.” O mundo já foi conquistado (Heidegger). Só há uma geopolítica do zero em 2000.

DESTRUINDO COM O MARTELO, &C, &C… “Esse monte de sucata que tem se manifestado não é acidental e possui uma lógica profunda. Metafísica Primordial, primordialidade expressa nas técnicas, modernas e pós-modernas.” “ou nossa luta política é soteriológica [redentora] e escatológica [pós-apocalíptica, pós-escatológica, já que o apocalipse já aconteceu na Política do século XX] ou não faz sentido.”

A virtualidade [reino da mentira, distopia pós-modernista] é mais próxima do modelo mais-que-original da Quarta Teoria e Prática Política que qualquer outro elemento.” E aqui, de novo, Dugin sabe mentir ao criticar Nietzsche parecendo que não o compreendeu e usando sempre seus expedientes, sem crédito, dentre os quais, agora fica evidente, o saber mentir (“maneira divina de pensar”, Vontade de Potência, paradoxo da árvore que quanto mais cresce no firmamento mais enterra suas raízes no ‘maléfico’ do subsolo, etc.).

Podemos dizer que o rizoma de Deleuze é uma paródia pós-moderna e pós-estruturalista do Dasein de Heidegger.” “Porém, prestemos atenção ao fato de como faz o pós-modernismo para resolver o problema invertendo a ordem da coluna, através da atração para a superfície, sendo esta a idéia principal que vemos em Deleuze. Lembremo-nos de sua interpretação do ‘corpo sem órgãos’ de Artaud, da sua interpretação da necessidade da destruição, do nivelamento das estruturas e sua interpretação da capa epidérmica do homem (a pele) como base para uma tela onde as imagens são projetadas.” UMA BOLA DE CARNE QUE ATROPELARÁ O CAPITAL.

Deleuze disse: ‘Libertem o Homo demens!’.” “Aí vem a ‘máquina de desejo’, o processo rizomático, com ideias iônicas e temporalmente crônicas. Esta demência pós-moderna é muito parecida com a Quarta Teoria Política” Esquizodaseinanalyse de novo? Ou esquizod’a[sei]nalyse

Finalmente, quero dizer que o fim dos tempos e o significado escatológico da política não vão acontecer sozinhos, [ó!] vamos esperar pelo fim em vão. O fim nunca virá se esperarmos por ele e ele nunca virá se não o fizermos.” Porém, como já enunciado, ele será feito. Ele nos fará fazer.

Este é um grande arsenal do assim chamado (…) ‘noch nicht’.” De novo (estou ficando repetitivo): tirando conhecimento de Marx e Nietzsche. O problema de qualquer leitor ‘não-iniciado’ é que tomará os dizeres ao pé-da-letra. Devemos avisá-los de que nenhum botão vermelho será pressionado.

Inclusive anteriormente ao Cristianismo [a sociedade proto-européia] era também patriarcal, até nos tempos imemoriais que foram estudados no mediterrâneo por Bachofen no seu O Direito Materno.” De acordo.

Assim, nas sociedades arcaicas, somente quem sofreu a iniciação pode ser considerado como um homem, caso contrário este alguém não possui sexo social, ou seja, um gênero[;] e é privado das funções sociais masculinas (casamento, participação na caça e ritual).” Mas nessas tribos patriarcais não ter sexo é o mesmo que ser mulher, objetificado(a).

em algumas sociedades escravistas, os escravos não eram identificados com homens, eles usavam roupas de mulher.”

Para Dugin, o liberalismo é mais machista até que o fascismo.

a mulher de negócios é uma mulher que manifesta qualidade masculina, feminina – cidadã, uma mulher – branca.” A mulher negra: a última barreira.

Logo, o feminismo liberal, ou a aspiração de dar à mulher liberdade, significa identificar a mulher com o homem e equalizá-los social e politicamente, isto é, representar socialmente a mulher como um homem.” “Uma mulher que se senta ao volante é um homem ou uma caricatura de homem.”

O conceito de igualdade de gênero da segunda teoria política [socialismo] se diferencia qualitativamente da compreensão de igualdade da primeira teoria política. [liberalismo] O feminismo, o igualitarismo de gênero no marxismo, acredita que ambos, homens e mulheres, serão envolvidos na [nova] ideologia (…) como uma questão de fato, deixa de ser homens e mulheres que constituem o padrão e o imperativo de gênero do liberalismo.”

O filósofo neomarxista húngaro [Meszaros? Por que não citá-lo?] disse que ‘o proletariado é aquilo em que sujeito e objeto são os mesmos’. [correto] Partindo de tal formulação, marxistas consistentes [o que seria um marxista inconsistente?] clamam pela insanidade, [!] por uma esquizofrenia, por uma esquizo-revolucionária (sic) (Deleuze).” Não misture alhos com bugalhos.

o indiferenciado reino do trabalho, onde não há diferença qualitativa entre a ‘boa cozinheira’, o marinheiro ou o herói masculino. Vladimir Lênin uma vez disse: ‘Sob o socialismo, qualquer boa cozinheira poderia com a mesma facilidade governar um Estado’.” E Hannah Arendt acha isso ruim!

A boa cozinheira à copa não torna. Lugar de mulher é onde ela quiser.

O marxismo oferece algo ainda mais baixo, onde nada sobra das hierarquias de gênero e estratégias.” Estragou tudo, sr. Dugin!

O fascismo aceita o conhecido modelo dos citadinos, brancos, europeus, sensatos, ricos e o exalta. Se o liberalismo aceita este modelo como norma, o fascismo começa a preencher o homem com propriedades adicionais. Ele não deve ser um simples branco nórdico, não apenas racional, mas unicamente racional (da forma como somente os germânicos possuem racionalidade).” “Além disso, a masculinidade é exaltada e as mulheres eram incitadas a se envolver com KKK: Kinder, Kirchen, küchen.

Se virmos razão, riqueza, responsabilidade, cidade, pele branca, sacamos uma arma e atiramos. Este homem precisa morrer, ele não tem chance de sobreviver, pois é fechado num impasse histórico moderno, ele reproduz hierarquias pequenas e não pode ir além de suas próprias fronteiras.”

Atributos positivos do homem, para além do paradigma moderno: não-adulto. O sujeito da Quarta Teoria Política é um macho não-adulto. [péssimo, ainda como metáfora] Por exemplo, Le Grand Jeu (nome do grupo literário próximo ao surrealismo) de Gilbert-Lecomte e René Daumal, que se ofereceram para construir uma vida sem amadurecimento, para permanecerem crianças brincando. Isto pode ser considerado como um convite para desenvolver os princípios de gênero da Quarta Teoria Política” E que foi deles com essa dadaíce toda?

Aqui usamos da antropologia social e da etnologia de Lévi-Strauss, isto é, a partir da análise das experiências de muitas sociedade[s] não-brancas. Além disso, a loucura: são todas formas de transgressão intelectual, a prática da insanidade voluntária de Friedrich Hölderlin e Nietzsche até Bataille, Artaud.” Aqui há um mal-entendido e fetichização. Não há loucura voluntária. Isso até o limitado Deleuze sabia. Doido é o Dugin. Quando não inventa demais, Dugin se mostra um antropólogo razoável.

RED NECKS NOT ALLOWED: “Em geral, não-branco, insano, não-urbano ou inserido em uma paisagem. Por exemplo, o ecologista, o representante de uma comunidade, isto é, uma pessoa que não rompeu com a natureza, como Redfield em seu The Folk Society [jornal].”

A Quarta Teoria Política pode ser dirigida ao ser andrógino, e este gênero é o andrógino? Talvez, mas somente se não o projetamos nos óbvios modelos andróginos de divisão de sexo como metades.”

Quem é Gilbert Durand? Só aparecem prováveis homônimos não-relacionados no google…

Agora estamos no momento de uma reextensão e ruptura final de um gênero. Etapas dessa ruptura são o feminismo, o homossexualismo e a operação de mudança de sexo.” Não! Armadilha neoliberal… E tradutor incauto com isso de –ismo… Dugin fala tanto de raiz, cita a raiz do termo grego, radicula, mas ignora o feminismo radical… Trocando as bolas não se muda o jogo: é necessário refundá-las (profundo…)!

Esqueçam esse maldito triângulo edipiano re-re-reencarnado chamado Artaud-Foucault-Deleuze!

Elementos do fascismo na pós-modernidade são representados pela prática do BDSM.” Sim, essa frase apareceu sem qualquer transição ou contexto!

A BOMBA A-SSEXUAL

Contra a bomba de H.idrogênio, a bomba de Estrogênio…

Plantar uma sexualidade vegetal em vez de minas…

Este é o momento mais perigoso da filosofia da liberdade que começa a retirar a liberdade de dizer ‘não’ sob os auspícios da absolutização da liberdade.”

Uma máquina de corte é o argumento absoluto dos defensores do progresso.” Agora entendi a obsessão de Deleuze com ela! “Tudo poderia ser compreendido, mas uma vida sem uma máquina de corte? Esta é uma afirmação verdadeiramente não-científica: uma vida sem uma máquina de corte é impossível. Não há vida. A vida é uma máquina de corte. Este é o poder do argumento liberal em operação que se manifesta com seu lado totalitário.” HAHAHA

Isso [o grande engano sobre o ideal de liberdade] deve ser buscado não na época em que Descartes, Nietzsche ou o século XX emergiram, mas em algum lugar da filosofia pré-socrática. Heidegger viu esse momento no conceito de physis e na desvelação (sic) suficiente do estudo platônico das Idéias.” Engraçado que há algumas páginas prescrevia “parar de se preocupar com o passado de dois milênios de filosofia continental e focar no presente, no ser-aí atrás da compreensão do Dasein (o que pode até ser verdade – pun intended –, mas repetido centenas de vezes por Heidegger & sucedâneos sem qualquer indicação ou descoberta mais exata e que avance a questão já cheira a filosofia de boteco).

IRONIAS TRÁGICAS NO REINO DA CULTURA

Para Dugin, o comunismo submergiu – eia, enterro sempiterno! O conservadorismo, tradicionalismo, seja lá que nome rupestre e bucólico se dê a essa doença nostálgica, também submergiu… mas não há problema em ressuscitar esse cadáver, nenhum problema, basta querer! Os socialistas, pelo visto, não querem com a força materialista devida! Para D., aliás, os fundamentalistas islâmicos, que cavaram tão fundo que acharam petróleo, devem ter realmente encontrado a origem ontológica de todos os problemas, numa conversa com os japoneses do outro lado do túnel, digo, do poço! Agora, deixando de esquizopoetizar, é deveras trágico que os muçulmanos, que ajudaram a salvar a sabedoria antiga para que renascera entre os ocidentais, hoje sejam seus principais adversários ideológicos, pelo menos na acepção explosiva do termo (não se trata de piada ou jogo de palavras, já que a oposição chinesa é mais resignada e petrificada, durará mil anos se for preciso).

O sobrinho-neto de Jacob Burckhardt é um branco suíço neo-alquimista pseudo-polímata idiota!

Louis Pauwels e Jacques Bergier, os autores de O Amanhecer dos Mágicos escreveram: ‘O fascismo é guénonismo¹ com mais essas divisões’.”

¹ Triste (vide acima os wikia sobre Guénon). O gnosticismo e o esoterismo da antropologia da religião mediana costumam ser apenas peneiras que falham ao ocultar o sol nazi que ilumina a cena por trás.

Em um dos congressos em Roma dedicados ao vigésimo aniversário da morte de Evola, eu dei uma palestra, ‘Evola – visto da sinistra’ (Evola – uma visão desde a esquerda) na qual eu sugeri examinar Evola desde posições esquerdistas (ainda que

ele se considerasse de direita, até mesmo de extrema-direita).” Parabéns pra você! (DV) Apropriações de Evola pelo campo democrático me dão náusea.

Outra coisa que me chama a atenção: Dugin falar tanto da televisão, em termos quase que bourdieusianos, num livro da década passada! O tiktok vaporizou o campeão olímpico de zapping! Gex é um atleta de elite perto do millennial padrão. Cavando rumo ao abismo, não se pode imaginar nada mais raso: depois disso, começarão a devorar enciclopédias em mosteiros – tem de haver um ponto de inflexão em que o buraco negro começa a vomitar matéria!

Eu realmente não imagino Putin meia hora com Dugin – ou 15 minutos LENDO Dugin…

Velhos crentes parecem ‘retardados’ para nós, mas eles não o são. Eles são diferentes, eles agem dentro de outro tópico.” HAHAAHAHAHAHAHA

Eles são tão retardados que reagirão em 2050.

Lévy-Bruhl: more like Lévy-BRUH

bruhromance, o livro secreto de Bachofengshui

A MANDO DA CIA: “Primeiro, Fukuyama pensou que a política havia desaparecido e que ela estava prestes a ser substituída pelo ‘mercado global’, no qual não haverá nações, Estados, etnias, culturas ou religiões. Mas então ele decidiu que seria melhor desacelerar um pouco e implementar a pós-modernidade mais calmamente, sem revoluções. Porque revoluções podem estar acompanhadas por algo indesejável que poderia atrapalhar o plano do ‘fim da história’. Então Fukuyama começou a escrever que era necessário fortalecer os Estados-nação momentaneamente – este é o conservadorismo liberal.”

primeiro o filósofo inglês Edmund Burke simpatizava com o Iluminismo, mas após a Revolução Francesa ele o rejeitou e desenvolveu uma teoria conservadora liberal com uma crítica frontal da revolução e das esquerdas.” E hoje sabemos que ele era ignaro em relação à França.

Eles podem até mesmo gritar em algum momento: parem! Vendo o que a pós-modernidade está trazendo [mais sintaxe horrorosa…]¹ e olhando duramente para o rizoma de Deleuze, eles se sentem como se estivessem no lugar errado.² Ademais, eles temem que uma desconstrução acelerada da modernidade, despontando na pós-modernidade, possa libertar a pré-modernidade.”

¹ Experimentasse um: Ao ver o que a pós-modernidade traz, com dureza no olhar… Enfim, não se pode chamar um “tradutor em tempo real” de tradutor, ainda mais se ele tem todo o tempo do mundo para revisar o texto, diferente do tradutor oral em evento ao vivo!

² Nem sempre uma tradução precisa ser mais longa que o trecho original (o que não tenho como comparar, pois não sei russo): sentem-se no lugar errado, mais uma sugestão para o tradutor deste trabalho, se um dia puder ler-me e incorporar algumas lições! Ah, é uma profusão de eles, eles, eles… Aqui D. está falando dos liberais, para contextualizar.

Por exemplo, o liberal Habermas (An Unfinished Project?, 1992), outrora da esquerda,¹ diz que se ‘nós não salvarmos um rígido espírito do iluminismo agora, uma fidelidade aos ideais do sujeito livre, uma liberação moral, se não segurarmos a humanidade na margem, não apenas cairemos no caos, mas também voltaremos à sombra da tradição, cujo meio de enfrentamento é a própria modernidade’.”

¹ Os desistentes da esquerda são os piores dentre os reacionários.

Normalmente, conservadores liberais não fazem uma análise da correlação entre liberalismo e comunismo como a que fizemos, e assim eles continuam a temer o comunismo.” “Mas alguns liberais efetivamente crêem hoje que ‘os comunistas perderam terreno apenas temporariamente’ e ainda podem retornar. Extrapolando medos equivocados, o anticomunismo contemporâneo cria quimeras, fantasmas, simulacros em um grau ainda maior que o antifascismo contemporâneo.”

É HOLLYWOOD, E, AFINAL, ELES APRENDEM VENDO (E FAZENDO) FILMES DE TERROR: “Mas o conservadorismo liberal, em regra, é alheio a essa ironia [Che Guevara em outdoors, etc.] e não está inclinado a zombar de ‘vermelhos’ ou ‘marrons’. A razão disso é que o conservadorismo liberal teme a relativização do logos na pós-modernidade, ao mesmo tempo estando incerto de que o inimigo foi completamente destruído. Ele sonha que um cadáver estirado ainda se move e é por isso que ele não recomenda chegar muito perto, zombar e brincar com ele.” Vejo nesse ‘homem’ liberal a característica dadaísta acima: os “machos não-adultos” na arte, agora na política e economia…

UMA ETIQUETA MUITO FROUXA (E PORTANTO INSERVÍVEL): “Outros pensadores que pertencem a essa escola [‘conservadorismo revolucionário’, hahaha!]¹ são: Martin Heidegger, os irmãos Ernst & Friedrich Jünger, Carl Schmitt, Oswald Spengler, Werner Sombart, Othmar Spann, Friedrich Hielscher, Ernst Niekisch e toda uma plêiade de autores, principalmente alemães. Algumas vezes, eles são chamados de ‘os dissidentes do nacional-socialismo’² (…) Muitos deles participaram em atividades antifascistas subterrâneas e ajudaram judeus a fugir. [que bom! redimiram-se na vida privada, pelo menos…] Particularmente, Friedrich Hielscher, um conservador revolucionário de primeira linha³ e apoiador do renascimento nacional alemão[,] ajudou o famoso filósofo judeu Martin Buber a escapar.”

¹ Outros oxímoros para rir: reacionarismo avant-garde, vanguardismo gradual, radicais moderados.

² A mais pura coincidência!

³ Esse tipo de expressão devia ser banido do léxico.

Uma Play AD de autores.

Um termo geral na filosofia heideggeriana descrevendo a essência do crescente domínio da técnica é Ge-stell, isto é[,] a construção de modelos cada vez mais alienantes e niilistas.” “Mas se um homem acentua a realidade objetiva como um ‘universal’ (koinon) apenas sobre o que existe (idéia de physis), ele perde [de] vista o nada que o lembra de si mesmo, levando a filosofia ao niilismo – através do Ge-Stell.”

nothing to worry about…

No devido tempo essa lógica foi seguida por um grupo de surrealistas-dadaístas (Arthur Cravan, Jacques Rigaut, Julien Torma, Jacques Vaché) que glorificaram o suicídio. Mas os críticos [corretamente] consideravam isso uma bazófia vazia. Em dado momento eles cometeram suicídio publicamente, o que provou que arte e surrealismo eram algo tão grande para eles que por isso eles deram a vida.” L’art pour l’art = shit. E Dugin criticava o “soldado da política” previamente, lembram-se?

Aqui podemos nos lembrar de Kirillov de Os Possuídos de Dostoyevsky (título original russo ‘Besy – Бесы’) para quem o suicídio se tornou uma expressão da liberdade completa que foi revelada após a ‘morte de Deus’.” E devemos lembrar que Kirillov era um tolo!

Há mais uma orientação – o assim chamado conservadorismo de esquerda ou social-conservadorismo. Um típico representante seu é Georges Sorel (Reflexões sobre a Violência, 1906).” Dugin hipostasia centenas de categorias… Sorel é apenas um reacionário!

O conservadorismo de esquerda é próximo ao nacional-bolchevismo russo de Nikolay Ustryalov.” “o nacional-socialismo de esquerda de Strasser” Ih… que foi que eu falei?! É com esse tipo de taxonomia irresponsável que os think tanks neofascistas ianques assolaram as economias frágeis e periféricas em sua estratégia de fake news, a ponto de gente com resíduos de miolos na cabeça passarem a se perguntar (os que afirmam taxativamente não passam de isentos de qualquer resquício de miolo na cabeça) ‘nazismo era de esquerda?’. Porque quando apólogos do nazismo começam a vincular o nazismo à esquerda apenas por questões de marketing (já que o nazismo é crime na democracia saudável) significa que uma tentativa de golpe de Estado está em curso (‘acuse-os daquilo que você é/faz’).

Essa orientação está sendo desenvolvida hoje por Andrey Isaev. No outro polo da ‘Rússia Unida’, está o conservadorismo liberal de Pligin.”

eurasianistas de esquerda” Quanto mais se multiplicam os nomes, mais irrelevantes são (se não forem PERIGOSOS). Se com isso se quer dizer os pró-China e anti-imperialismo ianque, que gostariam de ver uma aliança “ilimitada” entre China e Rússia para que o mundo volte à multipolaridade, poderiam simplesmente chamá-los de “neo-comunistas”, ou defensores da causa do “comunismo 2.0” ou, francamente, Realpolitik, pois disso depende hoje, dependerá amanhã e sempre dependeu o próprio resfriamento nuclear e nossa simples sobrevivência.

SALADA DE FRUTAS PODRES: “A única coisa que não é aceitável para eurasianistas – é o conservadorismo liberal.” Diria que sentariam na mesma mesa que eu, pois da forma como Putin descreve essa ‘corrente’, são os social-democratas russos, muito distintos dos tais nacional-bolcheviques. Uma rara (?) instância em que um binômio de duas palavras deletérias (conservadorismo e liberalismo) é muito mais benquisto que um binômio aparentemente maniqueísta ou até benigno-neutro, como temos a impressão diante das palavras isoladas “nacionalismo” (soviético, por exemplo) e bolchevismo (que perde toda conotação positiva quando inscrito ‘para inglês ver’ em movimentos neofascistas, da mesma forma e usando a mesma estratégia do ‘nacional-socialismo’, que, inexoravelmente de direita desde que foi elaborado até os fins dos tempos, nada mais é do que nazismo e totalitarismo, com um nome criado para roubar os eleitores do forte partido comunista alemão e fragmentar a classe operária com a máquina de propaganda do Führer).

Este é um caráter específico do eurasianismo: ele considera a cultura ocidental como um fenômeno local e temporário.”

Coincidência nenhuma que o primeiro entre os autores russos que se referiu ao livro de Guénon Oriente e Ocidente tenha sido o eurasianista N.N. Alekseev.” Um europeu escreve sobre o Oriente. Um eurasianista então se interessa pelo tema – uau, que inusitado!

neoeurasianismo” Chega de neo- isso, neo- aquilo! Aposente o prefixo! E novamente: o problema está no uso indiscriminado. Mas para resumir essa citação na obra, Dugin dirá que neoeurasianismo = eurasianismo + Heidegger. E o mais engraçado (vide logo abaixo) é que Heidegger é na verdade anterior aos que Dugin chamará de autores eurasianistas (neodaseinismo?).

neœurasianismo

neopósestruturalismœurasiano!…

Periódicos eurasianos são publicados hoje na Itália, França, Turquia.” Isso é pouco, muito pouco.

Um distanciamento da cultura ocidental permite determinar uma distância se devendo ao fato de que é possível compreender toda a modernidade e dizer a tudo um ‘não’ fundamental.” Tudo ainda a primeira fase do Zaratustra de Nie. – ou a fase do camelo.

Aqui deve ser relembrado que os eurasianistas, os fundadores da fonologia e os maiores representantes da lingüística estrutural, Roman Jakobson(*) e Nikolay Trubetzkoy,(**) foram os mentores de Lévi-Strauss e ensinaram a ele as técnicas de análise estrutural.” Mas em que sentido eram eurasianistas? Na própria lingüística? O que quereria dizer?

(*) Role of linguistic indications in the comparative mythology – VII”

(**) “The Legacy of Genghis Khan” Autores que viveram e produziram depois da morte de Heidegger.

Assim, uma cadeia intelectual pode ser retraçada – eurasianismoestruturalismo-neoeurasianismo.”

E uma vez que estamos em um período de transição incompleta – há uma grande confusão de termos: [não use isso para justificar tanto neologismo] alguns interpretam os termos básicos de acordo com seu sentido histórico original, alguns já olham para o futuro, sentindo a necessidade de mudanças semânticas (que ainda não chegaram), alguns sonham (e podem se aproximar do futuro ou simplesmente entregar-se a alucinações individualistas irrelevantes), alguns estão simplesmente confusos.” Outros ‘ficam inventando’ (como diria o tradutor espúrio) nominhos e sinônimos que não levam a lugar algum, mas servem para passar o tempo.

Oswald Spengler em seu famoso livro O Declínio do Ocidente, opôs civilização e cultura, considerando a última como uma expressão do espírito vital orgânico da humanidade e a primeira como o esfriamento desse espírito nas formas mecânicas e tecnológicas. Para Spengler, a civilização é produto da morte cultural. No entanto, essa observação espirituosa, que interpreta corretamente algumas características da civilização ocidental, não recebeu aceitação universal e mais freqüentemente os termos civilização e cultura são usados como sinônimos.” O bom artista é o sujeito incivilizado. Finalmente uma ocasião em que faz diferença, neste livro, distinguir dois termos “parecidos”! Pena que encerra o parágrafo com chave-de-bosta: “De qualquer forma, cada pesquisador pode ter sua própria opinião.” Não é bem assim, não, amigo! O Dasein é a prova mais concreta disso: ele independe de opiniões… Ele institui toda e qualquer opinião, e não é aquilo que eu, você nem Heidegger necessariamente quer. E a cultura é o reino do Dasein.

Mas depois de Nietzsche, o assim chamados ‘filósofo da suspeita’, esse axioma otimista foi questionado.” “Na crítica pós-moderna do otimismo histórico, o universalismo e o historicismo adquiriram um caráter sistemático e criaram os pré-requisitos doutrinais para uma total revisão do aparato conceitual da Filosofia Ocidental. A revisão em si mesma não foi plenamente implementada, mas o que foi feito (Lévi-Strauss, Barthes, Ricoeur, Foucault, Deleuze, Derrida, etc.) já é suficiente para assegurar a impossibilidade de usar o Dicionário da Modernidade sem sua completa e meticulosa desconstrução.”

Ricoeur, generalizando a tese do filósofo da suspeita[,] mostra o seguinte quadro: homem e sociedade consistem em um componente racional-consciente (o que Bultmanu chamou de querigma e Marx de superestrutura) e um componente inconsciente (de fato a ‘estrutura’ no sentido estruturalista, a infra-estrutura, vontade de poder).” “Marx considerou as ‘forças produtivas’ e ‘relações produtivas’ como inconscientes.” É por isso que Marx é Marx.

Isso explica a grande diferença entre a prática histórica das nações e sociedades, cheias de guerras, violência, crueldade, desordens mentais; e a intenção de uma existência harmoniosa, pacífica e iluminada sob a sombra do progresso e do desenvolvimento. § Assim, a tradição crítica, o estruturalismo e a filosofia do pós-modernismo forçaram a mudança de uma interpretação predominantemente diacrônica [dividida em estágios] da civilização, que era norma no séc. XIX e continuou a prevalecer, [em menor medida, no século XX] para [um]a [interpretação predominantemente] sincrônica.” “Podemos agora imaginar a ‘civilização’ como o numerador e ‘selvageria-e-barbárie’ como o denominador da fração condicional.”

À primeira vista, o universalismo inclusivo parece ser uma completa antítese do particularismo exclusivo que é comum nas comunidades tribais e de clãs do período ‘pré-civilizado’. Mas, historicamente, a alegação de universalidade da civilização – ecumene e assim, singular – constantemente se depara com o fato de que, além dos povos bárbaros, além das fronteiras dessa civilização, existiam outras civilizações com sua própria e excelente versão de universalismo.” “A origem da palavra bárbaro é uma descrição de alguém cuja fala não faz sentido e é uma coleção de sons animalescos. (…) as tribos eslavas, por sinal, eram chamadas os ‘germanos’ ou ‘burros’, pois não sabiam a língua russa.”

Chegou-se ao ponto [na Pérsia antiga] das conexões endógamas absolutas e da normalização do incesto – [tudo para] o espírito solar dos Iranianos (Ahura Mazda) não ser profanado pela mistura com os filhos de Angra Manyu [diabo].”

Tribos são baseadas na iniciação, durante a qual o neófito é informado sobre a base da mitologia tribal. No nível da civilização, a mesma função é realizada pelas instituições religiosas e em tempos mais recentes por um sistema de educação universal, claramente ideológico.” “Parece que, atualmente, apenas conservadores opõem civilização e barbárie, presos no Nouveau Compte acrítico, ou nas pesquisas de Bentham.” Não faltam esquerdistas ‘formadores de opinião’ acusando ingenuamente tudo que nos é antagônico de ‘barbárie’ e proclamando amar a ‘ciência ocidental’.

Enfrentamos tal onda de ignorância acrítica quando reformistas liberais tentaram apresentar a história da Rússia como uma corrente contínua de persistência ante a barbárie. (…) o primeiro McDonald’s, bancos privados, filmes e bandas de rock na televisão soviética são percebidos como ‘objetos sagrados’.” O religioso não suporta que tenhamos vindo do macaco porque seu inconsciente sabe que é ainda “pior” (melhor, indiferente): SOMOS macacos.

Civilização no contexto do séc. XXI significa exatamente isso: uma área de influência enraizada e estável de algum estilo sociocultural, às vezes (mas não necessariamente) coincidente com as grandes religiões.”

Hoje observamos que pensar economicamente, falar sobre Estado nacional e interesses nacionais e, mais ainda, colocar no centro da análise atitudes classistas ou raciais[,] é cada vez menos aceito. Por outro lado, raramente qualquer discurso de um político é feito sem mencionar a palavra ‘civilização’ e certamente em todo texto analítico este termo é talvez o mais comum.”

Falar seriamente sobre raça não é provável depois da trágica história do fascismo europeu[; e a] análise de classe se tornou irrelevante depois do colapso do bloco soviético e da União Soviética.” Não foi por isso: se tornou irrelevante por causa da ascensão da classe média ocidental, ou seja, por conta do êxito soviético das décadas anteriores, não do seu fracasso. Como que “por coincidência” agora as classes médias de todos os países “democráticos” sofrem arrochos sem precedentes. Não há mais uma “ideologia inimiga” e a necessidade de demonstrar que ‘somos economicamente mais felizes’.

Pode parecer que o único paradigma da ciência política é o liberalismo. Isso criou a impressão de que as fronteiras dos Estados homogêneos, essencialmente liberal-democratas, não mais enfrentam nenhum outro sistema que possa alegar uma alternativa global (…) e logo seriam abolidas, para que fossem criados um governo global e um Estado mundial, uma economia de mercado homogênea, com democracia parlamentar (Parlamento Mundial), sistema liberal de valores e informação tecnológica e de infraestrutura comuns.” A incapacidade de exportar o Super Bowl por si só comprovaria o contrário para todos os liberalóides incrédulos que desejassem reduzir um grau em miopia…

ZIZEK VS. PETERSON 1990s EDITION: “O desenvolvimento dos anos 90 mostrou que Huntington estava mais perto da verdade e Fukuyama foi forçado a revisar suas visões [e reconhecer] que (…) se apressou.” “F. então fez a seguinte abordagem conceitual: ele propôs adiar o fim da história por tempo indefinido e fortalecer as estruturas sociopolíticas, que eram o núcleo da ideologia liberal em estágios anteriores.” Simples: nós também adiamos o advento do comunismo global! Enfim, cada espectro político tem a Rosa Luxemburgo que merece!

Para Thomas Burnett (e D. Bell [? Fringe??? hahaha]) ‘tecnologia é destino’ e ela incorpora a quintessência da civilização, entendida tecnicamente, quase como Spengler fez, mas com sentido positivo.” Seu cu sendo penetrado de modo inamistoso é o destino!

O próprio Fukuyama, analisando criticamente suas anteriores colocações otimistas, ocupa uma posição intermediária [perto do otimismo tecnológico do bonachão acima]Fukuyama é como um Reinaldo Azevedo? Foi ficando mais inteligente ou ‘menos vendido aos patrões’ com o tempo? A utopia fukuyamiana durou menos que o motor de um bom e velho Monza!

“‘Choque’ ou ‘diálogo’? – é uma questão secundária e o consenso principal de que ‘civilização’ é agora o principal sujeito da análise da política internacional[,] muito mais importante.” “Declarar a civilização como sujeito principal e atriz da política mundial é o curso ideológico mais promissor para aqueles que querem estimar o estado real das coisas na política mundial, para aqueles que buscam encontrar uma ferramenta adequada para generalizações da ciência política de uma nova era” “Civilização como conceito, interpretada no contexto filosófico contemporâneo, é o centro de uma nova ideologia. Essa ideologia pode ser definida com multipolaridade.” Good enough.

GRETA THUNBERG VS. GOLIAS II: “A oposição ao globalismo, que está se declarando em todos os níveis e todos os lugares do mundo, ainda não formou um sistema específico de crenças. E esta é a fraqueza do movimento antiglobalização – ele não é sistematizado, falta harmonia ideológica, nesse sistema elementos fragmentários e caóticos dominam e geralmente representam uma vaga mistura de anarquismo e esquerdismo irrelevante, ecologismo e até outras idéias mais extravagantes e marginais.” “Os 3 níveis [Jihad, tradicionalistas e países subdesenvolvidos] existentes de oposição ao globalismo e à hegemonia americana não podem liderar uma estratégia comum e uma ideologia coerente que uniria as várias e espalhadas forças, geralmente diferentes em tamanho.” “Conflitos e alianças são possíveis aqui. O mundo multipolar que surge nesse caso criará pré-requisitos reais para a continuidade da história política da humanidade, adotando uma diversidade regulatória de sistemas religiosos, econômicos, culturais, sociopolíticos e de valores.” “Fazer da civilização um sujeito na política mundial do séc. XXI permitirá a ‘globalização regional’ – uma união de países e nações pertencendo à mesma civilização. [entender civilização no sentido não-depreciativo aqui empregado simplesmente como cultura] Isso levará à vantagem da inclusão social, mas não com respeito a todos sem distinção, mas primeiramente àqueles que pertencem ao tipo comum da civilização. [todos os anti-imperialistas, anti-americanos]” “reconhecendo o direito dos europeus formarem uma nova entidade política [novas entidades políticas, pois a Europa é completamente fragmentária, caldeirão cultural – a revanche do colonialismo!] baseada em suas diferenças civilizacionais, é natural assumir processos similares na civilização islâmica, China, Eurásia, América Latina e África.”

O Grande Espaço é outro nome para o que chamamos de ‘civilização’ no seu sentido geopolítico, cultural e espacial.” “Em vários grandes espaços o fator de integração pode variar – em alguns será a religião, outros, uma origem étnica comum, outros uma forma cultural comum, em outros ainda o tipo sociopolítico ou a simples localização geográfica.”

Huntington identifica as seguintes [8 civilizações]: ocidental; confuciana (chinesa); japonesa; [tenho minhas dúvidas…] islâmica; hindu; eslavo-ortodoxa; latino-americana; e possivelmente a africana.”

Na civilização ocidental, Huntington inclui os Estados Unidos (com o Canadá) e a Europa. Historicamente isso é verdade, mas atualmente, de um ponto de vista geopolítico, eles formam na relação entre si dois ‘grandes espaços’ diferentes e seus interesses estratégicos, econômicos e até geopolíticos divergem mais e mais.” A Alemanha não soube ler a Guerra da OTAN-Ucrânia… Perdeu uma janela de oportunidade…

A Europa tem 2 identidades – ‘atlantista’ (que pode ser definida com a Europa e a América do Norte) e ‘continental’ (que tende, pelo contrário, a não ser somente o trampolim militar do ‘grande irmão’ norte-americano, mas a conduzir uma política independente e voltar a fazer da Europa um ator independente).

O euroatlantismo tem sua base no Reino Unido e nos países da Europa Oriental (direcionados pela russofobia) e o eurocontinentalismo tem sua base na França e Alemanha, com apoio da Espanha e Itália (a clássica Velha Europa).”

O mundo Islâmico (…) no entanto, é dividido em vários ‘grandes espaços’ – o ‘mundo Árabe’, a ‘zona continental do Islã’ (Irã, Afeganistão e Paquistão) e a região do Pacífico com influência muçulmana. Um lugar especial nessa situação pertence à África Muçulmana, assim como às crescentes comunidades muçulmanas na Europa e América.

É difícil estabelecer as fronteiras entre as zonas de influência das civilizações chinesa e japonesa no Pacífico, cuja identidade civilizacional continua [em] abert[o].

E claro, é difícil falar da consciência geral dos habitantes da África, ainda que [n]o futuro essa situação possa mudar, pois este processo tem pelo menos 2 precedentes históricos: a Liga das Nações Africanas e os ideais Pan-Africanos.

A reaproximação dos países latino-americanos é evidente, mas dada a pressão norte-americana nos últimos anos, não podemos falar em nenhum processo de integração ali.”

A fronteira ocidental da civilização eurasiana é em algum lugar ao leste da fronteira ocidental da Ucrânia, fazendo esse Estado ser frágil e insustentável.” Importantíssimo.

Não existirá padrão universal – nem material nem espiritual. Cada civilização finalmente proclamará que ela própria é uma medida das coisas. Em alguns lugares a medida será o homem, em outros – religião, em outros – ética, em outros – a matéria.”

O dia atual não dá oportunidade para falar de qualquer espaço estritamente definido para qualquer projeto esquerdista (social, socialista ou comunista), se comparado com o contraste da situação que por um século predominou no campo das ideias e projetos políticos.” Podemos chamar a primeira metade do século XXI de TROTSKISTA por excelência (“dividirmo-nos para sermos conquistados!”).

Primeiramente, ela foi causada pelo colapso da União Soviética e pela desintegração do campo socialista bem como pelo declínio de influência e prestígio do marxismo europeu” Como os idiotas reacionários que não entendem o niilismo, toma o efeito pela causa. É impressionante e aterrador, no pior dos sentidos, verificar que um russo tido como sábio, atuante em diversos campos das humanas, ainda que anti-propaganda ocidental, não se dê conta de que a reproduz nesses pontos mais cruciais! Está pavlovianamente condicionado a repetir, como um cão da CIA além-mar que o colapso da União Soviética isso e aquilo. Dispersar forças, causar dissensão nos tais blocos multipolares que almeja formar (chega a ser absurdo!), retardar, atrapalhar: faz tudo que o Ocidente quer e não espera que nem o melhor espião instalado na Rússia consiga!

Inicialmente, a filosofia da esquerda era considerada como sendo uma crítica fundamental, unificada e sistematizada do capitalismo liberal. Em meados do século XX um fenômeno como a crítica sistemática do projeto esquerdista emergiu (tanto dos liberais – Hayek, Popper, Aron, [a ‘bancada evangélica das ciências sociais’] etc. – quanto e dos neomarxistas e marxistas freudianos). Escolas filosóficas fizeram o mesmo à ideologia da esquerda que o projeto esquerdista fez ao capitalismo liberal 100-150 anos atrás.”

Desde a perspectiva da experiência histórica hodierna, há 3 tendências básicas na filosofia política esquerdista,¹ que ou continuam projetos ideológicos prévios em uma nova fase, ou reconsideram o passado, ou sugerem algo radicalmente novo.”

¹ O imbecil que traduziu isso fez para sacanear: “da esquerda” é a única opção não-pejorativa.

AS 3 TENDÊNCIAS DA ESQUERDA APUD DUGIN:

  • Vetero-gauchistes;

  • Nazbol; [ERRO CRASSO – DESCONSIDERAR EM UMA ANÁLISE SÉRIA]

  • Esquerda pós-moderna [deleuzianos]

Realmente estamos fodidos se acompanhados de nacionalistas e criptoliberais (o que os próprios liberais chamam de ‘identitários’, grosso modo)!

Faz ainda o desfavor de subdividir os “veteranos” (nome que não tem como não soar pejorativo também) em mais 4 ‘seitas’.

Pós-social-democratas (defensores da ‘Terceira Via’, segundo Giddens).” Isso faz um zero absoluto de sentido! Viuvinhas de Castro (no sentido de que ‘depois ele, nada será como antes’, ou seja, são apenas abutres deletérios, não veteranos clássicos)?! Como veremos mais adiante, é ainda pior do que isso, e o termo, que parece só um infeliz homônimo, realmente parece ter guiado neocons dos anos 90 (pós triunvirato do mal Reagan-Thatcher-Clinton): o herdeiro Tony Blair, o suposto criador do termo ‘terceira via’ para designar uma forma disfarçada de neoliberalismo, continuando a desmobilizar a classe trabalhadora, não instituindo o Estado do Bem-Estar, apenas que sem a mesma bala na agulha da administração da Donzela de Ferro para ferrar os britânicos populares. Bom, Giddens é inglês, devia ser o Dugin de Blair! Ou seja: o trabalhismo britânico pode ir para o inferno com seu ‘Lorde’ (título concedido a Giddens). O irônico é que, avatar da globalização (o termo neutro), ainda é considerado por D. um esquerdista, em flagrante contradição com suas invectivas antiglobalistas! Que intelectual de esquerda em sã consciência se declara pró-globalização? Alguém no poder, num país rico, é óbvio! (Portanto, pode estar à esquerda de alguns países na Europa, mas nada tem de esquerda.) Além de haver sido o braço forte de Blair, recebeu este prêmio: ‘Prémio Príncipe das Astúrias para as Ciências Sociais’. De sociólogos babacas com títulos honoríficos, já estamos cheios no Brasil, tendo um deles até ocupado o assento da presidência e retardado em mais algumas décadas qualquer colaboração regional interessante e geopoliticamente relevante com nossos vizinhos!

PÉSSIMO, PÉSSIMO, PÉSSIMO: “A inércia preserva sua existência nos países europeus, nos EUA e no Terceiro Mundo onde eles continuam a se apegar às fundações básicas da doutrina marxista. [quem dera!] Muitas vezes estando politicamente incorporados em partidos comunistas, eles professam sua ideologia relevante. [Se o Brasil tem um partido comunista funcional, será já demasiado! Quem seria capaz de apontá-lo?] Geralmente, estes marxistas ortodoxos mitigam suavemente (no espírito do eurocomunismo [nada aqui se assemelha a essa configuração muito específica, geo-histórica, européia!]) o radicalismo da doutrina marxista e rejeitam o apelo pelo levante social e pelo estabelecimento da ditadura do proletariado. [então não são ortodoxos, ó, Einstein!] O movimento trotskista (Quarta Internacional) provou ser a forma mais estável da Ortodoxia Marxista” Quem precisa de inimigos quando a Q.I. pode apunhalá-lo pelas costas? Triste afirmação a do último parágrafo. Quando o liberalismo revisionista é seriamente considerado como a raiz do marxismo atual, algo vai muito mal! E o mais irônico: Que tem a tal revolução permanente (conceito trotskista) a ver com uma suposta inércia (destacada acima)? Justamente nada; pulverizaram o marxismo.

Tipicamente, os seguidores mais ortodoxos de Marx podem ser encontrados nos países que não passaram por qualquer revolução proletária socialista” “Essa versão de Velhos Esquerdistas¹ rejeita a experiência soviética como um exagero histórico [não diria que rejeita – é menos radical do que isto] e não acreditam (sic) no sucesso das previsões marxistas. [segundo Dugin, sem base] Porém, ela continua a sustentar suas crenças como adesão a um ‘sentimento moral’ [nada como ser da minoria nutrida de caráter!] e a uma ‘tradição ideológica’ ao invés de realmente esperar uma revolta do proletariado (que parece não existir enquanto classe no mundo ocidental moderno – nesse sentido ela se fundiu com a pequena-burguesia).” Nada esperamos, realmente. Sabemos que não há condições materiais de realizá-la no cenário imperialista atual, antes de forjar as alianças multipolares de amplo alcance tão bem-enumeradas por D.

¹ Sempre detratando… É por isso que eu jamais deixo de detratar Dugin nessa análise quase parágrafo-a-parágrafo, em retaliação!

O principal defeito dos marxistas ortodoxos ocidentais é que eles continuam a usar termos da sociedade industrializada, [é verdade; porém os malefícios desse suposto atraso são superestimados] enquanto a sociedade euro-ocidental e particularmente a americana já passaram a uma nova fase – a fase da sociedade pós-industrial (de informação).¹ E ela não foi mencionada por nenhum dos clássicos marxistas,² exceto por uma vaga intuição do jovem Marx sobre ‘a dominação real do capital’. Esta – na ausência ou em caso da derrota das revoluções socialistas – pode substituir a ‘dominação formal do capital’, inerente à fase industrializada. Porém, os marxistas ortodoxos, via de regra, não têm interesse nessas menções fragmentárias.” E nem deviam. A única coisa fragmentária que vale a pena são os aforismos nietzschianos.

¹ É como dizer que se agora tudo que está na moda é o pós-estruturalismo, nunca devemos mexer com metafísica. Um comentário suicida do ‘conservador’ Dugin, que quer uma ‘revolução civilizatória tradicionalista’!!

² O “clássico”, por definição, não abordaria o pós-industrialismo!

Quase todos os aderentes dessa direção ideológica desconfiam de outras forças antiliberais, estão fechados para o diálogo e se degeneram em uma seita.” Hahahaha! Se o antifascismo é uma seita, eu quero ser carola! O ruim de Dugin é que ele parece estar descrevendo o PCO – ou melhor, ele ESTÁ descrevendo o PCO – enquanto tenta compreender amplos espectros sociais como a esquerda latino-americana, o lulismo, o petismo, o PSOLismo, os próprios sociais-democratas, que, todos, em maior ou menor medida, se uniram num pacto, demonstrando imensa capacidade de diálogo. Submetendo-se a alianças com o Centrão menos captado pelo bolsonarismo e até mesmo a antigos adversários e antíteses ideológicas como o Camarada Alckmin! Não é um feito pequeno de pé de página! Dugin, entretanto, perpassa-o com a profundidade de uma arraia…

Os social-democratas europeus são um pouco diferentes dos comunistas ortodoxos. Essa tendência política se separou do marxismo, e desde o tempo de Kautsky ela escolheu a via evolucionária ao invés da revolucionária, rejeitando o radicalismo e objetivando construir a influência da esquerda (justiça social, Estado de Bem-Estar Social – Estado-Providência e daí em diante)¹ por meios políticos e através de movimentos sindicais organizados.” Onde Dugin situaria o PT se ele estivesse na Europa – chamemos de menchevismo,² se se tratar, p.ex., de um petista anti-estalinista (o pior tipo). E parece que movimentos sindicais organizados já pressupõem a inclusão da esquerda daquele país no marxismo ortodoxo, em tempos de completa erosão da luta de classes!

¹ Desmontados a cada crise cíclica do Capital.

² MENCHEVISMO vs. TROTSKISMO E REVISIONISMO: O leitor mais crítico e desconfiado me perguntaria: Ora, e qual a diferença entre o menchevique do séc. XXI (partidos de esquerda do Terceiro Mundo da atualidade; partidos europeus da época do pós-guerra, antes da onda neoliberal) e o trotskista? É que nós não escondemos o que somos, somos sociais-democratas, a contragosto e como fato estratégico, por demasiado senso de realidade (não haverá uma revolução local enquanto os EUA derem as cartas no mundo – não diria nem que padecemos de falta de esperança ou ceticismo, somos apenas bons observadores, não pessimistas, mas sábios); os trotskistas só querem a continuação do que está aí, mas mesmo assim se chamam de bolcheviques mais autênticos que os soviéticos mais abnegados em sua época. E cá entre nós: quem não gosta de um Estado do Bem-Estar Social? O problema é que onde há uma Cuba, há Estados Unidos destruindo e boicotando tudo. A China (ou Eurásia) é sim uma boa-nova, no horizonte…

Os social-democratas defendem:

  • Imposto de renda progressivo (vs. liberais defendem uma alíquota proporcional);

  • Nacionalização dos grandes monopólios (vs. liberais – privatização); [isso por si só, na Venezuela, quase causa uma invasão direta norte-americana (diferente da ‘guerra de procuração dos 2 Vietnãs-satélites de EUA/URSS) – a primeira da História contra um país ‘comunista’ ou ‘claramente não-neoliberal’ – ainda mais quando falamos de monopólio de empresas petrolíferas!]

  • Atribuir maior responsabilidade ao Estado no setor privado;

  • Saúde, educação e aposentadoria gratuitas (vs. liberais – redução da intervenção do Estado na economia, saúde privada, educação privada e planos de aposentadoria privada). [os social-democratas representam minha visão de paraíso]

Ora, se eu não posso ter ainda os dedos, eu quero os anéis, um por um! Não vejo problema…

Os social-democratas tentam implementar essas demandas através de mecanismos eleitorais parlamentares e, se confrontados com situações críticas, através da mobilização de sindicatos e organizações públicas até a realização de greves. [ambos vêm se demonstrando ineficazes: parlamentos conservadores mesmo em governos de esquerda; desintegração dos direitos trabalhistas.]

É significativo que os social-democratas usem slogans libertários (não confundir com liberais!):

  • Legalização das drogas leves;

  • Proteção de minorias sexuais e étnicas e dos casamentos homossexuais;

  • Extensão dos direitos civis e liberdades individuais; [aborto, etc.]

  • Ecologia; [nome bonito e inofensivo para sobrevivência]

  • Mitigação da legislação (abolição da pena de morte), etc. [para casos irreversíveis de desumanização – bolsonarismo –, sou a favor da pena de morte]

Além disso, social-democratas clássicos normalmente defendem:

  • Progresso; [vago e inócuo]

  • Luta contra preconceitos arcaicos e religiosos;

  • Ciência e cultura. [Somente num país que nunca teve ciência – como nunca tivemos, não é possível exagerar nela – diferente da Alemanha do séc. XIX… Pulamos a parte da Ilustração quando conseguimos repeti-los em seu pior, o que vem depois: ascensão de um Hitler.]

São os defensores da Terceira Via que são renegados dos movimentos esquerdistas, de fato. E apenas ex-trotskistas vão mais longe do que isso (os trotskistas americanos – os principais teóricos neoconservadores; e os trotskistas europeus, por exemplo, Barroso, o presidente português da Comissão Européia), que mudaram suas visões do comunismo extremista e do socialismo revolucionário para uma igualmente radical defesa do liberalismo, do mercado e da desigualdade econômica.

O ‘Nacional-Esquerdismo’ deveria ser considerado um fenômeno muito especial. Diferentemente do marxismo ortodoxo e da social-democracia, essa tendência tem sido pouco explorada e sua interpretação correta é uma tarefa do futuro. O caso é que o próprio Nacional Esquerdismo (sic) quase nunca faz propaganda de sua idéia nacional, a oculta ou até abertamente a critica. Conseqüentemente, o estudo do discurso aberto ou direto do movimento, partidos e regimes nacional-comunistas são dificultados devido ao fato de que as teses discursadas ou correspondem com a realidade apenas parcialmente, ou de jeito algum.”

Nacional-comunistas se consideram ‘apenas comunistas’, ‘marxistas ortodoxos’, que seguem estritamente as ideias clássicas marxistas.” Achar que somente os países “não-preparados para o comunismo” efetivamente atingiram revoluções comunistas, como Dugin faz, é uma forma mal-disfarçada de acreditar no progresso e na linearidade da História: chegará o dia em que…, só deu errado porque…, nada até aqui comprova a tese do adversário…, todos os problemas serão resolvidos amanhã…, etc. Não há regras fixas e imutáveis. O pior é que Dugin tenta passar essa mesma mensagem seu livro inteiro e não percebe que recai em contradição. Cabe perguntar: para Dugin, China e Venezuela seriam nacional-comunistas? A China tenta reorganizar o mundo em frentes multipolares, como líder do movimento anti-imperialista; a Venezuela, sem forças para liderar, é no entanto agente ativo e colabora com o projeto político chinês. São realmente comunistas. O fato de não haver um comunismo mundial ou pelo menos entre os próprios vizinhos de ambas as nações em nada contraria essa classificação.

O nacional-comunismo predominou na URSS, na China comunista, na Coréia, no Vietnã, na Albânia, no Camboja e em um número de movimentos comunistas nos países do terceiro mundo – dos ‘Chiapas’ mexicanos e do ‘Sendero Luminoso’ peruano ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão e ao socialismo islâmico.” “o nacional-socialismo anti-hitlerista de esquerda dos irmãos Strasser”

Evo Morales é o primeiro líder latino-americano de origem indígena” Até Dugin reconhece o óbvio pioneirismo desta façanha.

a China, nas condições atuais, mais e mais focando no componente nacional de seu modelo social e político, prova que esta base, transformada no tempo adequado e de modo delicado, pode permanecer competitiva mesmo após o triunfo global do capitalismo liberal. Por outro lado, a experiência da Venezuela e da Bolívia demonstra que os regimes nacional-comunistas aparecem hoje em dia e demonstram sua viabilidade mesmo diante de sérias pressões.” Conclusão: não existe nacional-comunismo, apenas comunismo do século XXI.

Ausência de conceitualização e racionalização do componente nacional em toda a idéia-complexo dos movimentos e ideologias Nacional-Comunistas (a maioria dos aderentes dessa direção ideológica se considera ‘apenas marxistas’ e ‘socialistas’)” Dugin não percebe que com bastante probabilidade isso significa tão-só que não existe esse tal <nacional-comunismo>, categoria forjada dentro de sua própria cabeça.

Algo que hoje deve corresponder quase completamente com a combinação de palavras ‘projeto da esquerda’ é chamado ‘neoesquerdismo’ ou ‘pós-modernismo’. Em todo o espectro de idéias esquerdistas no início do século XXI essa direção não apenas é a mais inteligente, mas também a mais pensada, intelectualmente regulada e sistematizada.” Caiu no conto de Washington. É a idéia mais pensada (não a mais sábia!) e a menos agida, digamos assim.

Através de Sartre, clássico dos ‘novos esquerdistas’, [!] Martin Heidegger e a problemática existencialista influenciaram profundamente o movimento esquerdista.” “No sentido filosófico, os ‘novos esquerdistas’ eram estruturalistas, porém, desde meados da década de 80 eles passaram ao ‘pós-estruturalismo’, desenvolvendo ainda mais esse impulso[,] filosófico e começaram a criticar suas próprias perspectivas das décadas de 60 e 70.” O círculo se fecha sem deixar herdeiros ou legado. O círculo estéril.

Os ‘novos esquerdistas’ reduziram todas as versões do deciframento da ‘infraestrutura’ ao esquema integrante, no qual o papel da ‘infraestrutura’ enquanto tal – independentemente da tendência filosófica específica – foi transferido para o conceito de ‘estrutura’.” “Os novos esquerdistas reencarnaram as idéias de Rousseau sobre um nobre selvagem e ofereceram um panorama da sociedade ideal, na qual não se pode encontrar exploração, alienação, mentira, supressão, exclusão, em analogia com grupos arcaicos praticantes da ‘economia da dádiva’.” “O livro de A. Negri e M. Hardt, Império, no qual as teses dos novos esquerdistas são simplificadas até a primitividade, pode ser considerado um manifesto político dessas tendências.” “O movimento antiglobalização como um todo é orientado por este projeto futuro. E eventos como o Foro de SP,¹ no qual os globalistas pela primeira vez tentaram definir uma estratégia geral, indicam que o projeto da Nova Esquerda tenta formar uma implementação política específica.” “…os protestos generalizados dos novos sindicatos, mais e mais reminiscentes do carnaval…” [?]

¹ Hahaha. Em outros termos, o tal Foro de SP, bode expiatório criado pela extrema-direita, é apenas um movimento da direita (ou Velha Direita, se o Neofascismo Antiglobalista for a Nova).

Ademais, o pós-modernismo como estilo de arte, o que se tornou corrente na arte ocidental moderna, expressa simplesmente esta filosofia política da ‘Nova Esquerda’, penetrando em nossa vida quotidiana através de pintura, designs e filmes de Tarantino e Rodriguez desprovidos de análise política e filosófica preliminar, deixando para trás uma escolha consciente e se impondo contra nossa vontade.” Quem disse que toda a arte pós-moderna é de esquerda?

Na prática, nós vemos que não há ‘velhos esquerdistas’ no sentido completo nesse país, bem como no tempo soviético. O grupo dos dissidentes soviéticos (Zinoviev, Shchedrovitsky, Medvedev) não conta, na medida em que eles não conseguiram desenvolver qualquer escola notável. [seria a quarta teoria política de D. uma ‘escola notável? e se for, este é um critério válido para estabelecê-la como preferível à ideologia destes dissidentes?]

Por outro lado, os nacional-comunistas representam uma camada social, psicológica e política ampla com o Partido Comunista da Federação Russa a sua frente. Como toda a história soviética – marcada [pela] vitória do socialismo (um garantido sinal de base arcaica) – é a história do nacional-esquerdismo inconsciente, essa tendência dificilmente é surpreendente.” Haja -ente, diria Heidegger.

o social-conservadorismo da Rússia Unida e de Putin”

Enquanto [isso,] os grupos marginais que imitam o neo-nazismo europeu e tentam usar ‘nacional-socialismo’ em seus nomes jamais foram ‘nacional-esquerdistas’, já que eles imitam (como resultado de uma inferioridade mental) [hahaha!] as bugigangas do regime hitlerista, continuam a brincar de soldados e assistem à série de TV Seventeen Moments of Spring,¹ admirando o uniforme negro de Bronevoy-Mueller. [hahahahaha!] O projeto do PNB (Partido Nacional-Bolchevique), o qual ia desenvolver em um autêntico Nacional-Esquerdismo russo [enfia essa nomenclatura na bunda!] baseado nas idéias de Ustrialov, Niekisch e dos eurasianistas de esquerda, infelizmente, ao fim da década de 90[,] havia degenerado em uma formação barulhenta e insignificante[;] e depois começou a servir a forças ultraliberais antirrussas ‘laranjas’, alimentadas pelo Ocidente (contradizendo objetivos fundamentais do ‘nacional-bolchevismo’, o qual é tanto em teoria como na prática um projeto consciente de esquerda… [acabou de afirmar que a história da Rússia é a história do nacional-esquerdismo inconsciente… como conciliar ambas as passagens, tão próximas no texto?])”

¹ “Seventeen Moments of Spring (Russian: Семнадцать мгновений весны, romanized: Semnadtsat’ mgnoveniy vesny) is a 1973 Soviet 12-part television series, directed by Tatyana Lioznova and based on the novel of the same title by Yulian Semyonov. The series portrays the exploits of Maxim Isaev, a Soviet spy operating in Nazi Germany under the name Max Otto von Stierlitz, portrayed by Vyacheslav Tikhonov. Stierlitz is planted in 1927, well before the Nazi takeover of pre-war Germany. He then enlists in the NSDAP and rises through the ranks, becoming an important Nazi counterintelligence officer. He recruits several agents from among dissident German intellectuals and persecuted clergy. Stierlitz discovers, and later schemes to disrupt, the secret negotiations between Karl Wolffa and Allen Dulles taking place in Switzerland, aimed at forging a separate peace between Germany and the western Allies. Meanwhile, the Gestapo under Heinrich Müllerb searches for the unidentified Soviet resident spy and his ring. The series is considered the most successful Soviet spy thriller ever made and is one of the most popular television series in Soviet history.” “Within the novel Semyonov mentions the phrase seventeen moments of spring in reference to the lyrics of a song sung by Marika Rökk, a popular star in Nazi Germany.” “Broadcast at 19:30 by the channel Programme One between 8 July and 24 August 1973, Seventeen Moments of Spring was immensely popular in the Soviet Union: Klaus Mehnert reported that during its original run, the estimated audience for each episode was between 50 and 80 million viewers, making it the most successful television show of its time. Ivan Zasursky described the series’ reception by the public: ‘during its first showing, city streets would empty. It was a larger-than-life hit, attracting greater audiences than hockey matches.’ Crime rates dropped significantly during the broadcasts; power stations had to increase production at the same time, since the activation of many television sets caused a surge in electricity consumption. Oleg Kharkhordin wrote that Seventeen Moments of Spring became a ‘cult’ series, and Richard Stites added it was ‘a television blockbuster’. According to his personal assistant Alexei Chernayev, Leonid Brezhnev was a devoted fan of Seventeen Moments of Spring, and watched the entire series some 20 times. Author Anthony Olcott claimed that it was rumored Brezhnev moved meetings of the Central Committee of the Communist Party of the Soviet Union in order not to miss episodes. Seventeen Moments of Spring remained highly popular after its first run in 1973. It was re-aired annually until the dissolution of the USSR, usually around Victory Day, and continued to be broadcast in Russian television afterwards. In 1983, a writer of the Paris-based Polish magazine Kultura described Seventeen Moments of Spring as ‘the most successful television production in the history of the Soviet Union’. In 1995, after another re-run, Russian commentator Divanov noted: ‘Just like 20 years before, city streets were empty during the showing … A drop in the crime level almost to zero was noted in cities, which testifies to the popularity of Seventeen Moments.’“Vladimir Putin told that his decision to join the organization was motivated by the spy thrillers of his childhood, among them Lioznova’s series.”

a “He escaped prosecution at the Nuremberg Trials, apparently as a result of his participation in Operation Sunrise. In 1962, Wolff was prosecuted in West Germany for the deportation of Italian Jews, and he was sentenced to 15 years in prison for being an accessory to murder in 1964. He was released in 1971 due to his failing health, and died 13 years later.”

b “He was known as Gestapo Müller to distinguish him from another SS general named Heinrich Müller. (…) He was last seen in the Führerbunker in Berlin on 1 May 1945 and remains the most senior figure of the Nazi regime who was never captured or confirmed to have died.”

Project MKUltra (or MK-Ultra) was an illegal human experimentation program designed and undertaken by the U.S. Central Intelligence Agency (CIA), intended to develop procedures and identify drugs that could be used in interrogations to weaken individuals and force confessions through brainwashing and psychological torture. It began in 1953 and was halted in 1973. MKUltra used numerous methods to manipulate its subjects’ mental states and brain functions, such as the covert administration of high doses of psychoactive drugs (especially LSD) and other chemicals without the subjects’ consent, electroshocks, hypnosis, sensory deprivation, isolation, verbal and sexual abuse, and other forms of torture.” “In areas under American control in the early 1950s in Europe and East Asia, mostly Japan, Germany and the Philippines, the CIA created secret detention centers so that the U.S. could avoid criminal prosecution. The CIA captured people suspected of being enemy agents and other people it deemed ‘expendable’ to undertake various types of torture and human experimentation on them. The prisoners were interrogated while being administered psychoactive drugs, electroshocked and subjected to extremes of temperature, sensory isolation and the like to develop a better understanding of how to destroy and to control human minds.” “In 1973, amid a government-wide panic caused by Watergate, CIA Director Richard Helms ordered all MKUltra files destroyed. Pursuant to this order, most CIA documents regarding the project were destroyed, making a full investigation of MKUltra impossible. A cache of some 20,000 documents survived Helms’s purge, as they had been incorrectly stored in a financial records building and were discovered following a FOIA request in 1977. These documents were fully investigated during the Senate Hearings of 1977.”

The Bay of Pigs Invasion (Spanish: Invasión de Bahía de Cochinos, sometimes called Invasión de Playa Girón or Batalla de Playa Girón after the Playa Girón) was a failed military landing operation on the southwestern coast of Cuba in 1961 by Cuban exiles, covertly financed and directed by the United States. It was aimed at overthrowing Fidel Castro’s communist government. The operation took place at the height of the Cold War, and its failure influenced relations between Cuba, the United States, and the Soviet Union.”

Novos esquerdistas e pós-modernistas estão quase ausentes no espectro político russo; o discurso filosófico pós-moderno é complicado demais para eles.” “Na arte russa – em particular em Vinzavod, na galeria Guelman, bem como nos filmes russos – tendências pós-modernas são claramente visíveis, e sua expressão artística é às vezes impressionante. Os livros de Sorokin ou Pelevin representam o pós-moderno em uma forma literária.” “A Rússia desempenha um papel de consumidor inativo, que não entende o sentido político e ideológico daquilo que automaticamente consome – seguindo a moda e tendências globais”

Niekisch, Hitler: Desastre para a Alemanha: “Niekisch confrontou o Nazismo e os nazistas, e previu mais cedo e mais precisamente do que outros quais seriam as consequências de seu domínio sanguinário para a Alemanha e para a humanidade.”

Nos casos extremos, os liberais apóiam não apenas a liberdade de aborto, mas até mesmo a liberdade de diferenciação sexual (apoiando os direitos de homossexuais, transexuais e daí em diante).”

Tal Estado-Nação (État-Nation) não possuía qualquer objetivo histórico comum, qualquer missão determinada. Ela (sic) concebia a si mesma como uma ‘corporação’ ou empresa estabelecida pelo acordo recíproco de seus participantes e que teoricamente pode ser dissolvida a partir das mesmas bases.”

Na metade do século XX o filósofo francês, hegeliano de origem russa, Alexander Kojève sugeriu que o ‘fim da história’ hegeliano marcaria uma revolução comunista mundial.”

crítico francês dos EUA, Hubert Vedrin, sugeriu que os EUA deveriam daí em diante ser chamados não de uma superpotência, mas de uma hiperpotência, enfatizando sua solidão e sua superioridade assimétrica.” “Não é simplesmente colonização ou uma nova forma de imperialismo, este é um programa de implementação total do único sistema ideológico, copiado da ideologia liberal americana.” “tanto amigos como inimigos estão sujeitos à reformatação, como estão aqueles que desejam permanecer neutros. Este é o sentido do ‘século americano’: o liberalismo, tendo derrotado seus inimigos formais, penetra completamente.”

E não é acidente que os neoconservadores emergiram do trotskismo.” “São precisamente os neoconservadores, determinando o tom da política americana contemporânea, que compreendem mais profundamente o sentido ideológico do destino dos ensinamentos políticos na alvorada do século XXI.”

O princípio da separação de poderes se transmuta na idéia de um referendo eletrônico constante”

até o último momento da queda da URSS, os líderes do liberalismo russo elogiavam o Partido Comunista, as idéias de Marx, o Socialismo Planificado, enquanto os oligarcas ‘ganhavam o pão’ no Comitê dos Komsomols ou serviam na KGB.”

Quando Putin chegou ao poder e tentou reverter o processo de desintegração da Rússia, ele não encontrou, em grande medida, nenhuma oposição ideológica. Ele foi desafiado por clãs econômicos concretos, em cujos interesses ele discerniu a mais ativa agência de influência, profundamente entrincheirada na espionagem a serviço do Ocidente.” “Mesmo figuras icônicas do liberalismo russo – Gaydar, Chubais, etc. – se comportaram como oportunistas banais: eles não davam a mínima para o conteúdo ideológico das reformas de Putin.” “Intuitivamente buscando preservar e consolidar a soberania russa, Putin entrou em conflito com o Ocidente liberal e seus planos de globalização, mas sem formar suas ações em uma ideologia alternativa. Isso ocorreu principalmente porque havia muito poucos liberais convictos na Rússia.” “Se as pessoas passam a agir como liberais apenas quando o liberalismo é permitido, está na moda, ou até mesmo é obrigatório, prontos diante da primeira dificuldade para repudiar esses princípios, esse ‘liberalismo’ não tem nenhuma relação com o tipo real. Parece que Khodorkovsky, o ‘ícone’ dos russos liberais contemporâneos, entendeu isso tendo passado algum tempo na prisão. Mas nisso, me parece, ele é uma exceção entre os liberais que permanecem livres.”

A revolução é um fato empírico. Isso significa que a revolução foi, é e será.” “Em anos recentes, um paternoster sociológico, que diz que a Rússia exauriu seu limite para a revolução, se tornou bastante relevante.” “O sentido da revolução se encontra na insatisfação com o que existe, e na declaração [de] que deve haver algo mais. A revolução é uma busca pela superação do que é presente nesse momento.” “Vive-se na revolução apenas; em outros tempos se está delirando, sonhando, se vive aguardando a revolução.” “Nós somos tentados a nos convencermos de que não houve Revolução de Outubro, esta última sendo chamada de uma reviravolta, uma conspiração, uma influência de ‘forças sombrias’, com instrumentos conspiratórios sendo utilizados, com tudo sendo traduzido ao plano dos modelos econômicos.” “Apenas o tempo revolucionário é um tempo realmente, porque não possui duração, já que é tempo de mudança, uma ruptura, um tempo de aparecimento do novo, um tempo de Ereignis. Segundo Heidegger, a noção de ‘Evento’ (Ereignis)é ruptura de rotina, um encontro com algo, que não havia sido. Essa é a essência antropológica, ontológica e temporal da revolução. É por isso que o tempo da revolução é o oposto de qualquer outro tempo, porque o homem se torna ele mesmo nesse tempo. No resto do tempo o homem está essencialmente adormecido aguardando pela revolução.” “Durante esse período onírico entre duas revoluções o homem considera sua identidade como positiva, isso quer dizer que ele começa a se associar não com a deficiência, mas com algo presente (com comida, bem-estar, cuidado, detalhes pequenos da realidade). (…) O homem não vive como parte de sua existência, ele está sendo substituído por das Man, e a existência humana genuína, o Dasein, está ausente.” “Assim, a revolução é empírica, ontológica e conceitual em sua natureza. Agora nós podemos abordar a perspectiva da revolução em seu aspecto tecnológico.”

Pareto incita a deixar de lado as questões relativas à teleologia da revolução e que o foco da atenção deve ser uma fórmula segundo a qual há duas categorias: aqueles que mandam e aqueles que obedecem (…) Segundo suas teses, a elite é um mestre sociológico, um tipo social, que só pode governar, e não pode se recusar a governar” “E muito de seu trabalho foi dedicado à descrição de como as elites liberais camuflam seus verdadeiros objetivos (governar e controlar) sob os nomes de democracia, direitos humanos e liberdade econômica.” Muito mais útil como analista que 80% da “esquerda”.

alguma parte da elite não possui o poder e ocupa seu lugar (a contra-elite), o qual não é legítimo. E segundo Pareto, tal elite, desprovida de acesso ao poder, porém, não é uma massa. (…) Tal elite constantemente sente que ela não está em seu lugar de direito.”

aquele que pertence à elite é o mais próximo à categoria do Mangelwesen [homem carente, condição humana] e assim ele é mais humano. Ele quer governar sobre outros, porque ele sente repulsa por si mesmo, ele é insuficiente para si mesmo, ele precisa se expressar de algum jeito, lançar sua figura sobre a sociedade, de outro modo sua vida é inteiramente insatisfatória. A massa, por sua vez, paga por sua vida

tranqüila e relativamente segura com seu status de escrava. E a elite é o mestre, que encara uma escolha entre morte e poder”

O segundo modo de lidar com a contra-elite, segundo Pareto, é ignorá-la completamente, dando atenção apenas à massa. Esse é o caminho para o suicídio da elite governante, porque a contra-elite, estando entre as massas, começa a transformá-la, e se agrega à anti-elite. A anti-elite, por sua vez, que é um complexo de pervertidos e desviados, começa a corromper as massas.” “O próximo passo é afastar as massas da elite com a ajuda de elementos anti-elite, e a tomada do lugar da elite pela contra-elite.”

A modernidade é um regime que disse ‘sim’ à revolução, que a tornou aceitável e casual.” “Mas se a revolução foi um ponto da modernidade, na pós-modernidade ela se torna impossível, na medida em que a própria modernidade se tornou impossível.” “Ela compreende bem que, de modo a prevenir a revolução, esta deve ser simulada.” “Nas condições atuais é muito difícil chegar ao fato de que o homem é um Mangelwesen, porque a fronteira entre o que está vazio e o que não está vazio, entre presença e ausência, hoje está diluída.”

E se a elite governante se posiciona como liberal, então a contra-elite terá que ser anti-liberal. Aqui, a plataforma mais apropriada será a ideologia de Louis Dumont e sua obra Ensaios sobre o Individualismo.

Nessa obra o autor insiste que a principal força de oposição ao liberalismo não é o marxismo, mas a sociologia (holista) como disciplina científica. Nos esquemas da sociologia (holista) uma tese sobre a primazia da sociedade em relação ao indivíduo possui um potencial revolucionário.”

Em relação [à contra-revolução], nós deveríamos prestar atenção à obra de Christopher Lasch – A Revolta das Elites. Se a versão anterior do padrão sociológico de Ortega y Gasset foi o fato de que na vanguarda da sociedade apareciam novos tipos sociais, que são incapazes de fazer história, então Lasch aponta que novas elites na verdade refletem o conteúdo e as principais qualidades e características das massas.” “Nossas novas elites consistem em pessoas comuns, de classe média, da pequena-burguesia, de pessoas com uma visão de mundo medíocre. Ademais, a elite moderna evita seus deveres elitistas e se torna um duplo simulacro.” “Quando há apenas uma instância para decidir quem está certo e quem está errado e quem deveria ser punido e quem não deveria, nós temos um tipo de ditadura global. Eu estou convencido de que isso não é aceitável.” “O Império Americano deve ser destruído. E em algum ponto, ele será.”

Espiritualmente, a globalização é a criação da Grande Paródia, o reino do Anticristo. E os Estados Unidos são o centro da sua expansão.” “Nossas idéias podem ser diferentes, mas nós temos uma característica muito forte em comum: o ódio pela realidade social atual.” Diferenças entre etnias não resultam em superioridade ou inferioridade. As diferenças devem ser aceitas e afirmadas sem nenhum tipo de sentimento ou consideração racista. Não existe uma medida comum ou universal para julgar diferentes grupos étnicos. Quando uma sociedade tenta julgar a outra, ela aplica os seus próprios critérios, portanto, comete violência intelectual.”

Se nós libertarmos o socialismo das suas características materialistas, [depreendo que no sentido chulo de morte do espírito e olvido da condição da natureza, que é per se mágica, ‘não-científica’] ateístas [avatar final do monoteísmo] e modernistas, [degenerescência ocidental] e se nós rejeitarmos o racismo e os nacionalismos doutrinários (…) nós chegamos a uma ideologia política completamente nova.” Marx + Nietzsche com um deus que saiba dançar.

Mas este é apenas o primeiro passo. A adição mecânica de profundamente revisadas versões das ideologias antiliberais do passado não nos dá um resultado final.” “Aí nós temos o Estado ideal platônico, a sociedade hierárquica medieval e as visões teológicas do sistema social e normativo (cristão, islâmico, budista, judeu ou hindu). Estas fontes pré-modernas são muito importantes para desenvolver a síntese”

nós devemos rejeitar categoricamente o anti-comunismo” “Ao mesmo tempo, nós devemos nos opor fortemente a qualquer tipo de confronto entre as várias crenças religiosas – muçulmanos contra cristãos, judeus contra muçulmanos, muçulmanos contra hindus, e daí em diante.” “Não é fácil formar uma aliança tão diversificada. Mas nós devemos tentar se quisermos derrotar o inimigo.”

O que é crucial considerar, é a autenticidade ou inautenticidade da existência do Dasein. A Quarta Teoria Política insiste na autenticidade da existência. Para que ela seja a antítese de qualquer forma de alienação – social, econômica, nacional, religiosa ou metafísica.” “Valores como justiça social, soberania nacional e espiritualidade tradicional podem nos servir como fundação.”

A importância do conceito de nous (intelecto), desenvolvido pelo filósofo grego Plotino, corresponde ao nosso ideal.” “O mundo futuro precisa ser noético de algum modo – multiplicidade e diversidade deveriam ser tomadas como riquezas e como tesouro, e não como razão para o conflito inevitável”

falar sobre a Pós-Modernidade é interessante, excitante e arriscado ao mesmo tempo. É um processo com um fim desconhecido e um sentido desconhecido. Ainda é possível afetar esse fim e esse sentido. A história (aparentemente) acabou e a pós-história está apenas ‘começando’, devemos procurar nela por um espaço de luta, ganhar este espaço e expandi-lo.”

[O pós-Estado] é uma espécie de república pirata localizada no ciberespaço. Ou um carnaval brasileiro, que substituiu a rotina.” “completos idiotas são designados como acadêmicos e membros correspondentes” “no centro das atenções, incluindo o debate político, estão os mais íntimos detalhes da vida pessoal” “senadores (anciãos [etimologia da palavra]) são eleitos recém-saídos das escolas (se, por exemplo, eles são parentes de figuras influentes)” “clemência com os criminosos aumentando, atribuição da culpa para a vítima, etc.”

Não existe mais ontem e amanhã, nem mesmo hoje. Existe apenas o agora. Agora são Google e Twitter, mas em um momento estes serão eventos pré-históricos, como o processador Lexicon ou PC286.” “Revoluções pelo Twitter no Mundo Árabe ou presidentes com iPads são claros sinais de pós-antropologia política e do fenômeno do Pós-Estado. A revolta das elites e a oscilação do nível de intensidade da consciência dos grupos dominantes estão ‘próximos de zero’. Um exemplo clássico é um estrategista político viciado em drogas.” O que achou dessa, Aécio?

O soldado político é o mediastino da antropologia política da Modernidade.” “Hoje não temos a chance de conhecer um soldado político, apenas podemos conhecer seu dublê, seu simulacro, seu impostor.”

MEDIASTINO Espaço compreendido entre os dois pulmões e dividido em duas partes pelas pregas das pleuras. (O mediastino anterior encerra o coração e o timo; o mediastino posterior contém o esôfago, a aorta e o canal torácico.).”

O drama dos últimos homens lutando contra pós-homens na oposição política. Heroicamente, tragicamente, poeticamente e irremediavelmente.” “Aqui está a dobra [double bind?] (Deleuze) da antropologia pós-moderna: um simulacro se encontra com um simulacro.”

O feminismo ultra-esquerdista (gauchisme) é um programa de liberação do sexo como uma forma de construção social hierárquica. Falamos aqui não da liberação da essência feminina, mas sobre superar o sexo como ele é. Se a atenção é presa em particulares de outro sexo (por Simone de Beauvoir, Julia Kristeva ou Luce Irigaray), isso é apenas para a relativização da masculinidade no caminho para a libertação. O

desejo não tem sexo. Liberdade é uma liberdade em relação ao sexo.”

A outra direção do ultraliberalismo é a loucura sadomaso nazi-satanista; exaltação da masculinidade burguesa em uma soberania sexual individualista do indivíduo atomizado. Estes são os ‘faça o que quiser’ e ‘com quem quiser’ adicionando uma compensação financeira [?] e um princípio de voluntariedade de Crowley.” Baboseira!

O ‘neo-nazi’ hoje é uma paródia patológica que vem do pasquim barato de Visconti (Os Malditos) ou da exploração tosca e mentalmente fraca no estilo de Recepcionista da Noite. [Eu acrescentaria Venus in Furs, um dos piores livros que já li, do próprio Masoch.] Na área do gênero ‘neo-nazi’ está sempre presente um atributo de entretenimento – clubes gays [estética dos motoqueiros] e decorações clássicas de sex shop.”

Heidegger, que estava no contexto do nazismo, mas representou um molde para a Quarta Teoria Política, viu o Machenschaft [techne, o fazer do homem, o mundo social do trabalho] também naquele. E rascunhou no sentido de superá-lo e recusá-lo. Existem passagens expressivas sobre o tema em Geschichte des Seyns [História do Ser].” “A idéia de Marx de ‘mudar o mundo’ é próxima à compreensão de Heidegger do conceito marxista em sua essência tecnológica.”

P. 419: sobre o clamor heideggeriano

Heidegger pensou muito no problema ‘noch nicht’. Estamos perto do ponto da grande meia-noite.” Heidegger e Dugin: meros plagiários do acabamento da filosofia continental (ontologia clássica – Platão-Nietzsche).

Se colocarmos a quarta prática política em superar a distância intransponível (paradoxo de Zenão sobre Aquiles e a tartaruga …) do ‘ainda não’, vamos ficar para sempre no labirinto do ‘fim dos tempos infinito’.”

P. 420: Morin e o “homo demens”

et passim: nomenclaturas abstrusas à Lacan…

Segundo Heidegger, a existência é finita. Seu último e mais alto mistério está nessa finitude. A finitude se manifesta em Ereignis. Ereignis é exatamente a factualidade da praxis.”

A partir do século XIX, com os filósofos europeus mais brilhantes e importantes como Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger e depois os pós-modernistas contemporâneos, o homem europeu começa a suspeitar que o logos estava se aproximando de seu fim.”

A filosofia européia foi baseada no princípio logocêntrico correspondente ao princípio de exclusão, a diferenciação, a diaresis grega.” Aristóteles repartiu as fatias do bolo para consumo em 2500 anos. A teoria acadêmica do caos é mais do mesmo (raspagem final do logos, últimos restos do bolo no prato). Caos primitivo: não confundir origem com o resto (Baudrillard).

Por um lado temos o conceito moderno de caos que representa a pós-ordem ou uma mistura de fragmentos contraditórios sem nenhuma unidade ou ordem, ligados entre eles por correspondências e conflitos pós-lógicos altamente sofisticados. Gilles Deleuze chamou esse fenômeno de sistema não-co-possível composto por uma multidão de mônadas (usando o conceito de mônada e co-possibilidade introduzido por Leibniz). Deleuze descreve a pós-modernidade como uma soma de fragmentos não-co-possíveis que podem coexistir. Isso não era possível na visão da realidade de Leibniz, baseada no princípio de co-possibilidade.”

As mônadas não-ordenadas e não-co-possíveis enxameando ao redor poderiam parecer caóticas, e nesse sentido [é que] usamos a palavra ‘caos’ no dia-a-dia.”

A visão épica da ascensão e queda do logos no curso do desenvolvimento da filosofia ocidental e na história ocidental foi exposta por Martin Heidegger, que argumentou que no contexto da cultura européia e ocidental o logos não é somente o mais importante princípio filosófico, mas também a base da atitude religiosa, formando o núcleo da Cristandade. Podemos também notar que o conceito de kalam ou intelecto está no centro da filosofia e teologia islâmica. O mesmo é válido para o Judaísmo (ao menos na visão do judeu Fílo [neoplatônico – fi-lo porque qui-lo!] e acima de tudo no Judaísmo Medieval e na Qabballah). Logo, na alta modernidade onde vivemos, assistimos a queda do logos acompanhada pela correspondente queda da cultura clássica greco-romana e das religiões monoteístas.” “Alguma coisa deu errado no início da história ocidental e Martin Heidegger vê esse ponto errado precisamente na afirmação da posição exclusivista do logos exclusivista (sic) no pensamento enquanto tal.” Heidegger comete o erro, entretanto, de localizar o erro grego em Platão ou antes, não em Aristóteles, o formalista. Lembremos que o Absoluto em Platão ainda nos salvará do niilismo e é nossa última salvaguarda ética nessa transição epocal. O jogo do ocultamento (paradoxo da representação) inicia propriamente com o discípulo incompetente, e não foi desmanchado até depois de Schopenhauer, o último filósofo da aletheia

A explosão desenfreada da técnica moderna é seu resultado lógico. Heidegger chama isso de Ge-stell e pensa que essa é a razão da catástrofe e aniquilação da humanidade, que inevitavelmente se aproxima.” Talvez esse Evento não possa mesmo ser evitado (dizimação da grande maioria da humanidade numa conjunção de desastre ‘natural’, hecatombe climática, agência prolongada do homem industrial e agência pontual do homem bélico). “O Outro Começo” ou “origem mais originária” em sucessão a uma Escatologia quase-integral.

ENCRUZILHADA DO DESTINO: “Então o Caos como algo que precede o logos e é abolido por ele e sua exclusividade foi manifestado e negado da mesma forma.”

Esse caminho onde a técnica encontra a ordem espiritual foi fundamentalmente explorado e estudado por Ernst Jünger, amigo de Martin Heidegger. O retorno ao classicismo acompanhado pelo apelo ao progresso técnico.” Isso não é solução, é aprochegar-se e acelerar rumo ao abismo. E de que vale a informação de que Jünger era amigo de Heidegger?

A segunda maneira é aceitar as tendências correntes e seguir a direção da Confusão envolvendo-se mais e mais na dissipação das estruturas, no pós-estruturalismo e tentar conseguir prazer no confortável deslizamento para o nada.Ainda bem que oferece uma alternativa… Porém na sentença seguinte nos decepciona drasticamente com uma falsa equivalência e demonstração de que optou pelo lado errado na birfurcação decisiva: “Essa é a posição escolhida por representantes da esquerda e liberais da pós-modernidade. É niilismo em estado puro – originalmente identificado por F. Nietzsche” Não que tenhamos de fato essa alternativa, para além do mero falatório

multitudes incalculáveis das flores de putrefação.” A última hora é a que mais demora, já disse Nie.

No entanto, podemos escolher uma terceira alternativa e tentar transcender as fronteiras do logosAhá! Topou com o muro de Deleuze no caminho…

atravessar as fronteiras do ser é ontologicamente impossível.” Inferno é vertigem. “Se insistirmos, no entanto, em fazer isso devemos apelar para o Caos no seu sentido original grego, como algo que precede o ser e a ordem, algo pré-ontológico.” “Então apenas o Caos pré-ontológico pode nos sugerir como ir além da armadilha da Pós-Modernidade. Ele foi posto de lado na criação da estrutura lógica do ser como fundamento. Agora é sua vez de vir para o jogo.”

A Modernidade matou a eternidade e a Pós-Modernidade está matando o tempo.” “É um tipo de labirinto sem saída, dobrado e torcido como a fita de Möbius. [a lógica não-euclidiana ainda é um epifenômeno da lógica euclidiana] O logos que era a garantia da retitude da ordem serve aqui para fornecer a curvatura, [a razão fomenta o ‘caos’, no sentido moderno: contra-razão; tragédia.] sendo usado para preservar a impassibilidade da fronteira ontológica com o nada contra eventuais transgressores.” Nenhuma fita de Ariadne poderia nos salvar, se A. é lógica. Uma A. & uma não-A.

E no entanto, da minha perspectiva, Dugin não entendeu que a segunda e a terceira maneira são idênticas. O deslizamento na fita de Möbius é o próprio deslizar ao nada. Não significa que é um destino inevitável e passivo, mas o homem agirá de modo a concretizá-lo, forçosamente (paradoxo lógico – por isso, bom sinal).

O logos considera a si próprio como o que é e como o que é igual a si próprio. Ele pode aceitar as diferenças dentro de si porque ele exclui o que é diferente de si fora de si. Assim a vontade de poder está atuando. A lei da soberania. Para além do logos, afirma o logos, não há nada. Então o logos excluindo tudo além de si próprio exclui o Caos. (…) o inclusivo Caos inclui também o que não é inclusivo como ele e mais do que aquilo que exclui o Caos. Então o Caos não percebe o logos como outro em relação a si próprio, ou como algo não-existente. O logos como o primeiro princípio da exclusão está incluído no Caos, presente nele, envolvido por ele e possui lugar garantido nele.” Resumo: o princípio da contradição inclui o princípio da não-contradição. Era da Grande Lógica.

Assim a mãe que carrega o bebê carrega consigo o que é uma parte dela e não é uma parte dela ao mesmo tempo.” Boa metáfora. Se bem que nesse caso seria a mãe que mata a criança, e mesmo assim continua fértil e negando-se a si mesma para reafirmar novos começos (novo paradoxo lógico-aristotélico). Isto é, a Mãe originária, que mantém a primazia. Pode-se evocar este enigma-solução como a resposta afirmativa (otimista, esperançosa) para o dilema da morte de Deus. Morte temporária (a base para afirmá-lo é o próprio princípio da finitude da existência) de um (tipo de) logos.

O Caos é o eterno nascimento do outro, ou seja, do logos.” “Então chegamos à figura do muito especial logos caótico, que é o logos completamente e absolutamente fresco, sendo eternamente revivido pelas águas do Caos. Esse logos caótico é ao mesmo tempo exclusivo [co-possível] (e é por isso que é propriamente logos) e inclusivo [não-co-possível] (sendo caótico). Trata-se da igualdade e da alteridade de forma diferente.”

Eu poderia sugerir, como exemplo, a filosofia do pensador japonês Kitaro Nishida, que construiu ‘a lógica do basho’ ou a ‘lógica dos lugares’ em vez da lógica aristotélica. Devemos explorar outras culturas além do Ocidente para tentar encontrar diferentes exemplos de filosofia inclusiva, religiões inclusivas e assim por diante.” O Ocidente não é global no senso estrito do termo, e é por isso que deslizar ao nada não é fatal como parece ser: no fundo, desliza-se ao Oriente. O problema do “rústico”: é possível uma coexistência da tecnologia tal como a modernidade a entende e a não-tecnologia. Não é necessária a abolição da tecnologia no sentido moderno (o que só pode ser uma repetição da história e regresso ao primitivo, de nossa perspectiva).

Em conclusão, gostaria de dizer que não é correto conceber o Caos como algo pertencente ao passado. O Caos é eterno, mas eternamente coexistindo com o tempo. Então o Caos é sempre absolutamente novo, fresco e espontâneo. Poderia ser considerado como uma fonte para qualquer tipo de invenção e novidade[,] porque a eternidade sempre tem em si mesma algo mais do que era, é ou vai ser no tempo.” Poderia dizer que o Caos inesgotável é a Idéia de Platão, de igual maneira.

A era astronômica que está chegando ao fim é a era da constelação de Peixes. O peixe na praia. O peixe agonizante. Então precisamos muito de água.” Disso eu não entendo. Noch nicht!

Apenas uma atitude completamente nova ante o pensamento, nova ontologia e nova gnosiologia podem salvar o logos fora da água, na praia, no deserto que cresce e cresce (como Nietzsche previu).”

A Europa tem sua atitude positiva particular para com seus vizinhos do sul e do leste. Em alguns casos os benefícios econômicos, os problemas de abastecimento de energia e de defesa comum não coincidem em nada com os americanos.” “Tal e como estão as coisas atualmente, nenhum país (exceto os Estados Unidos) pode darse ao luxo de defender sua soberania real contando apenas com seus próprios recursos internos. Nenhum deles poderia ser considerado como um pólo autônomo capaz de contrabalançar o poder atlantista.”

A EUROPA NÃO QUER, NÃO TEM FORÇA PARA ISSO: “Imaginamos esta Grande Europa como um poder geopolítico soberano, com sua própria identidade cultural, com suas próprias opções políticas e sociais (sobre a base dos princípios da tradição democrática européia), com seu próprio sistema de defesa (incluídas armas nucleares), com seu próprio aceso a recursos estratégicos e minerais (tomando suas

próprias decisões independentes sobre a paz ou guerra com outros países ou civilizações), todo o anterior em função de uma vontade européia comum e um procedimento democrático para a tomada de decisões.” Além disso, mesmo que tivesse a intenção, seu racismo e xenofobia impediriam a concretização desse projeto. A islamofobia, o envelhecimento, o problema da força de trabalho composta por imigrantes. Fazem parte do curto-circuito de decadência dos americanos, são a encarnação mesma do logos não-caótico, e se tornarão periferia ou mero “pólo concorrente” no mundo, mas não como Grande Europa, apenas como co-partícipes atlânticos, como Dugin já muito bem expôs. Trocando em miúdos, a “tradição democrática européia” é uma grande farsa. E eis porque a discordância mais decisiva entre mim e Dugin permanece sendo: o fascismo não é aliado; não só porque é somente uma transmutação esporádica do Capital, como porque a Alemanha, se tivesse direto acesso a armas nucleares, seria potencialmente inimiga da humanidade outra vez. Nisso, é bom que os EUA sejam seu freio armamentista.

EL PROFETA DE UNA NUEVA ERA: NIETZSCHE

Primeiro erro de Ellenberger: dispor o marxismo ao lado de tranqueiras históricas como “racionalismo, darwinismo social, mecanicismo, utilitarismo”.

Segundo erro: chama Nietzsche de uma espécie de “último romântico”.

La enfermedad le obligó a renunciar a su puesto en 1879.” O que significa que deu aula de filología greco-latina por longos 10 anos. Numa vida tão curta como foi a sua, e em que cada ano deve ser muito grato para a Filosofia ocidental, é realmente uma pena. Mas cabe lembrar que destes 10 anos, 7 já contaram com suas publicações puramente filosóficas que o mundo todo conhece. Teve mais 10 anos de viagens, muita produção metafísica e uma ‘saúde relativa’. E, curiosamente, arredondando, 10 anos de paralisia, antes da norte.

Nietzsche representa em alto grau o que os alemães denominam uma natureza problemática, isto é, uma personalidade difícil de valorar e que dá lugar a opiniões contraditórias.”

patrón de crisis sucesivas.” Infelizmente a historiografia está ATRAPALHADA pela sanguessuga Salomé!

pérdida dramática de su fe cristiana en la 1ª juventud” Mas se não se suspeita disso em momento algum lendo toda sua obra!

graves sufrimientos físicos y neuróticos” (diagnóstico a posteriori!)

Vontade de tirar uma estrela da avaliação deste livro (4/5 para 3/5) [ver post seguinte do Seclusão]. Porém, ele segue sendo fundamental para desmistificar a real importancia de Sigmund Fraude!

un hombre que se separa de la sociedad, que vive en solitario en las montañas suizas al igual que Z. en su cueva, y que lanza un anatema sobre la sociedad contemporánea. A continuación surgió su enfermedad mental, que algunos atribuían a una venganza del destino contra un humano que pretendía elevarse por encima de sus iguales. HAHAHA!

Geneviève Bianquis, Nietzsche devant ses contemporains. Textes recueillis et choisis, Mónaco, Editions du Rocher, sin fecha, ha demostrado que N. no era un absoluto tan solitario como la leyenda le ha hecho sino que tenía, por el contrario, amigos muy devotos.”

Erich F. Podach, Friedrich’s Werke des Zusammenbruchs, 1961. Algo como O Trabalho Nietzschiano de Destruição do Todo, o que Adorno (felizmente) chamaria, com mais tato, de O Trabalho Metafísico Negativo de Nie..

El origen de la tragedia es su único libro de contornos perfectamente claros.” Sou obrigado a discordar frontalmente!

Zaratustra (…) ejerció una fascinación extraordinaria sobre la juventud europea entre 1890 y 1910.”

ELLENBERGER, ACHO QUE SEU FILHO DE 5 ANOS MEXEU NO SEU LIVRO”: Negaba la existencia de la causalidad, de las leyes naturales, y la posibilidad de que el hombre alcance ninguna verdad, conclusión ésta expresada en uno de sus aforismos: <Nada es verdad, todo está permitido>.” PS: Não ler Hans Wolff!

Ludwig Klages llega a denominarle el verdadero fundador de la psicología moderna.”

Él más grande crítico y psicólogo moral conocido en la historia de la mente humana.” Thomas Mann, N. Philosophy in the Light of Contemporary Events, 1947.

Mittasch, Friedrich Nietzsche als Naturphilosoph, 1952.

Imensa saudade do que não vivi: quando os psicólogos eram necessariamente grandes sábios. Digam-me: como um imbecil pretende tirar conclusões aproveitáveis de um processo terapêutico em que meu inconsciente é o tratado?!

la frase del Evangelio el que se humilla será ensalzado se podría traducir por el que se humilla desea ser ensalzado.” Aquele que se humilha e ‘o humilhado’ são, a propósito, mundos aparte! Humilhar-se e ser humilhado – nada mais díspar. Antes, poderíamos também dizer: aqueles que são humilhados se exaltam bastante, querendo até ir às vias de fato!

N. concebía el inconsciente como una zona de pensamientos, emociones, e instintos confusos, además de como un lugar de representación de estados pasados del individuo y de la especie.”

Sob o nome de inibição (Hemmung), N. descreve o que hoje [na psicología do século XX] se denomina repressão, e aplica-a à percepção e à memória.”

A palavra ressentimento, que compreendia todo tipo de sentimentos de rancor, despeito, inveja, hostilidade e ódio, recebeu em N. um novo significado. (…) O conceito de ressentimento nietzschiano seria adotado, modificado e desenvolvido por Max Scheler e Marañón (Tiberius. A Study in Resentment, 1956).”

A MERDA ESTANQUE: “Ademais, o indivíduo leva dentro de si todo tipo de opiniões e sentimentos que provêm de seus pais e antepassados, ainda que creia que são propriamente seus.”

Benz (ed.), Der Übermensch, 1961.

(*) “Ernst, Die romantische Ironie, 1915, demuestra, a la página 125, que la famosa frase ‘el hombre debe ser superado’ estaba ya contenida en el Athenäum de Schlegel.”

W.D. Williams, Nietzsche and the French, 1952. – é sempre um prazer ler alguém que, em citação incontroversa sua, demonstra compreender corretamente o conceito de eterno retorno!

O problema do conceito de Übermensch enquanto tal é que ele só funciona em caráter de coletividade.

Lou Andreas-Salomé fue el 1º en comprender la estrecha relación existente entre los sufrimientos físicos y nerviosos de N….” Além de usar a pior fonte à disposição, como pode confundi-la com um homem?!?

Para Ellenberger, em resumo, N. é o homem que explica ou mantém coesa a Santíssima Trindade da Pseudanálise!

A él se remonta también el concepto dinámico de la mente con las nociones de energía mental, cuantos de energía latente o inhibida, o liberación de energía o transferencia de un impulso a otro. Antes que Fraud, Nietzsche concibió la mente como un sistema de impulsos que puede colisionar o fundirse unos en otros. En contraste con Fraud, sin embargo, no dio preponderancia al impulso sexual (cuya importancia conocía bien), sino a los impulsos agresivos y autodestructores. Comprendió muy bien los procesos que F. calificó de mecanismos de defensa, en particular la sublimación (término que aparece por lo menos una docena de veces en los trabajos de N.), la represión y la vuelta de los instintos hacia uno mismo. El concepto de imagen del padre y la madre está también implícito en su obra. Las descripciones del resentimiento, de la falsa conciencia y de la falsa moralidad se anticiparon a las descripciones FRAUDIANAS de la culpabilidad neurótica y del superyó.” Sobre a divisão esquemática do inconsciente em 2 instâncias arbitrárias (ou da individualidade total em 3 instâncias arbitrárias, com a própria consciência ou eu sendo uma espécie de ‘cópula’ entre o inconsciente e a ‘consciência’ no sentido em que se empregava o termo até o séc. XIX – uma grotesca confusão fraudiana!): o super-eu é o conceito mais desnecessário do ponto de vista psicológico, qualquer que fosse a escola a considerar. É simplesmente um refinamento obscuro da palabra ‘moral’, que facilitaria imensamente neste contexto! Tudo isso para ter de entender (se se começa a querer entender esas coisas por Fraud, o que é um grande azar na vida!) ao fim do processo o fato basilar e pedestre de que o eu da PSEUDANÁLISE funciona como a mistura da moral vigente com os instintos animais. A cultura individuada. Ou seja, é como se o inconsciente, esse caos sem forma de onde não se pode tirar nada literalmente como é ou seria, fosse se preocupar em organizar o que é animalesco e o que é “regra de etiqueta” ou “educação inculcada pelos pais”.

Alfred Adler como uma espécie de Nietzsche embrutecido para a vulgata.

Al contrario de Fraud, Jung proclamó siempre abiertamente el enorme estímulo que recibió de N..”

PAIDEIA: A formação do homem grego (tradução do original PAIDEIA: Die Formung des griechischen Menschen)

Tradução de ARTUR M. PARREIRA

Adaptação para a edição brasileira de MONICA STAHEL

Revisão de GILSON CÉSAR CARDOSO DE SOUZA

5. ed., SP: WMF Martins Fontes, 2010.

Alguns livros são muito longos para ler em vida. Por isso, eu reduzi o conteúdo de 1413 páginas para 329, para que você pudesse ler também! A perda em conteúdo foi a mínima possível, assim espero. Com comentários meus e ilustrações de fora do livro.


ÍNDICE REMISSIVO [CONTROL+F]

I. LUGAR DOS GREGOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

LIVRO PRIMEIRO: A PRIMEIRA GRÉCIA

1.1 NOBREZA E ARETE

1.2 CULTURA E EDUCAÇÃO DA NOBREZA HOMÉRICA

1.3 HOMERO COMO EDUCADOR

1.4 HESÍODO E A VIDA DO CAMPO

1.5 O ESTADO JURÍDICO E O SEU IDEAL DE CIDADÃO

1.6 A AUTOFORMAÇÃO DO INDIVÍDUO NA POESIA JÔNICO-EÓLICA

1.7 SÓLON COMEÇO DA FORMAÇÃO POLÍTICA DE ATENAS

1.8 O PENSAMENTO FILOSÓFICO E A DESCOBERTA DO COSMOS

1.9 LUTA E TRANSFORMAÇÃO DA NOBREZA

1.10 A POLÍTICA CULTURAL DOS TIRANOS

LIVRO SEGUNDO: APOGEU E CRISE DO ESPÍRITO ÁTICO

2.1 O DRAMA DE ÉSQUILO

2.2 O HOMEM TRÁGICO DE SÓFOCLES

2.3 OS SOFISTAS

2.4 EURÍPIDES E O SEU TEMPO

2.5 A COMÉDIA DE ARISTÓFANES

2.6 TUCÍDIDES COMO PENSADOR POLÍTICO

LIVRO TERCEIRO: À PROCURA DO CENTRO DIVINO

3.1 PRÓLOGO

3.2 SÉCULO IV

3.3 SÓCRATES

3.4 A IMAGEM DE PLATÃO NA HISTÓRIA

3.5 DIÁLOGOS SOCRÁTICOS MENORES DE PLATÃO

3.6 O PROTÁGORAS

3.7 O GÓRGIAS

3.8 O MÊNON

3.9 O BANQUETE

3.10 A REPÚBLICA – I

3.11 A REPÚBLICA – II

3.12 A REPÚBLICA – III

LIVRO QUARTO: O CONFLITO DOS IDEAIS DE CULTURA NO SÉCULO IV

4.1 A MEDICINA COMO PAIDEIA

4.2 A RETÓRICA DE ISÓCRATES E O SEU IDEAL DE CULTURA

4.3 EDUCAÇÃO POLÍTICA E IDEAL PAN-HELÊNICO

4.4 A EDUCAÇÃO DO PRÍNCIPE

4.5 AUTORIDADE E LIBERDADE NA DEMOCRACIA RADICAL

4.6 ISÓCRATES DEFENDE A SUA PAIDEIA

4.7 XENOFONTE: O CAVALEIRO E O SOLDADO IDEAIS

4.8 O FEDRO DE PLATÃO: FILOSOFIA E RETÓRICA

4.9 PLATÃO E DIONÍSIO: A TRAGÉDIA DA PAIDEIA

4.10 AS LEIS

EPÍLOGO – TRANSIÇÃO

E.1 DEMÓSTENES: AGONIA E TRANSFORMAÇÃO DA CIDADE-ESTADO


I. LUGAR DOS GREGOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Sem dúvida, a estabilidade não é indício de saúde, porque reina também nos estados de rigidez senil, nos momentos finais de uma cultura: assim sucede na China confucionista pré-revolucionária

Por mais elevadas que julguemos as realizações artísticas, religiosas e políticas dos povos anteriores, a história daquilo a que podemos com plena consciência chamar cultura só começa com os gregos.”

este retorno à Grécia, esta espontânea renovação da sua influência, não significa que lhe tenhamos conferido, pela sua grandeza espiritual, uma autoridade imutável, fixa e independente do nosso destino. O fundamento do nosso regresso reside nas nossas próprias necessidades vitais, por mais variadas que elas sejam através da História.”

O conhecimento do fenômeno original pressupõe uma estrutura espiritual análoga à dos gregos, atitude semelhante à que Goethe adota na consideração da natureza” “Precisamente num momento histórico em que (…) o complicado mecanismo da cultura se tornou hostil às virtudes heróicas do Homem, é preciso, por profunda necessidade histórica, voltar os olhos para as fontes de onde brota o impulso criador do nosso povo.”

Quanto maior é o perigo de até o mais elevado bem se degradar no uso diário, com tanto mais vigor sobressai o profundo valor das forças conscientes do espírito que se destacaram na obscuridade do coração humano e estruturaram, no frescor matinal e com o gênio criador dos povos jovens, as mais altas formas de cultura.”

Em contraste com a exaltação oriental dos homens-deuses, solitários, acima de toda a medida natural; (…) em contraste com a opressão das massas, sem a qual não seria concebível a exaltação dos soberanos (…) o início da história grega surge como princípio de uma valoração nova do Homem” Em busca do Santo Graal que não reluz como ouro – mas é-o –, o Re-Renascimento.

Do ponto de vista oriental, é impossível compreender como os artistas gregos conseguiram representar o corpo humano, livre e descontraído, fundados, não na imitação de movimentos e atitudes individuais escolhidas ao acaso, mas sim na intuição das leis que governam a estrutura, o equilíbrio e o movimento do corpo. (…) Os gregos tiveram o senso inato do que significa <natureza>.” Kant acerta aqui (livro 3): não se captou um modelo, mas abstraiu-se como ele seria, em existindo. Uma essência traduzida no fenomênico das pinceladas e/ou cinzeladas.

A mais alta obra de arte a que seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os gregos viram pela 1ª vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente.” “A palavra alemã Bildung (formação, configuração) é a que designa do modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico.”

entre os povos, o grego é o antropoplástico.”

Acima do Homem como ser gregário ou como suposto eu autônomo, ergue-se o Homem como idéia.” Nada de ciência política clássica, nada de liberalismo.

O humanismo e o classicismo de outros tempos ignoraram este fato, ao falarem da <humanidade>, da <cultura>, do <espírito> dos gregos ou dos antigos, como expressão de uma humanidade intemporal e absoluta. O povo grego transmitiu, sem dúvida, à posteridade, de forma imorredoura, um tesouro de conhecimentos imperecíveis. Mas seria um erro fatal ver na ânsia de forma dos gregos uma norma rígida e definitiva. A geometria euclidiana e a lógica aristotélica são, sem dúvida, fundamentos permanentes do espírito humano, válidos ainda em nossos dias, e dos quais não é possível prescindir. [quem sabe] Mas até essas formas universalmente válidas (…) são (…) inteiramente gregas e não excluem a coexistência de outras formas de intuição e de pensamento lógico e matemático.”

Nesse tempo em que a história grega desembocou no Império Romano e deixou de constituir uma nação independente, o único e mais elevado ideal da sua vida foi a veneração das suas antigas tradições. Desse modo foram eles os criadores daquela teologia classicista do espírito que é característica do humanismo. A sua estética vita contemplativa é a forma originária do humanismo e da vida erudita dos tempos modernos.”

Também o neo-humanismo alemão do tempo de Goethe considerou o grego como manifestação da verdadeira natureza humana num período da História definido e único, o que é uma atitude mais próxima do racionalismo da <Época das Luzes>” “Quando, atualmente, com o perigo inverso de um historicismo sem limite nem fim, nesta noite em que todos os gatos são pardos, voltamos aos valores permanentes da Antiguidade, não podemos considerá-los de novo como ídolos intemporais.”

no melhor período da Grécia era tão inconcebível um espírito alheio ao Estado como um Estado alheio ao espírito.” “…desde a idade heróica de Homero até o Estado autoritário de Platão, dominado pelos filósofos, e no qual o indivíduo e a comunidade social travam a sua última batalha no terreno da filosofia.”

A trindade grega do poeta, do Homem de Estado e do sábio encarna a mais alta direção da nação.”

Assim se eleva a <literatura> grega clássica acima da esfera do puramente estético, onde a quiseram em vão encerrar, e exerce um influxo incomensurável através dos séculos.”

Não é possível compreender o ideal agônico, revelado nos cantos pindáricos aos vencedores, sem conhecer as estátuas que nos mostram os vencedores olímpicos na sua encarnação corporal, ou as dos deuses, como encarnação das idéias gregas sobre a dignidade da alma e do corpo humano.”

Sem dúvida, os verdadeiros representantes da paideia grega não são os artistas mudos – escultores, pintores, arquitetos –, mas os poetas e músicos, os filósofos, os retóricos e os oradores, quer dizer, os homens de Estado. No pensamento grego, o legislador encontra-se, em certo aspecto, muito mais próximo do poeta que o artista plástico (…) os gregos nunca falam da ação educadora da contemplação e da intuição das obras de arte, no sentido de Winckelmann.”

a história da educação grega coincide substancialmente com a da literatura.”

Será colocado de forma nova um problema velho: o fato de o processo educativo ter sido vinculado desde sempre ao estudo da Antiguidade.” “O nascimento da moderna história da Antiguidade, considerada como disciplina científica, trouxe consigo uma mudança fundamental da nossa atitude para com ela.” “Mas, ao lado desta história enciclopédica e objetiva da Antiguidade, menos livre de valorações do que imaginam os seus mais eminentes promotores, permanece o perene influxo da <cultura clássica>

Pois bem: quando a nossa cultura toda, abalada por uma experiência histórica monstruosa,¹ se vê forçada a um novo exame dos seus próprios fundamentos, propõe-se outra vez à investigação da Antiguidade o problema, último e decisivo para o nosso próprio destino, da forma e do valor da educação clássica.”

¹ Monstro: parte da nossa essência de que não lembrávamos mais.

#TítulodeLivro

O MONSTRO & O FILÓSOFO

Usar a História para compreender a Metafísica. Nunca ao contrário.

LIVRO PRIMEIRO: A PRIMEIRA GRÉCIA

1.1 Nobreza e arete

educação e formação tem raízes diversas (…) Já Platão comparou a formação ao adestramento de cães de raça. (…) O kalos kagathos grego dos tempos clássicos revela esta origem tão claramente como o gentleman inglês.”

Mesmo onde a diferença de formação conduz à constituição de castas rígidas, o princípio da herança que nelas domina é corrigido e compensado pela ascensão de novas forças procedentes do povo. (…) Uma vez que a mais antiga tradição escrita nos mostra uma cultura aristocrática que se eleva acima do povo, importa que a investigação histórica a tenha como ponto de partida. Toda a formação posterior, por mais elevada que seja, e ainda que mude de conteúdo, conserva bem clara a marca da sua origem. A formação não é outra coisa senão a forma aristocrática, cada vez mais espiritualizada, de uma nação.”

não se pode utilizar a história da palavra paideia como fio condutor para estudar a origem da formação grega, porque esta palavra só aparece no séc. V. O mais antigo traço é Ésquilo, Sete contra Tebas, 18. (…) no início do séc. V a palavra tinha o simples significado de <criação dos meninos>, em nada semelhante ao sentido elevado que adquiriu mais tarde (…) O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de arete, que remonta aos tempos mais antigos. Não temos na língua portuguesa um equivalente para este termo; mas a palavra <virtude>, na sua acepção não-atenuada pelo uso puramente moral,¹ e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega.” Discordo: hoje é impossível transmitir essa equivalência através desta palavra. Mas a discordância se dirige só ao tradutor, evidentemente. O mais próximo seria “nobreza de caráter”.

¹ A besta-loira é um animal deficiente.

O testemunho mais remoto da antiga cultura aristocrática helênica é Homero”

Tanto em Homero quanto nos séculos posteriores, o conceito de arete é freqüentemente usado no seu sentido mais amplo, isto é, não só para designar a excelência humana, como também a superioridade de seres não-humanos: a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça.(*)

(*) Para a arete do cavalo: [vide além (capítulo sobre Xenofonte] e também em Platão, Rep., 335 B, onde se fala da arete dos cães e dos cavalos. Em 353 B, fala-se da arete dos olhos; arete dos deuses: I, 498.”

Vigor e saúde são a arete do corpo; sagacidade e penetração, a arete do espírito. (…) É verdade que arete tem com freqüência o sentido de aceitação social, significando então <respeito>, <prestígio>. Mas isto é secundário, e deve-se à grande influência social de todas as valorações do homem nos primeiros tempos. (…) uma força que (…) constituía a perfeição [do indivíduo].”

Só uma vez, nos livros finais, Homero entende por arete as qualidades morais ou espirituais. Em geral (…) heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação mortal e separada da força, mas sim intimamente ligado a ela.” Os hindus que se jogam debaixo das rodas das charretes nas cerimônias religiosas não teriam, portanto, arete.

morreu como um herói esforçado”: contraponto do patético “morreu como uma pomba” da lavra cristã.

O nome de aristoi convém a um grupo numeroso; mas, no seio deste grupo, que se ergue acima da massa, há luta pelo prêmio da arete. (…) A palavra aristeia, empregada mais tarde para os combates singulares dos grandes heróis épicos, corresponde plenamente àquela concepção.”

De certo modo pode-se dizer que a arete heróica só se aperfeiçoa com a morte física do herói. Ela reside no homem mortal, ou melhor, ela é o próprio homem mortal; mas perpetua-se, mesmo depois da morte, na sua fama, i.e., na imagem da sua arete, tal como o acompanhou e dirigiu na vida. (…) Os deuses de Homero são, por assim dizer, uma sociedade imortal de nobres (…) Ser piedoso quer dizer <honrar a divindade>.”

O amor da pátria, que hoje resolveria a dificuldade, era alheio aos antigos nobres. Agamemnon só consegue apelar para o seu poder soberano através de um ato despótico, pois tal poder nem sequer é admitido pelo sentimento aristocrático, que o reconhece apenas como primus inter pares. No sentimento de Aquiles perante a negação da honra que por suas façanhas lhe é devida, imiscui-se também esta sensação da opressão despótica. (…) As armas de Aquiles, caído em combate, são concedidas a Ulisses, não obstante os superiores merecimentos de Ájax; e a tragédia deste acaba na loucura e no suicídio.”

A filosofia sublima e universaliza os conceitos que capta na sua limitação originária, mas com isso se confirma e se define a sua verdade permanente e indestrutível idealidade.”

Aspirar à <beleza> (que para os gregos significa ao mesmo tempo nobreza e eleição) e fazê-la sua é não perder nenhuma ocasião de conquistar o prêmio da mais alta arete.”

Quem estima a si próprio deve ser infatigável na defesa dos amigos, sacrificar-se pela pátria, abandonar prontamente dinheiro, bens e honrarias para <fazer sua a beleza>. Esta frase curiosa repete-se com insistência, o que mostra até que ponto a mais sublime entrega a um ideal é para Aristóteles prova de um elevado amor-próprio. Quem está impregnado de auto-estima deseja antes viver um breve período no mais alto gozo a passar uma longa existência em indolente repouso; prefere viver só um ano por um fim nobre, a uma vasta vida por nada; escolhe antes executar uma única ação grande e magnífica a fazer uma série de pequenas insignificâncias.

Nestas palavras revela-se o que há de mais peculiar e original no sentimento de vida dos gregos, aquilo por que nos sentimos essencialmente unidos a eles: o heroísmo.”

Entre os dois grandes filósofos e os poemas de Homero, estende-se a cadeia ininterrupta de testemunhos da persistência da idéia de arete, própria dos primeiros tempos da Grécia.”

1.2 Cultura e educação da nobreza homérica

Atualmente não é possível considerar a Ilíada e a Odisséia – fontes da primitiva história da Grécia – como uma unidade, quer dizer, como obra de um só poeta, embora na prática continuemos a falar de Homero como a princípio fizeram os antigos, agrupando sob este nome diversos poemas épicos. O fato de a Grécia clássica, desprovida de senso histórico, ter separado daquela massa os dois poemas, considerando-os superiores de um ponto de vista puramente artístico e declarando os outros indignos de Homero, não afeta o nosso juízo científico nem pode ser considerado como tradição no sentido próprio da palavra. Do ponto de vista histórico, a Ilíada é um poema muito mais antigo. A Odisséia reflete um estágio muito posterior da história da cultura. Com esta verificação, ganha a maior importância o problema da determinação do século a que uma e outra pertencem. A fonte principal para chegar à solução deste problema são os próprios poemas. Apesar de toda a perspicácia consagrada a este assunto, reina quanto a ele a maior insegurança. As escavações dos últimos 50 anos enriqueceram, sem dúvida de modo fundamental, o nosso conhecimento da Antiguidade grega, e sobretudo ofereceram-nos soluções precisas no que se refere à questão do núcleo histórico da tradição heróica; mas nem por isso avançamos um passo na determinação da época exata dos nossos poemas, que vários séculos separam do nascimento das sagas.” Curioso que Adorno não seja citado nem uma única vez. Apenas eu mesmo o citei numa observação, neste post.

É principalmente a Wilamowitz que devemos o fato de ter relacionado as primeiras análises realizadas segundo um critério exclusivamente lógico e artístico com os nossos conhecimentos históricos sobre a cultura grega primitiva.” Veja adiante indicações de leitura do autor Wilam.

A propensão expressa a renunciar por completo à análise de Homero manifesta-se em trabalhos recentes como o de F. DORNSEIFF, Archaische Mythenerzählung (Berlim, 1933) e F. JACOBY, ‘Die geistige Physiognomie der Odissee’, Die Antike, vol. 9, 159.”

será impossível considerar a Odisséia como uma imagem da vida da nobreza primitiva, se as suas partes mais importantes procederem da segunda metade do séc. VI, como atualmente crêem cientistas qualificados. E. SCHWARTZ, Die Odyssee (Munique, 1924), p. 294 e WILAMOWITZ, Die Heimkehr des Odysseus (Berlim, 1927), especialmente pp. 171-ss.: <Quem em questões de linguagem, religião ou costumes mistura a Ilíada e a Odisséia, quem, com Aristarco, as separa do resto como [GREGO], não pode pretender ser levado em conta.>” Curioso!

julgo ter demonstrado que o I canto da Odisséia – aceito pela crítica, depois de Kirchoff, como uma das últimas elaborações da epopéia – já era considerado obra de Homero por Sólon, e mesmo, pelo que tudo indica, antes do seu arcontado (594), i.e., no séc. VII, pelo menos.” “Parece-me fora de dúvida que a Odisséia, quanto ao essencial, já devia existir no tempo de Hesíodo.”

HIPERTROFIA DA HISTORIOGRAFIA: “O desejo compreensível dos investigadores de quererem saber mais do que aquilo que realmente podemos saber acarretou freqüentemente o descrédito injustificado da investigação como tal.”

Os heróis da Ilíada, que se revelam no seu gosto pela guerra e na sua aspiração à honra como autênticos representantes da sua classe, são, todavia, quanto ao resto da sua conduta, acima de tudo grandes senhores, com todas as suas excelências, mas também com todas as suas imprescindíveis debilidades. É impossível imaginá-los vivendo em paz: pertencem ao campo de batalha.”

Quando a Odisséia pinta a existência do herói depois da guerra, as suas viagens aventurosas e a sua vida caseira com a família e os amigos, inspira-se na vida real dos nobres do seu tempo e projeta-a com ingênua vivacidade numa época mais primitiva. [Todo o argumento da Dialética do Esclarecimento] Ela é, deste modo, a nossa fonte principal para conhecermos a situação da antiga cultura aristocrática. Pertence aos jônios, em cuja terra nasceu (…) Vê-se claramente que as suas descrições não pertencem à tradição dos velhos cantos heróicos, mas assentam na observação direta e realista das coisas contemporâneas.”

Se a periferia da imagem do mundo da Odisséia nos arrasta para a fantasia aventureira dos poetas, para as sagas heróicas e mesmo para o mundo do fabuloso e do maravilhoso, é com tanto maior força que a sua descrição das relações familiares nos aproxima da realidade.” “Só um ou outro traço realista e político, como a cena de Tersites, revela o tempo relativamente tardio do nascimento da Ilíada na sua forma atual. Nessa cena, Tersites, o <atrevido>, adita na presença dos nobres mais proeminentes um tom desdenhoso. Tersites é a única caricatura realmente maliciosa de toda a obra de Homero.” Conferir o excelente Tersites shakespeariano: https://seclusao.art.blog/2018/12/16/troilus-and-cressida/.

Os rapsodos não pertenciam, provavelmente, à classe nobre. Na lírica, na elegia e no iambo, pelo contrário, encontramos com freqüência poetas aristocráticos.” Wilamowitz

A vergonhosa conduta dos pretendentes [de Penélope] é constantemente estigmatizada como uma ignomínia para eles e para a sua classe. Ninguém pode contemplá-la sem indignação e é, depois, severamente expiada.”

A figura do aventureiro astuto e rico de recursos é criação do tempo das viagens marítimas dos jônios. A necessidade de glorificar o seu herói liga-se ao ciclo dos poemas troianos, e principalmente aos que se referem à destruição de Ílion.”

A arete própria da mulher é a formosura. (…) A mulher, todavia, não surge apenas como objeto da solicitação erótica do homem, como Helena ou Penélope, mas também na sua firme posição social e jurídica de dona de casa.” “Na Odisséia, Helena, de volta a Esparta com o primeiro marido, aparece como o protótipo da grande dama, modelo de distinta elegância e de soberana forma e representação social.”

A posição social da mulher nunca mais voltou a ser tão elevada [da perspectiva grega] como no período da cavalaria homérica. Arete, a esposa do príncipe Feace, é venerada pelo povo como uma divindade.”

Quando Agamemnon decide levar para a terra Criseida, capturada como despojo de guerra, e declara perante a assembléia que a prefere a Clitemnestra, pois não a acha inferior a ela nem pela presença ou pela estatura, nem pela prudência ou linhagem, é possível que isso seja fruto do caráter particular de Agamemnon – e já os antigos comentadores observaram que toda a arete da mulher está aqui descrita num só verso – mas a maneira imperiosa como o homem procede, acima de toda a consideração, não é coisa isolada no decurso da Ilíada. Amíntor, pai de Fênix, desentende-se com o filho por causa da amante, pela qual abandona a esposa; e o filho, incitado pela própria mãe, faz a côrte àquela, roubando-a do pai.¹ E não se trata de costumes de guerreiros embrutecidos. Acontece em tempo de paz.”

¹ Para tristeza de Platão em Leis XI!

É na mais alta, íntima e pessoal relação do herói com a sua deusa Palas Atena, a qual o guia nas suas andanças e jamais o abandona, que o poder espiritual da mulher como inspiradora e guia acha a sua expressão mais bela.” E curiosamente não é uma mulher de carne!

O mestre dos heróis por excelência era, naquele tempo, o prudente centauro Quíron, que vivia nos desfiladeiros selvosos, de abundantes nascentes, das montanhas de Pélion, na Tessália. Diz a tradição que uma longa série de heróis foi sua discípula e que Peleu, abandonado por Tétis, confiou-lhe a guarda de seu filho Aquiles.” “Embora o poeta do canto nono ponha Fênix em lugar de Quíron, Pátroclo é convidado a aplicar num guerreiro ferido um remédio que aprendeu de Aquiles, o qual por sua vez o aprendera outrora de Quíron” “O poeta da <Embaixada a Aquiles> não pôde utilizar o tosco centauro como medianeiro, ao lado de Ájax e Ulisses, pois só um herói cavaleiresco podia surgir como educador de outro herói. (…) Para substituto de Quíron foi escolhido Fênix, que era vassalo de Peleu e príncipe dos dólopes.”

A Fênix era permitido exprimir verdades que Ulisses não poderia dizer. Na boca daquele, este intento supremo de vergar a inquebrantável vontade do herói e chamá-lo à razão adquire o seu mais grave e íntimo vigor: deixa antever, no caso do seu fracasso, o trágico desenlace da ação como conseqüência da inflexível negativa de Aquiles.” “Todo leitor sente e compartilha intimamente, em toda a sua gravidade, a decisão definitiva do herói, da qual depende o destino dos gregos e do seu melhor amigo Pátroclo e, por fim, o seu próprio destino.” “Peleu entrega o seu filho Aquiles, sem qualquer experiência na arte da palavra e na conduta guerreira, ao seu leal vassalo (…) Fênix ficou junto dele e considerou-o como filho quando lhe foram recusados os próprios filhos pela trágica maldição de seu pai Amíntor.”

Contra a poderosa força irracional do desvario, da deusa Ate, são impotentes toda a arte da educação humana e todo o conselho razoável.”

o íntimo conflito entre as paixões cegas e a mais perfeita intuição, tido como o autêntico problema de toda a educação no mais profundo sentido da palavra. Isto não tem nenhuma relação com o moderno conceito de decisão livre nem com a correspondente idéia de culpa. A concepção antiga é muito mais ampla e, por isso mesmo, mais trágica.”

A figura antitética do rebelde peleida é Telêmaco, cuja educação o poeta nos descreve no primeiro livro da Odisséia. Enquanto Aquiles lança ao vento as doutrinas de Fênix e se precipita para a perdição, Telêmaco presta atenção às advertências da deusa, disfarçada sob a figura do amigo e hóspede de seu pai, Mentes. (…) o costume dos jovens da alta nobreza de serem acompanhados nas suas viagens por um aio ou mordomo.”

A bonita relação de Telêmaco com Mentor, cujo nome serviu desde o Telêmaco de Fénelon para designar o velho amigo protetor, guia e mestre, fundamenta-se no desenvolvimento do tema pedagógico”

A análise crítica do aparecimento da Odisséia levanta um problema decisivo. A Telemaquia foi um poema originariamente independente ou esteve desde o início incluído na epopéia tal como o encontramos hoje?”

O conjunto da Odisséia constitui uma linda criação composta de duas partes separadas: Ulisses, ausente e retido na ilha da ninfa apaixonada, rodeado de mar, e o seu filho inativo, à espera dele no lar abandonado.”

Este jovem passivo, amável, sensível, dolorido e sem esperança teria sido um aliado inútil para a luta rude e decisiva da vingança de Ulisses, que no seu regresso ao lar seria forçado a enfrentar os pretendentes sem nenhuma ajuda. Mas Atena converte-o no companheiro de luta, valente, ousado e decidido.

Objetou-se, contra a afirmação de uma formação pedagógica consciente da figura de Telêmaco, nos quatro primeiros cantos da Odisséia, que a poesia grega não nos dá nenhum quadro do desenvolvimento interno de um caráter. A Odisséia não é, efetivamente, uma novela pedagógica moderna, e por isso a transformação de Telêmaco não pode ser apontada como desenvolvimento, no sentido atual. Naquele tempo só podia ser explicada como obra da inspiração divina. Mas essa inspiração não surge, como é freqüente na epopéia, de modo puramente mecânico, por ordem de um Deus ou simplesmente em sonhos.”

os dois grandes aristocratas, Píndaro e Platão.”

Não falta nenhum traço essencial nesta Telemachou paideia: nem os conselhos de um velho amigo experiente; nem o influxo delicado e sensível da mãe temerosa e cheia de cuidados pelo seu filho único (e não será conveniente consultá-la no momento decisivo, porque seria muito mais capaz de, com os seus temores, refrear o filho, por longo tempo mimado, do que compreender-lhe a súbita elevação)” Uma ficção em que Platão tivesse conseguido, senão erigir a República, pelo menos falsificar Homero, de forma que a Odisséia a que temos acesso seja da sua pena, e não mais antiga!

É com a mais calorosa simpatia que o poeta pinta a confusão íntima de Telêmaco quando este, educado na simplicidade da nobreza rural, é recebido numa pequena ilha como hóspede de grandes senhores e entra pela primeira vez no grande mundo para ele desconhecido.”

Agamemnon foi morto logo após o regresso de Tróia; Ulisses esteve 20 anos afastado do lar. Este espaço de tempo bastou ao poeta para poder situar o ato e a estada de Orestes na Fócida, antes do começo da ação da Odisséia. [Tudo mui bem pensado. Poderia de fato ser um o autor? Ainda mais sempre o pai de todos?] O acontecimento era recente, mas a fama de Orestes estendera-se já a toda a Terra, e Atena refere-o a Telêmaco em palavras inflamadas.”

1.3 Homero como educador

foi o cristianismo [neste caso, Platão como seu mentor!] que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de educação e fonte de prazer.” “Repugna-nos naturalmente ver a tardia poética filosófica do helenismo interpretar a educação em Homero como uma árida e racionalista fabula docet ou, de acordo com o modelo dos sofistas, fazer da epopéia uma enciclopédia de todas as artes e ciências. Mas esta quimera da escolástica não é senão a degenerescência de um pensamento em si mesmo correto, o qual, como tudo quanto é belo e verdadeiro, se torna grosseiro em mãos grosseiras.”

A arte tem um poder ilimitado de conversão espiritual. É o que os gregos chamaram psicagogia.”

Na epopéia manifesta-se a peculiaridade da educação helênica como em nenhum outro poema. Nenhum outro povo criou por si mesmo formas de espírito comparáveis àquelas da literatura grega posterior. Dela nos vêm a tragédia, a comédia, o tratado filosófico, o diálogo, o tratado científico sistemático, a história crítica, a biografia, a oratória jurídica e panegírica, a descrição de viagens e as memórias, as coleções de cartas, as confissões e os ensaios.”

E, como sucedeu entre os gregos, também entre os indianos, germanos, romanos, finlandeses e alguns povos nômades da Ásia Central nasceu dos cantos heróicos uma epopéia.”

Os poeirentos manuscritos da épica medieval da Canção de Rolando, do Beowulf e dos Nibelungos, dormitavam nas bibliotecas e foi preciso que uma erudição prévia os redescobrisse e trouxesse à luz. A Divina Comédia de Dante é o único poema da Idade Média que desempenhou papel análogo ao de Homero, não só na vida da sua própria nação, mas até de toda a humanidade.”

Hölderlin disse: O que permanece é obra dos poetas. Este verso exprime a lei fundamental da história da educação helênica.”

Na nossa grande epopéia, precedida de longa evolução dos cantos heróicos, estes epítetos, com o uso, perderam a vitalidade, mas são impostos pela convenção do estilo épico. Os epítetos isolados já não são empregados sempre com um significado individual e característico. São em grande medida ornamentais.”

Tudo quanto é baixo, desprezível e falho de nobreza é suprimido do mundo épico.”

Homero tudo engrandeceu: animais e plantas, a água e a terra, as armas e os cavalos. Podemos afirmar que não deixou nada sem elogio e sem louvor. Mesmo Tersites, o único que ele difamou, denomina-o orador de voz clara.” Dión de Prusa

a poesia mélica nasce de canções populares; o iambo, dos cantos das festas dionisíacas; os hinos e o prosodion, dos serviços divinos; os epitalâmios, das cerimônias populares das bodas; as comédias, dos komos; as tragédias, dos ditirambos. Podemos dividir assim as formas originais a partir das quais se desenvolvem os gêneros poéticos posteriores”

A didática e a elegia seguem os passos da épica e aproximam-se dela pela forma. Dela recebem o espírito educador que passa mais tarde a outros gêneros, como os iambos e os cantos corais. A tragédia, tanto pelo seu material mítico como pelo seu espírito, é a herdeira integral da epopéia. É unicamente à sua ligação com a epopéia e não à sua origem dionisíaca que ela deve o seu espírito ético e educador.”

As descrições de batalhas campais só conseguem despertar o nosso interesse nas cenas dominadas por grandes heróis individuais.”

Em vez de uma história da guerra troiana ou da vida inteira de Aquiles, apresenta apenas, com prodigiosa segurança, as grandes crises, alguns momentos de significação representativa e da mais alta fecundidade poética, o que permite concentrar e evocar, em breve espaço de tempo, dez anos de guerra com todos os seus combates e vicissitudes, passadas, presentes e futuras.”

A Ilíada começa no instante em que Aquiles, colérico, retira-se da luta, o que põe os gregos no maior apuro.”

do mesmo modo o final não se compara ao êxito triunfante de uma aristeia comum. Aquiles não fica satisfeito com a sua vitória sobre Heitor. Toda a história finda com a tristeza inconsolável do herói, com aquelas espantosas lamentações de morte de gregos e troianos perante Pátroclo e Heitor, e com a sombria certeza que o vencedor tem a respeito do seu próprio destino.

Quem pretende suprimir o último Canto ou continuar a ação até a morte de Aquiles, e quiser fazer da Ilíada uma aquileida ou pensar que ela era originariamente assim, estará encarando o problema de um ponto de vista histórico e de conteúdo, não do ponto de vista artístico da forma. (…) É o triunfo do herói, não a sua ruína, que pertence à autêntica aristeia. A tragédia contida na resolução de Aquiles de vingar em Heitor a morte de Pátroclo, apesar de saber que após a queda de Heitor o espera a ele, por sua vez, uma morte certa, não encontrará a sua plenitude até a consumação da catástrofe.”

À cegueira de Agamemnon, junta-se, no Canto IX, a de Aquiles, de conseqüências bem mais graves, porque <não sabe ceder> e, cego pela cólera, ultrapassa todas as medidas humanas. Quando já é tarde demais é que fala cheio de arrependimento. Maldiz então o rancor que o levou a ser infiel ao seu destino heróico, a permanecer ocioso e a sacrificar o seu amigo mais querido. Agamemnon, depois da sua reconciliação com Aquiles, lamenta igualmente a sua própria cegueira numa ampla alegoria sobre os efeitos mortais de ate. Homero concebe a ate, tal como a moira, de modo estritamente religioso, como força divina a que o homem mal pode resistir.”

A frase de Heráclito situa-se no final do caminho percorrido pelos gregos no conhecimento do destino humano. O poeta que criou a figura de Aquiles está no início desse caminho.”

A ação não se desentranha como uma desconexa sucessão temporal. Impera sempre nela o princípio da razão suficiente.” “Homero, no entanto, não é autor moderno que considera tudo simplesmente no seu desenvolvimento interno, como experiência ou fenômeno de uma consciência humana. No mundo em que vive, nada de grande acontece sem a cooperação de uma força divina, e a mesma coisa acontece na epopéia.”

Os deuses estão sempre interessados no jogo das ações humanas. Tomam partido por este ou por aquele, conforme desejam repartir os seus favores ou tirar vantagem. (…) Também na Ilíada os deuses se dividem em dois campos. Isto é crença antiga. Mas são novas algumas facetas da sua elaboração, como o esforço do poeta para manter, tanto quanto possível, na dissensão que a guerra de Tróia provoca no Olimpo, a lealdade mútua dos deuses, a unidade do seu poder e a estabilidade do seu reino divino. A causa última de todos os acontecimentos é a decisão de Zeus. (…) A consideração psicológica e a metafísica de um mesmo acontecimento não se excluem de modo nenhum.” “A epopéia conserva, assim, uma duplicidade característica. Qualquer ação deve ser encarada ao mesmo tempo sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista divino.”

Basta pensar na epopéia cristã medieval escrita em língua românica ou germânica, onde nenhuma força divina interfere e todos os acontecimentos decorrem sob o prisma do acontecer subjetivo e da atividade puramente humana, para nos darmos conta da diferença da concepção poética da realidade própria de Homero.”

Quando dois povos lutam entre si e imploram com preces e sacrifícios o auxílio dos seus deuses, põem os deuses em situação delicada, sobretudo dentro de um pensamento que acredita na onipotência e na justiça imparcial do poder divino.” “Em contraste, (…) vê-se na Ilíada um sentimento religioso cuja representação da divindade, e principalmente do soberano supremo do mundo, serve de alimento às idéias mais sublimes da arte e da filosofia posteriores. Só na Odisséia, porém, descobrimos uma concepção mais coerente e sistemática do governo dos deuses.

Recebe da Ilíada a idéia de um concílio dos deuses, no início dos Cantos I e V; mas cai na vista a diferença entre as cenas tumultuosas do Olimpo da Ilíada e os maravilhosos concílios de personalidades sobre-humanas da Odisséia. Na Ilíada os deuses chegam quase a passar a vias de fato.” “os deuses empregam na sua luta meios humanos – humanos demais” “O Zeus que preside ao concílio dos deuses no começo da Odisséia representa uma elevada consciência filosófica do mundo.” “É através desse prisma ético e religioso que o poeta encara os sofrimentos de Ulisses e a hybris [hubris] dos pretendentes, expiada com a morte.”

Cada personagem conserva firmemente a sua atitude e o seu caráter. Esta rígida construção ética pertence, provavelmente, aos últimos estágios da elaboração poética da Odisséia.”

1.4 Hesíodo e a vida do campo

A vida despreocupada da classe senhorial, em Homero, não deve induzir-nos em erro: a Grécia exige dos seus habitantes uma vida de trabalho.”

O seu solo é formado de múltiplos vales estreitos e paisagens cortadas por montanhas. Quase não tem as vastas planícies, fáceis de cultivar, do norte da Europa, o que obriga a uma luta incessante com o solo para arrancar dele o que só assim ele consegue dar. A agricultura e o pastoreio foram sempre as ocupações mais importantes e mais características dos gregos. Só no litoral prevaleceu, mais tarde, a navegação. Nos tempos mais remotos predominou em absoluto a atividade agrícola.”

Hesíodo conta no conhecido proêmio da Teogonia como despertou para a vocação de poeta: era um simples pastor e guardava os seus rebanhos no sopé do Hélicon, quando um dia recebeu a inspiração das musas, que lhe puseram nas mãos o bastão do rapsodo.”

Embora não se possa, num povo tão multiforme como o grego, generalizar a partir da situação da Beócia, as condições desta são, em grande medida, típicas. (…) Não existe a escravatura e nada indica, mesmo remotamente, que aqueles camponeses e pastores que viviam do trabalho das suas mãos descendessem de uma raça subjugada na época das grandes migrações, como acontecia na Lacônia.”

para Hesíodo o mundo heróico pertence a outra época, diferente e melhor do que a atual, <a idade do ferro> que descreve com cores tão sombrias nos Erga. Não há nada de tão característico no sentimento pessimista do povo trabalhador como a história das cinco idades do mundo, que começa com os tempos dourados, sob o domínio de Cronos, e leva, pouco a pouco, em linha descendente, à subversão do direito, da moral e da felicidade humana nos duros tempos atuais.”

<Camponês> ainda não quer dizer <inculto>. As próprias cidades dos tempos antigos, principalmente na metrópole grega, são acima de tudo cidades rurais e continuam a sê-lo mais tarde”

O seu poema dirige-se primordialmente aos homens da sua condição e parte do princípio de que os seus ouvintes entendem a linguagem artística de Homero, que é a que ele próprio emprega.”

Na grande massa das sagas da Teogonia encontramos muitos temas antiquíssimos, já conhecidos de Homero, mas também muitos outros que nele não aparecem. (…) Os preferidos são os mitos que exprimem a concepção da vida realista e pessimista daquela classe ou as causas das misérias e necessidades da vida social que os oprimem: o mito de Prometeu, no qual Hesíodo encontra a solução para o problema do cansaço e dos sofrimentos da vida humana; (…) o mito de Pandora, que é alheio ao pensamento cavaleiresco e exprime a concepção triste e prosaica da mulher como fonte de todos os males. (…) O modo como, p.ex., conta as histórias de Prometeu e Pandora pressupõe nitidamente que já eram conhecidas dos seus ouvintes. (…) todas as classes sociais possuem o seu próprio tesouro de mitos.”

A grande novidade desta obra está em o poeta falar na primeira pessoa. (…) É o enlace imediato do poema com a disputa jurídica sustentada contra o seu irmão Perses que justifica esta ousada inovação.”

Zeus, que humilha os poderosos e exalta os humildes” Já ouvi isso nalgum lugar!

Só o ricaço, que tem os celeiros cheios e não está apertado pelo cuidado da própria subsistência, pode entregar-se à inútil mania das disputas. Ele pode fazer maquinações contra a fazenda e os bens dos outros, e desperdiçar o tempo no mercado.”

Insensatos, não sabem quão verdadeira é a máxima que diz que a metade é maior que o todo e qual é a bênção contida na erva mais humilde que a terra faz crescer para o homem, a malva [flor púrpura] e o asfódelo.” Erga, 40

A tendência causal nascente encontrou satisfação na construção sagaz de uma genealogia completa dos deuses. (…) o Caos, que também encontramos nos mitos nórdicos, é evidentemente uma idéia originária das raças indo-germânicas. (…) O pensamento da Teogonia não se contenta em pôr em interação os deuses reconhecidos e venerados nos cultos nem se atém aos conceitos tradicionais da religião em vigor.”

logo no relato introdutório sobre a Éris boa e a má vê-se que a Teogonia e os Erga, apesar da diferença dos assuntos, não estavam separadas na mente do poeta e o pensamento do teólogo penetra o do moralista, assim como o deste se manifesta claramente na Teogonia.”

O trabalho e os sofrimentos devem ter aparecido em algum momento no mundo. Não podem ter feito parte, desde a origem, da ordem divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes como causa a sinistra ação de Prometeu, o roubo do fogo divino, que encara do ponto de vista moral. Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da velhice, e outros males mil que hoje povoam a Terra e o mar.”

Não merecemos mais o mito.

Este uso normativo do mito revela-se com maior nitidez porque Hesíodo, nos Erga, coloca a narração das 5 idades do mundo logo em seguida à história de Prometeu, mediante uma fórmula de transição que talvez não tenha estilo, mas é sumamente característica para o que nos interessa. Se quiseres, contar-te-ei com arte uma segunda história até o fim. Acolhe-a, porém, no teu coração. (Erga, 106).”

Hesíodo não viu que, na realidade, os dois mitos se excluem (…) Enumera como causas da desventura cada vez maior dos homens o aumenta da irreflexão, o desaparecimento do temor dos deuses, a guerra e a violência. Na quinta idade, a do ferro, em que o poeta lamenta ser forçado a viver, domina só o direito do mais forte. Nela só prosperam os malfeitores.” Shishio/Meruem

Somos todos Prometeus. Somos promessas prestes a não vingar.

Homero e Píndaro chamam ainos também aos exemplos míticos. Só mais tarde o conceito se circunscreve às fábulas de animais. Possui o sentido já conhecido de advertência ou conselho. Assim, não é apenas a fábula do falcão e do rouxinol que é ainos. Ela é só um exemplo que Hesíodo dá aos juízes.”

A identificação da vontade divina de Zeus com a idéia do direito e a criação de uma nova personagem divina, Dike, tão intimamente ligada a Zeus, o deus supremo, são a imediata conseqüência da força religiosa e da seriedade moral com que a classe camponesa nascente e os habitantes da cidade sentiram a exigência da proteção do direito.”

Deixa-me aconselhar-te com verdadeiro conhecimento, Perses, minha criança grande. (…) Os deuses imortais puseram o suor antes do êxito. A senda que a ele conduz é íngreme e comprida, e de início penosa.”

O trabalho é celebrado como o único caminho, ainda que difícil, para alcançar a arete. (…) Não se trata da arete guerreira da antiga nobreza, nem da arete da classe proprietária, baseada na riqueza, mas sim da arete do homem trabalhador, que tem a sua expressão numa posse de bens moderada.” “Hesíodo quer com plena consciência colocar ao lado do adestramento dos nobres, tal como se espelha na epopéia homérica, uma educação popular, uma doutrina da arete do homem simples.”

Perses, e quem quer que ouça as doutrinas do poeta, deve estar disposto a deixar-se guiar por ele, caso não seja capaz de conhecer intimamente o que lhe é proveitoso e o que lhe é prejudicial. (…) Estes versos constituíram, na ética filosófica posterior, o fundamento primeiro de toda a doutrina moral e pedagógica. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles aceita-os integralmente nas suas considerações preliminares sobre o princípio adequado do ensino moral. (…) Perses não tem uma concepção justa. Mas o poeta tem de admitir que ela pode ser ensinada, na medida em que procura transmitir-lhe a sua própria convicção e influenciá-lo.”

Quem vive na pobreza é aborrecido pelos deuses e pelos homens; é comparável ao zangão, que devora o penoso trabalho das abelhas. Procura um prazer justo, dando-te ao trabalho numa medida equilibrada. (…) O trabalho é a única coisa justa na tua condição”

Esta corrente imemorial que brota da terra, inconsciente ainda de si própria, é a parte mais comovedora de Hesíodo e a causa principal da sua fôrça.”

Hesíodo é o primeiro poeta grego que fala do seu ambiente em seu próprio nome. Deste modo ergue-se acima da esfera épica, que apregoa a fama e interpreta as sagas, até a realidade e as lutas atuais. (…) Surge aqui pela primeira vez uma pretensão a guia, que não se fundamenta numa ascendência aristocrática nem numa função oficial reconhecida. Ressalta imediatamente a semelhança com os profetas de Israel, já salientada de tempos antigos. No entanto, é com Hesíodo, o primeiro dos poetas gregos a apresentar-se com a pretensão de falar publicamente à comunidade, baseado na superioridade do seu conhecimento, que o helenismo se anuncia como uma época nova na história da sociedade.”

É característica pessoal do poeta-profeta grego querer guiar o Homem transviado para o caminho correto, por meio do conhecimento mais profundo das conexões do mundo e da vida.”

1.4 Educação estatal de Esparta

Renunciaríamos de antemão a compreender a história dos gregos se, em conformidade com as divisões habituais do assunto, deixássemos o Estado aos historiadores <políticos> e aos investigadores do direito público e nos limitássemos ao conteúdo da vida espiritual. Pode-se escrever uma história da cultura alemã num longo período sem aludir à política. Esta só é fundamental nos tempos modernos. Por causa disso estudou-se durante muito tempo o povo grego e sua cultura predominantemente sob um prisma estético. Mas isto é um violento deslocamento do centro de gravidade. Só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura. No período primitivo da cultura grega, todos os ramos da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida em comunidade.”

É da maior importância para o nosso intuito ver como o espírito da polis grega encontrou a sua expressão, primeiro na poesia e logo a seguir na prosa”

A mescla de dialetos diferentes, visível na epopéia, prova que a criação artística da poesia homérica é fruto da colaboração de várias raças e povos na elaboração do vocabulário, estilo e métrica dos poemas. (…) A investigação histórica jamais poderá desligar do nosso Homero cantos inteiros que apresentem uma tonalidade unitária de dialetos eólios. As particularidades do espírito dórico e jônico, ao contrário, revelam-se de maneira precisa nas formas da vida das cidades e na fisionomia espiritual da polis. Ambos os tipos se juntam na Atenas dos séculos V e IV. Enquanto a vida real do Estado ateniense recebe o influxo decisivo do ideal jônico, na esfera espiritual, por influência aristocrática da filosofia ática, vive a idéia espartana de uma regeneração que, no ideal platônico da formação, funde-se numa unidade superior com a idéia fundamental jônico-ática, despojada da sua forma democrática, de um Estado regido pelo direito.”

em vão se buscaria um nome espartano entre os moralistas e filósofos gregos. Em contrapartida, Esparta tem, de pleno direito, um lugar na história da educação.”

ao contrário de Homero e Hesíodo, na elegia de Tirteu encontramos apenas a formulação de um ideal, como é próprio da essência dessa poesia de puro pensamento.”

O nosso testemunho principal, a Constituição dos Lacedemônios, de Xenofonte, é fruto do romantismo meio filosófico meio político do séc. IV a.C. (…) A admiração de Xenofonte baseava-se ainda no conhecimento de Esparta através de uma íntima experiência pessoal, enquanto o enlevo romântico que se revela na biografia de Licurgo, por Plutarco,¹ baseia-se apenas num saber adquirido em antigas fontes literárias de valor heterogêneo.”

¹ Nunca será o bastante alertar o leitor desatento: Plutarco não tem quase valor histórico; todas as suas biografias devem ser lidas com suspeição a priori, como anedotas folclóricas guardando esparsos fundos de verdade.

ORIGEM DA DISTINÇÃO DOS NOMES LACEDEMÔNIA E ESPARTA

A crença de que a educação espartana era uma preparação militar unilateral deriva da Política de Aristóteles. (…) Depois da vitória na guerra do Peloponeso, Esparta conseguiu na Grécia uma hegemonia indiscutível, que perdeu ao fim de 30 anos, após a catástrofe de Leuctra.” “O dinheiro, que antes Esparta mal conhecia, entrou na cidade em torrentes, e <foi descoberto> um velho oráculo, segundo o qual a ambição arruinaria Esparta. Nesta época, dominada por uma política de expansão fria e calculista, ao estilo de Lisandro, em que os Lacedemônios se tinham apoderado despoticamente das acrópoles de quase todas as cidades gregas e as liberdades políticas das chamadas cidades autônomas haviam sido todas destruídas, a antiga disciplina espartana surgiu involuntariamente à luz do uso maquiavélico que dela fazia Esparta.”

A migração dórica, de que os gregos sempre guardaram uma recordação indelével, é o último dos movimentos de povos, possivelmente originários da Europa Central, que a partir da península balcânica penetraram na Grécia e se misturaram com os povoadores de outras raças mediterrânicas ali fixadas primitivamente, constituindo assim o povo grego que a história nos apresenta. O tipo característico dos invasores conservou em Esparta a sua maior pureza. A raça dórica ofereceu a Píndaro o seu ideal de homem loiro, de alta estirpe, tal como era representado não só o Menelau homérico, mas também o herói Aquiles, e em geral todos os <helenos de loira cabeleira> da Antiguidade heróica. A primeira coisa a levar em conta é que os espartanos constituíam, entre a população lacônia, apenas uma reduzida classe dominante, de formação tardia. Sob o seu domínio estava uma classe popular, livre, operária e camponesa, os periecos, bem como os servos hilotas, a massa dos submetidos, quase sem quaisquer direitos. Os antigos relatos dão-nos de Esparta a imagem de um acampamento militar permanente. Essa aparência vinha muito mais da constituição inteira da comunidade do que de uma ânsia de conquista. (…) A assembléia do povo espartano não é outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Não há nela qualquer discussão. Limita-se a votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do conselho dos anciãos. [Daí poderia advir o orgulho nacionalista hegeliano diante de uma origem bárbara da cultura superior, não só d’A República como também do Estado Germânico, suposto fim da História e consumação do Espírito!] Este tem direito a dissolver a assembléia e pode retirar da votação as propostas com resultado desfavorável. (…) A sua organização representa um poder moderador no conflito de forças entre os senhores e o povo. (…) É significativo que o eforato [conselho de anciãos] seja a única instituição não-atribuída à legislação de Licurgo.”

quanto mais importância se concede à educação e à tradição oral, menor é a coação mecânica e externa da lei sobre todos os detalhes da vida.”

A participação de todos os cidadãos espartanos na educação militar torna-os uma espécie de casta aristocrática. Aliás, muitos traços dessa educação lembram a formação da antiga nobreza grega. Mas o fato de ter sido estendida aos que não eram nobres prova que houve uma evolução que modificou neste sentido o presumível domínio original dos nobres.”

Tirteu é ainda a nossa única fonte em relação às guerras messênicas, dado que a crítica moderna demonstrou ser total ou predominantemente fictícia a tradição dos historiadores mais recentes. O impulso da sua inspiração foi suscitado pela grande sublevação dos messênios, três gerações após a sua primeira subjugação. Durante 19 anos lutaram sem cessar, armados de lanças, os pais de nossos pais, com paciente coração; no 20º ano, os inimigos abandonaram os férteis campos e fugiram para as altas montanhas de Ithoma.

Em nenhum outro lugar a poesia grega revela tão claramente como a criação poética brota da vida da comunidade humana. (…) Por isso se exprime com freqüência na 1ª pessoa do plural: Lutemos!, Morramos!.”

A estreita ligação entre o indivíduo e a cidade estava, em tempo de paz, simplesmente latente para o cidadão médio, mesmo num Estado como o espartano. No caso de perigo, todavia, a idéia da totalidade manifestava-se subitamente com a maior força. A dura necessidade da longa e duvidosa guerra que acabava de eclodir foi a base férrea em que o Estado espartano se cimentou. Não precisava só de políticos e militares, naquela conjuntura. Precisava também encontrar expressão adequada para os novos valores humanos que na guerra se revelavam.” “a lenda fez de Tirteu um enviado de Apolo.”

Do ponto de vista formal, a elegia de Tirteu não é uma criação original. Os elementos formais lhe foram dados. A forma métrica da elegia – o dístico – é indubitavelmente mais antiga.”

DICOTOMIA ELEGIA X ODE: “A elegia não possui forma <interna> como chegaram a julgar os gramáticos da Antiguidade. Guiados pela evolução posterior do gênero e por uma falsa etimologia, quiseram reduzir todas as formas da elegia a uma raiz comum: o canto fúnebre. A elegia (…) só tinha um elemento constante: o fato de ser dirigida a alguém, indivíduo ou multidão. (…) Até o nosso fragmento, que começa num tom aparentemente mais reflexivo, atinge o seu acme e o seu termo sob a forma da exortação (…) simplesmente tal como a poesia didática dos Erga hesiódicos, dirige-se de maneira mais direta e intencional a uma personalidade determinada.” “Veste com a linguagem da epopéia um assunto contemporâneo.”

E ainda que fosse mais belo que Titono e mais rico do que Midas e Ciniras, mais régio que Pélops, filho de Tântalo, e dotado de uma língua mais lisonjeira que Adrasto, se tivesse todas as glórias do mundo, mas não possuísse o valor guerreiro, não quereria honrá-lo. Não dará boas provas de si na luta se não for capaz de encarar a morte sangrenta na peleja e de lutar corpo-a-corpo com o adversário.”

Mas aquele que cai entre os combatentes e perde a vida bem-amada cobre de glória a sua cidade, os seus concidadãos e o seu pai, ao ser chorado por todos, novos e velhos, quando jaz, com o peito, o côncavo escudo e a armadura trespassados por muitos projéteis; a sua dolorosa memória enche a cidade inteira e são honrados entre os homens o seu sepulcro e os seus filhos, e os filhos dos seus filhos e toda a sua linhagem; a honra do seu nome não se extingue jamais e, mesmo que jaza no seio da terra, torna-se imortal.”

a <polisação> do conceito da arete heróica deriva da <polisação> da idéia da glória heróica” (…) O <nome> é preservado com segurança da fugacidade do presente, pela vida duradoura da comunidade. § os gregos primitivos não conheceram a imortalidade da <alma>. O Homem morria com a morte do corpo. A psyche homérica significa antes o contrário: a imagem corpórea do próprio Homem, que vagueia no Hades como uma sombra: um puro nada.”

O homem político alcança a perfeição através da perenidade da sua memória na comunidade pela qual viveu ou morreu. Só o crescente menosprezo pelo Estado, próprio das épocas seguintes, e a progressiva valorização da alma individual, que alcança o apogeu com o Cristianismo, possibilitaram aos filósofos tomarem o desprezo da glória por uma exigência moral. Nada de semelhante se encontra ainda na concepção do Estado de Demóstenes e de Cícero. É com a elegia de Tirteu que se inicia o desenvolvimento da ética do Estado.”

O poeta contrasta a morte gloriosa no campo de batalha com a vida desventurada e errante, destino inevitável do homem que não cumpriu na guerra os seus deveres de cidadão (…) Anda pelo mundo errante, com o pai, a mãe, a mulher e os filhos. Na sua pobreza e indigência, é um estranho onde quer que vá e todos o fitam com olhos hostis.”

Não estabelece qualquer diferença entre os que foram desterrados por uma necessidade estatal de exceção, porque fugiram ante o inimigo, e os que abandonaram voluntariamente o país para escaparem ao serviço militar, sendo forçados por isso a viver como estranhos em outra cidade.” “O novo ideal da arete política exprime, em face da arete da epopéia, uma transformação da concepção religiosa. A polis é a suma de todas as coisas humanas e divinas.”

O pensamento que impregna a Eunomia tem a maior importância para o conhecimento da atitude pessoal de Tirteu e da sua oposição ao espírito político da Jônia e de Atenas. Enquanto estas nunca se sentiram vinculadas à autoridade da tradição e do mito, mas se empenharam em regular a distribuição dos direitos políticos segundo um pensamento mais ou menos universal, social e justo, Tirteu, à moda antiga, faz derivar do poder dos deuses a eunomia espartana e vê nessa origem a sua garantia mais alta e inviolável. Foi o próprio Zeus, filho de Crono, esposo da coroada Hera, que aos Heráclidas [tradição de haver dois reis, inicialmente, na cidade – descendentes de Heracles] deu esta cidade. Abandonamos com eles o ventoso Erineus e viemos até a vasta ilha de Pélops.

os reis são o único elo legítimo entre o Estado atual e o ato de doação divina que no passado o fundou. O oráculo de Delfos fundamentou para sempre a posição legítima dos reis.”

O Tirteu da Eunomia pertence a Esparta. O Tirteu das elegias guerreiras pertence à Grécia inteira.”

Para ilustrar a posição dos guerreiros no seu Estado ideal, Platão toma Tirteu como modelo, quando propõe honrar os guerreiros acima dos vencedores em Olímpia.”

É a autêntica idéia grega da formação. Uma vez modelada, a forma conserva o seu valor mesmo em estágios posteriores e mais elevados e qualquer novidade precisa confrontar-se com ela. Assim, o filósofo Xenófanes de Cólofon, cem anos após Tirteu, aplica-se em transformar aquelas idéias e sustenta que só à força espiritual cabe, no Estado, a mais alta posição”

A crítica de Platão dirige-se menos contra Tirteu que contra os excessos de força do Estado espartano da época, cujo fundamento encontra nos poemas guerreiros daquele. Nem mesmo os seus maiores admiradores poderiam descobrir naquela Esparta inflexível e unilateral qualquer vestígio de espírito musical e poético. Nesse sentido, são eloqüentes o silêncio de Xenofonte e os esforços fracassados de Plutarco para preencherem aquela lacuna. (…) Felizmente, apesar da fragmentação das nossas tradições e documentos, podemos provar que a antiga Esparta dos tempos heróicos do séc. VII tinha uma vida mais rica e estava totalmente livre da pobreza espiritual que a sua imagem histórica nos apresenta de modo tão vigoroso.”

foi chamado o grande músico Terpandro de Lesbos, inventor da cítara de 7 cordas, para dirigir o coro das festas religiosas e organizá-lo segundo o sentido das suas inovações. A Esparta das épocas subseqüentes adotou rigidamente os padrões de Terpandro e considerou toda a evolução posterior como uma revolução contra o Estado. Mas esta própria rigidez mostra até que ponto a antiga Esparta encarou a educação musical como coisa essencial para a formação do ethos humano”

Os abundantes resquícios de poesias corais de Alcman, lírico originário de Sardes e naturalizado espartano, completam de modo perfeito a imagem da Esparta arcaica.” “Os seus versos, escritos para os coros das jovens espartanas, jorram do humor jovial e da força realista da raça dórica, que só em traços isolados se manifestam através da estilização homérica das elegias de Tirteu. As canções de Alcman, que mencionam os nomes das jovens do coro e apregoam os seus méritos e as suas pequenas ambições e invejas, transportam-nos com idêntica vivacidade e realismo às rivalidades dos concursos musicais da antiga Esparta e revelam-nos que o espírito de emulação do sexo feminino não era inferior ao dos homens. Vê-se por elas também, com toda a clareza, que a condição da mulher na vida pública e privada de Esparta era muito mais livre que entre os Jônios, influenciados pelos costumes asiáticos, e que em Atenas, por sua vez influenciada pelos Jônios.”

1.5 O Estado jurídico e o seu ideal de cidadão

Aos jônios, como a todos os gregos da Ásia Menor, falta energia política construtiva, e em nenhum lugar deixaram uma formação estatal permanente e ativa.”

A estreiteza da faixa costeira em que ocorreu a série de invasões e a impossibilidade de penetrar profundamente no interior do país, ocupado por povos politicamente desorganizados e bárbaros, como os lídios, frígios e cários, atraiu cada vez mais as cidades da costa para o comércio marítimo, com o aumento da segurança na navegação. Isto converteu logo a nobreza de proprietária rural em empresária.”

A ação da Odisséia chega, para leste, até a Fenícia e Cólquida; para sul, até o Egito; para o ocidente, até a Sicília e a Etiópia Ocidental; e para o norte, no Mar Negro, até o país dos cimérios. É perfeitamente a narração do encontro do navegante com uma frota de navios e mercadores fenícios, cujo comércio se estendia a todo o Mediterrâneo e fazia a mais perigosa concorrência aos gregos. A viagem dos argonautas, com as suas maravilhosas descrições de povos e países longínquos, é também uma autêntica epopéia marítima.”

Esta elevada estima pelo direito por parte dos poetas e dos filósofos não precede a realidade, como se poderia pensar. Pelo contrário, é apenas o reflexo da importância fundamental que aqueles progressos deviam ter na vida pública daqueles tempos, i.e., desde o séc. VII até o início do séc. VI.”

o aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres, a qual deve ter surgido em conseqüência do enriquecimento dos cidadãos alheios à nobreza, gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas. As censuras de Hesíodo contra os senhores venais, que na sua função judicial atropelavam o direito, eram o antecedente necessário dessa reclamação universal.”

Dizia-se das partes contenciosas que <dão e recebem dike>. Assim se compendiava numa palavra só a decisão e o cumprimento da pena. O culpado <dá dike>, o que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, <recebe dike>. O juiz <reparte dike>. Assim, o significado fundamental de dike equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. (…) O alto sentido que a palavra recebe na vida da polis posterior aos tempos homéricos não se desenvolve a partir desse significado exterior, e sobretudo técnico, mas sim do elemento normativo que encontra no fundo daquelas antigas formas jurídicas, conhecidas de todo mundo. (…) hybris [ou hubris] – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária ao direito. [arrogância, prepotência: arroga-se um direito que efetivamente não tem, não segue o caminho justo] Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do direito, sua legalidade e sua validade, dike significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra dike se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então o recebera apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária.”

Os próprios nobres tinham de submeter-se ao novo ideal político que surgiu da consciência jurídica e se tornou medida para todos. (…) Encontramos, desde os tempos mais recuados, uma série de palavras que designam certos gêneros de delitos, como adultério, assassínio, rapto, furto. Mas falta-nos um conceito genérico para designar a propriedade pela qual evitamos aquelas transgressões e nos mantemos dentro dos justos limites.”

O conceito de justiça, tida como a forma de arete que engloba e satisfaz todas as exigências do perfeito cidadão, supera naturalmente todas as formas anteriores. Todavia, os graus anteriores da arete não são por isso suprimidos: ao contrário, são elevados a uma nova forma.”

A raiz da ética filosófica de Platão e Aristóteles na ética da velha polis foi desconhecida dos tempos posteriores, habituados a encará-la como a ética absoluta e intemporal. Quando a Igreja cristã começou a estudá-la, achou estranho que Platão e Aristóteles chamassem virtudes morais à fortaleza e à justiça. Mas teve de conformar-se com este fato original da consciência moral dos gregos. (…) fizeram-se por isso inúmeras teses sobre a questão de saber se a fortaleza é uma virtude e como é que pode sê-lo. A aceitação consciente da antiga ética da polis pela moral filosófica posterior e a influência que por meio desta ela exerceu sobre o futuro são para nós um processo perfeitamente natural da história do espírito.”

A educação pública dos jovens é, porém, uma exigência que a filosofia do séc. IV foi a primeira a formular. Esparta é o único dos Estados mais antigos a exercer influência imediata na formação da juventude.”

É com razão que Platão denomina <antiga formação> a ginástica e a música. O cuidado que as cidades dedicaram, sob a forma de grandes e onerosos concursos, a esta formação, originalmente aristocrática, não se limitava a desenvolver o espírito de luta e o interesse musical. Era na competição que se formava o verdadeiro espírito comunitário. Assim se compreende facilmente o orgulho que os cidadãos gregos tinham em serem membros da sua polis. Para a identificação total de um grego exigia-se não só o seu nome e o do seu pai, mas também o da sua cidade natal.”

Com razão, o legislador era considerado educador do seu povo, e é característico do pensamento grego que ele seja freqüentemente colocado ao lado do poeta, e as determinações da lei junto das máximas da sabedoria poética.”

Mas na filosofia da natureza de Anaximandro de Mileto, por volta do séc. VI, ainda achamos um reflexo mais primitivo da idéia de lei. Transpõe para o reino da natureza a representação da dike da vida social da polis e explica a conexão causal da geração e corrupção das coisas como contenda jurídica, em que, por sentença do tempo, elas terão de expiar e pagar indenização conforme as injustiças que cometeram.” “vê-se bem como é profunda a conexão entre o nascimento da consciência filosófica nos jônios e a origem do Estado jurídico.”

O homem não é só <idiota>; é <político> também. Precisa ter, ao lado da habilidade profissional, uma virtude cívica genérica, pela qual se põe em relações de cooperação e inteligência com os outros, no espaço vital da polis. (…) a nova política do homem não pode estar vinculada, como a educação popular de Hesíodo,¹ à idéia do trabalho humano. (…) Se contemplarmos o processo evolutivo da educação grega a partir do ponto de vista hodierno inclinar-nos-emos a crer que o novo movimento teria de aceitar o programa de Hesíodo: substituir a formação geral da personalidade, própria dos nobres, por um novo conceito de educação popular, em que se avaliaria cada homem pela eficácia do seu trabalho específico, e o bem da comunidade resultaria de cada um realizar com a máxima perfeição possível o seu trabalho particular,¹ tal como o aristocrata Platão exigia no Estado autoritário da sua República, dirigido por uma minoria espiritualmente superior. Estaria de acordo com o tipo de vida popular e a diversidade dos seus mestres; o trabalho não seria uma vergonha, mas o fundamento único da consideração citadina. No entanto, e sem prejuízo do reconhecimento deste importante fato social, a evolução real seguiu um curso completamente diverso.”

¹ O camponês utilitário

² O trecho sublinhado soa familiar?

Esta aptidão <geral>, política, pertencia até então unicamente aos nobres. (…) O novo Estado não podia esquecer esta arete, se compreendia corretamente os seus próprios interesses.” “o ideal do cidadão permaneceu o que Fênix já ensinara a Aquiles: estar apto a proferir belas palavras e a realizar ações. Os homens dirigentes da burguesia ascendente¹ deviam atingir este ideal, e até os indivíduos da grande massa deviam participar, em certa medida, no pensamento desta arete.”

¹ Muito me incomoda este tipo de vocábulo anacrônico de Jaeger ao longo de toda a obra: até que ponto é lícito chamar uma classe não-plebéia porém não-aristocrática nascente na Antiguidade de “burguesia”, termo insólito no contexto? Vou criticar o mesmo de novo mais adiante!

Cabe a questão: o Homem ainda é um animal político? A sociedade parece mais com um vespeiro.

Para Sócrates, filho de um pedreiro, um simples operário,¹ constituía um paradoxo surpreendente o fato de um sapateiro, um alfaiate ou um carpinteiro precisarem no seu trabalho de um certo saber autêntico, ao passo que ao político bastava uma educação genérica, de conteúdo bastante indeterminado, embora o seu <ofício> tratasse de coisas muito mais importantes. (…) Observada por este prisma, a falta daquela habilidade especial aparecia diretamente como a essência da democracia. (…) Quando o novo estado (sic) jurídico apareceu, a virtude dos cidadãos consistiu na livre submissão de todos, sem distinção de dignidade ou de sangue, à nova autoridade da lei. (…) Neste sentido, não existia o problema da cooperação.”

¹ De novo… Operário!

O ANTI-MESSIAS & O HOMEM-URBANO: “Aristóteles designa o Homem como ser político e, assim, distingue-o do animal pela sua qualidade de cidadão. Esta identificação da humanitas, do ser-homem, com o Estado, compreende-se apenas na estrutura vital da antiga cultura da polis grega, para a qual a vida em comum é a súmula da vida mais elevada e adquire até uma qualidade divina.”

Platão dá-nos uma transcrição fiel do sentido originário da <cultura geral>, segundo o espírito da primitiva polis grega. (…) A verdadeira educação é para Platão uma formação <geral>, porque o sentido do político é o sentido do geral.” O homem acusado de precipitar o mundo em decadência (Nietzsche), veja só, não passava de um inveterado nostálgico de tempos insondáveis!

A antiga cidade-estado (sic) é o 1º estágio, depois da educação nobre, na caminhada do ideal <humanista> para uma educação ético-política geral e humana. Aliás, podemos dizer que foi esta a sua verdadeira missão histórica. (…) Não se pode calcular o seu valor nem pelo gênio de cada um dos chefes, cuja aparição depende de condições excepcionais, nem pela sua utilidade para a multidão, à qual não se pode transmitir sem um efeito nivelador sobre as 2 partes. (…) O ideal de uma arete política geral é indispensável, dada a necessidade da formação contínua de uma camada de dirigentes, sem a qual nenhum povo ou Estado pode subsistir, qualquer que seja a sua constituição.” A Europa é um verdadeiro milagre!

1.6 A autoformação do indivíduo na poesia jônico-eólica

Todavia, (…) não achamos, à primeira vista, uma expressão equivalente do novo ideal de cidadão na poesia da época.” “Apenas podemos mencionar as histórias relativas à fundação de certas cidades, redigidas num estilo épico convencional. Mas nenhuma destas obras da cultura citadina primitiva, já numericamente raras, se eleva à importância de uma verdadeira epopéia do Estado, como entre os romanos foi a Eneida de Virgílio, a última das grandes obras do gênero. (…) foi na criação da prosa que o novo ethos do Estado encontrou a sua verdadeira expressão revolucionária.”

nenhum escritor jônico ou eólico captou o heroísmo político interior de Sólon, que se tornaria a fonte de uma nova grande poesia.”

As conexões causais entre o espiritual e o material permanecem na maior obscuridade por ausência completa de qualquer tradição relativa às condições econômicas da época. (…) E este vestígio do espírito jônico tem a maior importância para a história dos gregos e da humanidade.”

Até os animais, nas disputas das fábulas, reclamam uns aos outros os <seus direitos>, em humorística imitação das relações humanas.”

COISAS QUE HEGEL NÃO VÊ: “É altamente significativo que o tipo de individualismo que com assombrosa independência se manifesta nestas poesias pela primeira vez, não se exprima, à maneira moderna, como simples experiência da sensibilidade do eu” “Este moderno tipo de individualismo poético não é mais do que um retorno às formas primitivas e naturais da arte” “Nada é mais insensato do que julgar que foram os gregos os primeiros a trazerem ao mundo o sentimento e o pensamento individual. Pelo contrário (…) a lírica chinesa, tão aparentada à moderna.”

não nos é fácil conceber com clareza e precisão o que Arquíloco e outros poetas da sua espécie entenderam por individualidade.” “As manifestações da individualidade nunca são exclusivamente subjetivas. Seria preferível dizer que, numa poesia como a de Arquíloco, o eu individual busca exprimir e representar em si próprio a totalidade do mundo objetivo e suas leis.”

Os heróis homéricos teriam sentido a perda do Escudo como a ruína de sua honra e prefeririam sacrificar a vida a sofrer semelhante afronta. O novo herói de Paros exprime as suas reservas neste ponto e está certo de provocar o riso dos seus contemporâneos, quando diz: Um dos Saios, nossos inimigos, regozija-se agora com o meu escudo, arma impecável que sem querer deixei ficar num matagal. No entanto, escapei à morte, que é o fim de tudo. Quero lá saber deste escudo! Comprarei outro melhor. A deliciosa mescla do moderno¹ humor naturalista (alheio a qualquer tipo de ilusões, e segundo o qual até um herói só tem uma vida para perder) com a nobre ressonância da retórica épica, que nos fala de <arma impecável> e da morte que <é o fim de tudo>, é fonte inesgotável de efeitos cômicos. Protegido por eles, o esforçado desertor pode aventurar a sua insolente conclusão e afirmar com sinceridade desconcertante: Comprarei outro melhor! Que é um escudo, afinal, senão um pedaço de pele de boi curtida, com uns adornos de metal brilhante!

¹ Novamente o incômodo com a palavra.

na audaciosa afirmação pessoal de Arquíloco em face das limitações do decoro tradicional e na decidida franqueza com que a mantém, já se encontra implícita a consciência de poder ser não apenas mais descarado, mas também mais espontâneo e sincero do que aquele que está submetido com mais rigor ao código moral.”

Se nos afligimos com a maledicência do povo, não desfrutamos o prazer da vida. A inércia e o comodismo da natureza humana tiveram certamente neste processo de emancipação um papel não-desprezível, e é evidentemente nesta direção que aponta a raiz da palavra.”

Já Homero ensinava que o espírito do Homem é tão mutável como os dias que Zeus ilumina. Arquíloco aplica ao mundo da vida que o rodeia esta sabedoria homérica. (…) A ética da antiga nobreza venerava a Fama como uma força superior, porque tinha dela uma idéia muito diferente: a honra das grandes façanhas e o seu jovial reconhecimento no círculo dos espíritos nobres. Transferida para a massa invejosa, que mede tudo que é grande pela sua própria e acanhada medida, perde qualquer sentido.”

Foi com certa precipitação que se atribuiu a condições de caráter pessoais a totalidade da poesia iâmbica, de conteúdo em grande parte exprobratório. Julga-se legítimo, neste como em qualquer outro gênero de poesia, pensar numa explicação puramente psicológica e encarar a poesia como resultante da expansão imediata da subjetividade amarga do seu criador. Esquece-se, assim, que a aparição da sátira literária da primitiva cidade grega é um fenômeno característico da época em que se expande a importância crescente do demos. Originariamente, o iambo era de uso corrente nas festas públicas de Dionisos (sic) e correspondia antes à explosão de um sentimento popular do que à expressão de um rancor pessoal. Prova disso é que o espírito do iambo se incorpora com a maior fidelidade e continua na comédia ática, onde o poeta aparece claramente como o porta-voz da crítica possível.”

Quero contar-vos uma fábula…, assim começa a história do macaco e da raposa. A fábula da raposa e da águia começa do mesmo modo: Existe entre os homens uma fábula que reza assim…

Porque em Hesíodo encontra-se freqüentemente esse tema, quis-se deduzir a sua hostilidade pelas mulheres de certo romance passional cuja experiência amarga se teria refletido dessa maneira. Todavia, a troça contra as mulheres e o sexo feminino é um dos temas mais antigos da sátira popular em reuniões públicas. A sua repetição em Semônides de Amorgos não é só uma débil imitação de Hesíodo; ela se vincula, sim, com o antigo e verdadeiro iambo, que nunca consistiu na simples injúria e difamação pública de uma pessoa a quem se quer mal. (…) a sua contrapartida, a sátira contra os homens, também não faltou, embora antes de Aristófanes não a encontremos na poesia.”

E qual podia ser o valor ideal ou artístico da simples explosão do ódio ou da raiva pessoal, mesmo expressos da forma mais bela? Se assim fosse, não se teria escutado muitos séculos depois, a voz de Arquíloco ao lado daquela de Homero, nos concursos musicais, não o teriam considerado, como testemunha Heráclito, mestre dos gregos, não teriam captado a íntima ligação dos seus poemas como a consciência geral do mundo circundante.”

Píndaro, o mestre da educação com base no elogio das virtudes nobres, diz: Vi ao longo o satirizante Arquíloco, desamparado e na maior indigência, a cevar-se nas mais violentas e ofensivas inimizades.

A religiosidade de Arquíloco tem raízes no problema da tyche. A sua experiência de Deus é a experiência da tyche. O conteúdo destas considerações, e em parte o seu vocabulário, vem de Homero. Mas a luta do Homem contra o destino é transferida do mundo sublime dos heróis para a esfera da vida cotidiana.” “A partir daí, o desenvolvimento da idéia de tyche entre os gregos segue os passos do desenvolvimento do problema da liberdade humana. O esforço para alcançar a independência significa, em grande medida, a renúncia a muito do que o Homem recebeu da tyche como dom.”

Este primeiro grande monólogo da literatura grega surge da transferência da exortação a outra pessoa, tal como era de uso no iambo e na elegia, para a própria pessoa daquele que fala e que assim se desdobra e é, por um lado, orador, e, por outro, espírito que pensa e quer.”

Não te deves pavonear perante o mundo, quando venceres, nem abater-te e lamentar-te quando fores vencido; alegra-te com o que é digno de alegria, não desfaleças em excesso; na desgraça, conhece o ritmo que mantém os homens nos seus limites.”

A aplicação da palavra ao movimento da dança e à música, da qual deriva a nossa palavra, é secundária e esconde o seu significado fundamental. Antes de mais nada, devemos perguntar como é que os gregos entenderam a essência da dança e da música.”

Ritmo é aqui o que impõe firmeza e limites ao movimento e ao fluxo. (…) Também Demócrito fala do ritmo do átomo no primitivo e autêntico sentido e por ele entende não o movimento do átomo, mas sim, como já Aristóteles corretamente interpretou, o seu <esquema>. (…) É evidente que, quando os gregos falam do ritmo de um edifício ou de uma estátua, não se trata da transposição metafórica da linguagem musical. E a intuição originária que se encontra no âmago da descoberta grega do ritmo da dança e da música não se refere à fluência destas, mas sim, pelo contrário, as suas pausas e à constante limitação do movimento.”

Revela-se uma auto-submissão às próprias limitações, consciente e livre da autoridade da mera tradição. O pensamento humano torna-se dono de si próprio e, assim como aspira a submeter a vida da polis a leis universalmente válidas, também penetra, para além destes limites, na esfera da interioridade humana e também coloca balizas no caos das paixões. Nos séculos seguintes, o palco desta luta é a poesia, dado que a filosofia só mais tarde, e em segundo plano, nela toma parte.”

A poesia da nova época nasce da necessidade, experimentada pelo indivíduo livre, de separar progressivamente o humano do conteúdo mítico da epopéia, na qual se havia exprimido até então.”

Seres de um só dia, como os animais no prado, vivemos ignorantes do modo que a divindade usará para levar cada coisa a seu fim. Vivemos todos da esperança e da ilusão; os seus desígnios, porém, nos são inacessíveis. …”

Semônides, frag. 1

Enquanto dura a flor dos anos, os mortais andam de coração leve e traçam mil planos irrealizáveis. Ninguém pensa na velhice ou na morte. E, enquanto têm saúde, não curam da enfermidade. Insensatos os que assim pensam e não sabem que para os mortais é breve o tempo da juventude e da existência. Aprende tu isto e, meditando no fim da vida, deixa a tua alma gozar um pouco de prazer. A juventude surge aqui como fonte de todas as ilusões exageradas e de todos os empreendimentos desmedidos, porque não tem presente a sabedoria de Homero, que recorda a brevidade da vida. Singular e nova é a conseqüência tirada desta afirmação pelo poeta: a exortação a gozar os prazeres da vida enquanto é tempo. Isto não se encontra em Homero.”

Foi na Jônia que pela 1ª vez surgiu uma poesia hedonista”

O que em Arquíloco age mais como o extravasamento acidental de uma natureza forte e de um sentimento pessoal e passageiro torna-se, para os seus sucessores, a sabedoria total da vida e traduz-se em exigência universal, no ideal de uma vida que desejam partilhada por todos os homens. Sem a loira Afrodite não há vida nem prazer! Preferia estar morto – proclama Mimnermose tivesse de não mais gozar dela. Nada haveria de mais errôneo do que imaginar um poeta como Mimnermo um sensual voluptuoso e decadente. De Semônides não conhecemos o bastante para formarmos uma idéia cabal da sua personalidade. Alguns poemas de Mimnermo possuem um tom político e guerreiro e atestam pelos seus versos homéricos, tensos e vigorosos, uma consciência e tradição cavaleiresca.”

Do ponto de vista histórico, a poesia hedonista é um dos momentos críticos mais importantes da evolução grega. Só é preciso lembrar que o pensamento grego colocava sempre o problema do indivíduo, na ética e na estrutura do Estado, como um conflito no predomínio do prazer e da nobreza. Na sofística revela-se abertamente o conflito entre estes dois impulsos de toda a ação humana, e a filosofia de Platão culmina com a vitória sobre a aspiração do prazer a tornar-se o mais alto bem da vida humana.”

para que se chegasse, por fim, a uma fórmula harmônica tal como oferece o ideal da personalidade humana proposto por Aristóteles, foi preciso que a busca da alegria plena de viver e do gozo do prazer achasse uma afirmação resoluta e fundamental em face da exigência da nobreza, mantida pela epopéia e pela antiga elegia.”

não se pode esquecer que Arquíloco é um precursor da lírica eólica, embora os seus poemas, inclusive os de ódio, em que se manifesta com paixão a sua subjetividade, se orientem ainda por normas universais da sensibilidade moral. A lírica eólica, principalmente em Safo, chega muito mais longe e converte-se em pura expressão do sentimento.”

a conexão viva das canções de Alceu dedicadas à bebida com os banquetes masculinos, e das canções nupciais e amorosas de Safo com os círculos musicais das jovens companheiras que se agrupam em redor da poetisa”

Reflexões piedosas, serenas ou resignadas sobre o curso do mundo e o destino enlaçam-se de forma totalmente nova com uma filosofia de bebedores que sepulta todas as agruras da vida pessoal na embriaguez dionisíaca. Assim, o tom individual desta lírica não é incompatível com a convivência da sociedade dos homens, embora se vá estreitando o círculo das pessoas ante as quais se pode manifestar a personalidade individual.”

Na prece, o Homem encontra-se também na atitude original, na sua nua solidão pessoal, perante o Ser. Ao dirigir-se à força divina como a um tu invisível mas presente, o suplicante converte-se ainda mais em órgão de expressão dos seus próprios sentimentos e emoções, e expande-se, liberto de qualquer testemunha humana. Em parte alguma isto se manifesta de maneira tão bela como em Safo. § Tudo se passa como se o espírito grego precisasse de Safo para dar o último passo no mundo da intimidade do sentimento subjetivo. Os gregos deviam ter sentido isto como algo de muito grande quando, no dizer de Platão, honraram Safo como a décima musa. A poesia feminina não é insólita na Grécia. Mas nenhuma colega na arte chegou à altura de Safo. Esta é singular. Comparada, porém, com a riqueza da poesia de Alceu, a lírica de Safo é muito limitada. Está circunscrita ao mundo das mulheres que a rodeiam, e ainda assim sob o ponto de vista da vida em comum entre a poetisa e o círculo das suas donzelas. A mulher como mãe, amante, ou esposa, que aparece na poesia grega com a maior freqüência e é celebrada pelos poetas de todos os tempos, dado que é com essa imagem que vive na poesia do homem, não aparece na poesia de Safo senão fortuitamente, por motivo do ingresso ou da saída de alguma das donzelas do seu círculo. Não é objeto de inspiração poética para Safo. A mulher entra no seu círculo como a garotinha que acaba de deixar o seio materno. Sob a proteção de uma mulher solteira, cuja vida está votada, como a de uma sacerdotisa, ao serviço das musas, recebe a consagração da beleza, por meio de danças, cânticos e jogos.”

Entre a casa paterna e a vida matrimonial situa-se uma espécie de mundo ideal intermediário que só podemos conceber como uma educação da mulher de acordo com a mais alta nobreza da alma feminina. A existência do círculo de Safo pressupõe a concepção educativa da poesia, evidente para os gregos desse tempo.”

Salta aos olhos desprevenidos o paralelo entre o eros platônico e o eros sáfico. § Esse eros feminino, cujas flores poéticas nos encantam pela delicadeza do seu aroma e pelo esmalte das suas cores, teve força suficiente para fundar uma verdadeira comunidade humana. (…) Existia na charis sensual dos jogos e danças e encarnava na grandeza da forma que estava presente como modelo na comunidade das companheiras. A lírica sáfica atinge os seus momentos culminantes na solicitação quente ao coração agreste e ainda não aberto de uma donzela”

Agora interessa-nos aqui muito menos a verificação da existência de um aspecto sensual na erótica sáfica do que a plenitude de sentimento que abala poderosamente a totalidade da alma humana. A poesia de amor masculina nunca atingiu na Grécia a profundidade espiritual da lírica de Safo. Só mais tarde a polaridade do espiritual e do sensual ganhou real importância na vida erótica, até penetrar profundamente na alma e preencher a vida inteira. § Esta transformação da sensibilidade masculina foi considerada uma efeminação helenística. Em todo o caso, nos primeiros tempos só a mulher era capaz daquela entrega total da alma e dos sentidos, único sentimento que, para nós, merece a designação de amor. (…) Naquele tempo, ainda estranho ao conceito de matrimônio por amor, era difícil surgir na mulher o amor pelo homem. Do mesmo modo, foi apenas na forma do eros platônico que o amor do homem, na sua mais elevada espiritualização, conseguiu em relação à mulher a sua expressão poética. Seria anacronismo interpretar o amor de Safo, sempre ligado à sensibilidade sensual, como o equivalente do anseio metafísico da alma platônica pela Idéia, que é o segredo do seu eros. No entanto, (…) É daqui que deriva a grande dor que dá à poesia de Safo não só o terno encanto da melancolia, mas ainda a elevada nobreza da verdadeira tragédia humana.

A lenda, que cedo se apoderou da sua figura, explicou o mistério que envolve a sua pessoa e a sua vida sentimental por meio da história de um amor infeliz por um belo homem de nome Fáon, e pintou a sua tragédia no dramático salto dos rochedos de Lêucade abaixo. Mas o homem está completamente ausente do seu mundo. Aparece, quando muito, à margem desse mundo, como pretendente de uma das suas queridas pequenas, e é olhado com indiferença.”

Basta-me ver-te e ficam mudos os meus lábios, ata-se a minha língua, um fogo sutil corre sob a minha pele, tudo escurece ante o meu olhar, zunem-me os ouvidos, escorre por mim o suor, acometem-me tremores e fico mais pálida que a palha; dir-se-ia que estou morta.”

Onde encontraremos na arte ocidental algo que, antes de Goethe, se compare a ela?”

Alguns dizem que o que há de mais belo na Terra é um esquadrão de cavalaria; outros, um exército de guerreiros apeados; outros ainda, uma esquadra de navios; mas o mais belo é ser amado por quem o coração suspira.”

1.7 Sólon: começo da formação política de Atenas

A pujança ática só atingiu o apogeu um século depois, com a tragédia de Ésquilo.”

Imaginemos que se tivessem perdido todos os vestígios dos poemas de Sólon. Sem eles não estaríamos em condições de compreender o que há de mais grandioso e memorável na poesia ática contemporânea da tragédia e nem a vida espiritual inteira de Atenas – a perfeita interpenetração de toda a produção espiritual grega com a idéia do Estado.”

A SÍNTESE ESPARTA-JÔNIA-ATENAS: “Em Esparta faltava o traço de união entre a força educadora implícita na nova ordem jurídica que regia a vida política e a liberdade sem rédeas dos poetas jônicos, no pensamento e na palavra. A cultura ática foi a primeira a equilibrar as duas forças”

Os monumentos clássicos da cultura política grega, de Sólon até Platão, Tucídides e Demóstenes, são, na sua totalidade, criação dos filhos da Ática.”

O primeiro passo para a edificação do direito do sangue, as proverbiais <leis draconianas>, significou mais uma consolidação das relações recebidas que um rompimento com a tradição. Tampouco as leis de Sólon queriam suprimir o domínio dos nobres como tal. Foi a reforma de Clístenes, após a queda da tirania dos Pisistrátidas, que acabou violentamente com ele.”

Os conceituados proprietários apreciadores de cavalos, que nos vasos arcaicos vemos pintados, conduzindo os seus carros velozes por ocasião de uma festa ou, mais freqüentemente, para assistirem ao funeral de algum companheiro, opunham-se aos servos que trabalhavam no campo como massa compacta. O mais egoísta espírito de casta e a distância altaneira dos superiores e terratenentes em face das classes inferiores opunham uma barreira inamovível às exigências da população, cuja situação desesperada Sólon descreve comovido, no seu grande iambo.”

A proibição, por Sólon, do fausto asiático e das lamentações das mulheres, em uso até então nas cerimônias fúnebres dos senhores mais importantes, foi uma concessão ao sentimento popular.”

No que se refere ao tempo de Sólon, a deusa sentada do museu de Berlim é a representação perfeita da altivez feminina nesta antiga aristocracia ática.” Talvez se refira a esta escultura de Perséfone:

Sem o estímulo do Oriente jônico, seria inconcebível principalmente o movimento político nascido da massa economicamente fraca com a figura de Sólon, seu chefe proeminente, em que se interpenetram inseparavelmente o ático e o jônico.” “A sua linhagem poética é o jônico mesclado de formas áticas, pois, naquele tempo, o ático ainda não estava apto a ser empregado na alta poesia.”

A Eunomia é, como Dike, uma divindade – Hesíodo dá-lhe o nome de irmãs na Teogonia – e tem também uma ação imanente.” “Convém recordar que na Jônia Tales e Anaximandro, filósofos da natureza milesianos, ensaiavam por essa época as primeiras passadas na ousada senda do conhecimento de uma lei estável do devir eterno da natureza.”

A tirania, i.e., o domínio exercido sobre a aristocracia restante por uma estirpe nobre e o seu chefe, apoiados na massa popular, era o perigo mais temível que Sólon podia pintar aos olhos da sociedade ática dos eupátridas (…) É altamente significativo que ele nos fale do perigo da democracia. Por imaturidade das multidões, esse perigo era longínquo ainda.” “é característico da natureza humana que, apesar desta intuição, Atenas se tenha visto igualmente forçada a passar pela regência dos tiranos.”

Se foi por debilidade vossa que haveis sofrido o mal, não lanceis sobre os deuses o peso da culpa. Fostes vós próprios que permitistes a esta gente que se engrandecesse, dando-lhe a força e caindo por isso em vergonhosa servidão.”

Sólon, frag. 8

Moira torna fundamentalmente inseguros todos os esforços humanos, por mais sérios e coerentes que pareçam, e não há previsão que possa evitar esta Moira, como era evitada a desgraça proveniente da culpa pessoal, na primeira parte do poema. Atinge os bons e os maus, sem distinção. É totalmente irracional a relação entre o nosso esforço e o nosso êxito.” “A insegurança do êxito dos melhores esforços não acarreta a resignação nem a renúncia ao próprio esforço.”

A interpretação da divina Moira como força de equilíbrio necessária nas inevitáveis diferenças econômicas entre os homens prescreve uma linha de conduta a sua ação política.”

Jamais um estadista se elevou tão acima da mera vontade de poder como Sólon, que deixou o país e partiu em longa viagem, assim que deu por finda a sua obra legislativa. Não se cansa de salientar que não aproveitou a sua situação para enriquecer ou tornar-se um tirano, como em seu lugar teria feito a maioria, e preza-se de ser alcunhado de néscio por não ter aproveitado a ocasião.”

Semônides ensinou ser a vida tão breve e tão fértil em dores e canseiras que não devemos chorar um defunto por mais que um dia após a morte.”

Não há homem feliz. Todos os mortais debaixo do sol estão mergulhados em canseiras.”

Sólon, frag. 5

À massa basta submeter-se às leis que lhe são impostas. Mas aquele que as impõe precisa ter uma alta medida, que não se encontra afixada em parte alguma.”

Pela sua união do Estado e do espírito, da comunidade e do indivíduo, Sólon é realmente o primeiro ateniense.”

1.8 O pensamento filosófico e a descoberta do cosmos

Os <pré-socráticos> constituíram, desde Aristóteles, o problema histórico e o fundamento sistemático da filosofia ática clássica, i.e., o platonismo.”

A sofística é um acontecimento de tipo educativo, no sentido mais próprio. Só uma história da educação pode dar-lhe o verdadeiro valor. Em geral, o conteúdo teórico da sua doutrina é escasso.”

A filosofia jônica da natureza sucede a epopéia sem solução de continuidade.” “Não é fácil definir se a idéia dos poemas homéricos, segundo a qual o Oceano é a origem de todas as coisas, difere da concepção de Tales, que considera a água o princípio original do mundo; seja como for, é evidente que a representação do mar inesgotável colaborou para a sua expressão.”

Mitogonia autêntica ainda encontramos na filosofia de Platão e na de Aristóteles. São exemplos o mito da alma em Platão e, em Aristóteles, o amor das coisas pelo motor imóvel do mundo.”

Se representarmos o mundo por uma série de círculos concêntricos, a partir da exterioridade da periferia para a interioridade do centro, veremos que o processo pelo qual o pensamento racional toma posse do mundo se realiza na forma de uma penetração progressiva que vai das esferas exteriores para as mais profundas e interiores, até chegar, com Sócrates e Platão, ao centro, quer dizer, à alma. A partir deste ponto, realiza-se, no neoplatonismo, um movimento inverso até o fim da filosofia antiga.”

Se juntarmos à filosofia da natureza tudo o que a poesia jônica a partir de Arquíloco e a poesia de Sólon trouxeram ao pensamento construtivo no campo religioso e ético-político, ficará evidente que nos basta quebrar os limites que separam a prosa da poesia para obtermos uma imagem completa da evolução do pensamento filosófico, na qual também está compreendido o reino humano.”

O problema do Homem não foi encarado pelos gregos, a princípio, do ponto de vista teórico. Mais tarde, no estudo dos problemas do mundo externo e particularmente da Medicina e da Matemática, é que se descobriram intuições do tipo de uma techne exata, que serviram de modelo para a investigação do homem interior. Recordemos as palavras de Hegel: o rodeio é o caminho do espírito.”

O que logo se evidencia na figura humana destes primeiros filósofos – que, naturalmente, não deram a si próprios este nome platônico – é a sua típica atitude espiritual: devotamento incondicional ao conhecimento, estudo e aprofundamento do ser, em si mesmo. (…) A tranqüila indiferença daqueles investigadores pelas coisas que aos demais homens pareciam importantes, como o dinheiro, as honras e até o lar e a família, a sua aparente cegueira com relação aos seus próprios interesses e a sua indiferença perante as emoções da praça pública deram origem às conhecidas anedotas sobre a atitude espiritual daqueles pensadores. Recolhidas principalmente pela Academia platônica e pela escola peripatética, foram propostas como exemplo e modelo do BIOS POLITIKOS, considerado por Platão como a autêntica práxis dos filósofos.”

WHY THE SKY? “O sábio Tales, absorto na contemplação de um fenômeno celeste qualquer, cai dentro de um poço, e a sua criada trácia faz pouco dele, por querer saber as coisas do céu e não ver o que está sob os seus pés. Pitágoras, quando lhe perguntam para quê vive, responde: para contemplar o céu e as estrelas. Anaxágoras, acusado de não se interessar pela família nem pela pátria, aponta com a mão o céu e diz: eis a minha pátria. É comum a todos aquele incompreensível devotamento ao conhecimento do cosmos, à <meteorologia>, como então se dizia num sentido mais vasto e mais profundo, i.e., a ciência das coisas do alto. A conduta e as aspirações dos filósofos são desmedidas e extravagantes, no sentido do povo, e é crença popular dos gregos que aqueles homens sutis e sonhadores são infelizes (…) [Este sentimento] refere-se evidentemente à hybris, pois o pensador ultrapassa os limites impostos ao espírito humano pela inveja dos deuses.

Existências deste tipo, audaciosas e solitárias, só na Jônia, numa atmosfera da maior liberdade pessoal, podiam desabrochar. Esta gente insólita era, ali, deixada em paz, quando em qualquer outro local teria suscitado escândalo e enfrentado toda a espécie de dificuldades. Na Jônia, homens da classe de Tales de Mileto cedo ganhavam popularidade, eram transmitidas com interesse as suas sentenças e afirmações e contavam-se anedotas a seu respeito.”

Pelo que sabemos, foi Anaximandro o primeiro que teve a coragem de escrever em prosa as suas idéias e de difundi-las, tal como o legislador escrevia as suas tábuas. O filósofo elimina com isso a intimidade do seu pensamento”

Hecateu de Mileto começa o seu tratado genealógico com estas palavras ingênuas: Diz Hecateu de Mileto: variados e ridículos são os discursos dos gregos; eu, porém, Hecateu, digo o seguinte.

Só é verdade o que <eu> posso explicar por razões concludentes, aquilo que o <meu> pensamento consegue justificar perante si próprio. Toda a literatura jônica, desde Hecateu e Heródoto, criador da Geografia e da Etnologia e pai da História, até os médicos, em cujos escritos se encontram os fundamentos da ciência médica durante vários séculos, está impregnada deste espírito e usa nas suas críticas aquela forma pessoal característica.”

No conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica, do que deriva daquela origem e existe atualmente.”

A conexão do nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jônica, torna-se clara, se notamos que os seus 3 primeiros pensadores – Tales, Anaximandro e Anaxímenes – viveram no tempo da destruição de Mileto pelos persas (início do séc. V).”

Tomaremos o exemplo de Anaximandro, a figura mais imponente dos físicos milesianos, para elucidarmos o espírito daquela filosofia arcaica. É ele o único de cuja concepção de mundo podemos obter uma representação exata. Nele se revela a prodigiosa amplitude do pensamento jônico. Foi ele quem primeiro criou uma imagem do mundo de verdadeira profundidade metafísica e rigorosa unidade arquitetônica. Foi ele também o criador do primeiro mapa da Terra e da geografia científica.” “O mundo de Anaximandro é construído segundo rigorosas proporções matemáticas. O disco terrestre da concepção homérica não passa de uma representação ilusória. Na realidade o caminho diário do Sol do Oriente para o Ocidente passa por baixo da Terra, de modo a reaparecer no Oriente, no seu ponto de partida. O mundo não é, assim, uma meia-esfera, mas uma esfera completa, em cujo centro se situa a Terra.”

E o diâmetro da Terra tem 3 vezes a sua altura, pois a Terra tem a forma de um cilindro achatado. Não se apóia numa base sólida nem cresce para o ar, como uma árvore, a partir de raízes invisíveis e profundas.(*) Está suspensa no espaço do mundo.

(*) Na cosmogonia órfica de FERECIDES, que em parte se liga às concepções míticas mais antigas, fala-se de um <carvalho alado>. Combina a doutrina de Anaximandro da livre suspensão com a representação da árvore que tem as raízes do infinito. PARMÊNIDES (frag. 15a) diz que a Terra <está enraizada na água>.”

não tenho qualquer escrúpulo em fazer retroceder até Anaximandro o germe dos esquemas cartográficos que Heródoto, Scylax e outros autores atribuem a Hecateu. A superfície da Terra divide-se em 2 partes aproximadamente iguais: a Europa e a Ásia. Aparece em separado um trecho da última: a Líbia. Rios caudalosos constituem as fronteiras. A Europa e a Líbia são divididas em 2 partes iguais, a primeira pelo Danúbio e a segunda pelo Nilo.” “o Oceano, nunca visto por olhos humanos, pelo menos a leste e ao norte.”

aquela grande máxima, a única de Anaximandro que nos foi diretamente transmitida: Onde estiver a origem do que é aí também deve estar o seu fim, segundo o decreto do destino. Porque as coisas têm de pagar umas às outras castigo e pena, conforme a sentença do tempo.

Muito se escreveu sobre esta frase, desde Nietzsche até Erwin Rhode, e várias interpretações místicas foram tentadas.”

A idéia de Sólon é esta: a dike não depende dos decretos da justiça terrena e humana nem resulta da simples intervenção externa de um decreto da justiça divina, como sucedia na antiga religião de Hesíodo. É imanente ao próprio acontecer, no qual se realiza para cada caso a compensação das desigualdades. Portanto, a sua inexorabilidade é o <castigo de Zeus>, a <paga dos deuses>. Anaximandro vai muito além. Essa compensação eterna não se realiza só na vida humana, mas também no mundo inteiro, na totalidade dos seres.” “Temos, portanto, o direito de caracterizar a concepção do mundo de Anaximandro como a íntima descoberta do cosmos. Esta descoberta não se podia fazer senão no fundo da alma humana. Nada se teria podido fazer com telescópios, observatórios ou qualquer outro tipo de investigação empírica. Foi da mesma faculdade intuitiva que brotou a idéia de infinidade dos mundos, atribuída a Anaximandro pela tradição.”

o Prometeu de Ésquilo chama a descoberta do número de obra-prima da sabedoria criadora da cultura.”

Assim, como freqüentemente sucede, deparamos com um conhecimento perene e infinitamente fecundo unido a uma aplicação prática equivocada. Esta audaciosa supervalorização aparece em todos os grandes momentos do pensamento racional.”

Só o conhecimento da essência da harmonia e do ritmo que dela brota já seria suficiente para garantir aos gregos a imortalidade na história da educação humana. É quase ilimitada a possibilidade de aplicação daquele conhecimento a todas as esferas da vida.”

A harmonia exprime a relação das partes com o todo. Está nela implícito o conceito matemático de proporção que o pensamento grego se figura em forma geométrica e intuitiva. A harmonia do mundo é um conceito complexo em que estão compreendidas a representação da bela combinação dos sons no sentido musical e a do rigor dos números, a regularidade geométrica e a articulação tectônica. É incalculável a influência da idéia de harmonia em todos os aspectos da vida grega dos tempos subseqüentes. Abrange a arquitetura, a poesia e a retórica, a religião e a ética.”

É para a história das religiões um mistério a estreita vizinhança que no culto délfico une Apolo e Dionisos. (…) Nenhum outro deus intervém tão profundamente na conduta pessoal. É provável que o espírito de limitação, ordem a clareza de Apolo nunca tivesse abalado tão profundamente a alma humana, se a funda e excitante comoção dionisíaca não houvesse previamente preparado o terreno, arredando toda a eukosmia burguesa. A religião délfica penetrou então de modo tão vivo e tão íntimo, que demonstrou ser apta a conduzir e colocar a seu serviço todas as forças construtivas da nação. Os <sete sábios>, os reis mais poderosos e os tiranos do séc. VI reconheceram naquele deus profético a suprema instância do conselho justo. No séc. V, Píndaro e Heródoto estavam profundamente imbuídos do espírito délfico e são os seus testemunhos mais notáveis.”

O sentido da sophrosyne grega seria mal-compreendido se interpretado como expressão de uma natureza inata, de uma índole harmônica e jamais perturbada. Para compreendê-la, basta perguntar por que foi justamente naquele tempo que ela irrompeu de forma tão imperativa, de modo a penetrar subitamente, nas profundezas mais inesperadas da existência e, principalmente, da intimidade humana. (…) A maior ofensa aos deuses é <não pensar humanamente> e aspirar à elevação exclusiva. A idéia da hybris, originariamente concebida de modo perfeitamente concreto na sua oposição à dike e limitada à esfera terrena do direito, cedo se estende à esfera religiosa. Compreende agora a pleonexia do Homem em face da divindade.” “A felicidade dos mortais é mutável como os dias. O Homem não deve, portanto, aspirar ao que está alto demais.” “O sóbrio relancear do espírito de investigação pela profundidade da natureza oferece ao Homem o espetáculo da geração e da corrupção incessantes, governado por uma legalidade universal indiferente ao Homem e ao seu insignificante destino, e que transcende com a sua férrea <justiça> a nossa breve felicidade.”

A fantasia dos simples pinta a imagem de uma vida futura no além, como uma vida de gozos sensíveis; o espírito dos nobres luta pela própria afirmação no meio da voragem do mundo, com a esperança de uma redenção pela consumação do seu caminho. Ambos, porém, coincidem na certeza do seu destino superior.”

Também eu sou da raça dos deuses. (DIELS, Vorsokratiker [5ª ed.] I, 15 [ORFEU, frags. 17-ss.]) Estas palavras estão gravadas, como passaporte para a viagem para o outro mundo, nas pequenas tábuas órficas de ouro, achadas nos sepulcros do sul da Itália. § O conceito órfico da alma representa um passo essencial no desenvolvimento da consciência pessoal humana. Sem ele seria impensável a concepção platônica e aristotélica da divindade do espírito e a distinção entre o Homem meramente sensível e o seu próprio eu, que constitui sua vocação plena.” “Empédocles exalta Pitágoras no seu poema órfico, Purificação. Interpenetram-se em Empédocles as crenças órficas da alma e a filosofia jônica da natureza.”

Assim sou eu, como um exilado de Deus, que vagueia daqui para ali”

Empédocles, frag. 115, 13

Com Xenófanes de Cólofon, o segundo dos grandes emigrados jônicos que estabeleceram o seu campo de ação no ocidente do mundo helênico, deixamos a linha dos pensadores rigorosos.” “Xenófanes é um poeta. Com ele, o espírito filosófico apoderou-se da poesia. Isto é sinal inequívoco de que o espírito filosófico começa a tornar-se uma força educativa, pois a poesia continua a ser como sempre a expressão autêntica da formação nacional.” “A nova prosa jônica só gradualmente alarga o seu campo e, por estar expressa num dialeto limitado a um círculo reduzido, nunca adquire a ressonância da poesia, que se serve da linguagem de Homero e é, por conseguinte, pan-helênica.”

Até um pensador abstrato e rigoroso como Parmênides, ou um filósofo da natureza como Empédocles, adotam a forma hesiódica da poesia didática. Talvez tenham sido incitados a fazê-lo pelo exemplo de Xenófanes que, embora não tenha sido um verdadeiro pensador nem tenha escrito nunca um poema didático sobre a natureza, como se disse freqüentemente, foi um dos iniciadores da exposição poética da doutrina filosófica. (*) (…) K. REINHARDT, no seu Parmênides (Bonn, 1916), refuta a opinião corrente¹ segundo a qual Xenófanes é o fundador do eleatismo. Todavia, não me parece ter razão ao considerá-lo como discípulo de Parmênides.” Neste ponto, me auto-re-remeto às instrutivas “leituras CAPES” (projeto ou ciclo OUSIA) (Ver no Seclusão)

¹ Hegelianismo!

Além dos seus poemas filosóficos, Xenófanes escreveu ainda um poema épico, A fundação de Cólofon, e A fundação da Colônia de Eléia.¹ Este homem inquieto, que aos 92 anos escreve um poema em que contempla uma vida de 67 anos [segundo seu Fragmento 7] de incansáveis peregrinações, iniciada provavelmente com as emigrações de Cólofon para a Itália meridional, erige, com o primeiro, um monumento a sua antiga pátria. Talvez tenha pessoalmente tomado parte na fundação de Eléia. Contudo, nestes poemas aparentemente impessoais, o sentimento pessoal toma uma parte muito maior do que era hábito. (…) foi considerado como um rapsodo que na praça pública recitava Homero, e em círculos reduzidos dirigia as suas sátiras contra Homero e Hesíodo. Isto não combina com a unidade da sua personalidade,² que imprime um caráter inequívoco a todas as palavras que dele se conservaram. Apóia-se numa má interpretação da tradição.”

¹ Infelizmente obras quase que integralmente perdidas.

² Não teria sido seu ganha-pão? Normalmente o grande homem precisa se contradizer para sobreviver…

Ordena ao poema que cale as vergonhosas dissensões dos deuses e as lutas dos titãs, gigantes e centauros, invenções dos tempos idos, que nos banquetes os cantores gostam de celebrar.” Velho rabugento!

Comia à mesa dos ricos e das personalidades eminentes, como mostra a anedota da sua engenhosa conversa com o tirano Hierão de Siracusa. Mas nunca encontrou naquele ambiente nem a estima inteligente nem a elevada consideração social que obteve na sua própria pátria jônica: permaneceu só.” Nisso ele foi bem filosofal!

Em parte alguma da história da cultura grega vemos de modo tão claro o choque violento e inevitável entre a velha cultura aristocrática e os homens da nova filosofia, que pela primeira vez aqui lutam por conquistar um lugar na sociedade e no Estado” “O subseqüente desenvolvimento da história dá razão à segurança do seu gesto. Destruíram o domínio absoluto do ideal agonístico. Já não é possível a Xenófanes ver, como Píndaro, a revelação da divina arete do vencedor em cada vitória olímpica, na palestra ou no pugilismo, nas corridas a pé ou a cavalo.”

O conceito de arete alcança, com esta fase, o tempo da sua evolução: coragem [Aquiles], prudência [Ulisses/Odisseu], justiça [Atena(s)] e, por fim, sabedoria [os superdotados] – tais são as qualidades que ainda para Platão formam o conteúdo da arete cívica. (…) Deu-se o passo que leva da mera intuição da verdade à crítica e condução da vida humana.” “Com armas pedidas a Xenófanes, ainda Eurípides ataca o tradicional apreço dos gregos pelo atletismo, e a crítica de Platão ao valor educativo dos mitos homéricos segue a mesma linha. (…) Na antiga filosofia da natureza, são outras as forças que imperam: a fantasia dirigida e controlado pelo intelecto, que, de acordo com o eminente sentido plástico e arquitetônico dos gregos, procura articular e ordenar o mundo sensível, e pelo pensamento simbólico, que interpreta a partir da vida humana a existência não-humana.” “As proposições de Parmênides constituem um encadeamento rigorosamente lógico, impregnado da consciência da força construtiva da conseqüência das idéias.” “A força com que Parmênides expõe aos ouvintes as suas doutrinas fundamentais não deriva de uma convicção dogmática, mas da vitória da necessidade do pensamento. O conhecimento é também uma absoluta ananke para Parmênides, que ainda o denomina dike ou moira, evidentemente por influência de Anaximandro.” “A Dike de Parmênides (…) é a necessidade implícita no conceito do Ser (…) Nas frases insistentemente repetidas <o Ser é, o não-Ser não é; e: o que é não pode não-ser>, Parmênides exprime a necessidade do pensamento da qual deriva a impossibilidade de realizar no conhecimento a contradição lógica.” “Parmênides é o primeiro pensador que levanta conscientemente o problema do método científico e o primeiro que distingue com clareza os dois caminhos principais que a filosofia posterior há de seguir: a percepção e o pensamento.”

Heráclito de Éfeso realiza a revolução mais completa. A história da Filosofia considerou-o por longo tempo um filósofo da natureza e colocou o seu princípio originário, o fogo, na mesma linha da água de Tales e do ar de Anaximandro. O vigor significativo das misteriosas proposições do <Obscuro>, freqüentemente expressas em forma de aforismos, já devia ter evitado aos historiadores a confusão deste temperamento duramente recalcado com o de um investigador consagrado unicamente à fundamentação dos fatos.”

O logos de Heráclito não é o pensamento conceitual de Parmênides, cuja lógica puramente analítica exclui a representação figurada de uma intimidade espiritual sem limites.” Será assim mesmo? Minha impressão é a de que foram mais lentos ainda para compreender Parmênides do que Heráclito!

O ethos é o daimon do Homem.”

Os homens, é certo, vivem como se cada um tivesse a sua razão particular.”

Tal como a polis, também o universo inteiro tem a sua lei. É a primeira vez que aparece esta idéia tipicamente grega. (…) O logos de Heráclito é o espírito, enquanto órgão do sentido do cosmos.”

A dike só aparece na luta. A nova idéia pitagórica da harmonia serve agora para dar sentido ao ponto de vista de Anaximandro. Só se une o que se opõe; é da diferença que brota a mais bela harmonia. (…) Toda a natureza está repleta de violentos contrastes: o dia e a noite, o verão e o inverno, o calor e o frio, a guerra e a paz, a vida e a morte sucedem-se em eterna mudança. (…) É um eterno caminho, ascendente e descendente. É mudando que repousa. A vida e a morte, a vigília e o sono, a mocidade e a velhice são, no fundo, uma e a mesma coisa. Uma transforma-se na outra, e esta volta a ser o que era primeiro.

O arco e a lira são o símbolo de Heráclito para a harmonia dos contrários no cosmos. Executam ambos a sua obra, pela sua ação tensa, recíproca e oposta. Ao vocabulário filosófico faltava ainda o conceito genérico de tensão. (…) Só no nosso tempo foi apreciada no seu justo valor.” “A doutrina de Heráclito surge como a primeira antropologia filosófica, em face dos filósofos primitivos.”

O Uno, que é o único sábio e prudente, quer e não quer ser chamado Zeus. O sentimento político dos gregos desse tempo inclina-se a pensar como tirânico o governo de um só.” “A antiga filosofia da natureza não tinha formulado expressamente o problema religioso. A sua concepção do mundo oferecia uma visão do Ser separado do humano. A religião órfica preenchia este vazio e sustentava a crença no caráter divino da alma, em meio ao turbilhão destruidor do devir universal onde a filosofia da natureza parecia precipitar o Homem. Mas a filosofia da natureza, no seu conceito de cosmos dominado pela Dike, oferecia um ponto de cristalização à consciência religiosa. Foi nele que Heráclito inseriu a sua interpretação do Homem (…) Foi pelo conceito heracliteano de alma que a religião órfica se ergueu a um estágio mais alto. Pelo seu parentesco com o <fogo eternamente vivo> do cosmos, a alma filosófica é capaz de conhecer a divina sabedoria e de nela se manter. Assim, a oposição entre o pensamento cosmológico e o pensamento religioso do séc. VI aparece superada e unificada na síntese de Heráclito – que vive já no umbral da centúria seguinte.”

1.9 Luta e transformação da nobreza

Embora Píndaro pertença à lírica coral e Teógnis à poesia gnômica, do ponto de vista da história da educação formam uma unidade. Neles encarna o despertar da consciência aristocrática o sentimento superior da sua particular vocação e proeminência” “Este ethos consciente e educador é característico, não apenas de Hesíodo, Tirteu e Sólon, mas também de Píndaro e Teógnis, e opõe-se à ingênua espontaneidade com que, entre os jônios, irrompe o espírito em todas as suas formas.”

A longa duração do domínio dos nobres e da cultura aristocrática – manancial da mais alta vontade educadora da nação – em terras da metrópole pode ter contribuído de modo essencial a que nada de novo pudesse prosperar nela, sem que lhe fosse oposta a tradição, como ideal definido de uma forma perfeita do humano.”

Píndaro e Teógnis lutam por um mundo agonizante. Os seus poemas não produzem um renascimento da nobreza na ordem política exterior, mas sim a perenidade dos seus ideais, no momento em que as novas forças do tempo os punham em maior risco, e a incorporação do seu vigor social e construtivo ao patrimônio da nação helênica. § Se hoje possuímos uma imagem da vida e condições sociais da nobreza nos sécs. VI e V, é só à poesia que o devemos. (…) É até disso perdemos muito. (…) A descoberta da lírica coral de Baquílides, quase desconhecida até agora, mostra apenas que, para o nosso objetivo, não precisamos sair de Píndaro. Começaremos por Teógnis, porque é, provavelmente, o mais antigo dos dois. Oferece, além disso, a vantagem de nos revelar as difíceis condições sociais em que se debatia a nobreza de então – elas aparecem em primeiro plano nos poemas de Teógnis –, enquanto Píndaro nos mostra antes a cultura aristocrática quanto as suas convicções religiosas e aos seus mais altos ideais de perfeição humana.”

Por mais interessantes que em si mesmos sejam estes temas filológicos, não os trataria com tanto detalhe, se a tradição que nos revela o poeta não nos fizesse, ao mesmo tempo, penetrar tão profundamente naqueles fragmentos da educação grega, tão intimamente ligados ao influxo posterior de Teógnis. § A coleção que, por puro acaso, nos foi transmitida sob o nome de Teógnis devia já existir no séc. IV (…) A pesquisa recente dedicou uma quantidade apreciável de trabalho primoroso à análise deste livro singular. Na sua forma atual, mal deve ter passado pelo fogo purificador da crítica filológica alexandrina. Foi corretamente usado nos banquetes dos sécs. V e IV, até a época em que esta importante corrente da vida <política> dos gregos foi desaparecendo gradualmente; depois foi lido e propagado apenas como curiosidade literária. Foi logo relacionado com o nome de Teógnis, porque um livro desse poeta serviu de núcleo a um florilégio de máximas e poemas de vários poetas anteriores e posteriores (do séc. VII ao V). Todos foram cantados nos banquetes, ao som da flauta. (…) A antologia não inclui poetas posteriores ao séc. V, o que coincide com a época da morte política da nobreza. (…) A íntima união do banquete e do eros, que Platão nos mostra na sua forma mais elevada no seu Banquete,¹ reflete-se também claramente na história da coleção de Teógnis, visto que o chamado livro II – na realidade um livro independente – tem por objeto o eros, que se festejava naquelas ocasiões. § Felizmente, basta-nos a sensibilidade estilística e espiritual para separar e distinguir nitidamente os poemas de Teógnis daqueles dos outros poetas da antologia. (…) Não se trata de um poema orgânico, mas de uma coleção de máximas. Foi só esta característica que permitiu incorporar aos versos de Teógnis aqueles que lhe são estranhos. (…) Apesar da independência exterior das máximas, observa-se nelas o progresso de uma idéia, e elas têm um prólogo e uma conclusão, que se separam nitidamente das que a seguem. Para reconhecer a autenticidade deste velho livro de Teógnis ajuda-nos muito (…) também a forma constantemente repetida dos discursos do poeta, ao amado jovem a quem dedica sua doutrina (…) O fato de expor a sua doutrina em forma de máximas dá-lhe ocasião de repetir freqüentemente a invocação a <Cirno> ou ao <filho de Polipaides>, embora não em todas as máximas. Na velha poesia proverbial dos nórdicos deparamos também com a mesma forma. Também nela se repete periodicamente o nome da pessoa a que se dirige. (…) Simplesmente, enquanto no livro de máximas de Teógnis aparece com muita freqüência, nas outras partes aparece raras vezes e em trechos próximos uns dos outros. (…) É evidente que a última parte da coleção constituía originalmente uma coleção independente, que incluía fragmentos de Teógnis ao lado dos fragmentos de outros poetas. (…) Platão atesta nas Leis a existência de antologias semelhantes nas escolas da época. (…) O fato de ninguém se ter dado ao trabalho de evitar as repetições que indicamos mostra bem o quanto se procedeu toscamente. (…) o livro de máximas a Cirno é o fundamento autêntico a que se deve referir tudo o mais.”

¹ https://seclusao.art.blog/2019/04/07/o-banquete-ou-do-homossexualismo-supremo/.

#DitadoMegaPopular

Cirno, tive a sensata idéia de estampar nos meus versos o meu selo, de tal modo que nunca ninguém possa roubá-los clandestinamente nem tomar por mau o que neles há de bom, mas digam todos: estes são versos de Teógnis de Mégara, famoso entre todos os homens. Não posso agradar a toda a gente da nossa cidade. Não há nisso maravilha alguma, filho de Polipao, pois nem Zeus consegue agradar a todos, quando manda chuva ou estiagem.

Versos 19-23

Este traço individualista é particularmente interessante num aristocrata tradicional do tipo de Teógnis, pois por ele se vê que o espírito do tempo o tinha afetado muito mais profundamente do que ele julgava. (…) Não era totalmente novo mencionar o nome do poeta no começo da obra. Mas o exemplo de Hesíodo na Teogonia não suscitara imitadores e apenas um imediato predecessor de Teógnis, o poeta gnômico Focílides de Mileto, tinha se servido deste artifício para assinalar a propriedade das suas máximas, pela razão evidente do seu tipo de versos se poder tornar facilmente propriedade comum, na qualidade de provérbios. De fato, os famosos versos de Focílides e de Teógnis foram citados como provérbios, sem o nome dos autores, pelos escritores subseqüentes. (…) Seguindo-lhe o exemplo, o tirano Hiparco, filho de Pisístrato, ao escrever as máximas que haviam de ser gravadas nos Hermes das estradas áticas, encimou-as com as palavras: Isto é de Hiparco, para logo prosseguir: Não enganes o teu amigo, ou: Segue sempre o reto caminho. (PSEUDO-PLATÃO, Hiparco, 228C)” TRECHOS DESTA OBRA EM: https://seclusao.art.blog/2019/10/01/pseudo-hiparco-ou-do-amor-a-ganancia/

Os autores atuais não precisam empregar este meio porque o nome do autor e o título da obra vêm no frontispício. Não era isso que ocorria no séc. VI a.C.. A única solução era a que Hecateu, Heródoto e Tucídides adotaram: começar os livros com a menção do seu nome e a consignação dos seus intentos. Não se seguiu este costume nos livros de medicina que nos chegaram nas coleções de Hipócrates; por isso, os autores de tais livros continuam a ser um mistério para nós.” “a palavra selo se converte na expressão técnica para designar o lugar em que consta o nome do autor.”

PSEUDO-TEÓGNIS: “Mas Teógnis não podia prever as dificuldades com que os eruditos deparariam, dois milênios e meio depois, quando só existisse um exemplar do seu livro. É esta a nossa situação em face do único manuscrito antigo do qual depende toda a nossa tradição de Teógnis. Ele esperava que o livro chegasse a todas as mãos. Mas não era fácil que pudesse pensar em milênios. Não podia prever que, ao fim de cem anos, o seu livro de máximas seria impiedosamente abreviado, compendiado e finalmente agrupado num livro, com os de outros desconhecidos, para cantar nos banquetes. Muito menos podia suspeitar que a incorporação do seu nome ao prólogo do livro, em vez de protegê-lo contra o furto espiritual, pudesse contribuir para que ele fosse considerado como autor de todos os poemas anônimos com ele reunidos na coleção.”

Focílides oferece-nos regras gerais para a conduta prática da vida. A originalidade de Teógnis aparece claramente, quando se contrapõe àquele ou a Hesíodo. Quer ensinar a formação integral dos nobres, aqueles preceitos sagrados que até agora só oralmente foram transmitidos de geração em geração.” “O jovem a quem se dirige está ligado ao poeta pelos laços do eros. É evidente que estes formam, para o poeta, o pressuposto essencial da sua relação educadora. A sua união deve apresentar algo de típico aos olhos da classe a que ambos pertencem. É significativo que da primeira vez que encaramos de perto a cultura da nobreza dórica nos surja o eros masculino como fenômeno de importância tão decisiva.”

Não se deve esquecer que o eros do homem pelos jovens ou adolescentes era um elemento histórico essencial na constituição da primitiva sociedade aristocrática, e inseparavelmente vinculado aos seus ideais éticos e à sua posição. Falou-se de amor dórico pelos adolescentes. É perfeitamente justificada a atribuição, pois aquela prática sempre foi mais ou menos alheia ao sentimento popular dos jônios e dos áticos, como a comédia, principalmente, o revela.¹ As formas de vida das classes superiores transmitem-se naturalmente à burguesia rica.”

¹ Jaeger não sabe aqui pesar o surgimento do gênero da Comédia justamente no ocaso da civilização grega.

desde Sólon – em cujos poemas o amor dos adolescentes aparece ao lado do amor das mulheres e dos esportes nobres como um dos maiores bens da vida – até Platão. Sempre a nobreza helênica esteve profundamente influenciada pelos dórios.”

a relação do amante com o amado podia ser comparada à autoridade educadora dos pais em relação aos filhos. Aliás, até mesmo a superava em múltiplos aspectos, na idade em que o jovem começa a libertar-se da tradição e da autoridade familiar e atinge a maturidade viril. Ninguém pode duvidar das numerosas afirmações dessa força educadora, cuja história atinge o apogeu no Banquete de Platão. A doutrina da nobreza, em Teógnis, que mergulha a raiz no mesmo círculo de vida, nasce integralmente deste impulso educador cujo aspecto erótico facilmente esquecemos, devido a sua apaixonada gravidade moral.”

Dei-te asas com que possas voar sobre terras e mares. Em todas as festas e banquetes te verás na boca das pessoas. Jovens encantadores te cantarão o nome à música das flautas. E mesmo após a tua descida ao Hades continuarás a andar por Hellas e pelas ilhas, e atravessarás o mar para seres cantado pelos homens futuros, enquanto durarem a Terra e o Sol. Então já nada serei para ti e, como a um garoto, me iludirás com palavras.”

O poeta prevê que o Estado, nessa altura ainda em paz, cairá em guerra civil, cujo termo será a tirania. A única via salvadora é o regresso à justa desigualdade e ao governo dos nobres. E isto já não tem qualquer viabilidade.”

Homens (…) que antes cobriam a sua nudez com grosseiras vestes de pele de cabra e viviam como selvagens fora da cidade são agora, Cirno, as pessoas importantes (…) Espetáculo insuportável! Troçam secretamente uns dos outros e enganam-se, ignorantes de qualquer norma tradicional. Cirno, por nenhum pretexto faças teu amigo um homem destes. Sê amável quando lhes falares, mas não te associes a eles para nenhum desígnio sério. Convém que conheças a mentalidade destes sujeitos miseráveis e saibas que não se pode confiar neles. Esta sociedade perdida só ama a fraude, a perfídia e a impostura.”

Teó., Versos 53-68

Seria demais esperar da parte do representante da velha nobreza decaída o pleno reconhecimento daquela justiça.” “As queixas contra a violação do direito enchem a primeira parte do poema de Hesíodo tal como do poema de Teógnis.” “Ambos os poetas são levados por impulso pessoal e pelas necessidades de ocasião a formular as suas verdades em proposições de validade universal, de acordo com o estilo arcaico.”

Toda revolução gera na sociedade uma crise de confiança. Os que têm convicções parecidas unem-se estreitamente porque a traição espreita por todo lado. O próprio Teógnis diz que, em ocasião de discórdia política, um homem seguro vale mais do que o outro. Será isto ainda a velha ética aristocrática? § É certo que propôs como exemplo as amizades ideais de Teseu e Peirítoo, de Aquiles e Pátroclo, e que pertence ao mais antigo estágio da educação aristocrática o culto do bom exemplo.”

os nobres não tiveram outro remédio senão inserir-se de qualquer modo no todo. Podiam considerar-se um Estado secreto, injustamente submetido ao Estado, e aspirar à restauração do primeiro. Se, porém, o considerarmos com atenção, a verdade é que se converteram num simples partido em luta pelo poder (…) A antiga exigência de uma boa escolha das amizades transforma-se em exagerado exclusivismo político.”

ECOS PARMENÍDEOS: “Teógnis aconselha o seu jovem amigo a adaptar-se exteriormente às circunstâncias vigentes. Segue pela via média, como eu faço.” “Na luta com o demos é preciso também um mimetismo protetor. A dificuldade moral desta luta é não ser, devido a sua natureza específica, uma luta aberta. Mas Teógnis está convencido de que um homem nobre continua sempre nobre.”

A posição da velha aristocracia fundava-se na posse de propriedades rurais. O aparecimento da moeda afetou-lhe a prosperidade. (…) Esta alteração das condições econômicas afetou profundamente o conceito de arete, pois este englobava a estima social e a posse de bens. Sem ela, era impossível exercer algumas das qualidades essenciais ao homem nobre, como a liberalidade e a magnanimidade. Até entre os camponeses era evidente que a riqueza implicava arete e consideração social, como se vê pelas palavras de Hesíodo.”

A desigualdade econômica não era para Sólon contrária à vontade divina, pois além do dinheiro e das propriedades havia outra riqueza: a posse de membros sãos e a alegria de viver. Se tivesse de escolher entre a arete e as riquezas teria dado preferência à primeira. Percebemos o que há de revolucionário, forte e positivo nestas idéias se pensarmos que Teógnis não se cansa de lamentar e maldizer a pobreza, atribuindo-lhe um poder ilimitado sobre os homens. (…) A experiência dos odiados novos-ricos ensinou-lhe o quanto é fácil se harmonizarem e se juntarem o dinheiro e a vulgaridade.”

As considerações de Sólon apenas suscitam em Teógnis um humor resignado e melancólico. Está, pelas suas próprias experiências, profundamente convencido de que o Homem nunca é responsável pelos seus êxitos ou fracassos. Os homens nada mais podem fazer do que entregar-se à vontade dos deuses. Em nada podem contribuir para a determinação do seu próprio destino. Até na riqueza, no sucesso e nas honras se encontra o germe da desventura. Não temos outro remédio, portanto, senão implorar tyche. De que serve o dinheiro ao homem vulgar se não tem o espírito reto! Só pode precipitá-lo na perdição.”

DIGNIDADE X DINHEIRO EM TODOS OS TEMPOS: “onde quer que houvesse um nobre a lutar pela sua sobrevivência e pela sua idiossincrasia, foi seu espelho a sabedoria pedagógica de Teógnis de Mégara. Muitas das suas idéias reviveram em fase posterior, na luta da burguesia contra o proletariado.” [!]

A poesia de Píndaro é arcaica. Mas ela o é num sentido muito diverso das obras dos seus contemporâneos e mesmo dos poetas pré-clássicos mais antigos. Perto dele, os iambos de Sólon parecem modernos quanto ao vocabulário e ao sentimento. (…) Quando, a partir da <antiga> cultura da Jônia, nos aproximamos de Píndaro, temos a impressão de sair fora (sic) da unidade da evolução espiritual que da epopéia de Homero irradia em linha reta para a lírica individual e para a filosofia jônica da natureza, e de ingressarmos em outro mundo.” “É que, por mais que a fé aristocrática de Píndaro tenha em comum com a epopéia, o que em Homero aparece já quase só como jovial brincadeira tem para Píndaro a mais grave seriedade. Isto, naturalmente, depende em parte da diferença entre a poesia épica e os hinos pindáricos. Nos segundos trata-se de preceitos religiosos; na primeira, de uma colorida narração da vida.”

Foi porventura nos jogos fúnebres celebrados em Olímpia em honra de Pélops, semelhantes aos que a Ilíada descreve em honra de Pátroclo, que as festividades olímpicas e as posteriores tiveram origem. É sabido que os jogos fúnebres também podiam ser celebrados periodicamente, como os de Adrasto em Sicyon, embora o caráter destes fosse diferente. Festas assim podiam ter sido celebradas muito cedo em honra do Zeus Olímpico. E a descoberta, nos mais antigos santuários, de oferendas com figuras de cavalos permite supor a existência de corridas de carros nos mais primitivos cultos daqueles lugares, muito tempo antes do que a tradição relativa aos jogos olímpicos nos diz sobre o primeiro triunfo de Coroibos nas corridas pedestres.”

A unidade do físico e espiritual que nas obras-primas da escultura grega admiramos, e que para nós está irremediavelmente perdida, aponta-nos o caminho para chegarmos à compreensão da grandeza humana do ideal agonístico, embora a realidade nunca lhe tenha correspondido.”

É em Píndaro que pela primeira vez os hinos aos vencedores se convertem numa espécie de poesia religiosa.”

Hoje ninguém pode mais pensar numa entrega genial e espontânea aos ditames da fantasia, como no tempo do Sturm und Drang se pensou, atribuindo a Píndaro o que era característico das convicções particulares desse tempo. E quando ainda hoje se acolhe inconscientemente essa interpretação, na presença da forma total dos hinos pindáricos, isto não está de acordo com a tendência das últimas gerações a não se fixarem só na originalidade da sua arte, mas também, cada vez mais, no seu elementos técnico e profissional.”

Muitas vezes, o destino precipita o Homem numa desgraça sem-saída, que não lhe permite alcançar a perfeição. Só é perfeita a divindade. O Homem não o pode ser, quando o toca o dedo do destino.”

Simônides, apesar de ser insubstituível para a história do problema da idéia grega da arete – na interpretação dos seus escólios, que Sócrates discute com os sofistas no Protágoras¹ de Platão –, não é o representante pleno da ética aristotélica, no sentido de Píndaro.” “É ele o primeiro sofista.”

¹ https://seclusao.art.blog/2018/03/02/protagoras-outros/

A arete só é divina porque um deus ou um herói foi antepassado da família que a possui. Dimana dele a força da arete, a qual se renova sem cessar nos indivíduos que constituem a série das gerações.” “O elogio tem um lugar firme nos epinícios. É pelo ingresso neste coro que o vencedor se situa ao lado dos deuses e dos heróis. A que deus, a que herói, a que homem celebrarei? – começa o 2º poema olímpico.”

O tempo não pode desfazer o que está feito; mas pode, em parte, sobrevir com o esquecimento, Latha, quando um homem daimon intervém no seu destino. Apesar da sua tenaz repugnância, a aflição morre dominada pela nobre alegria, quando a moira de Deus concede a rica prosperidade de uma ventura superior.”

Daí resulta para Píndaro um grave problema: explicar como é possível que, após uma longa sucessão de homens famosos, uma família desapareça repentinamente. Isto aparece como uma ruptura inexplicável na cadeia de testemunhos da força divina de uma estirpe, que une aos tempos heróicos a atualidade do poeta. (…) Píndaro fala desta interrupção da areta (sic) humana, no 6º hino nemeu. A raça dos homens e a raça dos deuses estão profundamente separadas.”

Assim, hoje, Alcímidas, vencedor das competições juvenis, prova que no seu sangue palpita uma força análoga à dos deuses. Parece desaparecer no seu pai, mas reaparece no pai do seu pai, Praxídamas, grande vencedor em Olímpia, no Istmo e em Neméia. Com as suas vitórias acabou com o obscuro esquecimento de seu pai Socleides, filho sem glória de um pai glorioso. Acontece o mesmo que com os campos, os quais ora dão aos homens o pão de cada dia, ora lhe recusam. (…) Para o pensamentos grego é evidente que com o aumento das gerações de uma casa pode aparecer uma colheita má, uma aphoria, idéia que voltamos a encontrar em tempos pós-cristãos, quando o autor do estudo Do Sublime investiga as causas do desaparecimento dos grandes espíritos criadores, na época dos epígonos.” Schiller?

É nisto que se distingue dos cantos impessoais de Homero. Os seus heróis são homens que vivem e lutam no seu tempo, mas que ele situa no mundo dos mitos”

A máxima <torna-te quem és> oferece a suma da sua educação inteira. É este o sentido de todos os modelos míticos que se propõe aos homens. Revela-se neles a imagem mais alta do seu próprio ser.” “Não se diz uma palavra sobre Píndaro nas introduções às nossas edições de Platão. Em contrapartida, sempre nelas surgem, como eterna doença e na forma de incrustações estranhas, as matérias-primas dos hilozoístas [hilozoísmo: espécie de panteísmo jônico].”

O amor filial é, depois da veneração de Zeus, senhor do céu, o dever principal da antiga ética cavaleiresca. Já Quíron, o sábio centauro, protótipo do educador dos tempos heróicos, o imprimiu na mente do peleida Aquiles, quando o teve a seu cuidado.”

O poeta vive e move-se inteiramente num mundo em que o mito é tão real como a própria realidade; e quer celebre o triunfo de um antigo nobre, quer o de algum tirano que rapidamente alcançou o apogeu, ou o do filho de um burguês sem ascendência, a todos eleva a honras quase divinas, de que se tornaram credores pelo contato da varinha mágica da sua sabedoria sobre o alto sentido destas coisas.” “Mas será possível educar, com a convicção de que é no sangue que se encontra a arete? Píndaro tomou várias vezes posição em face deste problema. Na realidade o problema já fôra levantado por Homero, no canto da Ilíada em que Aquiles é posto em face do educador Fênix, no momento decisivo, e a admoestação deste se mostra ineficaz ante o endurecido coração do herói. No entanto, ali se trata do problema da possibilidade de moldar o caráter inato, ao passo que em Píndaro surge a moderna questão de saber se a verdadeira virtude pode ser ensinada ou se reside no sangue. Não esqueçamos que em Platão surge constantemente uma questão análoga.”

Píndaro quebra o sigilo e apresenta a sua resposta no terceiro Canto nemeu:

A glória só tem pleno valor

quando é inata. Quem só tem

o que aprendeu é um homem obscuro e indeciso,

jamais caminha com um passo firme.

Apenas esquadrinha

com imaturo espírito

mil coisas altas.”

A arte do poeta, como a arete das Olimpíadas, também não pode ser ensinada. É, por natureza, <sabedoria>.”

Mas a águia é a mais rápida entre todas as aves. Rapidamente enxerga ao longe e captura a sangrenta presa. Os corvos crocitam e alimentam-se aqui embaixo.”

E com isto deixamos o mundo aristocrático, que parece afundar-se gradualmente no silêncio, e de novo nos confiamos à torrente da História, que rumorejante passa por cima dele, quando parecia deter-se.”

Parece ser uma lei na vida do espírito que, quando um tipo de existência atinge o seu tempo, encontre a força necessária para formular o seu ideal e atingir o seu conhecimento mais profundo (…) Assim, a decadência da cultura nobre da Grécia produziu Píndaro; a da cidade-Estado, Platão e Demóstenes; e a hierarquia da igreja medieval, no momento em que ia transpor a linha do seu apogeu, produziu Dante.”

1.10 A política cultural dos tiranos

Neste posto avançado do mundo grego, a Sicília, em face do crescente poderio de Cartago sobre o mar e o comércio, foi muito mais duradouro do que na Grécia propriamente dita o <domínio de um só>.”

A crescente expansão da economia monetária frente à economia natural operou uma revolução no valor das propriedades dos nobres que até então haviam sido o fundamento da ordem política. Agarrados às antigas formas da economia, os nobres estavam num plano inferior em face dos possuidores das novas fortunas adquiridas no comércio e na indústria. E até entre as antigas estirpes se cavava um abismo com a mudança de posição de algumas das velhas famílias, que também se dedicaram ao comércio. Como Teógnis menciona, algumas famílias empobreceram e não puderam conservar a sua antiga posição social. Outras, como os Alcmeônidas da Ática, reuniram tal fortuna, que o seu poderio se tornou insuportável para os seus companheiros de classe, que não puderam resistir à tentação de lutarem pela consecução do poder político.”

Apesar de serem fenômeno de política puramente interna, ou talvez por isso mesmo, os tiranos estavam ligados uns aos outros por uma solidariedade internacional, freqüentemente baseada em laços matrimoniais. Anuncia-se a solidariedade, tão habitual no séc. V, entre as democracias e as oligarquias. É assim que nasce pela primeira vez – e isso é um fato memorável – uma política de largos vôos que, p.ex., em Atenas, Corinto e Mégara, levou à fundação de colônias.”

Enquanto a importância de Pisístrato reside no fato de ter preparado a futura grandeza de Atenas, Periandro elevou Corinto a uma altura que, após sua morte, jamais voltou a ser alcançada.”

Em nenhum lugar os tiranos se agüentavam por mais de 2 ou 3 gerações. A maioria das vezes eram novamente derrubados pela nobreza, já experimentada na política e ciente de seu objetivo. Não obstante, porém, a maior parte das vezes o usufruto da revolução cai logo sob o domínio do povo, como em Atenas. Como observa Políbio na sua teoria das crises e transformações dos regimes políticos, a causa principal da queda dos tiranos é, em geral, a incapacidade dos filhos e netos, que só herdam do pai a força, e não o vigor espiritual, assim como a má utilização do poder recebido do povo num despotismo arbitrário.” “Como diz engenhosamente Burckhardt, havia um tirano em cada grego e ser tirano constituía para todos tal sonho de felicidade que Arquíloco não achou melhor maneira de caracterizar o seu alegre sapateiro do que declarar que ele não aspirava à tirania. Os gregos achavam que o domínio de um homem só, de bondade realmente incomum, estava <de acordo com a natureza> (Aristóteles) e submetiam-se a ele de melhor ou pior grado.”

A impopularidade desta pressão, que nem sequer o hábito foi capaz de suavizar, obrigou os tiranos a contrabalançá-la por meio da cuidadosa manutenção das formas exteriores de eleição para os cargos, pelo cultivo sistemático da lealdade e pela busca de uma política econômica favorável ao público. Pisístrato compareceu algumas vezes perante os tribunais de justiça, quando estava implicado em alguma demanda, para provar o domínio ilimitado do direito e da lei. Isto produzia no povo uma forte impressão.”

Os nobres que podiam converter-se em rivais perigosos eram desterrados ou eram encarregados de tarefas honrosas em outros lugares do país.”

A tirania foi por muitos chamada <o reino de Cronos>, i.e., a idade de ouro, e contava-se todo tipo de histórias sobre as visitas pessoais do senhor aos campos e suas conversas com o povo simples e trabalhador, cujo coração ganhava com a sua afabilidade e com a diminuição das contribuições.” “O tirano é o protótipo do homem de Estado que surgiu mais tarde, embora carecesse da responsabilidade deste. Deu o primeiro exemplo de uma ação de previsão e de visão ampla, realizada pelo cálculo dos fins e dos meios internos e externos, e ordenada segundo um plano. Foi ele na verdade o verdadeiro político.”

No séc. IV, quando despertou o interesse geral pelas individualidades importantes, e a biografia nasceu como gênero literário novo, o objeto preferido das suas descrições foram os poetas, os filósofos e os tiranos. Entre os chamados 7 sábios, que alcançaram a celebridade no começo do séc. VI, encontramos tiranos como Periandro e Pítaco, ao lado de legisladores, poetas e outras personagens desse tipo. É especialmente significativo que quase todos os poetas daquele tempo tenham passado a vida na côrte dos tiranos. A individualidade não é, pois, um fenômeno de massa, uma nivelação geral do espírito, mas uma verdadeira e íntima independência – razão de sobra para que as cabeças independentes procurassem unir-se entre si.”

Foi nesse tempo que Atenas conquistou pela 1ª vez o título de cidade das musas, que conservou para sempre.” “Num diálogo falsamente atribuído a Platão, Hiparco, o filho mais novo de Pisístrato, é chamado o 1º esteta, o <erótico e amante da arte>.” https://seclusao.art.blog/2019/10/01/pseudo-hiparco-ou-do-amor-a-ganancia/

O interesse do Estado pela cultura é um sinal inequívoco do amor dos tiranos pelo povo. Depois da queda deles, continuou no Estado democrático, que não fez mais do que seguir o exemplo dos seus predecessores.”

O mecenato de muitos tiranos do Renascimento e das côrtes régias posteriores surge-nos, apesar de todos os serviços prestados à vida espiritual de seu tempo, como algo forçado, como se aquele tipo de cultura não tivesse raízes profundas nem na aristocracia nem no povo e fosse apenas o capricho luxuoso de uma pequena camada social. É importante não esquecer que já na Grécia também aconteceu coisa parecida. As côrtes dos tiranos gregos, no fim do período arcaico, são parecidas com as dos primeiros Medici.” “É porque se sentem privilegiados que o homem de espírito e o seu protetor se juntam, apesar até do seu mútuo desdém.”

Quando a côrte de Samos fechou as portas e o tirano Polícrates foi crucificado pelos persas, Anacreonte mudou a tenda para a côrte de Hiparco, em Atenas, tendo ido buscá-lo um navio de 50 remos. E quando o último rebento dos Pisistrátidas de Atenas caiu e foi condenado ao exílio, Simônides passou-se para a côrte dos Escópadas da Tessália até que, também ali, caiu o teto da sala e pereceu a dinastia inteira. É altamente simbólica a história que nos diz ter sido Simônides o único sobrevivente. Velho de 80 anos, emigrou ainda para a côrte do tirano Hierão de Siracusa. A cultura destes homens era como a sua vida.”

LIVRO SEGUNDO: APOGEU E CRISE DO ESPÍRITO ÁTICO

2.1 O drama de Ésquilo

Até a morte de Péricles, foram nobres os chefes do Estado democrático de Atenas, e o poeta mais importante da jovem república, Ésquilo, filho de Eufórion e primeiro grande representante do espírito ático, como Sólon cem anos antes, era filho da nobreza rural.”

São raras na história as batalhas travadas com tão grande pureza por uma idéia, como as de Maratona e Salamina. Dado que os atenienses abandonaram a cidade e se fizeram ao mar <com todo o povo>, a bordo dos navios, devemos crer que Ésquilo tenha participado da batalha naval, ainda que Íon de Quio não o tenha mencionado nas suas memórias de viagens, escritas uma geração depois. (…) Conduzido pela superioridade espiritual de um ateniense e inflamado por um novo heroísmo, um pequeno exército vencera, na luta pela independência, as multidões de XerxesCf. Ésquilo, Os Persas

Píndaro anseia pela restauração do mundo aristocrático em todo o seu esplendor, de acordo com o espírito da submissão tradicional. A tragédia de Ésquilo é a ressurreição do homem heróico dentro do espírito da liberdade. É o caminho direto e necessário que vai de Píndaro a Platão, da aristocracia do sangue à aristocracia do espírito e do conhecimento.” “Desapareceu o luxuoso vestuário jônico, para dar lugar às vestes dóricas simples e varonis. Desaparece também do rosto das esculturas desta década o sorriso convencional e inexpressivo derivado do ideal jônico de beleza, sendo substituído por uma seriedade profunda e quase severa. É a geração de Sófocles a primeira a encontrar, no meio dos dois extremos, o equilíbrio da harmonia clássica.” “Sófocles, Eurípides e Sócrates são filhos da burguesia. O primeiro descende de uma família de industriais; os pais de Eurípides eram pequenos proprietários rurais; o pai de Sócrates era um honrado carpinteiro [romantização?] de um pequeno arrabalde.”

A tragédia devolve à poesia grega a capacidade de abarcar a unidade de todo o humano. Neste sentido, só a epopéia homérica se pode comparar a ela. Apesar da grande fecundidade da literatura, nos séculos intermediários, só a epopéia a iguala quanto à riqueza do conteúdo, à força estruturadora e amplitude do seu espírito criador.” “nos épicos dos chamados ciclos renasce o interesse pelo conteúdo material das sagas relativas à guerra de Tróia. Falta a estes poetas a compreensão da grandeza artística e espiritual da Ilíada e da Odisséia. Só querem narrar o que sucedeu antes e depois.” “Esta atitude histórica era inevitável, dado que primitivamente as memórias das sagas eram tidas por história autêntica. A poesia de catálogos, atribuída a Hesíodo por causa do parentesco do estilo do seu autor com o deste, e que vinha satisfazer o interesse dos cavaleiros em descobrirem uma genealogia nobre que os unisse à árvore genealógica dos deuses e dos heróis, dá mais um passo neste processo de historização dos mitos.”

No momento em que as forças mais poderosas pareciam afastar-se do heroísmo com crescente decisão, e em que florescia o conhecimento reflexivo e a aptidão para as emoções mais sensíveis (como a literatura jônica mostra), nasce das mesmas raízes um novo espírito de heroísmo mais interior e mais profundo, estreitamente vinculado ao mito e à forma do ser que dele provém.”

Os novos ensaios para determinar, a partir de um ponto de vista filológico, a origem histórica e a essência da tragédia deixam à margem esta questão. Quando derivam a nova criação de uma outra qualquer forma anterior puramente literária e crêem talvez que os ditirambos dionisíacos <adquiriram forma séria> no instante em que uma cabeça original os pôs em contato com o conteúdo dos antigos cantos heróicos, limitam-se a considerar as condições exteriores do problema. A tragédia ática não passaria de um fragmento dramatizado dos cantos heróicos, representado por um coro dos cidadãos de Atenas.” “Infelizmente não temos qualquer idéia precisa das mais antigas formas da tragédia, e portanto só podemos julgar as formas superiores da sua evolução.”

Tentaremos só avaliá-la como objetivação espiritual da nova forma de homem que naquela altura se desenvolveu, e da força educadora que irradia daquela realização imperecível do espírito grego. É tão considerável o volume das obras conservadas dos trágicos gregos que teremos de olhá-la de uma distância adequada se não quisermos consagrar-lhe um livro inteiro. (…) é a mais alta manifestação de uma humanidade para a qual a religião, a arte e a filosofia formam uma unidade indivisível.” “As épocas em que a história da cultura e da educação humana seguiram total ou predominantemente os caminhos separados destas formas espirituais são forçosamente unilaterais, por mais profundas que sejam as razões históricas daquela unilateralidade.”

Se encarássemos o desenvolvimento da tragédia grega, desde Ésquilo até Sófocles e Eurípides, do ponto de vista da estética pura, seria totalmente diverso o nosso juízo a seu respeito; mas, do ponto de vista da história da formação humana, (…) é assim que surge o seu processo, como reflete (…) o espelho da consciência pública que é a comédia desse tempo. Os contemporâneos não consideravam nunca a natureza e a influência da tragédia de um ponto de vista exclusivamente artístico. Era a tal ponto a rainha, que a tornavam responsável pelo espírito da comunidade. E embora devamos pensar, como os historiadores, que os grandes poetas não eram só criadores, mas também os representantes daquele espírito, isto não altera em nada a responsabilidade da sua função diretiva, que o povo helênico achou maior e mais grave que a dos chefes políticos que se sucederam no governo constitucional. Só a partir deste ponto de vista é que se pode compreender a intervenção do Estado platônico na liberdade da criação poética, tão inexplicável e insustentável para o pensamento liberal. Sem embargo, este sentido da responsabilidade da poesia trágica não pode ter sido o originário, se pensarmos que no tempo de Pisístrato a poesia era considerada apenas como objeto de prazer.” “Os festivais dramáticos de Atenas constituíam o ideal de um teatro nacional, do tipo daquele que os poetas e diretores de cena alemães da nossa época clássica se esforçaram em vão por implantar.”

O impulso dionisíaco convinha mais aos dramas cômicos, satíricos e burlescos”

O poeta não enfrentava, nos bancos dispostos em torno do local das danças, um público de gosto literário estragado, mas sim um público capaz de sentir a força da psicagogia, um povo inteiro disposto a emocionar-se num instante como jamais o teriam podido conseguir os rapsodos, com os cantos de Homero.”

Ó tu, o primeiro dos gregos, que ergueste as palavras à altura da mais alta nobreza!, assim evoca a sombra de Ésquilo um poeta de uma geração posterior.”

Outro elemento era a magnificência do espetáculo, que seria vã curiosidade tentar reconstruir. Quando muito, a sua lembrança pode ajudar o leitor moderno a libertar-se da imagem do teatro fechado, totalmente contrária ao estilo da tragédia grega. Basta recordar a máscara trágica, tão freqüente na arte grega, para notar esta diferença. Torna-se patente nela a diferença essencial entre a tragédia grega e qualquer outra arte dramática posterior. Era tão grande o seu afastamento da realidade comum que a fina sensibilidade dos gregos descobriu na paródia e transposição das suas palavras para as situações da vida cotidiana uma fonte inesgotável de efeitos cômicos.”

A concentração de um destino humano inteiro no breve e impressionante curso dos acontecimentos, que no drama se desenrolam ante os olhos e os ouvidos dos espectadores, representa, em relação à epopéia, um aumento enorme do efeito instantâneo produzido na experiência vital das pessoas

Como diz o seu nome, a tragédia nasceu das festas dionisíacas dos coros de bodes. Bastou para tanto que um poeta visse a fecundidade artística do entusiasmo ditirâmbico (tal como o vemos na concentração do mito da antiga lírica coral siciliana) e fosse capaz de traduzi-la numa representação cênica e de transferir os seus próprios sentimentos para o eu estranho do ator. Assim, o coro, de narrador lírico, converteu-se em ator e, portanto, em sujeito dos sentimentos que até então apenas havia partilhado e acompanhado com as suas emoções.”

Já n’As Suplicantes, uma das tragédias mais antigas, que não era ação, mas pura paixão, a força da sympatheia, que suscitava a participação sentimental dos ouvintes por meio dos lamentos do coro, serviu para dirigir a atenção para o destino que, enviado pelos deuses, produzia aqueles abalos na vida dos homens. Sem este problema da tyche ou da moira, que a lírica dos jônios fizera chegar à consciência daquele tempo, jamais se teria gerado uma tragédia autêntica a partir dos antiquíssimos <ditirambos de conteúdo mítico>. (…) Deles até Ésquilo, vai um passo gigantesco.”

As lendas tradicionais são vistas através das mais íntimas convicções da atualidade. Os sucessos de Ésquilo, Eurípides principalmente, foram mais além, a ponto de converterem a tragédia mítica numa representação da vida cotidiana.”

O próprio Agamemnon de Ésquilo se comporta de modo totalmente diverso do Agamemnon de Homero. É um filho genuíno do tempo da religião e da ética de Delfos, constantemente perturbado pelo medo de, como vencedor, na plenitude da força e da ventura, incorrer na hybris. Está completamente impregnado da crença de Sólon, segundo a qual a abundância conduz à hybris e a hybris à ruína. (…) Prometeu é concebido como o principal conselheiro, caído em desgraça, do jovem tirano ciumento e desconfiado que lhe deve a consolidação do seu poder alcançado recentemente pela força e que com ele não o quer partilhar, porque Prometeu o quer aplicar à realização dos seus planos secretos de salvação da humanidade sofredora. Na figura de Prometeu misturam-se o político e o sofista, como o prova a repetida designação do herói por meio do último termo, nessa época ainda honroso também.”

as longas enumerações de países, rios e povos, que vemos no Prometeu Agrilhoado e no Prometeu Libertado,¹ não constituem só um adorno poético, mas caracterizam ao mesmo tempo a onisciência do herói.”

¹ Só restaram fragmentos.

Foi Welcker o primeiro a notar que Ésquilo não compunha, em geral, tragédias isoladas, mas trilogias. Mais tarde, no entanto, quando foi abandonada esta forma de composição, continuaram a ser representadas igualmente 3 peças do mesmo autor.” “Um dos mais intrincados problemas das crenças de Sólon, partilhadas pelo poeta, era a transmissão das maldições familiares de pais a filhos, e muitas vezes até dos culpados aos inocentes.” “O problema do drama de Ésquilo não é o Homem. O Homem é o portador do destino. O destino é que é o problema. A atmosfera está carregada de tormenta desde o primeiro verso, sob a opressão do daimon que pesa sobre a casa inteira. Dentre todos os autores dramáticos da literatura universal, Ésquilo é o mestre supremo da exposição trágica.” “É precisamente na contínua intromissão de Deus e do Destino que a mão do poeta se revela. Nada de semelhante vemos no mito. Tudo o que acontece na tragédia encontra-se sob a preocupação dominante do problema teológico, tal como Sólon o desenvolve nos seus poemas, a partir da epopéia mais recente.” “Os erros que arrastam o Homem para a ruína são de uma força demoníaca à qual ninguém pode resistir. É ela que induz Helena a abandonar a casa do marido para fugir com Páris, e é ela que endurece o coração de Aquiles perante a embaixada que o exército lhe envia para dar explicações para a reparação da sua honra ultrajada, e perante as admoestações do seu velho preceptor.”

como é freqüente a divindade dar sucessos aos insensatos e aos maus, e permitir que fracassem os esforços dos justos, ainda quando são norteados pelas melhores idéias e intenções! É indiscutível a presença desta <infelicidade imprevisível> no mundo. É o resíduo irredutível da velha Ate de que fala Homero e que conserva a sua verdade, ao lado do reconhecimento da própria culpa. Está intimamente vinculada à experiência humana que os mortais denominam sorte, pois esta se transforma facilmente na mais profunda dor, assim que os homens se deixam seduzir pela hybris.”

O drama Os Persas mostra do modo mais simples como a tragédia esquiliana provém daquela raiz. É digno de nota que ela não pertença a nenhuma trilogia, o que tem para nós a vantagem de nos permitir ver o desenvolvimento da tragédia no espaço mais reduzido de uma unidade fechada. Mas Os Persas é um exemplo único pela ausência do elemento mítico. O poeta elabora em forma de tragédia um acontecimento histórico que viveu pessoalmente.” “Maravilharam-se alguns, ingenuamente, pelo fato de os poetas gregos não terem usado com mais freqüência <temas históricos>. É simples a razão disso. A maioria dos acontecimentos históricos não reúne as condições requeridas pela tragédia grega.” “Tudo se reduz ao efeito do destino na alma daquele que o experimenta.” “A própria experiência da dor não interessa por si mesma. (…) A dor acarreta a agudeza do conhecimento. (…) Existe um grau intermediário no <conhece-te a ti mesmo> do deus de Delfos, que exige o conhecimento dos limites do humano”

Nenhum poeta antes dele experimentou e exprimiu com tanta força e vivacidade a essência do demoníaco. Até a fé mais inquebrantável na força ética do conhecimento é forçada a convir em que a Ate continua a ser sempre a Ate“Aquilo que nós chamamos caráter não é essencial na tragédia de Ésquilo.”

Na Oréstia alcançam o apogeu não só a imaginação criadora da linguagem e a arte construtiva do poeta, mas também a tensão e o vigor do problema moral e religioso. E parece incrível que Ésquilo tenha escrito esta obra dramática, a mais pujante e viril que a história conhece, na velhice, e pouco tempo antes de morrer.” “A culpa de Orestes não se fundamenta de modo nenhum no seu caráter, nem é a este, como tal que, a intenção do poeta se dirige. Ele é apenas o filho infeliz, amarrado pela vingança do sangue. No instante em que atinge a virilidade, espera-o a maldição sinistra que o levará à perdição, ainda antes de ter começado a gozar a vida. O deus de Delfos compele-o com renovado vigor, sem que nada o possa desviar do destino que o espera.”

A idéia de Sólon de que os filhos devem expiar as culpas dos pais gera em Sete contra Tebas, final da trilogia relativa aos reis tebanos, um drama que ultrapassa a Oréstia em força trágica, não só pelo parricídio com que termina, mas ainda por outros aspectos. Os irmãos Etéocles e Polinices são vitimados pela maldição que pesa sobre a raça dos Labdácidas, e que Ésquilo fundamenta nas culpas dos antepassados. Sem este fundo, teria sido completamente impossível para o seu sentimento religioso um acontecimento como o que o drama apresenta.” “A arete pessoal e o destino superpessoal atingem aqui a sua tensão máxima.” “Tem-se a impressão de que a culpa dos antepassados em terceiro grau não é uma amarra suficientemente forte para agüentar o peso ingente do sofrimento.”

os padecimentos e os erros de Prometeu têm origem nele mesmo, na sua natureza e na sua ação. (…) Para Hesíodo, era apenas o prevaricador castigado pelo crime de ter roubado o fogo de Zeus. Com a força de uma fantasia que nunca os séculos poderão honrar e admirar suficientemente, Ésquilo descobriu nesta façanha o germe de um símbolo humano imortal”

Estava reservado ao gênio grego a criação deste símbolo do heroísmo doloroso e militante de toda criação humana, como a mais alta expressão da tragédia da sua própria natureza. Só o Ecce Homo, saído de um espírito completamente diverso, com a sua dor pelos pecados do mundo, conseguiu criar um novo símbolo eternamente válido de humanidade, sem no entanto roubar nada à validade do anterior.” “É certo que o Prometeu Libertado deveria completar aquela imagem”

Esta fusão do coro com os espectadores representa uma nova etapa no desenvolvimento da arte coral de Ésquilo. Em As Suplicantes, o verdadeiro ator é ainda o coro das Danaides. Não há outro herói. Que esta era a essência original do coro foi Nietzsche quem pela 1ª vez o exprimiu com toda clareza [em] A Origem da Tragédia, obra genial da juventude, ainda que mesclada de elementos incompatíveis.”

Uma das raízes mais vigorosas da força educativa da tragédia grega consiste no coro que, com seus cantos de simpatia, objetiva na orquestra as experiências trágicas da ação.”

2.2 O homem trágico de Sófocles

Foi com plena consciência que Sófocles aceitou o papel de sucessor de Ésquilo” “Não deixa de ter razão a crítica de Aristófanes e dos seus contemporâneos, quando vê em Eurípides não o corruptor da tragédia de Sófocles, mas sim da tragédia de Ésquilo.”

não nos inclinamos a encarar como preconceito que é necessário superar o entusiástico juízo dos classicistas que considera Sófocles o apogeu do drama grego, pelo rigor da sua forma artística e pela sua luminosa objetividade. É assim que a ciência e o moderno gosto psicológico que a acompanha orientam as preferências para o tosco arcaísmo de Ésquilo e para o refinado subjetivismo dos últimos tempos da tragédia ática” Jaeger banca o apologeta sem igual de todos aqueles que descreve, no final nos tornando vacilantes quanto a qualquer um de seus juízos.

A impiedade de Eurípides – no sentido que lhe deu a tradição – é mais religiosa, apesar de tudo, que a tranqüila credulidade de Sófocles.”

Temos que partir do efeito cênico que produz, o qual não se esgota com a compreensão da sua técnica inteligente e superior.”

como explicar o fracasso, salvo algumas experiências com o público mais ou menos especializado, de todas as naturais tentativas modernas para encenar as tragédias de Ésquilo e de Eurípides, ao passo que Sófocles é o único dramaturgo grego que se agüenta nos repertórios dos nossos teatros? Isto não é certamente fruto de um preconceito classicista. A tragédia de Ésquilo não consegue agüentar-se nos palcos modernos, pela rigidez nada dramática do coro que a domina e que o peso das idéias e da expressão não compensa, sobretudo se faltam o canto e a dança. É certo que, numa época perturbada como a nossa, a dialética de Eurípides desperta um eco de simpática afinidade. Mas não há coisa mais mutável que os problemas da sociedade burguesa. Basta pensar o quanto estão longe de nós Ibsen ou Zola, no entanto incomparavelmente mais próximos do que Eurípides, para compreender que aquilo que constituiria a força de Eurípides, no seu tempo, representa precisamente para nós uma barreira intransponível.”

Se nos perguntarmos quais são as criações dos trágicos gregos que vivem na fantasia dos homens independentemente do palco e da sua ligação com o drama, veremos que em primeiro lugar estão as de Sófocles. Esta sobrevivência isolada das figuras enquanto tais jamais teria podido ser obtida pelo mero domínio da técnica cênica, cujo efeito é sempre momentâneo. Talvez nada nos custe mais a compreender do que o enigma da sabedoria tranqüila, simples, natural, com que ele ergueu aquelas figuras humanas de carne e osso, repletas das paixões mais violentas e dos sentimentos mais ternos, de grandeza heróica e altiva e de autêntica humanidade, tão semelhantes a nós e ao mesmo tempo dotadas de tão alta nobreza. Nada nelas é artificial ou exorbitante. (…) A verdadeira monumentalidade é sempre simples e natural. O seu segredo reside no abandono do que na aparência é acidental e não essencial, de modo que a lei interior, oculta ao olhar comum, resplandeça com perfeita clareza.”

Nascem todos de uma necessidade que não é nem a generalidade vazia do tipo nem a simples determinação do caráter individual: é a própria essencialidade, oposta ao que não tem essência.”

quando chamamos Sófocles de o plástico da tragédia, trata-se de uma qualidade que nenhum outro partilha e que exclui qualquer comparação dos trágicos com a evolução das formas plásticas.”

O monumento perene do espírito ático na época da sua maturidade é constituído pela tragédia de Sófocles e pela escultura de Fídias. Ambos representam a arte do tempo de Péricles.”

Podemos, assim, chamar Sófocles de clássico, no sentido de que atinge o ponto culminante no desenvolvimento da tragédia. A tragédia consuma nele a <sua natureza>, como diria Aristóteles.”

Um escultor de homens como Sófocles pertence à história da educação humana, como nenhum outro poeta grego, num sentido inteiramente novo.” “É algo totalmente diverso da ação educadora, no sentido de Homero, ou da vontade educacional, no sentido de Ésquilo. Pressupõe a existência de uma sociedade humana, para a qual a <educação>, a formação humana na sua pureza, e por si mesma, converteu-se no ideal mais alto.” “Quase se poderia considerá-la uma arte educativa, como em outra época e em condições de tempo muito mais artificiais o foi a batalha de Goethe no Tasso, para descobrir a forma na vida e na arte.”

É lenda, sem dúvida, o relato que descreve Sófocles na flor da mocidade, a dançar no coro que celebrava a vitória de Salamina, onde Ésquilo combateu. Mas o fato de que a vida do jovem se tenha iniciado na época em que a tempestade acabava de passar é para nós muito elucidativo. Sófocles encontra-se no estreito e altaneiro píncaro do brilhante meio-dia do povo ateniense, e que tão velozmente havia de passar. É na serenidade, sem vento e sem nuvens, do dia incomparável cuja aurora despontou com a vitória de Salamina que a sua obra desabrocha. Pouquíssimo tempo antes de Aristófanes conjurar a sombra do grande Ésquilo, para que este salvasse da ruína a cidade, Sófocles fechou os olhos. Não viu a derrota de Atenas. Morreu depois da vitória de Arginusas ter despertado a última grande esperança de Atenas; e agora lá embaixo – assim o representa Aristófanes pouco depois da sua morte – vive consigo próprio e com o mundo na mesma harmonia com que viveu na Terra.”

Orgulhosa dessa nova forma das relações humanas, aquela época criou para elas uma nova palavra, <urbano>, a qual duas décadas mais tarde se encontrava em uso pleno entre todos os prosadores áticos, em Xenofonte, nos oradores, em Platão.”

a arte e a anedota encarnam em Sófocles e Péricles a síntese da mais alta nobreza da kalokagathia ática, tal como corresponde ao espírito do tempo.”

Não é por mera casualidade de temperamento pessoal que Sófocles é o mestre do meio-tom, ao passo que Ésquilo nunca o poderia conseguir. Em nenhuma outra parte é a forma, de modo tão imediato, a expressão adequada, ou melhor, a revelação do ser e do seu sentido metafísico. Sófocles não responde à pergunta sobre a essência e sentido do ser com uma concepção do mundo ou uma teodicéia, como Ésquilo, mas sim com a forma dos seus discursos e a figura dos seus personagens.”

Não é sem razão que o coro das tragédias de Sófocles repete constantemente que a fonte de todo o mal é a ausência de medida.” “esta consciência das normas ideais do Homem é peculiar à época em que a sofística se inicia. O problema da arete humana é agora estudado com extraordinária intensidade do ponto de vista da educação. O homem <tal como deve ser> é o grande tema da época e a meta de todos os esforços dos sofistas. Até agora, os poetas buscaram só fundamentar os valores da vida humana. Mas não podiam ficar indiferentes à nova vontade educacional.”

A <alma> é objetivamente reconhecida como o centro do Homem. (…) Há muito tempo a escultura tinha descoberto as leis do corpo humano e dele fizera o objeto do mais fervoroso estudo. Voltava a descobrir na <harmonia> do corpo o princípio do cosmos, que o pensamento filosófico já confirmara para a totalidade. A partir do cosmos chega agora o mundo grego à descoberta do espiritual.” “é o único reino do ser que, embora sujeito a uma ordem jurídica, ainda não tinha sido penetrado pela idéia cósmica. É evidente que, à semelhança do corpo, a alma também tem o seu ritmo e a sua harmonia. Entramos com isso na idéia de uma estrutura da alma.” “Protágoras fala da educação da alma por meio da verdadeira eurhytmia e euharmostia.”

Só entre o povo grego a idéia da educação podia brotar das normas da arte escultórica. (…) Naquele tempo, a educação, a poesia e a escultura estavam intimamente ligadas.”

É esta tendência antropocêntrica do espírito ático que dá lugar ao nascimento da <humanidade>, não no sentido do amor humano pelos outros membros da comunidade, que os gregos chamaram filantropia, mas sim no sentido do conhecimento da verdadeira e essencial forma humana.

É especialmente significativo que seja a 1ª vez que a mulher aparece como representante do humano, ao lado do homem, com idêntica dignidade. As numerosas figuras femininas de Sófocles, como Antígona, Electra, Dejanira, Tecmesa, Jocasta, para não falar de outras secundárias, como Clitemnestra, Ismena e Crisótemis, iluminam com o maior fulgor a elevação e amplitude da humanidade de Sófocles. A descoberta da mulher é a conseqüência necessária da descoberta do homem como objeto próprio da tragédia.”

Em Sófocles, passam a uma posição secundária as exigências da teodicéia, que tinha dominado o pensamento religioso, desde Sólon até Teógnis e Ésquilo. O que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor. É este o rosto inevitável do destino, do ponto de vista humano. Não é que seja abandonada a concepção religiosa do mundo, de Ésquilo; de modo nenhum. Simplesmente já não é nela que se coloca a ênfase. Vê-se isso com especial clareza numa das primeiras obras de Sófocles, a Antígona, onde ainda aparece com vigoroso relevo aquela concepção do mundo.

A maldição familiar da casa dos Labdácidas, cuja ação aniquiladora Ésquilo acompanha durante várias gerações na trilogia tebana, permanece ainda em Sófocles a causa originária, mas situada num plano de fundo. Antígona cai como sua última vítima, do mesmo modo que em Sete de Ésquilo, Etéocles e Polinices. Sófocles leva Antígona e o seu opositor Creonte a participarem na realização do seu destino pelo vigor das suas ações, e o coro não se cansa de falar da transgressão da medida e da participação de ambos no seu infortúnio.”

Antígona está determinada para a dor, pela sua própria natureza; poderíamos até dizer que foi eleita para ela, visto que a sua dor consciente converte-se numa nova forma de nobreza. Esta eleição para a dor, naturalmente alheia a qualquer representação cristã, revela-se de modo eminente no diálogo do prólogo entre Antígona e as suas irmãs. A ternura juvenil de Ismena retrocede aterrada perante a deliberada escolha da sua própria ruína.”

com a peculiar ironia trágica de Sófocles, no momento em que o coro acaba de celebrar o direito e o Estado, proclamando a expulsão para fora de qualquer sociedade humana daquele que despreza a lei, Antígona é agrilhoada. Para cumprir a lei não-escrita e obedecer ao mais simples dever fraterno, afronta com plena consciência o decreto tirânico do rei que, baseado na força do Estado, proíbe-lhe, sob pena de morte, que dê sepultura ao seu irmão Polinices, morto em combate contra a própria pátria. No mesmo instante aparece ao espírito do espectador um outro aspecto da natureza humana. O orgulhoso hino emudece perante o súbito e trágico conhecimento da debilidade e da miséria humana.

Foi com uma intuição profunda que Hegel viu na Antígona o trágico conflito de 2 princípios morais: a lei do Estado e o direito familiar.” Uau, que profundo, o grande Hegel… Porém, H. emitiu o parecer errado: não é a lei do Estado que prevalece – como poderia se equivocar de tal maneira? Não que o direito familiar seja o vitorioso: a vitória cabe ao indivíduo realizando-se em sua liberdade ética e antagonizando até o último momento o arbítrio – não dos deuses, mas do próprio homem.

ainda que se fale de hybris e da falta de medida e de compreensão, não é no centro que estes conceitos se encontram, como na obra de Ésquilo, mas sim na periferia.” ???

A irracionalidade desta Ate, que inquietou o sentido da justiça de Sólon e preocupou a época inteira, é um pressuposto do trágico, mas não constitui o problema da tragédia. Ésquilo procura resolver o problema. Sófocles pressupõe a Ate. Mas não é de mera passividade a sua posição perante o fato inevitável da dor enviada pelos deuses, que desde a sua origem a velha lírica lamentou. Não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo as quais o Homem tem de perder necessariamente a arete, quando o infortúnio inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores à mais alta nobreza é o Sim que Sófocles dá a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o 1º a elevar-se a uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade terrena ou da sua existência física e social.”

Esta arte chega ao auge de sua perfeição na cena do reconhecimento de Electra e de Orestes. O disfarce intencional do salvador, o seu regresso à casa paterna e a maneira gradual como ele deixa cair as suas vestes fazem a dor de Electra passar por todos os graus, desde o céu até o inferno.”

Exilado da pátria e cego, o velho Édipo vagueia mundo afora, esmolando, pela mão de sua filha Antígona, outra das figuras preferidas que o poeta jamais abandona. Nada é mais característico da essência da tragédia de Sófocles que a compaixão do poeta para com as suas próprias figuras. Nunca o abandonou a idéia do que seria feito de Édipo.”

Na plenitude da vida Sófocles achou plena satisfação em colocar Édipo no meio da tempestade do aniquilamento. Põe-no diante dos olhos do espectador no momento em que se amaldiçoa e quer aniquilar, desesperado, a sua existência, tal como já com as próprias mãos havia apagado a luz dos olhos. Também em Electra, no instante em que a personagem atinge a plenitude da tragédia o poeta corta, subitamente, o fio da ação.

É altamente significativo que Sófocles tenha retomado o tema de Édipo, pouco antes da sua morte. Seria errôneo esperar desse segundo Édipo a resolução final do problema. Quem tentasse interpretar neste sentido a apaixonada autodefesa do velho Édipo, a sua repetida insistência em que foi na ignorância que realizou todos os seus atos, confundiria Sófocles com Eurípides. [Interpretação corrente!] Nem o destino nem Édipo são absolvidos ou condenados. No entanto, é a uma luz mais alta que o poeta parece encarar aqui a dor. É um último encontro com o velho peregrino sem descanso, pouco antes de chegar ao seu termo. A sua nobre natureza continua inquebrantável na sua força impetuosa, apesar do infortúnio e da velhice. A consciência ajuda-o a suportar a dor, esta velha companheira insuperável que nem nas últimas horas o abandona. Esta imagem agreste não dá nenhum lugar à ternura sentimental. No entanto, a dor torna Édipo venerável. O coro sente-lhe o terror, mas ainda mais a grandeza, e o rei de Atenas recebe o mendigo cego com as honras devidas a um hóspede ilustre. Era no solo ático que ele devia encontrar o último repouso, rezava um oráculo divino. A morte de Édipo está envolta em mistério. Sai sozinho e sem guia para o bosque e ninguém mais o volta a ver. Tão incompreensível como a senda da dor, pela qual a divindade conduz Édipo, é o milagre da salvação que no fim o espera. (…) Não se pode saber como, mas a consagração à dor aproxima-o dos deuses e separa-o do resto dos homens. Agora repousa na colina de Colono, na pátria querida do poeta, nos bosques sempre verdejantes das Eumênides, em cujos ramos canta o rouxinol. Nenhum pé humano pode pisar o lugar. Mas é dele que irradia a bênção para toda a terra da Ática.”

2.3 Os sofistas

Foi com os sofistas que a palavra paideia, que no século IV e durante o helenismo e o império haveria de ampliar cada vez mais a sua importância e a amplitude do seu significado, pela 1ª vez foi referida à mais alta arete humana e, a partir da <criação dos meninos> – em cujo simples sentido a vemos em Ésquilo, pela primeira vez (Sete contra Tebas, 18) –, acaba por englobar o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e espirituais, que formam a kalokagathia, no sentido de uma formação espiritual consciente.”

se excetuarmos Esparta, onde desde Tirteu se tinha estruturado uma forma peculiar de educação cívica, a agoge (que não tem nada de semelhante no resto da Grécia), não havia nem podia haver nenhuma forma de educação estatal comparável às que a Odisséia, Teógnis e Píndaro nos mostram; e as iniciativas privadas desenvolviam-se muito lentamente.” “A educação profissional, herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofício ou a indústria, não se podia comparar à educação total de espírito e de corpo do nobre” “Era uma simples ampliação do conceito de comunidade de sangue, com a única diferença de que a vinculação da estirpe substituíra o antigo conceito aristocrático do Estado patriarcal. Não era possível pensar em outro fundamento. Por mais forte que fosse o sentimento da individualidade, era impossível conceber que a educação se fundamentasse em outra coisa que não a comunidade da estirpe e do Estado.”

E se a moderna cidade-Estado se apropriara da arete física da nobreza, por meio da instituição da ginástica, por que não seria possível alcançar, através de uma educação consciente pela via espiritual, as inegáveis qualidades diretivas, que eram patrimônio daquela classe?”

Não tem importância para nós, agora, a apreciação da forma democrática da organização do Estado ático” “Problemas como o da educação política do Homem e da formação de minorias dirigentes, da liberdade e da autoridade, só neste grau da evolução espiritual podem surgir e só nele podem alcançar a sua plena urgência e importância para o destino.” “Prova disso é o pensamento dos grandes educadores e filósofos nascidos daquela experiência ter conseguido prontas soluções, que transcendem ousadamente as formas existentes do Estado e cuja fecundidade é inesgotável para qualquer outra situação análoga.”

o problema das relações das grandes personalidades espirituais com a comunidade, problema que preocupou todos os pensadores até o fim da cidade-Estado, sem que chegassem a entrar em acordo. No caso de Péricles, foi encontrada uma feliz solução para o indivíduo e para a sociedade.”

Esta necessidade fez-se sentir mais desde a entrada de Atenas no mundo internacional, com a economia, o comércio e a política subseqüentes às guerras contra os persas. Atenas ficou devendo a salvação a um só homem e a sua superioridade espiritual. Depois da vitória, não pôde suportar muito tempo, já que o seu poder era incompatível com o antiquado conceito da <isonomia>, e ele aparecia como um tirano dissimulado. Assim, por uma evolução lógica, chegou-se à convicção de que a manutenção da ordem democrática do Estado dependia cada vez mais da justa eleição da personalidade dirigente. Para a democracia, o problema dos problemas era ter de se reduzir a si própria ad absurdum, a partir do momento em que quis ser mais que uma forma rigorosa do poder político e se converteu no domínio real da massa sobre o Estado.

Já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas não era a educação do povo, mas a dos chefes. No fundo não era senão uma nova forma da educação dos nobres.”

Era a eles que acorriam os que desejavam formar-se para a política e tornar-se um dia dirigentes do Estado.” “Não deviam limitar-se a cumprir, mas tinham de criar as leis do Estado e, além da experiência que se adquire na prática da vida política, era-lhes indispensável uma intelecção universal da essência das coisas humanas. É certo que as qualidades fundamentais de um homem de Estado não se podem adquirir. São inatos o tato, a presença de espírito e a previsão, qualidades que Tucídides exalta acima das outras em Temístocles. Pode-se, no entanto, desenvolver o dom de pronunciar discursos convincentes e oportunos.”

a força que as musas concedem ao rei (…) A faculdade oratória situa-se em plano idêntico ao da inspiração das musas aos poetas.”

A idade clássica chama de orador o político meramente retórico. A palavra não tinha o sentido puramente formal que mais tarde adquiriu, mas abrangia também o próprio conceito.”

Esta falsa modernização do conceito grego de arete peca essencialmente por fazer surgir aos olhos do homem atual como arrogância ingênua e sem-sentido a pretensão dos sofistas ou mestres da sabedoria, como os contemporâneos os chamavam e a si próprios eles se intitulavam.”

É natural que encaremos os sofistas retrospectivamente, pelo ponto de vista cético de Platão, para quem o princípio de todo o conhecimento filosófico é a dúvida socrática sobre a possibilidade de ensinar a virtude. É, porém, historicamente incorreto e inibe toda a compreensão autêntica daquela importante época da história da educação humana sobrecarregá-la de problemas que aparecem apenas numa fase posterior da reflexão filosófica. Do ponto de vista histórico, a sofística é um fenômeno tão importante como Sócrates ou Platão. Além disso não é possível concebê-los sem ela.”

A racionalização da educação política não passa de um caso particular da racionalização da vida inteira, que mais do que nunca se baseia na ação e no êxito.” “O ético, que <se compreende por si próprio>, cede involuntariamente o passo ao intelectual, que se situa em primeiro plano.” “É o tempo em que o ideal da arete do Homem recolhe em si todos os valores que a ética aristotélica reúne mais tarde como prerrogativas espirituais, e que, com os valores éticos do Homem, procura juntar numa unidade mais alta.” “os seus pressupostos pedagógicos eram tão justos como a dúvida racional de Sócrates.”

deparamos nos sofistas com duas modalidades distintas de educação do espírito: a transmissão de um saber enciclopédico e a formação do espírito nos seus diversos campos. Claramente se vê que o antagonismo espiritual destes dois métodos de educação só pode alcançar unidade no conceito superior de educação espiritual. Ambas as formas de ensino sobreviveram até o presente, mais sob a forma de compromisso que na sua unilateralidade.”

A poesia e a música eram para Protágoras as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes desta terceira forma de educação sofística. Distingue-se da formal e da enciclopédica, porque já não considera o homem abstratamente, mas como membro da sociedade.”

Em todo caso, é uma afirmação superficial dizer que aquilo que de novo o de único que liga todos os sofistas é o ideal educativo da retórica: isso é comum a todos os representantes da sofística, ao passo que diferem na apreciação do resto das coisas, a ponto de não ter havido sofistas, como Górgias, que só foram retóricos, e não ensinaram outra coisa. Comum a todos é antes o fato de serem mestres da arete política e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la.”

É claro que a nova educação (…) se arriscava a cair nas maiores parcialidades, caso não se fundamentasse numa investigação séria e num pensamento filosófico rigoroso (…) Foi a partir deste ponto de vista que Platão e Aristóteles impugnaram mais tarde o sistema total da educação sofística e o abalaram nos seus próprios fundamentos.”

A história da filosofia que Aristóteles nos dá na Metafísica não inclui os sofistas. As mais recentes histórias da filosofia consideram-nos como fundadores do subjetivismo e do relativismo filosóficos. O esboço de uma teoria por parte de Protágoras não justifica tais generalizações e é um erro evidente de perspectiva histórica pôr os mestres da arete ao lado de pensadores do estilo de Anaximandro, Parmênides ou Heráclito. [Entendi o sentido de ‘pôr ao lado’ neste contexto; porém, se fosse um comentário elogioso, os sofistas deveriam se sentir honrados de dividir honras com Parmênides.]

A cosmologia dos milesianos mostra-nos até que ponto o afã investigador da <história> jônica estava originariamente distante de todo o humano e de toda a ação educacional e prática. [será?] (…) A audaciosa tentativa de Xenófanes para fundamentar a arete no conhecimento racional de Deus coloca este conhecimento em íntima ligação com o ideal educativo; e parecia, em instantâneo vislumbre, que a filosofia da natureza iria, pela aceitação da poesia, obter o domínio da formação e da vida da nação. Mas Xenófanes é um fenômeno isolado (…) Heráclito foi o único dos grandes pensadores capaz de articular o Homem na construção jurídica do cosmos regido por um princípio unitário. E Heráclito não é um fisiólogo. (…) Com Anaxágoras de Clazômenas, que situa na origem do ser o espírito, como força ordenadora e diretiva, entra na cosmogonia a tendência antropocêntrica do tempo. No entanto, continua sem solução de continuidade a concepção mecanicista da natureza. (…) Empédocles de Agrigento é um centauro filosófico. Na sua alma biforme convivem em rara união a física jônica dos elementos e a religião da salvação órfica.”

Até um pensador tão estritamente naturalista como Demócrito não pôde deixar de lado o problema do Homem e do seu mundo moral específico. (…) prefere traçar uma linha divisória entre a filosofia da natureza e a sabedoria ética e educativa, que deixa de ser uma ciência teórica para de novo adotar a forma tradicional da parênese.”

O interesse cada vez maior da filosofia pelos problemas do Homem, cujo objeto determina com exatidão cada vez maior, é mais uma prova da necessidade histórica do advento dos sofistas. Todavia, a exigência que eles vêm satisfazer não é de ordem teórica e científica, mas sim de ordem estritamente prática. É esta a razão profunda pela qual tiveram em Atenas uma ação tão forte, ao passo que a ciência dos fisiólogos jônicos não pôde lançar ali quaisquer raízes. Sem compreenderem nada desta investigação separada da vida, os sofistas vinculam-se à tradição educativa dos poetas, a Homero e a Hesíodo, a Teógnis, a Simônides e a Píndaro.”

Simônides já é, no fundo, um sofista típico.(*) Os sofistas deram o último passo. Transplantaram para a nova prosa artística, em que eram mestres, os vários gêneros de poesia parenética onde o elemento pedagógico se revelava com maior vigor, e entraram assim em consciente emulação, na forma e no conteúdo, com a poesia. Esta transposição do conteúdo da poesia para a prosa é sinal da sua racionalização definitiva.

(*) Disse-o já PLATÃO, Prot., 339 A.”

Foram os primeiros intérpretes metódicos dos grandes poetas aos quais vincularam, com predileção, os seus ensinamentos. Não se deve, porém, esperar uma interpretação no sentido em que nós a entendemos. Encaravam os poetas de modo imediato e intemporal e os situavam despreocupadamente na atualidade, como o revela graciosamente o Protágoras de Platão.”

Homero é para os sofistas uma enciclopédia de todos os conhecimentos humanos, desde a construção de carros até a estratégia, e uma mina de regras prudentes para a vida.(*) A educação heróica da epopéia e da tragédia é interpretada de um ponto de vista francamente utilitário.

(*) PLATÃO, Rep. 598 E, mostra este tipo de interpretação sofística de Homero num quadro cheio de precisão.”

Tudo isto recorda os literatos do Renascimento. Renasce neles a independência, o cosmopolitismo e a despreocupação que os sofistas trouxeram ao mundo. Hípias de Élis, que falava de todos os ramos do saber, ensinava todas as artes e só ostentava no corpo vestes e adornos feitos por suas mãos, é o perfeito uomo universale. [aqui, self-made man] (PLATÃO, Híp. Men., 368 B.)”

Não tinham cidadania fixa, devido a sua vida constantemente andarilha. Que na Grécia tenha sido possível este modo de vida tão independente é o mais evidente sintoma do aparecimento de um tipo de educação completamente novo, individualista na sua raiz mais íntima, por mais que se falasse de educação para a comunidade e da virtude dos melhores cidadãos. Os sofistas são, com efeito, as individualidades mais representativas de uma época que na sua totalidade tende para o individualismo. Os seus contemporâneos tinham razão, quando os consideravam os autênticos representantes do espírito do tempo. É também sinal dos tempos viverem da educação. Esta era <importada> como uma mercadoria e exposta à venda. Encerra algo de profundamente verdadeiro esta maliciosa comparação de Platão. Não devemos, porém, tomá-la por crítica aos sofistas e às doutrinas deles, mas antes por um sintoma espiritual.”

Podemos, pois, considerá-los um estágio da maior importância no desenvolvimento do humanismo, embora este só tenha encontrado a sua verdadeira e mais alta forma após a luta entre os sofistas e sua superação por Platão. Há sempre neles algo de incompleto e imperfeito. A sofística não é um movimento científico, mas sim a invasão do espírito da antiga física e <história> dos jônios por outros interesses da vida e sobretudo pelos problemas pedagógicos e sociais que surgiram em conseqüência da transformação do Estado econômico e social. O seu primeiro efeito, porém, foi suplantar a ciência, tal como nos tempos modernos aconteceu com o florescimento da pedagogia, da sociologia, e do jornalismo. Na medida em que (…) formulou um conceito de educação, a sofística levou a uma ampliação dos domínios da ciência jônica nos aspectos ético e social, e abriu o caminho a uma verdadeira filosofia e ética, ao lado e mesmo acima da ciência da natureza. PLATÃO, no Hípias Maior¹ (281 C), salienta a oposição entre a tendência prática dos sofistas e a antiga filosofia separada da vida.”

¹ https://seclusao.art.blog/2019/11/10/pseudo-hipias-maior-ou-o-que-e-o-belo/

Ainda agora está por resolver a questão de saber se a pedagogia é uma ciência ou uma arte; e não foi ciência mas sim techne que os sofistas chamaram a sua teoria e arte da educação.” “A conversão da educação numa técnica é um caso particular da tendência geral do tempo a dividir a vida inteira numa série de compartimentos separados, concebidos com vistas a uma finalidade e teoricamente fundamentados num saber adequado e transmissível. É sobretudo em matemática, medicina, ginástica, teoria musical, arte dramática, etc. que nós encontramos especialistas e obras especializadas. Até os escultores, como Policleto, escrevem a teoria da sua arte. § Por outro lado, os sofistas consideravam a sua arte o coroamento de todas as artes.”

Enquanto o dom de Prometeu, o saber técnico, só pertence aos especialistas, Zeus infundiu em todos os homens o sentido da justiça e da lei, pois sem ele o Estado não subsistiria. Existe, porém, um grau mais alto de intelecção do direito do Estado. É o que a techne política dos sofistas ensina, e que é, para Protágoras, a verdadeira educação e o vínculo espiritual que conserva unidas a comunidade e a civilização humanas. § Nem todos os sofistas atingiram tão elevado conceito da sua profissão. O sofista mediano dava-se por satisfeito em transmitir a sabedoria.”

Convém evitar a identificação da techne com o sentido moderno do conceito de <vocação>, cuja origem cristã o distingue do conceito de techne. Cf. KARL HOLL, Die geschichte des Worts Beruf, Sitz. Berl. Akad., 1924.”

a língua grega não tem outra palavra para exprimir o poder e o saber que o político adquire por meio da ação. E é perfeitamente visível que Protágoras se esforça por distinguir esta techne das técnicas profissionais, em sentido estrito, e por lhe dar um sentido de totalidade e de universalidade.”

Esta educação ética e política é um traço fundamental da essência da verdadeira paideia. (…) Não é como exemplo histórico, meramente aproximado, que usamos o termo humanismo; é com plena reflexão, para designarmos o ideal de formação humana que com a sofística penetra nas profundezas da evolução do espírito grego e no seu sentido mais essencial. Para os tempos modernos, o conceito de humanismo refere-se de modo expresso à educação e à cultura da Antiguidade.”

Platão e Isócrates adotam as idéias educacionais dos sofistas e nelas introduzem diversas modificações. Não há nada que caracteriza tão bem esta transformação como o fato de Platão, chegado ao termo da sua vida e do seu saber, ter transformado, nas Leis, a célebre frase de Protágoras (tão característica, na sua própria ambigüidade, do tipo de humanismo dele): O Homem é a medida de todas as coisas, no axioma: A medida de todas as coisas é Deus.

são essenciais ao humanismo a indiferença religiosa, o <relativismo> epistemológico e o ceticismo que Platão combate e que fazem dele o mais duro adversário dos sofistas. (…) Na nossa exposição posterior voltaremos a abordar este problema, assim como a luta da educação e da cultura para fazerem reconhecer a religião e a filosofia, luta que na história universal atinge o ponto culminante com a aceitação do cristianismo no período final da Antiguidade. § Aqui só podemos adiantar uma resposta sumária. A velha educação helênica, anterior aos sofistas, ignora a distinção entre religião e cultura. Está profundamente enraizada no religioso. A cisão tem lugar no tempo dos sofistas, que é ao mesmo tempo a época da criação da idéia consciente da educação.”

1000AGRE ÚNICO: “Provavelmente o humanismo só podia brotar das grandes tradições educacionais helênicas, no momento histórico em que entravam em crise os mais altos valores educativos.”

Do ponto de vista histórico, é preciso determinar, antes de tudo, se Platão destruiu ou completou o humanismo dos sofistas – o primeiro que a História conheceu. (…) considerando-se as coisas exclusivamente à luz da História, parece que há muito está decidido que o ideal de formação humana propugnado pelos sofistas tem em si um grande futuro, mas não é uma criação acabada. A sua clara consciência da forma tem tido uma inestimável eficácia prática na educação, até o dia de hoje. Mas era precisamente pelo que as suas aspirações tinham de superlativo que ela necessitava de um fundamento mais profundo de ordem filosófica e religiosa. (…) Platão ultrapassa a idéia de educação dos sofistas, precisamente porque volta atrás, e remonta à origem.”

Foi então que pela 1ª vez surgiu uma paideia do homem adulto. O conceito, que originariamente designava apenas o processo da educação como tal, estendeu ao aspecto objetivo e de conteúdo a esfera do seu significado, exatamente como a palavra alemã Bildung (formação) ou a equivalente latina cultura, do processo de formação passam a designar o ser formado e o próprio conteúdo da cultura, e por fim abarcam, na totalidade, o mundo da cultura espiritual”

Adquirir consciência é uma grandeza, mas é a grandeza da posteridade.” “conserva toda a sua força a frase de Hegel que diz que a coruja de Atena só levanta vôo ao declinar o dia. Foi só à causa da sua juventude que o espírito grego, cujos mensageiros são os sofistas, alcançou o domínio do mundo. Assim se compreende que Nietzsche e Bachofen tenham visto na época de Homero ou na tragédia, antes do despertar da ratio, o apogeu dos tempos. Mas não se pode aceitar esta valoração absoluta e romântica dos tempos primitivos.” “Sentimos com dor a perda que acarreta o desenvolvimento do espírito.” “É necessariamente esta a nossa posição; encontramo-nos num estágio avançado da cultura, e em muitos aspectos procedemos também dos sofistas. Estão muito mais <próximos> de nós do que Platão ou Ésquilo. Por isso é que precisamos tanto destes.”

A razão desta carência de notícias está em não terem deixado nenhum escrito que a eles sobrevivesse por muito tempo. Os escritos de Protágoras, que nisto como em tudo tinha um lugar de preferência, ainda eram lidos no final da Antiguidade; mas também foram esquecidos, a partir de então. Cf. PROTÁGORAS, frag. 2, Diels (conservado por Porfírio).”

A Medicina permanecera largo tempo no estado de arte de curar, mesclada de exorcismos e de superstições populares. O progresso do conhecimento da natureza entre os jônios e o estabelecimento de uma ciência empírica influenciaram a arte de curar e levaram os médicos a realizar observações científicas do corpo humanos e seus fenômenos.” “Transpôs-se da totalidade do universo para a individualidade humana o conceito de physis, que recebeu, assim, um matiz peculiar.”

O homem desgraçado ou inclinado ao mal constitui exceção. Foi, neste ponto que em todos os tempos se fundamentou a crítica religiosa cristã do humanismo. É certo que nesta questão o otimismo pedagógico dos sofistas não é a última palavra do espírito grego. Todavia, se os gregos tivessem partido da consciência universal do pecado e não do ideal de formação do Homem, jamais teriam chegado a criar uma pedagogia nem um ideal de cultura.”

Píndaro e Platão jamais partilharam as ilusões democráticas sobre a educação das massas por meio da instrução. Foi o plebeu Sócrates quem redescobriu estas dúvidas aristocráticas relativas à educação. Recordem-se as palavras resignadas de Platão, na Carta Sétima, sobre a estreiteza dos limites dentro dos quais o influxo do conhecimento se pode exercer sobre a massa dos homens, e as razões que ele invoca para se dirigir antes a um círculo restrito e não à multidão inumerável, como portador de uma mensagem de salvação.”

É precisamente nesta íntima antinomia entre a grave dúvida sobre a possibilidade da educação e a vontade inquebrantável de realizá-la que residem a grandeza e a fecundidade do espírito grego. Há lugar entre os dois pólos para a consciência do pecado e pessimismo cultural do cristianismo e para o otimismo educativo dos sofistas.”

As diferenças individuais entre os métodos educativos dos sofistas, de que os seus descobridores se mostram tão orgulhosos, não passam de um objeto de divertimento para Platão. Apresenta juntas as personalidades de Protágoras de Abdera, Hípias de Élis e Pródico de Ceos, que são hóspedes simultâneos do rico ateniense Cálias, cuja casa se tornara pousada de celebridades espirituais. Assim se faz salientar que, apesar de todas as diferenças, há entre todos os sofistas um parentesco espiritual.”

Prêmios e castigos são outorgados pela sociedade, lá onde se trata de bens que podem ser alcançados pelo esforço consciente e pela aprendizagem.” “A virtude cívica é o fundamento do Estado. Sem ela, nenhuma sociedade poderá subsistir. Quem nela não participa deve ser treinado, castigado e corrigido, até que se torne melhor; se for incurável, terá de ser banido da sociedade e até morto. Assim, não é só a justiça punitiva, mas o Estado inteiro, que é para Protágoras uma força educadora. A rigor, é o espírito político do Estado constitucional e jurídico, tal como se realiza em Atenas”

É digno de nota que os sofistas nunca tenham propugnado a oficialização da educação, embora esta exigência esteja muito próxima do ponto de vista de Protágoras. Supriram esta falta oferecendo a educação por meio de contratos privados.”

Pelo ensino da música a criança é educada na sophrosyne e afastada das más ações. Segue-se o estudo dos poetas líricos, cujas obras são apresentadas em forma de composições musicais. Introduzem o ritmo e a harmonia na alma do jovem, para que este saiba dominar-se, uma vez que a vida do Homem precisa da euritmia e da justa harmonia. Esta deve manifestar-se em todas as palavras e ações de um homem realmente educado. O jovem é mais tarde levado à escola de ginástica, onde os paidotribes lhe fortalecem o corpo, para que seja servo fiel de um espírito vigoroso e para que o homem nunca fracasse na vida por culpa da debilidade do corpo.” “Os filhos dos ricos começam a aprender antes e acabam mais tarde a sua educação.” “É característico do novo conceito o fato de Protágoras pensar que a educação não acaba com a saída da escola. Em certo sentido, poderia dizer-se que é precisamente nossa época que começa.”

O conhecimento que por meio do ensino penetra na alma não tem para com ela a mesma relação que a semente tem para com a terra. A educação não é um mero processo de crescimento que o educador alimenta, favorece e guia deliberadamente.”

É indiferente que talvez tenha sido Platão o primeiro a empregar a expressão <formar>. A idéia de formação está implícita na aspiração de Protágoras a formar uma alma rítmica e harmônica por meio da impressão do ritmo e da harmonia musical.”

Antes dos sofistas não se fala de gramática, de retórica ou de dialética.”

Perderam-se os seus escritos gramaticais; mas os gramáticos posteriores, peripatéticos e alexandrinos, os reelaboraram. As paródias de Platão oferecem-nos vislumbres da sinonímia de Pródico de Ceos, e sabemos ainda alguma coisa da classificação dos diversos tipos de palavras, de Protágoras, bem como da doutrina de Hípias sobre o significado das letras e das sílabas. Perderam-se também as retóricas dos sofistas, que eram manuais destinados à publicidade. Um remanescente deste tipo de livros é a retórica de Anaxímenes, em grande parte elaborada com conceitos recebidos.” “É certo que se perdeu sua obra capital, as Antilogias de Protágoras.”

Foi na escola de Platão que a lógica surgiu em 1º lugar, e as caricaturas que o Eutidemo¹ traça dos jogos erísticos de alguns sofistas de 2º plano, cujos excessos a filosofia séria impugna, mostram até que ponto se empregou, desde o início, o vigor da nova arte de discutir como arma nos combates oratórios. Está aqui muito mais próximo da retórica que da lógica teórica e científica.”

¹ https://seclusao.art.blog/2018/08/31/eutidemo-ou-do-disputador-ou-da-mentira-sofistica-frente-a-verdade-dialetica/.

como num teclado, os oradores dominam os tons mais diversos. Tal é a <ginástica do espírito>, cuja falta tão freqüentemente notamos nos discursos e escritos atuais.”

Os gregos deram o nome de agon aos debates judiciais, porque tinham sempre a impressão de se tratar de uma luta entre 2 rivais, sujeita à forma e à lei. Novas investigações mostraram como a argumentação lógica da prova, introduzida pela retórica, foi substituindo, na oratória jurídica do tempo dos sofistas, as antigas provas jurídicas de testemunhas, torturas e julgamentos.” “A retórica é a forma de educação predominante nos últimos tempos da Antiguidade. Estava tão perfeitamente adaptada à predisposição formal do povo grego, que se converteu numa fatalidade, ao desenvolver-se por cima de tudo o mais, como uma trepadeira.”

Unida à gramática e à dialética, a retórica tornou-se o fundamento da formação formal do Ocidente. Desde os últimos tempos da Antiguidade formaram juntas o chamado trivium, que juntamente com o quadrivium constituía as 7 artes liberais, que, sob esta forma escolar, sobreviveram a todo o esplendor da arte e da cultura gregas. Ainda hoje as classes superiores dos liceus franceses conservam, como sinal da ininterrupta tradição da educação sofística, os nomes destas disciplinas, herdadas das escolas monásticas medievais. § Os sofistas não uniram ainda aquelas três artes formais à Aritmética, Geometria, Música e Astronomia, que formaram posteriormente o sistema das 7 artes liberais.”

Antes deles, a música constituía apenas um ensino prático, como mostra a descrição que Protágoras faz da essência da educação dominante. A instrução musical estava nas mãos dos mestres de lira. A ela uniram os sofistas a doutrina teórica dos pitagóricos sobre a harmonia.”

O que hoje denominamos cultura humanista no estrito sentido da palavra, e que é impossível sem o conhecimento das literaturas clássicas na sua língua original, só podia florescer num solo não-grego, mas influenciado no que tinha de mais profundo pelo espírito helênico, como foi o povo romano. A educação baseada nas 2 línguas, grega e latina, é, na sua concepção plena, uma criação do humanismo do Renascimento.”

Uma objeção capital da crítica pública contra este aspecto da educação sofista era a inutilidade das matemáticas para a vida prática. Como se sabe, Platão, no seu plano de estudos, considera a Matemática uma propedêutica para a Filosofia. Nada mais alheio aos sofistas do que esta concepção. (…) Isócrates, um discípulo da retórica sofística que após longos anos de oposição acabou por conceder um certo valor à Matemática” “As Mathemata representam o elemento real da educação sofística; a gramática, a retórica e a dialética, o elemento formal. A posterior divisão das artes liberais no trivium e no quadrivium depõe também a favor daquela separação em 2 grupos de disciplina.”

PLATÃO, Hípias Maior, 285 B mostra unicamente a enciclopédica variedade do saber de Hípias; Hípias Menor,¹ 368 B, o seu consciente esforço para a universalidade, pois tinha o orgulho de dominar todas as artes.”

¹ https://seclusao.art.blog/2019/11/13/hipias-menor-ou-da-mentira/

É a primeira vez que se reconhece o valor do puramente teórico para a formação do espírito. (…) Pelo conhecimento matemático alcança-se a capacidade de construir e ordenar e, de modo geral, a força espiritual. Os sofistas nunca chegaram a formular uma teoria desta ação. Foram Platão e Aristóteles os que primeiro alcançaram uma consciência plena da importância educacional da ciência pura.”

Nos tempos antigos, só por exceção esta atitude espiritual aparecia em algumas personalidades excepcionais, que pelo seu afastamento da vida citadina corrente e seus interesses, e pela sua originalidade entre admirável e ridícula, granjeavam respeito, consideração e amável indulgência. Agora as coisas eram bem outras. Este saber aspirava a converter-se na autêntica e <superior> educação e a suplantar a educação tradicional. § A oposição não podia brotar do povo trabalhador, que desde o início se viu excluído desta educação, pois era <inútil>, cara e dirigida às esferas dirigentes. A crítica só era possível no seio das classes superiores, que sempre haviam possuído uma alta formação e uma medida certa e que, mesmo sob a democracia, mantinham intacto, quanto ao essencial, o seu ideal de gentleman, a kalokagathia. Políticos eminentes como Péricles, e altas personalidades sociais, como Cálias, o homem mais rico de Atenas, davam o exemplo de um apaixonado amor ao estudo, e muitas pessoas de destaque mandavam os filhos às conferências dos sofistas. (…) [os pais] não queriam que seus filhos se convertessem em sofistas. Alguns discípulos mais bem-dotados dos sofistas seguiam os seus mestres de cidade em cidade e aspiravam a fazer profissão dos ensinamentos recebidos. Em contrapartida, os jovens distintos que assistiam as suas conferências não os julgavam modelos dignos de imitação. Pelo contrário, acentuavam a diferença de classe que os separava dos sofistas, todos procedentes de famílias burguesas, e estabeleciam um limite além do qual não podia passar a sua influência. (…) Lembra a discussão entre <Sócrates> – que neste caso se identifica com Platão – e o nobre ateniense Cálicles, no Górgias,¹ sobre o valor da investigação pura para a formação do homem superior que aspira à ação política. Cálicles repele violentamente a ciência como vocação da vida inteira. É boa e útil para preservar os jovens contra tendências perniciosas na perigosa idade em que ocorrem (…) Quem não tiver sentido bem cedo estes interesses não chegará nunca a ser um homem completo e permanecerá sempre numa fase imatura do seu desenvolvimento quem encerrar a sua vida toda nesta atmosfera acanhada. Cálicles estabelece os limites da idade em que é necessário ocupar-se deste saber, ao afirmar que deve ser adquirido <com propósito educativo>, i.e., durante uma idade que serve de simples transição. Cálicles é o tipo da sua classe social. Não nos podemos ocupar aqui da atitude que Platão assume diante dele. O mundo distinto de Atenas e toda a sociedade burguesa participam em maior ou menor grau do ceticismo de Cálicles perante o novo entusiasmo espiritual da sua juventude. (…) Cálicles pertence também à escola sofística, como todas as suas palavras manifestam. Mas aprendeu depois, como político, a subordinar esse grau da sua educação ao curso total da sua carreira de estadista. Cita Eurípides, cuja obra é espelho de todos os problemas do seu tempo.”

¹ https://seclusao.art.blog/2019/03/02/gorgias-ou-da-retorica/.

Philosophari sed paucis” Cícero

Filosofar é coisa rara

foi originariamente proferida por um grego essa <máxima romana> que emociona tantos dos nossos filo-helenistas.”

Ocupar-se da investigação <só por mor da educação> e na medida em que esta faz falta era a fórmula da cultura do tempo de Péricles, uma vez que essa cultura era integralmente prática e política. O seu fundamento era o império ateniense, que tinha por finalidade obter o domínio do mundo helênico. Até Platão, quando após a ruína do império pregava o ideal da <vida filosófica>, justificava o seu intento pelo valor prático em prol da edificação do Estado. (…) E foi só depois de desaparecida a grandeza ateniense que, em Alexandria, reapareceu a ciência jônica.”

O Estado aparece na teoria de Protágoras como fonte de todas as energias educadoras. Além disso, o Estado é uma grande organização educacional que impregna deste espírito todas as suas leis e instituições sociais.”

Foi entre estes 2 pólos – educação e poder – que o Estado dos tempos clássicos se realizou, em tensão constante. Esta tensão gera-se em todos os casos em que o Estado educa os homens exclusivamente para si. A exigência da consagração da vida individual aos objetivos do Estado pressupõe a concordância destes objetivos com o bem-estar do todo e de cada uma de suas partes, entendido corretamente.”

Segundo Protágoras, a educação para o Estado significa educação para a justiça. É precisamente neste ponto que, no tempo dos sofistas, se origina a crise do Estado, a qual se converte ao mesmo tempo na mais grave crise da educação. É superestimar a influência dos sofistas considerá-los, e isso ocorre com freqüência, os executores desta evolução. Aparece mais sensível nas suas doutrinas porque é nelas que se espelham com maior nitidez os problemas do tempo e porque a educação acusa com o maior vigor qualquer perturbação da autoridade legítima.”

a guerra do Peloponeso foi uma prova final para o crescente e irresistível poder de Atenas. Após a morte de Péricles, afetou gravemente a autoridade do Estado e o próprio Estado até, e tornou apaixonada a luta pelo poder interno. Ambos os partidos utilizaram a retórica e a arte de discutir dos sofistas. Mas não se pode afirmar que pelas suas concepções políticas os sofistas deveriam necessariamente pertencer a um dos partidos.” “de uma simples luta de partidos converteu-se numa luta espiritual que corroía os princípios fundamentais da ordem vigente.”

Cálicles impugna a educação segundo o espírito de Protágoras, i.e., segundo o espírito dos ideais tradicionais da <justiça>, com um pathos que deixa transparecer com paixão uma transmutação total de todos os valores.”

Desde a meninice que tratamos como leões os melhores e mais poderosos de nós: oprimimo-los, enganamo-los e subjugamo-los, ao dizer-lhes que devem contentar-se com ser iguais aos outros e que é isto o nobre e o justo. Quando, porém, surge um homem de natureza realmente poderosa, sacode tudo isto, rompe as cadeias e liberta-se, calcando aos pés todo o nosso amontoado de letras e sortilégios, as nossas artes mágicas e as nossas leis contra a natureza; e ele, o escravo, levanta-se e aparece como senhor nosso: é então que brilha em todo o seu esplendor o direito da natureza.”

Górgias, 483 E

Palavras tão belas e sinceras quanto perigosas e ambíguas. Toda a ciência política moderna gravitará em torno delas, interpretando-as bem ou mal.

o conceito de direito, no sentido da lei, perdeu a sua íntima autoridade moral. Na boca de um aristocrata ateniense, é o anúncio declarado da revolução. Com efeito, o golpe de estado de 403, depois da derrota de Atenas, estava animado deste espírito.”

Para a consciência atual, a política e a moral pertencem, com ou sem razão, a 2 reinos separados, e as normas de ação não são as mesmas em ambos os domínios. Nenhuma tentativa teórica para superar essa cisão pode mudar qualquer coisa no fato histórico de que a nossa ética provém da religião cristã e a nossa política do Estado antigo.” “Esta divergência, sancionada pelos séculos e em relação à qual a filosofia moderna várias vezes tentou fazer da necessidade virtude, era desconhecida dos gregos.” “era (…) quase uma tautologia a convicção de que o Estado era a única fonte das normas morais” Maldito rebelde de Nazaré!

Devemos abstrair-nos aqui da nossa idéia de consciência pessoal. Também ela é oriunda da Grécia, mas desabrochou em época muito posterior. Só havia 2 possibilidades para os bregos do séc. V: ou a lei do Estado é a norma suprema da vida humana e está em concordância com a ordenação divina da existência, de tal maneira que o Homem e o cidadão são uma e a mesma coisa; ou as normas do Estado estão em contradição com as normas estabelecidas pela natureza ou pela divindade, caso em que o Homem pode deixar de reconhecer as leis do Estado.” // Sófocles, Antígona

É no momento em que se cava o abismo entre as leis do Estado e as leis cósmicas que se abre o caminho que leva ao cosmopolitismo da época helenística.”

Senhores, todos quantos aqui estais presentes, sois a meus olhos semelhantes, parentes e concidadãos, não pela lei, mas pela natureza. Segundo a natureza, o semelhante é parente do semelhante; mas a lei, tirano dos homens, força a muitas coisas contra a natureza.”

Protágoras, 337 C

Hípias quer estender a igualdade e a fraternidade a todos os seres que têm rosto humano. Do mesmo modo se exprime o sofista ateniense Antifonte no seu livro A Verdade, de que recentemente se acharam numerosos fragmentos.(*) Bárbaros e Gregos, temos todos a mesma natureza, em todos os aspectos.

(*) Oxyrh. Pap. XI n. 1364 Hunt, publicado já em DIELS, Vorsok, II (Nachtr. XXXIII) frag. B col. 2, 10 ss. (4ª ed.).”

Este ideal de igualdade internacional, tão alheio à democracia grega, representa a mais extrema oposição às críticas de Cálicles.”

Do ponto de vista da política realista, as teorias de Antifonte e de Hípias, com as suas idéias de igualitarismo abstrato, não representavam, de momento, grande perigo para o Estado vigente.”

Já nos poemas homéricos podem-se enxergar os vestígios mais antigos desta maneira de pensar, que estava bem de acordo com o espírito grego. A sua aptidão inata para considerar as coisas na sua totalidade podia atuar de maneiras muito diferentes no pensamento e na conduta do Homem.” “Um preferia morrer heroicamente a perder o seu escudo. Outro abandonava-o e comprava um novo, pois a vida era-lhe mais querida.”

Se queremos viver num Estado, temos de nos conformar às suas normas. Mas acontecerá o mesmo se quisermos viver em outro. A lei carece, pois, de força compulsiva absoluta.”

se falta a coação interna, se a justiça consiste só na legalidade externa dos usos de comportamento e no evitar o prejuízo da pena, então não há qualquer motivo para proceder segundo a lei, nos casos em que não há ocasião nem perigo de faltar às aparências e em que não existem testemunhas da nossa ação.”

as palavras de Aristóteles na Política, segundo as quais é melhor para o Estado ter leis ruins, mas estáveis, do que leis em contínua mudança, por melhores que sejam. A penosa impressão do forjamento de leis pela massa e da luta dos partidos políticos, com todas as suas contingências e fraquezas humanas, tinha forçosamente de abrir o caminho ao relativismo.” Vivemos nesse quadro desolador.

Nem todos os sofistas aceitaram tão aberta e integralmente o hedonismo e o naturalismo. Protágoras não o podia ter aceitado, pois nega da maneira mais decidida ter partilhado este ponto de vista, quando Sócrates procura levá-lo a ele, no diálogo platônico do seu nome, e só a sutil dialética socrática consegue que o varão venerável acabe por confessar que deixou aberta na sua doutrina uma brecha por onde o hedonismo, que ele recusava, podia penetrar.”

O simples conceito de <obediência à lei>, que nos primeiros tempos da constituição do novo Estado jurídico fôra um elemento de liberdade e de grandeza, já não era suficiente para exprimir as exigências da nova e mais profunda consciência moral.”

2.4 Eurípides e o seu tempo

Entre Eurípides e Sófocles pusemos a sofística de permeio, visto que, nos dramas que se conservaram e que pertencem todos aos seus últimos anos, o <poeta do iluminismo grego>, como foi chamado, está impregnado das idéias e da arte retórica dos sofistas.” “A sofística tem uma cabeça de Jano, da qual um dos rostos é o de Sófocles e o outro o de Eurípides.” “Sófocles caminha sobre os íngremes píncaros dos tempos. Eurípides é a revelação da tragédia cultural que arruinou a sua época.”

Nunca as múltiplas ramificações do povo heleno – que só tardiamente se atribuíram esse nome comum – tinham na sua história vivido uma tal concentração de forças estatais, econômicas e espirituais, como a que na Acrópole produziu o maravilhoso Pártenon, para honrar a deusa Atena, desde então considerada a alma divina do seu Estado e do seu povo.”

Quanto maior era a grandeza com que a época se manifestava em todos os seus empreendimentos, e a elasticidade, reflexão e entusiasmo com que cada indivíduo se consagrava às suas próprias tarefas e às da comunidade, tanto mais intensamente se sentia o inaudito crescimento da mentira e da hipocrisia – por cujo preço se comprava aquele esplendor – e a íntima insegurança de uma existência que se via forçada a todos os esforços para alcançar o progresso externo.”

Na sua atitude puramente clínica, essa análise da enfermidade constitui um paralelo emocionante com a célebre descrição da peste que nos primeiros anos da guerra minou a saúde física e a resistência do povo.”

a recordação das revoluções passadas e das paixões associadas a elas aumenta a gravidade dos nossos próprios transtornos.”

a amplitude e a popularidade de uma cultura não-erudita, mas vivida simplesmente, tal como existe na Atenas da 2ª metade dos sécs. V e IV, é fenômeno único na História e talvez só tivesse sido possível nos estreitos limites de uma comunidade citadina em que o espírito e a vida pública chegaram a uma interpenetração tão perfeita.”

A transformação que a poesia operou nos banquetes (que já não eram mera ocasião para a bebida, a exaltação e o divertimento, mas sim um foco da vida espiritual mais séria) mostra bem a mudança enorme que desde os tempos aristocráticos se operou na sociedade.” “A luta de morte entre a educação antiga e a nova educação libertária e sofística penetra nos banquetes do tempo de Eurípides e marca-o como etapa decisiva na história da educação.”

De fato, em comparação com uma atmosfera tão inquieta como a de Atenas, na qual pululavam todos os germes daquelas críticas da tradição e onde qualquer indivíduo exigia no campo do espírito uma liberdade de pensamento e de palavra análoga à que a democracia outorgava aos cidadãos na assembléia do povo, pouco significava, em suma, a rude ousadia emancipadora de alguns poetas ou pensadores isolados, no meio de uma comunidade citadina que vivia dentro das normas habituais. Aquilo era completamente estranho e alarmante para a essência do Estado antigo, mesmo na sua fora democrática, e tinha necessariamente de produzir um choque entre esta liberdade individualista não-garantida por nenhuma instituição e as forças conservadoras do Estado. Assim se viu no processo movido a Anaxágoras, sob acusação de impiedade, ou em ataques ocasionais contra os sofistas, cujas doutrinas iluministas eram em parte francamente hostis ao Estado. Geralmente, porém, o Estado era tolerante para com todos os movimentos espirituais e orgulhava-se até da nova liberdade dos seus cidadãos. Não devemos esquecer que a democracia ateniense daquela época e das seguintes serviu a Platão de modelo para a sua crítica da constituição democrática, por ele considerada uma anarquia intelectual e moral.”

A acusação contra o filósofo Anaxágoras era antes dirigida contra seu protetor e partidário, Péricles.”

Ganhou foros de cidadania o espírito estrangeiro, que originariamente era um meteco. Mas desta vez não foram os poetas que entraram em Atenas, embora não faltassem também, pois Atenas assumira a direção incontestada em tudo o que se referia às massas.”

Durante a sua juventude, Platão seguiu Crátilo, discípulo de Heráclito. [mais detalhes em 3.3]

Não se fala dos que não viveram em Atenas ou lá não apareceram com freqüência.”

o Estado, a religião, a moral e a poesia. O Estado racional realiza na concepção histórica de Tucídides a sua última façanha espiritual, em que eterniza a sua essência. Por isso, o grande historiador permanece mais confinado ao seu tempo que os seus 2 grandes concidadãos. O seu profundo conhecimento disse, aliás, menos à Grécia posterior do que a nós, pois não se repetiu tão cedo como ele teria podido pensar a situação histórica para a qual escreveu a sua obra.”

Eurípides é o último poeta grego, no sentido antigo da palavra. Mas também ele tem um pé num campo distante daquele em que a tragédia grega nasceu. A Antiguidade o chamou o filósofo do palco.”

Para definir a atitude dessa época historicista e racional em face do mito, temos o fato significativo de o historiador Tucídides sustentar que a investigação da verdade não é nada menos que a destruição do mito.”

Ésquilo já não tinha adaptado as antigas sagas às representações e aos anseios do seu tempo? Não tinha Sófocles, por razões semelhantes, humanizado os antigos heróis? E a assombrosa renovação, no drama dos últimos 100 anos, do mito que já parecia morto na epopéia mais tardia, o que era ela senão a transfusão de sangue e vida nova ao corpo daquele mundo longo tempo exânime?”

É evidente que convinha mais à consciência grega a projeção do mito num mundo fictício e idealizado, convencional e estético, como o da lírica coral do séc. VI e dos últimos tempos da epopéia, do que a sua adaptação à realidade comum, que, comparada ao mito, correspondia para o espírito grego ao que nós entendemos por profano.”

Como em toda a poesia grega verdadeiramente viva, a forma surge em Eurípides organicamente de um conteúdo determinado, é inseparável dele e é por ele condicionada na própria formação lingüística da palavra e na estrutura da frase.” “As novas formas que contribuíram para a formação do drama de Eurípides foram o realismo burguês, a retórica e a filosofia. Esta mudança de estilo tem o maior alcance para a história do espírito, pois anuncia-se nela o futuro domínio destas 3 forças decisivas para a formação do helenismo posterior.”

Para a época de Eurípides, o aburguesamento da vida significava o mesmo que para nós a proletarização. Muitas vezes faz alusão a ele quando faz entrar em cena, em vez dos heróis trágicos do passado, mendigos maltrapilhos. Era precisamente contra esta degradação da alta poesia que os seus adversários se insurgiam.”

Discute-se o casamento. São trazidas à luz da publicidade as relações sexuais, que durante muitos séculos tinham constituído um noli me tangere da convenção. São uma luta, como qualquer relação na natureza. Não reina aqui, como sempre sobre a Terra, o direito do mais forte? Assim, já na fábula de Jasão que abandona Medéia descobre o poeta os sofrimentos do seu tempo, e introduz nela problemas desconhecidos do mito original, incorporando-os à grandiosa plástica da representação. § Não eram precisamente Medéias as mulheres da Atenas de então. Eram para isso toscas e oprimidas demais ou cultas demais. Por isso escolhe o poeta a bárbara Medéia que mata os filhos com o intuito de ultrajar o marido infiel, para mostrar a natureza elementar da mulher, livre das limitações da moral grega. Jasão, que para a sensibilidade geral dos gregos era um herói sem mancha, ainda que não certamente um marido fiel, torna-se um covarde oportunista. Não age por paixão, mas sim por cálculo frio. Isso era necessário para fazer da infanticida do mito uma figura trágica. O poeta empresta-lhe toda a sua simpatia, em parte porque considera deplorável o destino da mulher, o qual fica eclipsado, à luz do mito, pelo fulgor do herói masculino, cujas façanhas e fama são as únicas dignas de louvor; mas sobretudo porque o poeta quer fazer de Medéia a heroína da tragédia matrimonial burguesa, tal como se manifesta na Atenas daquele tempo, embora não de forma extrema. (…) Medéia é um autêntico drama do seu tempo, pelo conflito entre o egoísmo ilimitado do homem e a ilimitada paixão da mulher. São essencialmente burguesas as disputas, os impropérios e os arrazoados de ambas as partes. Jasão ostenta prudência e generosidade. Medéia faz reflexões filosóficas sobre a posição social da mulher, sobre a desonrosa violência da entrega sexual a um homem estranho, a quem é preciso seguir no casamento e comprar por um rico dote. E explica que o parto dos filhos é muito mais perigoso e heróico que as façanhas dos heróis na guerra.”

Em Orestes – que não lembra em nada Ésquilo ou Sófocles – Menelau e Helena, de novo unidos após longa separação, regressam da sua viagem, no momento em que a pena pelo assassínio da mãe afunda Orestes numa comoção nervosa diante da ameaça de linchamento pela justiça popular. Orestes implora o auxílio do tio. Menelau puxa sua bolsa. Mas, embora se sinta compadecido no seu coração, é covarde demais para jogar por seu sobrinho e pela sobrinha Electra a sua felicidade, penosamente reconquistada. Sobretudo porque o seu sogro Tíndaro, avô de Orestes e pai da falecida Clitemnestra, está furioso e sedento de vingança. Isto completa o drama familiar. Movido pelos agitadores, o povo condena Orestes e Electra à morte, por falta de um defesa apropriada. É então que aparece o fiel Pílades, que jura matar a formosa Helena para vingar Orestes da conduta de Menelau. Isso, porém, não chega a acontecer, porque os deuses, que simpatizam com a heroína, raptam-na e a levam para o céu. Em vez dela, Orestes e Pílades querem assassinar-lhe a filha Hermíone e incendiar-lhe a casa. Impede-os, porém, o aparecimento de Apolo, como deus ex machina, e a peça acaba bem.”

A introdução da retórica na poesia é um fenômeno de não menos graves conseqüências. Era um caminho que levaria à total dissolução da poesia oratória.”

Assim como de início a prosa buscou na poesia os seus processos, mais tarde a própria prosa produziu uma reação na poesia.”

Os discursos de personagens míticos constituem um dos mais constantes exercícios das escolas retóricas, como o mostra a defesa de Palamedes por Górgias e o elogio que este faz de Helena.”

Foi atribuída a Antístenes uma luta retórica entre Ájax e Ulisses diante dos juízes, e a Alcidamante uma acusação de Ulisses contra Palamedes. Quanto mais aventuroso era o tema, mais apto estava a demonstrar a difícil arte <de converter a pior coisa na melhor>, ensinada pelos sofistas.”

A retórica sofista procura defender o direito do ponto de vista subjetivo do acusado, por todos os processos de persuasão.” “O antigo conceito de culpa era totalmente objetivo.” “Ésquilo e Sófocles ainda estão impregnados dessa antiga idéia religiosa, mas procuram atenuá-la, dando ao Homem sobre o qual recai a maldição uma participação mais ativa na elaboração do seu destino (…) Os personagens são <culpados> no sentido da maldição que pesa sobre eles, mas são <inocentes> para a nossa concepção subjetiva.”

O velho Sófocles apresenta-nos o seu Édipo em Colono, defendendo-se do decreto de expulsão promulgado pelos habitantes do lugar onde se acolheu, com a alegação da sua inocência e de que foi sem conhecimento nem vontade que cometeu os seus crimes de parricídio e incesto. Alguma coisa aprendeu de Eurípides a este respeito.”

Como sabemos, a subjetivação do problema da responsabilidade jurídica no direito penal e na defesa perante os tribunais do tempo de Péricles ameaçava esfumar as fronteiras entre a culpabilidade e a inocência.”

a Helena de Eurípides analisa o seu adultério e considera-o perpetrado sob a compulsão da paixão erótica.” // As Troianas, 948

A sua intelectualidade sensível, que parece débil em comparação com a força vital profundamente enraizada de Ésquilo, torna-se o instrumento espiritual de uma arte trágica que precisa cimentar e espicaçar, por meio de uma dialética febril, o seu arrebatamento subjetivo.”

A impiedosa crítica que os homens dirigem contra os deuses é um motivo que sempre acompanha a ação trágica, mas é sempre acidental.”

em As Troianas, os seus heróis, orgulho da nação, são desmascarados como homens de brutal ambição e animados de simples fúria de destruição.”

Eurípides desenvolve o elemento lírico que desde o início fôra essencial ao drama, mas o transpõe do coro para os personagens.”

A comédia, com as suas contínuas censuras à música moderna da arte de Eurípides, prova que perdemos com ela algo de essencial.”

Em As Bacantes, obra da velhice, o poeta atinge a elevação máxima da sua força lírica, com a irrupção elementar da embriaguez dionisíaca, que constitui, em todo o âmbito das nossas tradições antigas, a mais genuína manifestação desta estranha loucura orgiástica, e mesmo atualmente nos deixa pressentir com a maior nitidez a força de Dioniso nas almas arrebatadas por aquela fúria.”

Eurípides é o primeiro psicólogo.” “É a primeira vez que, com despreocupado naturalismo, introduz-se no palco a loucura”

Na Medéia e no Hipólito, descobre os trágicos efeitos da patologia erótica e da erótica deficiente. Em contrapartida, na Hécuba, descreve o efeito deformador da dor excessiva sobre o caráter, a espantosa e bestial degenerescência da nobre dama que tudo perdeu.”

O Homem já não quer nem pode submeter-se a uma concepção da existência que não o tome como medida última.”

A comédia infiltra-se cada vez mais nas cenas trágicas. A comédia de Menandro representa a continuação dessa tendência.”

Não é de se suspeitar de que foi precisamente por ter compreendido tudo a seu respeito e a respeito do seu mundo, com visão cética, que ele aprendeu a celebrar a felicidade da fé humilde dos antigos, baseada numa verdade religiosa que ultrapassava os limites da razão e que a ele próprio faltava?” “Eurípides é o criador de um tipo de arte que já não se fundamenta na cidadania, mas na própria vida.”

Os seus retratos mostram-nos a fronte negligentemente cercada de emaranhadas mechas de cabelo, tal como era típico das artes plásticas caracterizar as cabeças dos filósofos.”

Existem poetas infelizes na vida que na sua obra parecem completamente felizes. Sófocles conseguiu na vida aquela harmonia que a sua arte irradia.”

O prejuízo causado por Eurípides ao teatro ateniense é compensado pela sua incalculável ação sobre os séculos seguintes.”

2.5 A comédia de Aristófanes

Só a poesia nos permite apreender a vida de uma época em toda a riqueza das suas formas e tonalidades e na eternidade da sua essência humana. Daí o paradoxo, por outro lado perfeitamente natural, de talvez nenhum período histórico, nem sequer do passado mais próximo, poder ser apresentado e tão intimamente compreendido como o da comédia ática.”

A cena de Tersites na Ilíada, que expõe o repugnante e odioso agitador à troça pública, é uma cena genuinamente popular, uma pequena comédia entre as múltiplas tragédias que a epopéia homérica encerra. E na farsa divina que a contra-vontade representa o par de enamorados Ades e Afrodite, são os próprios deuses olímpicos que se tornam objeto das joviais gargalhadas dos expectadores.

O fato de que até os altos deuses pudessem ser tema e objeto do riso cômico prova que, no sentir dos gregos, em todos os homens e em todos os seres de forma humana reside, ao lado da força que leva ao pathos heróico e à grave dignidade, a aptidão e a necessidade do riso. Alguns filósofos posteriores definiram o Homem como único animal capaz de rir – embora na maioria das vezes ele seja definido como o animal que fala e pensa. Deste modo, colocam o riso no mesmo plano da linguagem e do pensamento, como expressão da liberdade espiritual. Se fizermos uma ligação entre o riso dos deuses homéricos e esta idéia filosófica do Homem, não poderemos negar a alta origem da comédia, apesar da menor dignidade deste gênero e dos seus motivos espirituais.”

O espírito moderno só conseguirá compreender o encanto ímpar da comédia aristofânica desde que se liberte do preconceito histórico que a encara apenas como uma primeira fase, genial mas ainda tosca e informe, da comédia burguesa.”

As vestes fálicas dos atores e os disfarces do coro, especialmente por meio de máscaras de animais – rãs, vespas, pássaros –, provêm de uma antiquíssima tradição, pois já se encontram presentes em velhos autores cômicos, em quem esta memória se mantém bem viva”

Dificilmente pode ser obra da pura casualidade o fato de que tenha sido Aristófanes o único sobrevivente da tríade de poetas cômicos – Cratino, Eupolis e ele – estabelecida como clássica pelos filólogos alexandrinos. Este cânon, procedente sem dúvida do paralelismo com a tríade dos poetas trágicos, era uma simples sutileza da história literária e não refletia o valor efetivo daqueles poetas, nem sequer para os tempos helenísticos.” “Platão teve razão em introduzir Aristófanes no Banquete, como representante exclusivo da comédia.” “Quando com a idade perdiam sutileza e engenho, fontes elementares do seu êxito, até os poetas preferidos eram vaiados sem compaixão. É esse o destino de todos os palhaços.”

Parece indubitável que até o velho bêbado Cratino, que Aristófanes, na parábase de Os Cavaleiros, propõe que seja retirado do palco urgentemente e conservado no Pritaneu até a morte, em estado de honorável embriaguez, baseava toda a sua força e todo o seu prestígio na sua sátira contra personagens políticos de notória impopularidade. É este o autêntico iambo antigo, nascido da sátira política. Mesmo Eupolis e Aristófanes, os brilhantes Dióscoros da jovem geração, que começaram como amigos, escrevendo as suas peças em colaboração, e acabaram como inimigos violentos, acusando-se mutuamente de plagiadores, são sucessores de Cratino nas suas invectivas contra Cléon e Hipérbolo.”

a sátira trivial à calvície de alguns espectadores, o ritmo indecente da dança do córdax, a galhofa das cenas de pancadaria, por meio das quais o autor disfarçava a idiotice das suas piadas.”

As Nuvens confessa abertamente o quanto se sente superior aos seus predecessores (e não apenas a eles) e em que medida confia no poder da sua arte e da sua palavra. Sente-se orgulhoso por introduzir todos os anos uma <idéia> nova, pondo simultaneamente a força inventiva da nova poesia cômica não só frente à antiga, mas também frente à tragédia, que operava constantemente sobre um material dado. (…) Um poeta cômico podia, com um desafio destes, concitar o interesse universal, do mesmo modo que um jovem político podia lançar-se brilhantemente encarregando-se da acusação num grande processo político de escândalo. Só era preciso ter coragem para isso.”

Foi na comédia que o excesso de liberdade gerou, por assim dizer, o seu próprio antídoto. Superou-se a si própria e estendeu a liberdade de expressão, a parrhesia, até às coisas e instâncias que mesmo as constituições mais livres consideram tabu.”

Em Atenas, a função censora pertencia à comédia. É isso que dá à graça de Aristófanes, a qual supera muitas vezes as suas chicotadas, a inaudita seriedade que se oculta por trás das suas alegres máscaras.”

O fato de que a educação tenha ocupado na comédia, apesar da agitação daqueles dias de guerra, um lugar tão amplo e mesmo predominante, ao lado da política, demonstra a sua enorme importância naquele tempo. Só através da comédia podemos chegar a conhecer a violenta paixão que gerou e as causas de que procede a luta pela educação.”

Quando a caricatura atingia os homens do governo com uma despreocupação artística análoga à imagem de Sócrates que As Nuvens nos apresenta, era humano que os atingidos empregassem a força para se defender, ao passo que os particulares, como Sócrates, estavam desamparados, como diz Platão, à mercê das troças populares da comédia.”

As palavras de Goethe em Poesia e Verdade descrevem perfeitamente os efeitos deste gênero de nostalgia do passado, na poesia. Causa universal prazer recordar com engenho a história de uma nação; congratulamo-nos com as virtudes dos nossos maiores e sorrimos perante as faltas que julgamos ter superado há muito tempo.”

Na Alemanha, foi com o despertar da vida política que despertou (sic) o interesse pela comédia política de Aristófanes. Mas só nas últimas décadas os problemas políticos chegaram a atingir a agudeza que tiveram em Atenas, no final do séc. V. Os dados fundamentais são os mesmos: estão em jogo as forças opostas da comunidade e do indivíduo, da multidão e da inteligência, dos pobres e dos ricos, da liberdade e da opressão, da tradição e do iluminismo.”

Tudo o que Aristófanes descreve pertence a um capítulo imoral: o humano, excessivamente humano. (…) O real dissolve-se continuamente numa realidade intemporal mais elevada, fantástica ou alegórica. O poeta alcança nisto a sua maior profundidade”

Aristófanes pinta em Os Comilões a ação deformadora do ensino sofístico sobre a juventude e nessa peça já vai muito mais ao fundo. Um camponês ático educou um dos filhos em casa, à moda antiga, e mandou o outro para a cidade, a fim de desfrutar as vantagens da nova educação. Este regressa transformado, moralmente corrompido e inútil para as tarefas do campo. (…) O pai fica consternado ao ver que ele já não sabe cantar nos festins as velhas obras de Alceu e Anacreonte. Em vez das antigas palavras de Homero, só entende as glosas às leis de Sólon, pois a educação política agora sobrepuja tudo. O nome do retórico Trasímaco aparece num verso em que se trata de uma discussão sobre o uso das palavras. Mas, em conjunto, a peça não parece ter ultrapassado os limites da troça inofensiva.”

O capricho da natureza tinha até cuidado da máscara cômica de Sócrates, dando-lhe um aspecto de sileno, de nariz chato, lábios protuberantes e olhos saltados.” “Embora na realidade quase todo o dia se passasse no mercado, misteriosamente colocou o seu Sócrates fantástico numa estreita tenda de pensador, onde, suspenso de um balanço sobre o pátio, e de pescoço torcido, investigava o <Sol>, enquanto os seus discípulos, sentados no chão, enterravam na areia os seus pálidos rostos, no intuito de perscrutarem o mundo subterrâneo. É costume estudar As Nuvens à luz da história da filosofia e, no melhor dos casos, desculpa-se Aristófanes. Summum ius, summa iniuria. É uma iniqüidade fazer com que o burlesco Sócrates da comédia compareça no tribunal da rigorosa justiça histórica. (…) O seu herói é um iluminista distante do povo e um homem de ciência ateu. Por meio de alguns traços tomados de Sócrates, personifica-se nesta figura o cômico típico do sábio vaidoso e satisfeito consigo próprio. § Para quem tem em mente a imagem que Platão nos dá de Sócrates, esta caricatura não tem graça. A autêntica graça está na descoberta de semelhanças ocultas, e aqui não enxergamos semelhança nenhuma.”

A ânsia de Sócrates pelos conceitos parecia superar até a dos sofistas. Não se pode exigir do poeta a quem o racionalismo em voga, sob qualquer forma que se apresentasse, parecia igualmente demolidor, finos matizes entre um e os outros. (…) Aristófanes vê com clarividência a dissolução de toda a herança espiritual do passado e não consegue contemplá-la impassivelmente. É certo que se teria visto na maior perplexidade se alguém lhe tivesse perguntado a sua <íntima convicção> a respeito dos deuses antigos. Mas, como poeta cômico, achava ridículo que os meteorólogos classificassem o éter de divino e procurava representar isso de modo vivo na prece de Sócrates ao Turbilhão (…) ou às Nuvens, cujas formas imateriais suspensas no ar apresentavam uma tão evidente semelhança com as doutrinas dos filósofos. (…) a atmosfera encontrava-se excessivamente saturada de ceticismo perante os resultados do pensamento humano”

ENVELHECEU MAL: “No tempo em que florescia o logos justo e se exigia uma conduta virtuosa, nunca se ouvia uma criança recalcitrar. Todas seguiam na rua ordeiramente a caminho da escola e não levavam capa, ainda que caíssem flocos de neve como flocos de farinha. Eram rigorosamente ensinadas a cantar velhas canções, com melodias dos antepassados. Se alguma cantasse com adornos e floreados, à moda dos músicos de agora, teria sido açoitada. Era assim que se educava uma geração como a dos vencedores de Maratona. Hoje enfraquecem-se as crianças, envolvendo-as em mantas, e uma pessoa arde em fúria ao ver a maneira mole e desleixada como os jovens seguram sobre o ventre os escudos, nas danças de armas das Panatenéias. O logos justo promete aos mocinhos que se entregam a ele e a sua educação ensiná-los a odiar a ágora e os banhos, a se envergonharem de toda conduta vergonhosa (sic), a se indignarem quando troçam deles, a se levantarem na presença dos anciãos e a lhes cederam o lugar, a honrarem os deuses e a venerarem a imagem da Modéstia, a não andarem com[o?] bailarinas e a não responderem ao pai. Devem exercitar-se no ginásio, untando com azeite o corpo vigoroso, em vez de discursarem na ágora ou se deixarem levar aos tribunais para discutirem sobre bagatelas. Coroados de canas, disputarão com camaradas belos e decentes as corridas sob as oliveiras da academia, cheirando a madressilva e a folhas de choupo; em seguida, gozarão a plenitude da primavera. O coro exalta os homens ditosos que viveram nos belos tempos antigos, em que reinava esta educação, e goza o doce aroma da sophrosyne que se desprende das palavras do logos justo.”

Os oradores da epopéia deram às normas ideais um sentido paradigmático e este uso foi seguido pela poesia mais antiga. Os sofistas aproveitam essa tradição e colecionam exemplos míticos, que ao seu relativismo naturalista e dissolvente podiam servir para todos os fins. Enquanto antes no tribunal a defesa procurava demonstrar que o caso estava em conformidade com a lei, agora ataca as leis e os costumes, e tenta demonstrar que são deficientes. A fim de rebater a afirmação de que os banhos quentes debilitam o corpo, o logos injusto aduz o herói nacional Hércules, o qual, para se regalar, pediu a Atena que fizesse brotar da terra fontes de água quente, nas Termópilas. Elogia o costume de permanecer e discursar na ágora, que o logos justo reprova, e para isso invoca a eloqüência de Nestor e de outros heróis homéricos.”

Se queres seguir o meu conselho, dá livre curso à natureza, salta e ri, não te detenhas ante o vergonhoso. Se fores acusado de adultério, nega a tua falta e invoca Zeus que também não teve força bastante para resistir a Eros e às mulheres. Não é possível que tu, simples mortal, sejas mais forte que um deus. É a mesma argumentação da Helena de Eurípides, ou da ama, no Hipólito. A discussão culmina no ponto em que o elogio tecido pelo logos injusto a sua moral relaxada provoca as gargalhadas do público.”

Qual era a posição do poeta na luta entre a velha e a nova educação? (…) Ele próprio foi beneficiário da educação moderna e a comédia seria inconcebível nos bons tempos antigos a que o seu coração pertencia e que, no entanto, o teriam vaiado.” Normal.

A evocação da antiga paideia não significa um convite a regressar ao passado. Aristófanes não é um reacionário dogmático e rígido. Mas o sentimento de se ver arrastado pela corrente do tempo e de ver substituído por algo de novo também valioso, era vigorosamente suscitado nesta época de transição e enchia de receio os espíritos clarividentes. Nada tinha a ver com o moderno conhecimento das linhas históricas e nem com a crença geral na evolução e no <progresso>.”

Para nós é paradoxal que este aspecto da nova educação seja escarnecido numa peça cujo herói é Sócrates. Na economia da comédia, pelo menos como chegou até nós, a própria cena da discussão entre o logos justo e o injusto pouco tem a ver com Sócrates, que, por outro lado, não estava presente. Mas o final de As Rãs prova que Sócrates é também, para o poeta, o protótipo de um novo espírito que matava o tempo com sofísticas sutilezas, abstrusas e minuciosas, desprezando os valores insubstituíveis da música e da tragédia.”

A crítica a Eurípides visa a toda a sua criação poética e converte-se finalmente numa quase perseguição.” “Ficou órfã a tragédia. Atingiu-se evidentemente uma encruzilhada histórica. Mais tarde, na comédia de Aristófanes, Gerytades, apareceram os tristes epígonos, o trágico Meleto, o ditirâmbico Cinesias e o cômico Sanírio, como enviados ao mundo subterrâneo para ali receberem o conselho dos grandes poetas. Assim a época ironizava a si mesma.”

Dioniso em pessoa desce ao mundo subterrâneo para de novo trazer Eurípides. Até o maior adversário do defunto era forçado a reconhecer que era este o desejo mais ardente do público. O seu deus Dioniso é a personificação simbólica do público do teatro, com todas as suas cômicas fraquezas, grandes e pequenas.” “Aristófanes abandona as suas troças anteriores, na maioria ocasionais e que teriam sido inadequadas àquele momento, para penetrar até o fundo do problema.” “A descida ao mundo subterrâneo era um tema predileto da comédia. Esta atitude põe As Rãs em contato com os Demoi de Êupolis, onde os antigos estadistas e estrategos atenienses são chamados do Hades para auxiliarem o Estado, mal-avisado. Pela união desta idéia com a do concurso dos poetas, Aristófanes chega a uma solução surpreendente: Dioniso, que desceu ao Hades para buscar Eurípides, traz por fim, depois de um triunfo de Ésquilo, em lugar do seu adversário, o velho poeta, para salvar a pátria.”

O que para os meninos é o mestre

que lhes mostra o reto caminho

isso nós, os poetas, somos para os adultos.

Por isso lhes devemos dizer sempre o que há de mais nobre.”

O Ésquilo de Aristófanes

E, embora Aristófanes saiba perfeitamente que Eurípides não é um espantalho, mas sim um artista imortal a quem a sua própria arte deve imensas coisas, e embora os seus sentimentos estejam de fato muito mais perto de Eurípides que de Ésquilo, seu ideal não pode ignorar que esta nova arte não está em condições de dar à cidade o que Ésquilo deu aos cidadãos do seu tempo, e que nenhuma outra coisa podia salvar a sua pátria na amarga necessidade do momento.”

Adeus, Ésquilo, sai já daqui,

vai salvar a cidade com sãos conselhos

e educar os néscios, que são inumeráveis.

Há muito a tragédia não era capaz de tomar a atitude e usar a linguagem que a comédia aqui ousa empregar. O seu âmbito vital era ainda a vida pública e o que nela se move, ao passo que a tragédia abandonara muito antes os seus profundos problemas e se refugiara na intimidade humana.”

2.6 Tucídides como pensador político

Não é Tucídides o primeiro dos historiadores gregos. Por conseguinte, o primeiro passo para compreendê-lo é tomar conhecimento do grau de desenvolvimento da consciência histórica. É claro que antes dele nada há que se lhe compare; e a História posterior enveredou por caminhos totalmente diversos, pois tomou a sua forma e os seus pontos de vista das tendências espirituais dominantes na sua própria época. Mas há ligação entre Tucídides e os seus predecessores.”

Tanto quanto sabemos, é Hecateu, oriundo, como os primeiros grandes fisiólogos, do centro cultural de Mileto, o primeiro que transfere a <pesquisa> da physis para a terra habitada, que até então fôra estudada apenas como parte do cosmos e na sua estrutura mais superficial e genérica.”

Foi Heródoto que deu o segundo passo: ainda mantém unitária a ciência dos povos e dos países, mas já situa o Homem no centro. Viajou por todo o mundo civilizado de então – Oriente Próximo, Egito, Ásia Menor e Grécia –, estudou a descreveu todos os tipos de costumes e maneiras estranhas e a maravilhosa sabedoria dos povos mais antigos, descreveu a magnificência dos seus templos e palácios e contou a história dos seus reis e de muitos homens importantes e notáveis, mostrando como neles se manifestavam o poder da divindade e os altos e baixos da mutável sorte humana. É pela sua referência ao grande tema da luta entre o Oriente e o Ocidente, desde a sua primeira manifestação no combate dos gregos com o vizinho reino da Lídia, no reinado de Creso, até as guerras pérsicas, que esta arcaica e variegada multiplicidade de dados ganha unidade. Com uma complacência e uma habilidade narrativa análogas às de Homero, relata para a posteridade, na sua prosa só aparentemente ingênua e despretensiosa – que os seus contemporâneos saboreiam como os antigos tempos saboreavam os versos da epopéia –, a glória dos feitos dos helenos e dos bárbaros.”

Tucídides é o criador da história política. Este conceito não se aplica a Heródoto, embora sejam as guerras pérsicas o ponto culminante da sua obra.”

Comparado com o vasto horizonte universal da descrição de povos e países por Heródoto, cuja serena contemplação se estende a todas as coisas divinas e humanas de toda a terra conhecida, é restrito o campo visual de Tucídides. Não se estende para além da esfera de influência da polis grega. Mas este objeto tão restrito está carregado dos mais graves problemas e é experimentado e analisado com a mais profunda intensidade.”

A história que Heródoto traça dos povos não teria, por si só, desembocado na história política. Mas Atenas, voltada para o presente e concentrada nele, cedo se viu arrastada num remoinho do destino, em que o pensamento político desperto viu-se forçado a completar-se com o conhecimento histórico, embora em sentido diverso e com conteúdo diferente: era necessário chegar ao conhecimento da necessidade histórica que empurrava a evolução da cidade de Atenas para a sua grande crise. Não é que a história se torne política; o pensamento político é que se torna histórico.”

fundamentalmente, só se preocupa com a guerra do Peloponeso, i.e., com a história vivida no seu próprio tempo. Ele próprio diz, no primeiro parágrafo do seu livro, que começou a sua obra com o começo da guerra, por estar convencido da importância daquele acontecimento.” “Era, pois, muito diferente daquilo que geralmente entendemos por historiador. E as suas excursões por terras do passado, por mais que apreciemos o seu sentido crítico, são sempre incidentais ou escritas para fazer sobressair, em contraste com o passado, a importância do presente. § O melhor exemplo disto é a chamada Arqueologia, no início do livro I. O seu fim primordial é demonstrar que o passado não tem importância”

Parece-lhe sem importância o passado dos povos gregos, mesmo nos seus empreendimentos mais elevados e mais famosos, porque a vida daqueles sempre era estruturalmente incapaz de uma organização estatal ou do poder digna deste nome. Não tinha tráfico nem comércio, no moderno sentido da palavra.” “As partes mais favoráveis do país eram precisamente as mais disputadas e os seus habitantes mudavam com a maior freqüência.” “O espírito desta pré-história é análogo ao das construções dos sofistas sobre o começo da civilização humana. (…) Encara o passado com uma visão de político moderno, i.e., do ponto de vista do poder. A própria cultura, a técnica e a economia são consideradas apenas como pressupostos para o desenvolvimento de um poder autêntico. Este consiste principalmente na formação de grandes capitais e extensas riquezas territoriais apoiadas num grande poderio marítimo. (…) O imperialismo de Atenas, do qual já pouco resta, dá-lhe a medida para a avaliação da história primitiva.

A história de Tucídides é de uma independência perfeita, tanto na escolha do ponto de vista como na aplicação destes princípios. Homero é estudado, sem quaisquer preconceitos ou romantismo, com o olhar de um político da força. O reino de Agamemnon é considerado por Tucídides o primeiro grande poderio helênico de que se tem notícia. De um verso de Homero, interpretado com exagero enorme, conclui com uma penetração inexorável que o seu império se estendeu através dos mares e foi sustentado por uma grande marinha. O catálogo dos navios da Ilíada desperta-lhe o maior interesse, e, apesar do seu ceticismo quanto às tradições poéticas, mostra-se disposto a aceitar as suas referências precisas sobre o potencial dos contingentes gregos na guerra de Tróia, porque confirmam as suas idéias sobre a falta de importância dos instrumentos de poder daquele tempo. (…) Com a entrada das ilhas e das cidades da Ásia Menor na liga ática, cria-se no mundo dos Estados gregos um poder capaz de contrabalançar o poderio de Esparta, até então predominante. A história subseqüente não é mais do que a competição entre estes 2 poderes, com os conseqüentes incidentes e conflitos, até que explode a guerra final, em face da qual as anteriores parecem brincadeiras de moleques.”

Novamente o bisonho problema do anacronismo em Jaeger.

O meu ponto de vista difere do de W. SCHADEWALDT (Die Geschichtschreibung des Thukydides, Berlim, 1929), que, de acordo com E. SCHWARTZ (Das Geschichtswerk des Thukydides, Bona, 1919), defende que a arqueologia é a parte mais antiga de Tucídides e tenta interpretar, a partir dela, o espírito do Tucídides anterior, <o discípulo dos sofistas>.”

Talvez a minha obra pareça pouco divertida por falta de lindas histórias. Será útil, no entanto, a todo aquele que queira formar um juízo adequado e examinar objetivamente o que aconteceu e o quê, de acordo com a natureza humana, acontecerá certamente no futuro, do mesmo modo ou de modo semelhante. Isto é mais uma aquisição de valor permanente do que uma peça de luxo para satisfação momentânea.”

A essência do acontecer histórico não reside para ele numa ética qualquer ou numa filosofia da história, nem numa idéia religiosa. A política é um mundo regulado por peculiares leis imanentes, que só se podem descobrir se considerarmos os acontecimentos, não isoladamente, mas em ligação com o seu curso total.”

O conceito de Tucídides sobre o conhecimento da história política não pode ser caracterizado melhor do que por umas célebres palavras do Novum Organon de Bacon, onde opõe à Escolástica o seu próprio ideal científico: Scientia et potentia humana in idem coincidunt, quia ignoratio causae destituit effectum. Natura enim non nisi parendo vincitur. Et quod in contemplatione instar causae est, id in operatione instar regulae est. [A ciência e a potência humana (política) coincidem,¹ uma vez que a ignorância da causa invalida seus efeitos. A natureza só pode ser vencida pelo conhecimento das causas. A causa (teórica) observada pelo método da contemplação nos conduz a operações regulares (regras práticas).]

[¹ Outra interpretação mais atual: as Humanidades e as Ciências Exatas. Ambas são objetos lógicos de estudo no infinito otimismo da era baconiana.]

A peculiaridade do pensamento de Tucídides sobre o Estado é a sua carência de qualquer doutrina abstrata, de qualquer fabula docet, ao contrário da concepção religiosa de Sólon e das filosofias do Estado dos sofistas ou de Platão. (…) A concepção de Tucídides seria inconcebível independentemente do tempo em que ele viveu.”

Buscar nos discursos de Tucídides os vestígios de algo realmente pronunciado na época é um empreendimento tão estéril como procurar descobrir nos deuses de Fídias determinados modelos humanos.”

O conceito de causa provém do vocabulário da Medicina (…) Foi ela que pela 1ª vez estabeleceu a distinção científica entre a verdadeira causa de uma enfermidade e o seu mero sintoma.”

O conhecimento desta causa tem algo de libertador, pois coloca aquele que o possui acima das odiosas lutas dos partidos e do espinhoso problema da culpa e da inocência. Mas também tem algo de opressivo, pois faz aparecer como resultantes de um longo processo, condicionado por uma mais alta necessidade

Von Ranke, História da Prússia, 2ª ed., 1871.

Como 2ª potência comercial da Hélade e, portanto, como naturais competidores de Atenas, os coríntios são os seus inimigos mais encarniçados. (…) Vemos surgir diante de nós uma imagem do caráter do povo ático de uma força nunca igualada por nenhum orador ateniense, ao tecer o louvor da sua pátria, nem sequer pela oração fúnebre de Péricles, composta livremente pelo próprio Tucídides, que dela conservou não poucos traços no discurso dos coríntios. Com certeza não se trata realmente de um discurso mantido pelos coríntios em Esparta, mas sim de uma criação essencialmente livre de Tucídides. Este louvor de um inimigo diante dos inimigos é uma peça de grande refinamento retórico que, além da sua imediata finalidade agitadora, desempenha para o historiador um papel importantíssimo: dá-nos uma análise incomparável dos fundamentos psicológicos do desenvolvimento do poderio de Atenas.”

Nos primeiros dias da guerra, a opinião pública via em Atenas a encarnação da tirania e em Esparta o refúgio da liberdade.”

O continuador de Tucídides, Xenofonte, prova até que ponto os contemporâneos estavam longe de compreender a idéia de uma legalidade imanente a todo o poder político.”

Assim como a tragédia grega se distingue do drama posterior pelo coro, cujas emoções refletem sem cessar o curso da ação e lhe acentuam a importância, também a narração histórica de Tucídides distingue-se da história política dos seus sucessores pelo fato de o assunto vir constantemente acompanhado de uma elaboração intelectual que o explica, converte os fatos em acontecimentos espirituais e por meio de discursos torna-os patentes ao leitor.”

Nem no resultado da campanha siciliana nem no resultado final da guerra reconhece ele uma obscura necessidade histórica. Podemos imaginar um tipo de pensamento histórico absoluto que julgue intolerável ver ali o efeito de uma necessidade, mas sim o resultado de um falso cálculo ou o simples jogo do puro acaso.”

LIVRO TERCEIRO: À PROCURA DO CENTRO DIVINO

3.1 Prólogo

A época helenística será tratada num livro à parte. Aristóteles, Teofrasto, Menandro e Epicuro deverão ser estudados no começo do período helenístico, cujas raízes de vida remontam ao séc. IV. Tal como Sócrates, Aristóteles é uma figura que marca a transição entre duas épocas. Em Aristóteles, porém, mestre dos sábios, a concepção da paideia sofre uma notável diminuição da sua intensidade, o que torna difícil situar esta figura ao lado da de Platão, o verdadeiro filósofo da paideia.”

Se isso dependesse apenas da vontade do autor, os seus estudos fechariam com uma descrição do vasto processo histórico pelo qual foi helenizada a cristandade e cristianizada a civilização helênica.” “Este livro sublinha muitas vezes que não foi pela destruição das suas bases prévias, mas sempre pela sua transformação, que a cultura grega evoluiu. (…) A regra de Fílon¹ dominou a cultura grega desde Homero até o neoplatonismo e os padres cristãos da baixa Antiguidade.”

¹ “20BC-circa 50AD), also called Philo Judaeus, was a Hellenist Jewish philosopher who lived in Alexandria, in Egypt. (…) He adopted allegorical instead of literal interpretations of the Hebrew Bible. (…) He represented the Alexandrian Jews in a delegation to the Roman Emperor Gaius Caligula following civil strife between the Alexandrian Jewish and Greek communities. (…) His ethics were strongly influenced by Aristotelianism and Stoicism, preferring a morality of virtues without passions

(…)

Some of Philo’s works have been preserved in Greek, while others have survived through Armenian translations, and a smaller amount survives in a Latin translation. Exact date of writing and original plan of organization is not known for much of the text attributed to Philo.”

Obras recomendadas: Against Flaccus, Embassy to Gaius, On the Eternity of the World. Cf. http://www.earlyjewishwritings.com/philo.html

O historiador deve deixar o filósofo resolver as suas antinomias. Isto não significa, porém, que a história do espírito seja um puro relativismo. Mas é indubitável que o historiador não se deve aventurar a decidir quem é que tem a verdade absoluta.”

Na baixa Antiguidade, os documentos escolhidos para serem conservados eram-no inteiramente em função de sua importância para o ideal da paideia, e praticamente deixava-se de lado qualquer livro que se considerasse falho de valor representativo, segundo este ponto de vista. A história da paideia grega está completamente fundida com a história da transmissão e conservação dos textos clássicos mediante manuscritos.”

JAEGER, Platos Stellung im Aufbau der grieschischen Bildung, Berlim, 1928.

______, Platos Staatsethik, Berlim, 1924. (ensaio)

______, Aristóteles

Os meus estudos preliminares para o capítulo sobre a medicina grega transcenderam os limites desta obra e foram publicados em livro separado (Diokles von Karystos).”

3.2 Século IV

A queda brusca de Atenas do alto da sua posição abalou o mundo helênico porque deixava nos limites do Estado grego um vazio difícil de preencher.” “É assombrosa a rapidez com que o Estado ateniense se recompôs da sua derrota e soube encontrar novas fontes de energia material e espiritual.” “Também agora Atenas continuava a ser – ou, antes, foi agora que ela começou a ser de verdade – a paideusis da Hélade.” “O séc. IV é a época clássica da história da paideia, se entendemos por esta o despertar de um ideal consciente de educação e de cultura. É com razão que coincide com um século tão problemático.” “O século anterior decorrera sob o signo da plena realização da democracia. Quaisquer que sejam as objeções contra a viabilidade política deste ideal jamais realizado de uma autonomia extensiva a todos os cidadãos livres, é indubitável que o mundo lhe deve a criação de uma personalidade humana responsável diante de si própria.” “O Estado ateniense não pareceu reconhecer o fato de o seu ideal, apesar da sua grande superioridade material, ter sucumbido na luta. Não é no terreno constitucional que se devem buscar os traços da vitória espartana, mas sim na órbita da filosofia e da paideia.” “Despontava a convicção de que Esparta era menos uma determinada constituição do que um sistema educacional aplicado até as suas últimas conseqüências.” “Isto sugeria a idéia de fazer da educação o ponto de Arquimedes, em que era necessário apoiar-se para mover o mundo político.” “Na literatura do séc. IV deparamos com todos os matizes da realização desta idéia, desde a admiração simplista e superficial do princípio espartano da educação coletiva até a sua recusa absoluta e a sua substituição por um ideal novo e superior de formação humana e de ligação do indivíduo à coletividade.” “o caráter privado de toda a anterior educação de Atenas aparecia como um sistema fundamentalmente falso e ineficaz, que devia ceder o passo ao ideal da educação pública, embora o próprio Estado não soubesse fazer o mínimo uso desta idéia. Mas a mesma idéia abriu largo caminho através da filosofia, que a assimilou” “Aconteceu o que na História acontece tantas vezes: a consciência salvadora chegou tarde.”

Licurgo, Discurso contra Leócrates

A sua caminhada em direção a uma nova paideia partiu da convicção de que era necessário um ideal novo e mais alto do Estado e da sociedade, e acabou por ser a busca de um novo Deus.” O eterno cotejo Protágoras x Platão.

A poesia perdeu o seu poder de direção da vida espiritual. O público exige em proporção cada vez maior a representação regular das obras procedentes dos velhos mestres do séc. anterior, e a lei acaba por ordená-la.”

A comédia definha e já não é a política que ocupa o centro dela. É com facilidade excessiva que temos tendência a esquecer que foi ainda imensa a produção poética desta época, sobretudo em matéria de comédias. É que a tradição sepultou todos estes milhares de obras. Só se conservaram as dos prosadores: Platão, Xenofonte, Isócrates, Demóstenes e Aristóteles, além das de não raros autores secundários.” “É tão significativa a supremacia espiritual da prosa sobre a poesia, que ela acaba por extinguir totalmente pelos séculos afora a recordação desta.”

Os discursos de Isócrates e de Demóstenes permitem-nos tomar parte na história dos sofrimentos e na problemática do Estado grego, nesta fase final da sua vida. E é com os escritos docentes de Aristóteles que pela 1ª vez a ciência e a filosofia gregas patenteiam à posteridade o interior do laboratório das suas investigações.”

Uma história da literatura que partisse da simples forma do eidos estilístico não conseguiria captar esta unidade vital interior da época.” “O triunfo da prosa sobre a poesia foi obtido graças à aliança entre as vigorosas forças pedagógicas, que já na poesia grega atuavam cada vez em maior grau, e o pensamento racional da época, que penetrava agora cada vez mais fundo nos verdadeiros problemas vitais do Homem. Finalmente, o conteúdo filosófico e imperativo da poesia despoja-se da sua forma poética e modela no discurso livre uma nova forma que corresponde mais perfeitamente a suas necessidades, e chega até a ver nessa forma um tipo novo e superior de poesia.”

a nova orientação implica um perigoso isolamento do espírito e um fatal menosprezo da sua função de cultura coletiva.” “são poucos os que injetam sangue na massa; e falham no instante decisivo. É fácil dizer que as pessoas cultas teriam podido transpor este abismo, por si próprias. Platão, a mais importante figura da época e a que viu mais claramente que nenhuma outra o problema da estrutura da comunidade e do Estado em conjunto, tomou na sua velhice a palavra sobre este tema e explicou por que não conseguira trazer uma mensagem para todos.” “O que acontece é que os esforços se concentravam primeiro no problema do modo como se podiam formar os governantes e os guias do povo, e só em segundo lugar nos meios pelos quais estes homens dirigentes podiam formar o conjunto do povo.” Além da formação do líder político, a formação do rebanho.

3.3 Sócrates

Do homem de carne e osso e do cidadão ateniense nascido em 469 a.C. e condenado à morte e executado no ano 399 a.C. poucos traços ficaram gravados na história da humanidade, quando esta o elevou à categoria de um dos seus poucos <representantes>. Para a formação desta imagem não contribuíram tanto a sua vida e a sua doutrina, se é que realmente professava alguma, como a sua morte, sofrida por causa das suas convicções. A posteridade cristã outorgou-lhe a coroa de mártir pré-cristão, e o grande humanista da época da Reforma, Erasmo de Roterdam, incluía-o ousadamente entre os seus santos e orava: Sancte Socrates, ora pro nobis!

Na Idade Média, Sócrates não fôra mais que um nome famoso transmitido à posteridade por Aristóteles e Cícero. A sua estrela começa agora a se elevar, enquanto a de Aristóteles, o príncipe da Escolástica, entra em declínio. Sócrates torna-se o guia de todo o Iluminismo e de toda a filosofia moderna; o apóstolo da liberdade moral, separado de todo dogma e de toda tradição, sem outro governo além daquele da sua própria pessoa e obediente apenas aos ditames da voz interior da sua consciência”

Escrever a história da representação de Sócrates seria uma empresa gigantesca. O mais eficaz será fazê-lo segundo determinados períodos. Uma tentativa deste gênero encontra-se, p.ex., na obra de Benno BÖHM, Sokrates im 18. Jahrhundert: Studien zum Werdegang des modernen Persönlichkeitsbewusstseins [Sócrates no século XVIII: Estudos sobre o desenvolvimento da consciência da personalidade moderna], Leipzig, 1929.”

No entanto, seria uma posição completamente falsa crer que todo este empenho em edificar sob a égide de Sócrates uma nova <humanidade> terrena fosse dirigida contra o Cristianismo, em vez do que se fizera na Idade Média, ao colocar Aristóteles como o fundamento de toda a filosofia cristã. Pelo contrário, ao filósofo pagão era agora confiada a missão de contribuir para criar uma religião moderna, em que o conteúdo imperecível da religião de Jesus se fundisse com certos traços essenciais do ideal helênico do homem.” “quando veio a Reforma, com o seu esforço por levar a sério, pela 1ª vez, a volta à forma <pura> do Evangelho, surgiu como reação e contrapartida o culto socrático da época <iluminada>. Esse culto, porém, não pretendia desbancar o Cristianismo, antes lhe infundia forças que naquela época se julgavam indispensáveis. Até o pietismo, produto da reação do sentimento cristão puro contra uma religião cerebral e teológica já exaurida, abrigava-se junto a Sócrates e julgava descobrir nele uma certa afinidade espiritual.”

Foi nos nossos dias, a partir do momento em que Nietzsche se desligou do Cristianismo e proclamou o advento do super-homem, que o sábio ateniense teve de pagar o ilimitado poder que desde o início da Idade Moderna exercera, como protótipo da anima naturaliter christiana. À força de aparecer ao longo dos séculos vinculado a ele, Sócrates parecia tão indissoluvelmente unido àquele ideal cristão de vida dualista, desdobrada em corpo e alma, que não se podia imaginar como não sucumbiria com ele. Ao mesmo tempo, na tendência anti-socrática de Nietzsche renascia, sob nova forma, o velho ódio do humanismo erasmiano contra o humanismo conceitual dos escolásticos.”

Eduard Zeller, História da filosofia grega

Dizer pré-socrático equivalia a dizer pré-filosófico, uma vez que os pensadores do mundo arcaico eram agora fundidos com a grande poesia e a grande música da sua época, para formarem o quadro da <época trágica> dos gregos.”

…Deste modo, Sócrates era apeado do pedestal firme, embora sem ser de 1ª categoria, onde o colocara a filosofia idealista do séc. XIX, de acordo com a sua própria imagem da História, e de novo se via arrastado para o turbilhão das lutas do presente. (…) A luta travada por Nietzsche é, depois de muito tempo, o 1º indício de que a antiga força atlética de Sócrates permanece intacta e ameaça, mais que nenhuma outra, a segurança interior do super-homem moderno. (…) Ninguém teria mais direito a ser compreendido a partir da sua própria <situação> do que o próprio Sócrates, um homem que não quis deixar à posteridade nem uma só palavra escrita por sua mão, pois se entregou por completo à missão que o seu presente lhe apontava. Esta situação da sua época, que Nietzsche, na sua luta implacável contra os excessos da extrema racionalização da vida moderna, não tinha interesse nem paciência para compreender em detalhe, foi por nós exposta com todo o rigor como a <crise do espírito ático> (pp. 283-ss.) [LIVRO SEGUNDO].”

Entre os especialistas modernos que situam o nascimento dos diálogos socráticos como forma literária já em vida do próprio Sócrates, citaremos apenas Constantin RITTER, Platon (Munique, 1910), t. I, p. 202, e WILAMOWITZ, Platon (Berlim, 1919), t. I, p. 150. Esta hipótese cronológica sobre os primeiros diálogos platônicos está relacionada com a concepção que os citados autores têm da essência e do conteúdo filosófico destas obras.”

A semelhança entre as condições em que nasce a literatura socrática e aquelas de que datam os mais antigos relatos cristãos sobre a vida e a doutrina de Jesus foi muitas vezes destacada e, de fato, salta à vista.”

O abalo deste acontecimento deixou na vida deles um traço fundo e forte. E tudo parece indicar que foi precisamente esta catástrofe que os levou a representar o seu mestre em escritos. Esta opinião foi fundamentada em detalhe, contra Ritter, por Heinrich MAIER, Sokrates (Tubing, 1913), pp. 106-ss. Também A.E. TAYLOR, Sócrates (Edimburgo, 1932; trad. esp. México, 1961), p. 10, adere ao seu ponto de vista.”

A socrática converte-se no eixo literário e espiritual do novo século e, depois da queda do poder temporal de Atenas, o movimento que dela nasce passa a ser a fonte mais importante do seu poder espiritual sobre todo o mundo.”

O retrato literário de Sócrates é a única imagem fiel, decalcada sobre a realidade viva de uma individualidade grande e original, que a era clássica grega nos transmitiu. E o móbil a que este esforço respondia não era a fria curiosidade psicológica nem a ânsia de proceder a uma dissecação moral, mas antes o desejo de viver o que nós denominamos personalidade, ainda quando à linguagem faltavam a idéia e o termo necessários à expressão deste valor.”

Cf. R. HIRZEL, Der Dialog (Lepzig, 1895), t. I, pp. 2-ss., sobre o desenvolvimento anterior do diálogo, e pp. 83-ss. sobre as formas dos diálogos socráticos e seus representantes literários.”

O círculo socrático durou poucos anos. Cada um dos discípulos aferrava-se apaixonadamente a sua concepção e surgiram até diversas escolas socráticas. É por este motivo que nos encontramos na situação paradoxal de até hoje não termos sido capazes de nos pôr de acordo quanto à verdadeira significação da sua figura, apesar de ser ele a personalidade de pensador da Antiguidade que chegou até nós com uma tradição mais rica.”

Platão, dramaturgo inato, já escrevera tragédias antes de entrar em contato com Sócrates. A tradição afirma que ele as queimou todas, quando, sob a impressão dos ensinamentos deste mestre, dedicou-se à investigação filosófica da verdade. Mas, quando, após a morte de Sócrates, resolveu manter viva, a seu modo, a imagem do mestre, descobriu na imitação artística do diálogo socrático a missão que lhe permitiria colocar o seu gênio dramático a serviço da filosofia.”

Os informes de Xenofonte só coincidem com os de Platão num pequeno trecho, para além do qual nos deixa sobre brasas, com a sensação de que Xenofonte peca por falta, enquanto, em contrapartida, Platão peca por excesso. Já Aristóteles inclinava-se a crer que a maior parte dos pensamentos filosóficos do Sócrates de Platão devem ser considerados doutrina deste e não daquele.” “Creio que K. von FRITZ (Rheinisches Museum, t. 80, pp. 36-8) aduz novas e concludentes razões contra a autenticidade da Apologia de Xenofonte.”

Xenofonte conheceu a venerou Sócrates na sua juventude, sem nunca, porém, ter chegado a incluir-se entre os seus verdadeiros discípulos.” “Xenofonte não tornou a ver Sócrates. Foi algumas décadas mais tarde que escreveu as suas obras socráticas. A única que parece anterior é a que agora se conhece com o nome de <Defesa>.(*) Trata-se de uma alegação em defesa de Sócrates contra uma <acusação>, segundo todas as aparências puramente literária e fictícia, e onde se julgou descobrir um folheto do sofista Polícrates, publicado durante a década de noventa do séc. IV.(**) A este folheto responderam sobretudo Lísias e Isócrates, e pelas Memoráveis de Xenofonte chegamos à conclusão de que também ele tomou a palavra por aquele motivo.

(*) Seguindo H. MAIER e outros, aplicamos este nome aos 2 primeiros capítulos das Memoráveis de XENOFONTE.

(**) Xenofonte fala sempre do <acusador> no singular, enquanto Platão, na Apologia,¹ se refere sempre aos <acusadores> no plural, como corresponde realmente à situação gerada durante o processo. É certo que, no princípio, Xenofonte refere-se também à acusação judicial, mas depois dedica-se principalmente a refutar as censuras feitas posteriormente a Sócrates, segundo nos informam outras fontes, no panfleto de Polícrates.”

¹ https://seclusao.art.blog/2019/10/18/apologia-de-socrates-atualizado-e-ampliado/

Temos um exemplo de como Xenofonte incorporou mais tarde numa unidade mais ampla um escrito concebido nas suas origens como independente, no princípio das Helênicas (1-II, 2). Originariamente esta parte propunha-se a acabar a obra histórica de Tucídides. Termina, como é natural, com a guerra do Peloponeso. Mais tarde, Xenofonte ligou com este escrito o seu relato da história da Grécia de 404 a 362.”

Nos diálogos de Platão, Sócrates aparece como filósofo que expõe a teoria das idéias, pressupondo-a expressamente, como algo familiar ao círculo dos seus discípulos.”

Aristóteles (…) fornece indicações importantes sobre a relação que existe entre Sócrates e Platão:

Na primeira época dos seus estudos, Platão seguira os ensinamentos de Crátilo, discípulo de Heráclito, o qual ensinava que na natureza tudo flui e nada possui uma consistência firme e estável. Quando conheceu Sócrates, Platão viu abrir-se diante de si outro mundo. (…) Platão acabou por se persuadir que ambos, Sócrates e Crátilo, tinham razão, dado que se referiam a dois mundos completamente diversos. (…)

(…) nos diálogos que (…) devem ser considerados como as primeiras obras de Platão, todas as investigações de Sócrates assumem a forma de perguntas e respostas sobre conceitos universais: O que é a coragem? O que é a piedade? O que é o autodomínio? E até o próprio Xenofonte nota expressamente, embora só de passagem, que Sócrates desenvolvia incessantes investigações desse tipo, esforçando-se por chegar a uma determinação dos conceitos. (Mem., 6) (…) Mas, com o tempo, não podia satisfazer, pois o Sócrates que nos apresenta parece ser uma mediocridade e a sua filosofia dos conceitos uma banalidade. Era precisamente contra este pedante homem de conceitos que investiam os ataques de Nietzsche. Foi por isso que estes ataques não fizeram mais do que minar a confiança em Aristóteles como testemunho histórico, naqueles cuja fé na grandeza de Sócrates e na sua força revolucionária universal não se deixou abalar. Estaria Aristóteles tão desinteressado do problema das origens da teoria platônica das idéias, que ele próprio combate com tão grande violência? (…) Esta vacilação aparece caracterizada com clareza pelas 2 tentativas mais notáveis e mais cientificamente sistematizadas que nestes últimos anos se fizeram para penetrar no Sócrates histórico: a grande obra do filósofo berlinense H. Maier sobre Sócrates e os trabalhos da escola escocesa, representada pelo filólogo J. Burnet (Greek Philosophy, 1924, além do verbete ‘Socrates’ na Hastings Encyclopaedia of Religion and Ethics, vol. XI) e pelo filósofo A.E. Taylor (op. cit.).” “Como fontes históricas sobre o Sócrates real, Maier considera sobretudo os escritos <pessoais> de Platão: a Apologia e o Críton;¹ ao lado destes, reconhece como relatos de livre criação, mas no fundo fiéis à verdade, uma série de diálogos menores de Platão, tais como o Laques,² o Cármides,³ o Lísis,4 o Íon, o Eutífron6 e os dois Hípias.”

¹ https://seclusao.art.blog/2018/01/29/criton-ou-do-dever/

² https://seclusao.art.blog/2019/11/03/laques-ou-do-valor-ou-da-prevalencia-da-virtude-sobre-a-valentia-platao/

³ https://seclusao.art.blog/2019/11/25/carmides-ou-da-sabedoria/

4 https://seclusao.art.blog/2019/12/14/lisis-ou-da-amizade-amorosa/

6 https://seclusao.art.blog/2017/11/16/socrates-o-maior-dos-sofistas/

Sócrates proclama o evangelho do domínio do Homem sobre si próprio e da <autarquia> da personalidade moral. Isto faz dele a contrafigura ocidental de Cristo e da religião oriental da redenção.”

Não tem a mínima verossimilhança interna a pretensão de distinguir artificiosamente entre o Platão da primeira fase e o da última, para assim se chegar à conclusão de que só o primeiro se propõe [a] oferecer um retrato de Sócrates, enquanto o segundo toma-o só como máscara para expor a sua própria filosofia, tal como ela se desenvolveu ao longo dos anos. (…) Na realidade, já que não tencionava expor a doutrina de Sócrates, mas sim os seus próprios pensamentos, Platão abandona Sócrates como figura principal dos seus diálogos e a substitui por outras personagens estranhas ou anônimas. Sócrates era efetivamente tal como Platão o pinta: o criador da teoria das idéias, da teoria da reminiscência e da preexistência da alma, da teoria da imortalidade da alma¹ e da teoria do Estado ideal. Numa palavra: era o pai da metafísica ocidental.”

¹ Não grifo porque a teoria da imortalidade é um sine qua non da teoria das reminiscências e das idéias, bem como estas são sine qua non da primeira, ou seja, estão em inextricável dependência no corpus (supostamente socrático-)platônico.

Quem pretender descobrir no campo da teoria e do pensamento sistemático a sua grandeza terá de lhe atribuir demais, à custa de Platão, ou então duvidará radicalmente da sua importância pessoal. (…) a importância desta figura não vem continuar nenhuma tradição científica nem pode ser derivada de nenhuma constelação sistemática na história da filosofia. Sócrates é o homem do momento, num sentido absolutamente elementar. A sua volta sopra uma aragem verdadeiramente histórica.”

É a segunda vez que na história da Grécia o espírito ático invoca as forças centrípetas da alma helênica contra as suas forças centrífugas, opondo ao cosmos físico das forças naturais em luta, criação do espírito investigador da Jônia, uma ordem dos valores humanos. Sólon descobrira as leis naturais da comunidade social e política. Sócrates embrenha-se na própria alma, a fim de penetrar no cosmos moral.”

Na idade madura, Sócrates viveu o apogeu do poder ateniense e o florescimento clássico da poesia e da arte de Atenas, e visitava a casa de Péricles e de Aspásia. Foram seus discípulos governantes tão discutidos como Alcibíades e Crítias.”

Sócrates era um grande amigo do povo, mas era considerado mau democrata. (…) era indubitável que ele tinha declarado defeituoso, como norma fundamental, o princípio socrático dominante em Atenas, segundo o qual o governo era incumbência da maioria do próprio povo (…) É caso para pensar que esta posição se ia formando dentro dele, diante da crescente degenerescência da democracia ateniense, durante a guerra do Peloponeso. Para quem, como ele, tinha sido educado no espírito dominante na época das guerras pérsicas e assistira ao apogeu do Estado, era forte demais aquele contraste para não provocar toda uma série de dúvidas críticas.” Um grande homem jamais deixará de ser um aristocrata no seu íntimo.

é importante compreender que na Atenas daqueles dias também se considerava atuação política o fato de permanecer à margem dos manejos políticos do momento e que os problemas do Estado determinavam de modo decisivo os pensamentos e a conduta de qualquer homem, sem exceção.”

Segundo os informes do Fédon,¹ Sócrates, através desta crítica da filosofia da natureza, chegava à teoria das idéias, a qual, no entanto, de acordo com os dados convincentes da Aristóteles, não se pode atribuir ainda ao Sócrates histórico.” Jaeger se contradiz.

¹ https://seclusao.art.blog/2019/01/25/fedon-ou-da-alma/

Na Antiguidade, qualquer referência de princípios à experiência, como fundamento de toda a ciência exata da realidade, estava sempre associada à Medicina (…) É da Medicina grega, e não da filosofia grega, que é filho o empirismo filosófico dos tempos modernos.”

Há uma certa analogia interior entre o diálogo socrático e o ato de se desnudar para ser examinado pelo médico ou pelo ginasta, antes de se lançar no combate, na arena. (…) O ateniense daqueles tempos sentia-se mais no seu meio no ginásio do que entre as 4 paredes da sua casa, onde dormia e comia. Era ali, sob a transparência do céu da Grécia, que diariamente se reuniam novos e velhos para se dedicarem ao cultivo do corpo.”

O palco, onde, em longo solilóquio, brilham os sofistas é a casa particular ou a sala improvisada. Em contrapartida, Sócrates é o cidadão simples, a quem todos conhecem. A sua ação passa quase despercebida; a conversa com ele agarra-se quase espontaneamente, e como sem querer, a qualquer tema de ocasião. Não se dedica ao ensino nem tem discípulos; assim o afirma, pelo menos. Só tem amigos, camaradas. A juventude sente-se fascinada pelo fio cortante daquele espírito, ao qual não há nada que resista.”

E quem julga que se pode retrair, intratável, perante ele, ou encolher os ombros com indiferença ante a forma pedante das suas perguntas ou a intelectual banalidade dos seus exemplos, não tarda a baixar da pretensa altura do seu pedestal. (…) Por outro lado, é compreensível que as nossas histórias escolares da filosofia deixem tudo isso de lado, por o considerarem meros adornos poéticos da imagem que Platão traça de Sócrates.”

É certo que o próprio Sócrates designa a sua <ação> – que palavra significativa! – pelos nomes de <filosofia> e <filosofar>; e, na Apologia platônica, afiança aos seus juízes que não se afastará dela enquanto viver e respirar. Mas não devemos dar a estas palavras o significado que vieram a ganhar em séculos posteriores, ao cabo de uma longa evolução (…) Toda a literatura dos socráticos se manifesta unanimemente contra esta possibilidade de separar a doutrina da pessoa.”

A palavra <alma>, pelas suas origens na história do espírito, tem sempre para nós uma conotação de valor ético ou religioso. Tem um tom cristão, como as expressões <serviço de Deus> e <cuidado da alma>. Ora, é nas prédicas protrépticas de Sócrates que a palavra <alma> adquire pela 1ª vez este alto significado.”

Se consultarmos a clássica obra-prima de Erwin Rohde, Psique, chegaremos à conclusão de que Sócrates não tem significado especial dentro deste processo histórico. Este autor passa-o por alto. Rohde, à p. 240, apenas nos sabe dizer de Sócrates, na única passagem da sua obra em que o cita, que ele não acreditava na imortalidade da alma. Para tal contribui o preconceito contra Sócrates, <o racionalista>, que Rohde já partilhara com Nietzsche desde a sua juventude”

BURNET, “The Socratic Doctrine of the Soul”, em Proceedings of the British Academy for 1915-6.

A origem da forma do discurso exortatório ou diatribe, como tal, remonta naturalmente aos tempos primitivos. No entanto, a forma educacional e moral da prédica que prevalece nas homilias cristãs ao lado da dogmática e da exegética adquire o seu caráter literário na socrática, que, por sua vez, remonta à protréptica oral de Sócrates.”

Seria a socrática uma antecipação do Cristianismo, ou poderá mesmo afirmar-se que com Sócrates irrompe na evolução do helenismo um espírito estranho, oriental, o qual, graças à posição da filosofia grega como grande potência educadora, se traduz logo em efeitos de envergadura histórica universal, impelindo à união com o Oriente?”

Quis-se atribuir a Sócrates a teoria da imortalidade do Fédon platônico e até a teoria da preexistência do Mênon,¹ mas estas duas idéias complementares têm origem claramente platônica. A posição socrática em face do problema da subsistência da alma aparece certamente bem-definida na Apologia, onde, em presença da morte, não se diz qual será a sua sorte depois desta.”

¹ https://seclusao.art.blog/2020/01/22/menon-ou-da-virtude-ou-da-inexistencia-de-uma-ciencia-politica-ultima-traducao-do-ciclo-platao-obras-completas-virginia-woolf-ao-final/

se aceitarmos a afirmação de Aristóteles de que a teoria das idéias não é de Sócrates mas de Platão, teremos de defender idêntica posição no que se refere à teoria da imortalidade do Fédon, que se baseia na teoria das idéias.”

têm origem puramente helênica todos os traços aliciantes que na prédica socrática nos parecem cristãos. (…) É na poesia e na filosofia que floresce a evolução religiosa superior do espírito grego, e não no culto dos deuses, que costumamos encarar quase sempre como o conteúdo principal da história da religião helênica.”

É indubitável que a religião dionisíaca e órfica dos gregos, bem como a dos mistérios, apresentam certas <fases preliminares> e analogias; mas não se pode explicar este fenômeno dizendo que as formas socráticas do discurso e da representação derivam de uma seita religiosa que se pode afastar a seu bel-prazer como estranhas aos gregos, ou aceitar como oriental. Tratando-se de Sócrates, o mais sóbrio dos homens, seria verdadeiramente absurdo pressupor a existência de uma influência eficaz destas seitas orgiásticas nas camadas irracionais da sua alma.”

A alma de que Sócrates fala só pode ser compreendida com acerto se é concebida em conjunto com o corpo, mas ambos como dois aspectos distintos da mesma natureza humana.”

Sócrates não pode crer que só o Homem tenha espírito.”

A virtude física e a virtude espiritual não são, pela sua essência cósmica, mais do que a <simetria das partes> em cuja cooperação corpo e alma assentam. É a partir daqui que o conceito socrático do <bom>, o mais intraduzível e o mais exposto a equívocos de todos os seus conceitos, se diferencia do conceito análogo na ética moderna. Será mais inteligível para nós o seu sentido grego se em vez de dizermos <o bom> dissermos <o bem>, acepção que engloba simultaneamente a sua relação com quem o possui e com aquele para quem é bom.” Não melhora muito, sinceramente… Pelo contrário, até piora: além do bem e do mal; o bem desta frase já se tornou estanque. Já em o espírito superior é bom, é o melhor, depreende-se que ele é bom porque é mais que os outros homens, está acima do ruim (não mau, porém estragado).

Se o conceito da vida, do bios (que designa a existência humana, não como um simples processo temporal, mas como uma unidade plástica cheia de sentido, como uma forma consciente de vida) ocupa doravante uma posição de tão grande relevo na filosofia e na ética, é à vida real do próprio Sócrates que, numa parte muito considerável, isso se deve. A sua vida foi uma antecipação do novo bios, baseado integralmente no valor interior do Homem.”

A sua descoberta da alma não significa a separação dela e do corpo, como tantas vezes se afirma em desabono da verdade, mas antes o domínio da primeira sobre o segundo. Mens sana in corpore sano é uma frase que corresponde a um autêntico sentido socrático.”

Os sofistas eram os mestres desta arte que, apresentada desta forma, constituía coisa nova. Sócrates parece ligar-se plenamente a eles, para logo seguir o seu próprio caminho. (…) A paideia dos sofistas era uma colorida mistura de materiais de origem vária. O seu objetivo era a disciplina do espírito, mas não existia entre eles unanimidade quanto ao saber mais indicado para atingi-la, pois cada um deles seguia estudos especializados e, naturalmente, considerava a sua disciplina como a mais conveniente de todas. Sócrates não negava o valor que havia em ocupar-se de todas as coisas que eles ensinavam, mas o seu apelo ao cuidado da alma continha já potencialmente um critério de limitação dos conhecimentos recomendados por aqueles educadores.”

Os gregos, aliás, consideravam geralmente o mundo cósmico como algo de sobrenatural e imperscrutável para os simples mortais. E [o] Sócrates [de Xenofonte] partilhava este temor popular contra o qual ainda Aristóteles teve de se erguer no início da sua Metafísica. Reservas semelhantes Sócrates fazia também em relação aos estudos matemáticos e astronômicos dos sofistas de orientação mais realista” “Contrapôs-se então a ele o Sócrates de Platão, que na República preconiza a educação matemática como único caminho certo da filosofia. Este ponto de vista está, porém, condicionado pela própria evolução platônica para a dialética e para a teoria do conhecimento”

Platão e Xenofonte coincidem em que Sócrates era um mestre de política. Só assim se compreende o seu choque com o Estado e o seu processo [judicial].” Não tem a ver com a acusação de monoteísmo – ou não como entendemos a questão hoje (de forma puramente teológica).

Esta passagem em Memoráveis I demonstra que o que nós denominamos <ético>, separando-o como um mundo à parte, estava indissoluvelmente ligado ao político, não só para Xenofonte, mas também para Platão e Aristóteles.” Os fins são os meios.

CORRUPTOR DE MENORES: “Aquilo de que Sócrates era acusado era precisamente o uso que Alcibíades e Crítias fizeram da sua cultura, na vida política. Segundo Xenofonte, porém, esta censura devia servir-lhe antes de desculpa, visto que um tal uso dos seus ensinamentos era contrário às intenções do mestre.” O grande jamais corromperá o pequeno. Mas não poderá tampouco salvá-lo de sua condição ou moira.

O homem que é educado para governar tem de aprender a antepor o cumprimento dos deveres mais prementes à satisfação das necessidades físicas. Tem de se sobrepor à fome e à sede. Tem de se acostumar a dormir pouco, a deitar-se tarde e a se levantar cedo.” Exigente demais!

Quem não é capaz de tudo isto fica condenado a figurar entre as massas governadas.” “O ascetismo socrático não é a virtude monacal, mas sim a virtude do homem destinado a mandar.”

A enkrateia não constitui uma virtude especial, mas, como acertadamente diz Xenofonte, a <base de todas as virtudes>, pois equivale a emancipar a razão da tirania da natureza animal do homem e a estabilizar o império legal do espírito sobre os instintos. (…) podemos traduzir o conceito de enkrateia (…) pela expressão (…) <autodomínio>.”

nesta época, a palavra <livre> é primordialmente o que se opõe à palavra escravo. Não tem aquele sentido universal, indefinível, ético e metafísico, do moderno conceito de liberdade.”

MEGERA INDOMADA: “O diálogo com o seu próprio filho Lâmpocles, que se revoltava contra o mau humor de Xantipa, sua mãe, mostra o quanto estava longe Sócrates de dar razão àqueles que condenavam precipitadamente os pais, ou denotavam uma impaciência pouco piedosa em relação ao seu feitio ou até aos seus defeitos manifestos.”

Em Homero, a amizade é a camaradagem do soldado; e na educação da nobreza, em Teógnis, apresenta-se como proteção e baluarte contra os perigos da vida pública, em tempos de convulsões políticas.”

É certo que a experiência ensina que até entre os homens bons e que aspiram a fins elevados nem sempre reinam a amizade e a benevolência, mas, ao contrário, impera com grande freqüência um antagonismo mais feroz que entre as criaturas pouco dignas. Aqui está uma experiência particularmente desanimadora.”

A amizade começa pelo aperfeiçoamento da própria personalidade. Mas necessita, além disso, dos dons do <erótico>, que ironicamente Sócrates gosta de predicar de si próprio, do homem que precisa dos outros e corre atrás deles, que recebeu da natureza o dom, logo por ele tornado arte, de agradar a quem lhe agrada. Não é como a Cila de Homero, que imediatamente se agarrava aos homens, os quais, assim, fugiam dela ao vê-la de longe. Parece antes a sereia, que atrai o homem de muito longe, com o seu canto suave.”

Sócrates nunca fala em <discípulos> e rejeita também a pretensão de ser <mestre> de quem quer que seja. Limita-se a manter <convivência> com os homens, seja qual for a sua idade, e <conversa> com eles.”

Um dos grandes paradoxos é este homem, o maior educador que se conhece, não ter querido falar de paideia com referência a sua própria atividade, embora todo mundo visse nele a mais perfeita personificação desse conceito. É claro que a palavra não se podia evitar indefinidamente, e tanto Platão como Xenofonte a usam freqüentemente para designarem as aspirações de Sócrates e caracterizarem a sua filosofia. Mas Sócrates encontrou esta palavra carregada pela prática e teoria <pedagógicas> do seu tempo: considerava como representantes típicos da paideia moderna Górgias, Pródico e Hípias.” “E através desta ironia genuinamente socrática descobre-se a consciência da missão da verdadeira educação e da magnitude da sua dificuldade, da qual o resto do mundo não tem a menor idéia.”

É Platão que, baseado nas tentativas de um novo conceito do saber que descobre em Sócrates, elabora a lógica e o conceito; segundo este autor, Sócrates foi apenas o pregador, o profeta da autonomia moral. No entanto, esta explicação esbarra com dificuldades tão grandes como a opinião contrária, a de que em Sócrates já vem defendida a teoria das idéias.”

Nenhum dos diálogos socráticos de Platão chega a definir realmente o conceito moral que nele se investiga; mais ainda, existiu por muito tempo a opinião geral de que nenhum destes diálogos chega realmente a um resultado.”

O conhecimento do bem, que Sócrates descobre na base de todas e cada uma das chamadas virtudes humanas, não é uma operação da inteligência, mas antes, como acertadamente Platão compreendeu, a expressão consciente de um ser interior do Homem.”

a idéia socrática contém implícita a premissa de que não pode existir a ilegalidade consciente, porque isso implicaria a existência de ilegalidades voluntárias.”

a natureza do bem implica que cada um o reconheça como quiser. A vontade humana situa-se, assim, no centro das nossas considerações.”

A verdadeira essência da educação é dar ao Homem condições para alcançar o fim autêntico da sua vida. Identifica-se com a aspiração socrática ao conhecimento do bem, com a phronesis. E esta aspiração não se pode restringir aos poucos anos de uma chamada cultura superior. Só pode alcançar seu objetivo ao longo de toda a vida do Homem” “O Homem, assim concebido, nasceu para a paideia. Esta é o seu único patrimônio verdadeiro. Como todos os socráticos são unânimes nesta concepção, o seu autor deve ter sido Sócrates, ainda que ele afirmasse de si próprio que não sabia <educar os homens>.”

É certo que Sócrates, ao contrário de Platão, não parece partir fundamentalmente da idéia de que os Estados atuais não têm remédio.”

Quantas vezes ele insiste em que não é ele, Sócrates, mas sim o logos quem diz isto ou aquilo! (…) No fundo, o conflito com o Estado nasce para a filosofia e para a ciência a partir do momento em que a investigação se exerce sobre a natureza das <coisas humanas>, i.e., sobre o problema do Estado e da arete e surge em face desta questão como razão normativa. É o instante em que a filosofia troca a herança de Tales pelo legado de Sólon.”

Foi nem mais nem menos Hegel quem negou à razão subjetiva o direito de criticar a moral do Estado, que é por si a fonte e a concreta razão de ser de toda a moral sobre a Terra. Eis um pensamento totalmente inspirado na Antiguidade e que nos ajuda a compreender a atitude do Estado ateniense para com Sócrates.”

Platão era o único que se sentia, como ateniense e como político, à altura de compreender Sócrates plenamente. Indica no Górgias como a tragédia se vem aproximando.”

Pessoalmente, Sócrates está muito longe das conseqüências que Platão deriva da sua morte. E mais longe ainda da valorização e da interpretação histórico-espiritual que se dá ao acontecimento de que foi vítima. A inteligência histórica, se tivesse existido naquele tempo, teria destruído o sentido trágico deste destino. (…) É um privilégio muito duvidoso o de ver à luz da história a própria época e mesmo a própria vida.” “Platão afirma o homem político no domínio da Idéia, mas por isso mesmo afasta-se da realidade política, ou procura realizar o seu ideal em outra parte qualquer do mundo, em que existam melhores condições para ele.”

O pouco apreço pela ciência e pela erudição, o gosto pela dialética e pelos debates em torno aos problemas do valor são características atenienses, tanto quanto o sentido do Estado, dos bons costumes, do temor de Deus, se deixar para trás a charis espiritual que paira sobre tudo.”

O mais provável é não ter Platão escrito estas palavras em Atenas. Por certo, deve ter fugido para Mégara, com os demais discípulos de Sócrates, após a morte deste, e foi ali ou nas suas viagens que escreveu as suas primeiras obras socráticas.”

3.4 A imagem de Platão na história

É só a partir da cultura antiga que se pode compreender uma figura como a de Santo Agostinho, que traçou a fronteira histórico-filosófica da concepção medieval do mundo, por meio da sua Cidade de Deus, tradução cristã da República de Platão. A própria filosofia aristotélica, com a recepção da qual a cultura dos povos medievais do Oriente e do Ocidente, no seu apogeu, assimilou o conceito universal do mundo da filosofia antiga, não era senão uma outra forma do platonismo.”

COISA MAIS BIZA…RRA! “O Platão que o teólogo e místico bizantino Gemistos Plethon transmitiu aos italianos do quattrocento e cujas doutrinas Marsílio Ficino professava na Academia platônica de Lourenço de Médici, em Florença, era um Platão visto pelos olhos de Plotino (…) Para aqueles tempos, Platão era acima de tudo o profeta e o místico religioso

Até agora tentara-se reconstruir a filosofia à maneira do séc. XVIII, esforçando-se por abstrair dos seus diálogos o conteúdo dogmático, quando o tinham. Depois, com base nas teses assim estabelecidas e tomando como modelo as filosofias posteriores, procurava-se penetrar na metafísica e na ética platônicas, e edificar com todas estas disciplinas um sistema, já que só se concebia a existência de um pensador sob esta forma. O mérito de Schleiermacher consiste em ter visto bem, com certeiro golpe de vista que os românticos tinham para desentranhar a forma como expressão da individualidade espiritual, que aquilo que a filosofia platônica tinha de característico era precisamente não tender para a forma de um sistema fechado, mas sim manifestar-se por meio do diálogo filosófico inquisitivo.”

podemos até afirmar que, assim como na Antiguidade a filosofia alexandrina foi desenvolvendo os seus métodos à luz da investigação da obra de Homero, também a ciência histórica do espírito alcançou no séc. XIX o seu máximo apuro, com a luta para conseguir compreender o problema platônico.”

Tanto a explicação pormenorizada do texto como a investigação da autenticidade das diversas obras chegadas até nós sob o nome de Platão abriram o caminho a um estudo concreto que se ia especializando sem cessar, de modo que o problema platônico parecia ir afundando cada vez mais nesta direção. Foi então que, a partir de C.F. Hermann, os intérpretes se foram habituando a encarar as obras deste filósofo como a expressão de uma evolução progressiva e gradual da sua filosofia”

É certo que, após alguns êxitos iniciais, este caminho da investigação acabou por se desacreditar, em consequência dos seus exageros, pois veio cair na ilusão de que seria possível situar no tempo todos e cada um dos diálogos, através de uma estatística filológica perfeitamente mecanizada. Seria ingratidão, porém, esquecer que foi uma descoberta puramente filológica que determinou a maior reviravolta operada, desde Schleiermacher, nos estudos platônicos.” “é possível distinguir três grupos principais de obras, onde se podem distribuir com boa verossimilhança os diálogos mais importantes. § Este resultado das investigações filosóficas da 2ª metade do séc. XIX tinha, por força, de abalar a imagem schleiermacheriana de Platão, já considerada clássica, uma vez que se verificou serem obras maduras, correspondentes a sua senectude, vários diálogos platônicos por ele tidos como primeiros e introdutórios, e que versavam sobre problemas metódicos. (…) Agora eram rapidamente puxados para o centro da discussão os diálogos <dialéticos>, como o Parmênides,¹ o Sofista² e o Político,³ nos quais o Platão do último período parece discutir com a sua própria teoria das idéias.” Confrontar com o que diz Azcárate. Missão para depois.

¹ https://seclusao.art.blog/2018/09/14/parmenides-ou-das-ideias/

² https://seclusao.art.blog/2018/09/09/o-sofista-ou-do-ser/

³ https://seclusao.art.blog/2019/05/27/o-politico-ou-da-soberania/

Não é, pois, nada estranho que este neokantismo se tenha sentido surpreendido e fascinado por tão inesperada projeção dos seus próprios problemas na evolução dos últimos anos de Platão” Aqui: revigoramento do ceticismo em oposição ao ultra-romantismo.

nesta nova concepção de conjunto, a importância de Platão para a filosofia moderna assentava no aspecto metódico, com a mesma unilateralidade com que para a filosofia metafísica do meio século anterior assentava no apoio que a metafísica platônica e aristotélica lhe dava, na sua luta contra a crítica de Kant.” “A nova forma de conceber este filósofo culminava na tentativa de infirmar, como falsas, as objeções de Aristóteles à teoria platônica das idéias, tentativa que vinha mostrar indiretamente que essa nova forma se deixava guiar por Aristóteles, mesmo sem aceitar o seu modo de ver, pois concentrava no mesmo ponto a sua interpretação da doutrina platônica.”

as Leis, que representa mais da quinta parte de toda a obra escrita de Platão e onde a teoria das idéias não desempenha o menor papel.”

IRONIAS DE FERRO: Enquanto bilhões vivem sem uma metafísica, certos indivíduos têm o privilégio de viver ativamente 2 ou 3 projetos destas. Onde quer que o sol nasça e bata, Platão é que ri de nós.

Foi de novo uma descoberta filológica que permitiu um passo fundamental e que, sem pretensões filosóficas de nenhum tipo, levou a derrubar os limites demasiado estreitos em que estava encerrada esta concepção da obra platônica. Desta vez, não foi a cronologia a afetada pela descoberta, mas sim a crítica da autenticidade dos textos. Já desde a Antiguidade sabia-se que a coleção dos escritos platônicos transmitida pelos séculos continha muitas coisas inautênticas, mas foi a partir do séc. XIX que a crítica textual atingiu o máximo grau de intensidade. É certo que no seu cepticismo visava muito além do alvo e acabou por ficar paralisada. (…) as suspeitas caíram apenas, essencialmente, sobre escritos de qualidade duvidosa. Julgavam-se falsas também as cartas de Platão: a existência indubitável de peças e fragmentos falsos na coleção de cartas que chegou até nós sob o seu nome levava os críticos a repudiar a coleção em bloco; e, como era indiscutível que algumas destas cartas continham um material histórico valioso acerca da vida de Platão e das suas viagens à côrte do tirano Dionísio de Siracusa, recorria-se à hipótese do autor destes documentos apócrifos ter utilizado na sua redação informes muito apreciáveis. Historiadores como Eduard Meyer, levando em conta o grande valor das cartas como fonte histórica, advogaram a sua autenticidade, e logo o seu exemplo foi seguido pelos filólogos, a partir do momento em que Wilamowitz confirmou a autenticidade das cartas sexta, sétima e oitava, i.e., das peças mais importantes da coleção.”

COMPELIDOS À MISANTROPIA: “O patético relato de Platão sobre suas repetidas tentativas de intervenção ativa na vida política dava ao seu biógrafo a possibilidade de pintar algumas cenas ricas de colorido, que vinham quebrar dramaticamente o recolhimento da vida do filósofo no seio da Academia e descobriam, além disso, o complicado fundo psicológico desta vida, cuja atitude contemplativa, como agora se mostrava, tinha sido imposta pela trágica pressão das condições desfavoráveis de seu tempo a um caráter inato de dominador. Vistas por este prisma, as repetidas vezes que Platão tentou uma carreira de estadista não apareciam de modo nenhum como episódios infelizes de uma vida puramente intelectual, nos quais Platão procurara concretizar certos princípios éticos da sua filosofia. Todavia, a convicção de que é o Platão autêntico e real o homem que na Carta VII nos fala da sua própria evolução espiritual e dos objetivos da sua vida, a partir dos quais adota uma posição diante da sua própria filosofia, tem também uma importância decisiva para a concepção de conjunto da sua obra filosófica.” “A esta concepção da filosofia platônica chegara eu em longos anos de esforço incessante dirigido à captação da sua verdadeira essência, sem prestar grande atenção às cartas, uma vez que desde a juventude partilhava o preconceito filológico contra a sua autenticidade.”

podem reunir-se em grupo à parte os diálogos menores; (I) mas as obras extensas como o Protágoras, o Górgias, o Mênon, o Banquete e o Fedroonde estão contidas as idéias platônicas essenciais sobre a educação, merecem ser examinadas separadamente e uma a uma (II) (…) A República e as Leis são, naturalmente, as obras que devem formar o verdadeiro nervo central deste estudo. (III)”

¹ https://seclusao.art.blog/2018/03/17/fedro-ou-da-beleza-ou-ainda-do-caralho-voador/

A sua filosofia, encarada como o apogeu de uma cultura (paideia) tornada já histórica, deve ser focada, mais do que geralmente se costuma fazer, na sua função orgânica dentro do processo total do espírito grego e da história da tradição helênica, e não como um mero sistema de conceitos com existência própria.”

A história da paideia, encarada como a morfologia genética das relações entre o homem e a polis, é o fundo filosófico indispensável no qual se deve projetar a compreensão da obra platônica.” “A sua obra de reformador está animada do espírito educador da socrática, que não se contenta em contemplar a essência das coisas, mas quer criar o bem.”

3.5 Diálogos socráticos menores de Platão

São muito reduzidas as proporções exteriores destas obras, que correspondem pouco mais ou menos a uma conversa travada por casualidade.” “o dialeto ático neles usado não tem paralelo na literatura grega, pela sua graça natural, espontaneidade e genuína vivacidade de colorido.” “estes diálogos, do tipo do Laques, do Eutífron e do Cármides, revelar-se-iam pelo seu brilho e pelo seu frescor, como as obras de juventude de Platão.”

Já no Eutífron fala-se do processo movido contra Sócrates, e como a Apologia e o Críton, ambos tratando do desenlace de Sócrates, se encaixam no mesmo grupo é provável que todas as obras reunidas neste grupo tivessem sido escritas logo depois da morte do mestre.”

<Petulância juvenil> é a rubrica sob a qual WILAMOWITZ agrupa estas obras alegres, que considera as mais antigas de todas.”

Já na velhice Platão escreveu um diálogo, o Filebo,¹ onde Sócrates aparece como figura central, apesar de nas demais obras da velhice, nos chamados diálogos dialéticos, o Parmênides, o Sofista e o Político, e no diálogo sobre a filosofia da natureza intitulado Timeu,² Sócrates desempenhar um papel secundário e ser nas Leis substituído pela figura do estrangeiro ateniense.”

¹ https://seclusao.art.blog/2020/01/07/filebo-ou-dos-prazeres-da-inteligencia-e-do-bem/

² https://seclusao.art.blog/2019/06/08/timeu-ou-da-natureza/

Não foi da dúvida que os primeiros diálogos platônicos nasceram. Que não é assim já o indica a soberana segurança com que é vincada a linha interior daquelas conversas, não tanto em cada obra de per si, mas principalmente no conjunto delas.” Opinião distinta da de Azcárate.

É preciso ser muito ingênuo para, do fato de nenhum destes diálogos terminar com a definição didática do tema discutido, tirar a conclusão de que estamos diante de um principiante que arrisca os primeiros passos, falhados, num campo ainda inexplorado teoricamente.” “O nosso pensamento, associando-se ao dos outros, procura adiantar-se ao andamento da discussão (…) Se se tratasse de uma conversa real a que tivéssemos assistido, poderíamos atribuir ao acaso este resultado negativo.” “A falta de saída, que era para Sócrates um estado permanente, converte-se para Platão no estímulo que o impele à resolução da aporia.”

Sobre a história da interpretação moderna de Platão, cf. o livro (já antiquado mas ainda útil para certos pormenores) de F. UEBERWEG, Untersuchungen über die Echtheit und Zeitfolge platonischer Schriften, etc. (Viena, 1861)

A ciência política apresenta-se já no Cármides, como no Górgias, em paralelo com a ciência médica.”

A maior censura que se pode fazer a muitos representantes do método histórico-evolutivo, tanto no que se refere a sua defeituosa concepção artística como quanto a sua deficiente concepção filosófica, é partirem da hipótese de que, em todas e cada uma das suas obras, Platão diz tudo o que sabe e pensa.”

Platão e seus irmãos Glauco e Adimanto, que ele, de modo muito significativo, apresenta precisamente na República como discípulos e interlocutores de Sócrates, pertenciam evidentemente, como Crítias e Alcibíades, àquela juventude da antiga nobreza ática que, de acordo com as tradições familiares, sentia-se chamada a dirigir o Estado e buscava em Sócrates o mestre da virtude política.” “Mas, enquanto para homens como Alcibíades e Crítias esta doutrina não fazia mais do que atiçar a fogueira dos seus ambiciosos planos de golpes de Estado, para Platão, que o seu tio Crítias convidou a colaborar no novo Estado autocrático, após a derrocada da constituição democrática vigente, era visível a incompatibilidade daquele regime com as idéias de Sócrates, e foi por isso que ele se negou a cooperar.”

A duplicidade deste acontecimento gerou a certeza de que não foram a constituição democrática ou oligárquica, como tais, mas sim única e exclusivamente a degenerescência moral do Estado vigente, fossem quais fossem as suas formas, o que o arrastou a um conflito mortal com o mais justo dos seus cidadãos.”

profunda resignação” “Chegara à convicção de que para um homem como ele, plenamente possuído da vontade educacional de Sócrates, seria um absurdo esbanjamento de si próprio imiscuir-se ativamente na vida política de Atenas, pois lhe parecia que o Estado existente, e não só o ateniense mas todos eles, estava condenado a desaparecer, se não o salvasse um milagre divino. E que esta concepção não é precisamente resultado da sua evolução posterior, mas sim que já vivia nele desde o princípio, prova-o a Apologia, 31E, e a recapitulação dos mesmos pontos em Apol., 36B.”

a pretensão de tornar os filósofos reis ou os governantes filósofos, para que o Estado possa ser melhorado.” “Enquanto a Carta Sétima foi tida por apócrifa, considerou-se este indício evidente da sua falsidade; o falsificador, pensava-se, quisera dar-lhe um cunho de autenticidade e para isso reproduzira uma das idéias mais conhecidas de Platão; mas incorrera no descuido de apresentar como já existente na década de 90 a República, obra donde a frase procede e que, segundo os resultados da moderna investigação, não fôra escrita antes da década de 70 do séc. IV. (…) Não havia a mínima dúvida de que se tratava de uma citação de si próprio feita por Platão, e ele, naturalmente, não podia ignorar quando escrevera aquela obra.” “ora, o mais verossímil é que as idéias proclamadas nos seus diálogos tenham sido expostas e discutidas muitas vezes no seu ensinamento oral, antes de serem dadas a conhecer por escrito ao mundo exterior”

Julius STENZEL, Plato’s Method of Dialectic (barato na Amazon)

O SEGUNDO MUNDO: SENSÍVEL, ETERNO

Aristóteles já assimila com toda a clareza teórica os métodos lógicos da abstração. A pergunta socrática o que é o bom?, o que é o justo?, não implicava de modo nenhum o conhecimento teórico do que eram logicamente os conceitos universais. Portanto, quando Aristóteles diz que Sócrates ainda não chegara a hipostasiar, como algo distinto da realidade sensível, os conceitos universais que investigava (o que Platão faz), essa afirmação não se deve interpretar no sentido de que Sócrates já teria chegado à teoria aristotélica do universal e de que Platão cometeu mais tarde o erro inconcebível de duplicar de certo modo esses conceitos gerais, já antes conhecidos por Sócrates na sua natureza abstrata, e de colocar ao lado do conceito do justo uma idéia do justo existente em si mesma. (…) as idéias platônicas (…) representam para Aristóteles uma duplicação inútil do mundo sensível. Ele é supérfluo para Aristóteles, pois este já atingiu a natureza abstrata do conhecimento universal.”


Aristóteles:
“o universal está no devir. Eu sou a síntese de Sócrates, Heráclito e Parmênides.”

Quando Platão aponta dentro do múltiplo o uno, que o método dialético procura captar como forma ou, dito em grego, como idéia ou eidos, apóia-se na terminologia da Medicina do seu tempo” “Partindo daqui, vemos como o movimento dialético se vai elevando já nos primeiros diálogos até chegar à virtude em si, na unidade da qual Sócrates sintetizava as várias virtudes particulares. A investigação da virtude particular leva constantemente, não a distingui-la das outras, como a princípio poderia parecer, mas sim àquela unidade superior a tudo o que é virtude, ao bem em si e ao seu conhecimento.” “Rep., II, 537C: o verdadeiro dialético é o sinóptico, capaz de abarcar as coisas no conjunto. A mesma descrição do dialético aparece no Fedro, 265D. A síntese do diverso na unidade da idéia.”

O cotejo do emprego dos conceitos eidos e idea nos diálogos de Platão, para chegar a resultados concludentes, teria de abarcar também outras palavras e expressões usadas para descrever o uno no múltiplo”

Nenhuma das suas obras contém uma completa exposição da teoria das idéias, neste sentido, nem sequer na época em que a existência desta teoria se pode comprovar por meio de repetidas referências a ela.” “São poucas as passagens em que Platão entra no exame dos problemas mais espinhosos da teoria das idéias. Pelas informações pormenorizadas de Aristóteles sobre a chamada fase matemática da teoria das idéias, na qual Platão procura explicar as idéias com a ajuda dos números, verificamos com assombro que ele e os seus discípulos elaboraram na Academia uma doutrina de cuja existência os diálogos daquele período nem sequer nos permitem suspeitar”

Aliás, nem é certo que as primeiras obras de Platão não contivessem qualquer alusão à existência da teoria das idéias, pois já no Eutífron, que todos os autores classificam entre os diálogos da primeira fase, fala-se do objeto da investigação dialética como de uma idéia

CRITER, Neue Untersuchungen über Platon (Munique, 1910)

Os diálogos menores surgem assim como uma introdução ao problema central do pensamento platônico, nos seus dois aspectos: o intrínseco e o formal.”

O que se pode assegurar, sim, porque é evidente, é que a tendência histórico-evolutiva do séc. XIX liga pouco demais para as numerosas linhas de conexão que Platão traça entre umas e outras obras, e por meio das quais nos dá a entender que todas elas vão gradualmente cobrindo um grande problema de conjunto e formam uma grande unidade em que o primeiro passo só é plenamente explicado pelo último. (…) SHOREY, The Unity of Plato’s Thought (Chicago, 1904)

O repetido fracasso dos esforços empregados em descobrir a verdade e presenciados pelo leitor faz com que este compreenda pouco a pouco, com clareza cada vez maior, a dificuldade de chegar a um conhecimento real e adquira a consciência das premissas que até então admitia como evidentes e que constituem o fundamento da sua própria existência.”

A ETERNIZAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA: “O poder educador de Sócrates (…) iria (…) conquistar o mundoPlatão como o proporcionador de uma grande maiêutica, de uma vida inteira, como se reproduzira então o “diálogo da vida”. Transmitindo para o futuro as sementes da oralidade original mas restrita no tempo de Sócrates. Neste escopo, Aristóteles devia julgar-se o “aluno perfeito”, que Sócrates e Platão sempre haviam procurado.

3.6 O Protágoras

Permitimo-nos, por razões de brevidade, conservar a tradução tradicional das palavras gregas arete e episteme por <virtude> e <saber>, respectivamente, apesar de serem ambas equívocas porque têm as conhecidas acepções concomitantes modernas, que as palavras gregas não possuíam. (…) não dar à palavra <saber> o sentido que tem presentemente a palavra <ciência>, em vez do significado espiritual dos valores, daquilo a que os gregos chamam phronesis

Protágoras, o diálogo, está envolto num esplendor de alegria juvenil, de engenho e finura espiritual, que não encontramos em nenhuma outra obra platônica.”

Um jovem discípulo e amigo de Sócrates, Hipócrates, desperta-o, alta madrugada, batendo com força a sua porta e rogando-lhe que o deixe entrar. É que ao regressar a Atenas, na noite do dia anterior, ouviu dizer que Protágoras se encontra na cidade; e tão grande acontecimento emociona-o. (…) E vem ter com Sócrates tão cedo, para lhe rogar que o apresente ao mestre. Como prelúdio do diálogo principal surge agora, no ambiente do pátio da casa onde os 2 personagens passeiam até despontar o dia, uma conversa de puro estilo socrático, na qual Sócrates tenta sondar a firmeza da decisão do jovem Hipócrates e fazer-lhe compreender a aventura em que se vai meter.”

Neste diálogo, Sócrates não é um ancião venerável como o sofista Protágoras, mas sim um homem na força da idade, o que contribui para acentuar a falta de respeito que inspira. Hipócrates vê nele apenas o conselheiro e o amigo encarregado de lhe facilitar o aceso a Protágoras. (…) se o jovem se quisesse tornar médico, diz-lhe, devia receber o ensino do mais importante dos médicos de seu tempo, o seu homônimo Hipócrates de Cós; se desejasse ser escultor, o de Policleto ou Fídias; portanto, ao dirigir-se a Protágoras para se fazer seu discípulo, parece disposto a abraçar a carreira de sofista. Hipócrates, porém, repele decididamente esta insinuação e é aqui que se acusa uma diferença essencial entre a educação sofística e o ensino dos profissionais: os discípulos particulares do sofista são os únicos que estudam a sua arte com o intuito de mais tarde a exercerem como profissão; os mancebos atenienses de famílias distintas que se juntam a sua volta não têm em vista outra finalidade que não a de o escutarem para <se cultivarem>. O que o jovem do diálogo não sabe dizer é em que consiste esta cultura (paideia), e fica-se com a sensação de que a sua atitude é típica da juventude do seu tempo, ansiosa por se cultivar.”

NÃO ACEITAMOS DEVOLUÇÕES! “Protágoras (…) considerado com realismo, assemelha-se, pois, como fenômeno social, ao mercador e vendedor ambulantes que oferecem ao comprador, por dinheiro, as mercadorias importadas.”

É claro que Sócrates não se apresenta, de modo nenhum, como um médico desse tipo; mas, uma vez que afirma que para a alimentação do corpo se devem consultar em caso de dúvida, na qualidade de peritos, o médico ou o mestre de ginástica, por si mesma desponta a interrogação de quem será o perito chamado a sentenciar sobre o alimento adequado à alma, quando isso for necessário.”

Preocupados com o problema da essência do verdadeiro educador, ambos os personagens se põem a caminho para a residência de Cálias, pois fez-se dia e têm de se apressar para visitar o sofista, assediado por visitantes de manhã à noite. O porteiro daquela casa rica já está em estado de irritação, sinal de que não são Hipócrates e Sócrates os primeiros a chegar.”

profiteri, donde é derivado o termo professor, empregado no Império Romano para designar o sofista dedicado ao ensino.”

Circus comes to town.

Saber é lucrar. Arquétipo: Agostinho.

Parece contraditório que Platão, por sua vez fundador de uma escola, manifeste-se tão violentamente contra o profissionalismo dos sofistas. A sua escola, porém, baseava-se no princípio socrático da amizade e pretendia continuar, através da sua dialética, a velha forma da educação por meio do trato pessoal.”

Acostumado a apoiar-se no prestígio educacional dos grandes poetas da Antiguidade, desde Homero até Simônides, e na herança da sua sabedoria, que os sofistas se esforçavam por transformar numa sabedoria escolar sensata e moralizadora, Protágoras inverte os papéis e vê os antecessores da sua arte naqueles heróis do espírito, que sob o manto da poesia queriam ocultar à desconfiada sociedade do seu tempo a sua (de todos e de cada um deles) qualidade de sofistas.”

Sócrates repara que Protágoras sente-se orgulhoso dos seus novos admiradores, e sugere que se convidem também Pródico e Hípias para a conferência, o que Protágoras acolhe com satisfação.”

Se um jovem entrasse para aluno de Zêuxis e este prometesse torná-lo melhor, todo mundo saberia em quê: na pintura. Se com o mesmo propósito acorresse a Ortágoras de Tebas, ninguém tampouco ignoraria que neste caso o progresso se referiria à sua instrução como tocador de flauta. Pois bem, em que campo progredirá para o melhor quem receber o ensino de Protágoras?” “À pergunta feita Protágoras não pode responder em nome de todos os que exibem o nome de sofistas, pois entre eles também não existe unanimidade de critério quanto a este ponto. P.ex., Hípias, ali presente é representante das <artes liberais>, sobretudo do que mais tarde se chamaria quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música. Estes ramos do ensino sofístico eram os que melhor podiam fazer jus à pergunta de Sócrates, pois apresentavam o desejado caráter técnico; mas na sua educação Protágoras dá preferência incondicional aos ramos sociais do saber. Entende que os jovens que passaram pelo habitual ensino de tipo elementar e agora aspiram a completá-lo por meio de uma cultura superior que os prepare, não para uma profissão determinada, mas para a carreira política, não desejam entregar-se a novos estudos técnicos determinados, porque é de outra coisa que necessitam, e é isto que ele lhes quer ensinar: a capacidade de se orientarem retamente a si próprios, de orientarem os outros sobre o melhor processo de administrarem a sua casa, e de dirigirem com êxito, em palavras e ações, os assuntos do Estado.”

Sócrates reconhece que esta é uma elevada finalidade, mas expõe as suas dúvidas acerca da possibilidade de estimular por meio do ensino esta virtude” “Os homens que mais se salientam pelas suas qualidades espirituais e morais não dispõem de meios para transmitirem aos outros as qualidades que os distinguem, a sua arete. Péricles, pai dos dois jovens aqui presentes, deu-lhes uma educação excelente em tudo aquilo para que existem professores, mas naquilo em que a sua própria grandeza se firma ele não os educa nem os entrega a outro para que os eduque, antes os deixa andar à solta, para <instruírem-se livremente>, como se a arete fosse por si própria pousar sobre eles.” O bom nobre à nobreza torna.

Recolhe, assim, sob forma filosófica, uma idéia fundamental da aristocracia, que Píndaro apresentara e que a pedagogia racionalista dos sofistas preferia deixar de parte, em vez de se deter para refutá-la. Parecia não conhecer limites o otimismo pedagógico dos sofistas; a sua vigorosa concepção intelectual do objetivo da educação contribuía para alentar este otimismo, que parecia, aliás, corresponder à tendência geral do tempo, sobretudo à evolução da maioria dos Estados para a democracia.”

É evidente que, ao procurar encontrar assim um processo moderno que substituísse, em bases racionais, a antiga e rigorosa educação dada à nobreza, Protágoras demonstrava um sentido muito arguto para captar as necessidades do presente e a mudança operada na situação; mas era precisamente neste ponto que melhor se revelava a falha da paideia sofística.”

A objeção de Sócrates tem tal caráter de objeção de princípio que obriga Protágoras, desde logo, a desviar a conversa do campo meramente técnico-didático para um plano espiritual superior. Nem todos os sofistas teriam sido capazes de seguir neste terreno o crítico da sua pedagogia, mas Protágoras era o homem indicado para isso. Nas intervenções em que responde a Sócrates detidamente, Platão apresenta-nos com mão de mestre um adversário nada desprezível. Teria sido um mau representante da época pedagógica se não tivesse tomado posição diante daquele problema fundamental de toda a educação ou não estivesse em condições de lutar por ela. A dúvida suscitada sobre a possibilidade de educar o homem partia de experiências individuais contra as quais não havia nada a alegar. É por isso que Protágoras desloca habilmente o ponto de partida e examina o problema sob o ponto de vista dos seus novos conhecimentos sociológicos” “sem aceitar como premissa a possibilidade de educar a natureza humana, todas estas instituições, que de fato existiam, perderiam o sentido e a razão de ser.”

Esta vasta exposição de princípios permite a Platão fazer com que o grande sofista – que é ao mesmo tempo um mestre da forma – brilhe em todas as modalidades da retórica. Sócrates confessa-se arrebatado e vencido” “A força de Sócrates não está na graça com que narra mitos ou faz longas exposições doutrinais, mas antes na tensão dialética das suas perguntas certeiras, às quais é forçoso retorquir. Esta arte dialética de Sócrates revela-se triunfalmente na tentativa seguinte de atrair o adversário ao seu próprio terreno.”

não é à luz de uma virtude concreta que Sócrates aponta aqui as relações entre a parte e o todo, mas sim por meio da comparação integral de todas as virtudes entre si, com o que se propõe demonstrar a unidade delas. Que ele, ao fazer isto, proceda, em certos aspectos concretos, de modo mais sumário que nos diálogos menores, não obedece apenas à circunstância de o seu propósito de estabelecer uma comparação completa obrigá-lo precisamente a percorrer um caminho mais longo, e a encurtar, portanto, as etapas; é importante ver também que uma minúcia maior o faria incorrer em repetições, já por si inevitáveis, aliás.”

Sócrates procura arrancar ao seu interlocutor a concessão de que a justiça e a piedade são essencialmente a mesma coisa ou, pelo menos, coisas muito semelhantes e afins, o que Protágoras aceita, embora contra [a] vontade. Sócrates pretende aduzir a mesma prova a respeito das outras parelhas de virtudes mencionadas, deixando para o fim a valentia, por esta ser de todas as virtudes a que mais se diferencia psicologicamente das outras.”

A crescente indisposição de Protágoras obriga Sócrates a interromper aqui a conversa, antes de ser ter atingido o seu objetivo” “Protágoras (…) se aproveita para desviar a conversa sobre a virtude e a possibilidade de ensiná-la para outro terreno, o da explicação poética, uma das formas essenciais da paideia sofística.”

ele tira dos versos de Simônides um sentido congruente com a sua conhecida tese de que nenhum homem pratica voluntariamente o mal.” Diante do fascismo, é mera questão semântica de somenos importância: que em sua cabeça o fascista esteja fazendo o bem, tanto faz. Deve ser execrado e neutralizado da mesma forma que se a tese contrária fosse prevalente (a de que o malvado têm ciência da própria maldade e liberdade de escolha).

Sócrates interroga a multidão em profundidade, para averiguar a razão por que considera neste caso que o prazer procurado é nocivo, em última instância. E obriga-a a reconhecer que não sabe dar outra razão a não ser que o prazer desfrutado acarreta como conseqüência um mal maior. Por outras palavras: a meta final (TELOS), em relação à qual a multidão reconhece diferenças de valor entre umas e outras sensações de prazer, é, por sua vez, o prazer e só o prazer. É nesta passagem que o conceito fundamental da finalidade aparece pela primeira vez em Platão.” “Pelo fato de isso ser certo é que o <deixar-se arrastar pelo prazer>, que a multidão invoca como motivo, significa apenas que se cometeu um erro de cálculo escolhendo o prazer menor em vez do maior, pela simples razão de ser o que estava mais perto no momento da opção.”

Investigaremos em outra ocasião, continua Sócrates, qual é esta arte da medida e em que consiste a sua essência; mas o que desde já podemos assegurar é que são um saber e um conhecimento tais que nos podem fornecer a pauta para a nossa conduta, bastando para isso demonstrar o ponto de vista defendido por Protágoras e por mim (Prot., 357). O conceito da medida e da arte de medir (metretike), que se emprega aqui repetidamente e com grande insistência, tem uma importância fundamental para a concepção platônica da paideia e do saber. Aqui aparece primeiramente como simples postulado e, além disso, aplicado para determinar o bem supremo, o qual não pode ser concebido, de modo nenhum, em sentido socrático.”

Sócrates sublinha expressamente a sua concordância com a tese de que o bom é o agradável e de que isto é, portanto, o critério da vontade e da conduta do Homem. O próprio Protágoras, animado pelo consenso geral, também adere agora, tacitamente, à tese que antes via com certo receio (Qui tacet, consentire videtur [Quem cala consente]). Deste modo, todas as sumidades em educação ali agrupadas sob o mesmo teto acabam por se harmonizar, unânimes, ao nível dos polloi, de que Sócrates partira. Sócrates tem-nos todos presos na armadilha.”

Com isto, Sócrates obriga os sofistas a aceitarem o seu conhecido paradoxo de que ninguém <procede mal> voluntariamente (…) Partindo dessa concepção é fácil, para ele, resolver o problema, não resolvido ainda, das relações entre a valentia e o saber, acrescentando assim o último elo que faltava a sua cadeia demonstrativa da unidade da virtude, ainda incompleta.”

Pois bem, se definimos o medo como o pressentimento de um mal, a conseqüência será que Protágoras, ao conceber a valentia como o não-retroceder perante aquilo sobre que incide o temor, incorre em contradição com a tese que todos acabam de assinar, e que afirma que ninguém avança conscientemente para o que considera um mal.” “Chegamos assim à conclusão de que a valentia é essencialmente o mesmo que sabedoria: o conhecimento do que na realidade se deve ou não temer.”

Sócrates, que não achava a virtude suscetível de ser ensinada, agora busca provar por todos os meios que a virtude é, sob todas as formas, um saber; e Protágoras, que a considerava matéria apta para ensino, faz, ao contrário, grandes esforços para demonstrar que ela é tudo menos um saber (…) O drama finda com o espanto mostrado por Sócrates em face deste resultado aparentemente contraditório”

Suspeitamos de que Sócrates, dada a descontração com que se manifesta no Protágoras, troça de todos os sofistas e de nós mesmos. E por fim exigimos que nos fale a sério de um problema de tanta seriedade. É isto que ele faz no Górgias, que é, sob muitos pontos de vista, o perfeito irmão gêmeo do Protágoras e o indispensável complemento sério do humor travesso vazado neste.” Velhos não podem sorrir (obra mais tardia de Platão)

3.7 O Górgias

O ponto de vista extremo nesta questão é o aplicado por WILAMOWITZ, no seu Platon t. I, aos diferentes diálogos. Uma obra como o Fedro, p.ex., onde se investigam as relações entre a retórica e a dialética, é exposta por esta autor sob o lírico título de <Um venturoso dia de Verão>. Não se pode passar por alto da relação entre o ponto de vista de Wilamowitz e o livro de Dilthey intitulado Vida e poesia. A fórmula <vida e poesia>, tirada da lírica moderna, não serve para interpretar os diálogos de Platão.”

a seriedade do Górgias não se deve exatamente ao fato de nele se refletir um estado de ânimo momentaneamente ensombrado, e a proximidade temporal da morte de Sócrates não é necessária para explicar o pathos grandioso que esta obra respira, como não o é para explicar o fúnebre dramatismo do Fédon, que os mesmos intérpretes situam, no tempo, muito longe da morte de Sócrates e bem perto do jovial Banquete.”

Górgias de Leontinos, criador da retórica, na forma em que ela havia de pautar os últimos decênios do séc. V, é para Platão a personificação desta arte, tal como Protágoras é da sofística no diálogo que tem o seu nome.” Existe sofística sem retórica e retórica sem sofística?

UMA RETÓRICA AINDA ÉTICA: “a sofística, que é um fenômeno meramente pedagógico (…) Rhetor continua ainda na época clássica a ser o nome para designar o estadista, que num regime democrático precisa sobretudo ser orador. A retórica de Górgias propõe-se formar retóricos neste sentido da palavra.”

Górgias cita até casos em que a palavra do retórico convenceu um enfermo da necessidade de tomar um remédio ou de se submeter a uma operação, depois de o médico competente ter fracassado nesse intento.”

É a sua arte que aponta para todo tipo ao qual deverão submeter o seu saber. Não foram os arquitetos e engenheiros navais, cujo saber Sócrates enaltece como modelo, quem levantou as fortificações e os portos de Atenas, mas sim Temístocles e Péricles, que, apoiados no poder da retórica, convenceram o povo da necessidade de realizar estas obras.” “Se um atleta usar a sua força para estrangular pai e mãe, não haverá motivo para disso tornar responsável o seu mestre, pois este lhe transmitiu a sua arte, para que fizesse bom uso dela.” “Quando Górgias afirma que o retórico transmite aos seus discípulos a sua arte para que eles façam <bom uso> dela, parece pressupor que o mestre nesta arte sabe o que é bom e justo e que os seus discípulos já albergam neles, ou recebem do mestre, um saber igual.”

A descrição deste antagonismo entre o sentimento de poder, ainda meio envergonhado e tingido de moral, da velha geração inventora da retórica e o consciente e cínico amoralismo da nova geração revela a grande arte de Platão para desenvolver dialeticamente, por meio de uma gradação de cambiantes, um tipo espiritual, em todas as suas formas características. (…) três formas fundamentais (…) o aparecimento de cada tipo novo recrudesce a luta (…) Às figuras de Górgias e do seu discípulo Polo vem juntar-se mais tarde, como terceiro e mais coerente representante do <homem retórico>, o estadista Cálicles, que proclama abertamente o direito do mais forte como moral suprema.”

FALAR É CRIAR PODER: “A crítica da segunda parte do Górgias parte da tese que afirma ser a retórica uma techne. O nosso conceito de arte não reflete adequadamente o sentido da palavra grega. Esta tem em comum com a arte a tendência à aplicação e ao aspecto prático. Por outro lado, em oposição à tendência individual criadora não submetida a nenhuma regra (para muitos implícita hoje na palavra arte), acentua o fator concreto do saber e da aptidão, que para nós estão ligados ao conceito de especialidade. [um anti-saber platônico]” “Designa toda profissão prática baseada em determinados conhecimentos especializados e, portanto, não só a pintura, a escultura, a arquitetura e a música, mas também, e talvez com maior razão ainda, a medicina, a estratégia militar ou a arte da navegação.” “neste sentido, o grego techne corresponde freqüentemente, na terminologia filosófica de Platão e Aristóteles, à moderna palavra teoria (…) Techne, por sua vez, distingue-se, como teoria, da <teoria> no sentido platônico de <ciência pura>, já que aquela teoria (a techne) é sempre concebida em função de uma prática.”

Conforme os contextos, pode acontecer em Platão a palavra episteme em vez da palavra techne, quando lhe interessa destacar o fato de esta <arte> política ter como base um verdadeiro <saber>.”

Sócrates (…) divide a lisonja em 4 classes: a sofística, a retórica, a <arte> da perfumaria e a <arte> culinária.” Paladar, olfato, tato (social!)… só faltaram a <arte> de ler ou contemplar esculturas e a <arte> de ouvir música.

A vida do Homem divide-se em vida da alma e vida do corpo, e ambas requerem uma arte especial para velar por elas. Os cuidados da alma incumbem à política ou arte do Estado (e esta correlação, surpreendente para nós, lança uma luz esplendorosa sobre o objetivo final de Platão, ou seja, a arte do Estado, e sobre o sentido completamente novo que ele dá a este conceito) [uma sociedade em que a psicologia se tornou um ramo epistemológico é uma sociedade falida, a necrose da política]; a arte destinada a velar pelo corpo carece de nome especial. E ambas as artes – a que consiste em velar pela alma e a que versa sobre os cuidados do corpo – subdividem-se por sua vez em duas espécies, das quais uma corresponde à alma sã ou ao corpo são e a outra vela pelo corpo ou alma enfermos. O ramo da política chamado a velar pela alma sã é a legislação, enquanto a alma enferma reclama os cuidados da administração prática da justiça. Dos cuidados do corpo sadio se encarrega a ginástica; os do corpo doente são matéria da Medicina. As 4 artes encaminham-se para a consecução do melhor (…) Como variantes da lisonja, correspondem-lhes 4 imagens ilusórias: à legislação, a sofística; à justiça, a retórica; à ginástica, a <arte> da perfumaria; e à Medicina, a <arte> culinária. [!] Estas já não visam à consecução do melhor no Homem, mas aspiram somente a lhe agradar. Para isso, agem à base da mera experiência e não, como as verdadeiras artes, sobre o fundamento de um princípio firme e do conhecimento”

As características essenciais do conceito de techne são: primeira, é um saber baseado no conhecimento da verdadeira natureza do seu objeto; segunda, é capaz de dar conta das suas atividades sempre que tem consciência das razões

O modelo que Platão apresenta nesta análise da essência de uma verdadeira techne é a Medicina. (…) A <arte política>, que é a meta da filosofia e da cultura novas que se procuram fundar, é concebida como uma medicina da alma.”

Tal como no Protágoras, Platão pretende aqui demonstrar que os sofistas e retóricos, embora tenham aperfeiçoado até o requinte os meios técnicos de cultura e de influência sobre os homens, continuam a dar guarida às idéias mais primitivas (…) Platão opõe um novo humanismo ao humanismo dos sofistas e retóricos.”

Polo (…) não consegue compreender como Sócrates pode não julgar apetecível o poder do tirano. E resta-lhe ainda o último trunfo, que ele joga, ao perguntar se porventura não se deve julgar ditoso o rei dos persas. E, como Sócrates responde: Não sei, pois ignoro qual é a sua paideia e a sua justiça, [sua formação e adestramento, sua criação e seu autofreio] Polo, sem se poder conter, atira-lhe esta pergunta surpreendente: Como? É nisso que se baseia toda a felicidade?

Temos de optar entre a filosofia do poder e a filosofia da educação.”

Rep., 444C-E. A arete é a saúde da alma; é portanto, o estado normal, a verdadeira natureza do Homem.”

Sempre se suspeitou que por trás de Cálicles se ocultava uma certa personagem histórica da alta sociedade ateniense daquele tempo. Essa hipótese é muito verossímil e tem até certa probabilidade psicológica. (…) É, sem dúvida, uma figura tão histórica como Anito, inimigo de Sócrates e adversário dos sofistas, que aparece no Mênon; no caso, é indiferente que Cálicles fosse o nome real do personagem ou simplesmente um pseudônimo.”

Cálicles é o 1º dos defensores da retórica que ao ataque moral de Sócrates contra ela opõe um pathos de verdade própria. Reata desse modo a discussão sobre a retórica, encarada como instrumento da vontade de poder, discussão que Sócrates, com a inversão dialética do conceito de poder, fizera derivar, em seu favor, para o ético.”

No conceito de Cálicles, poder defender-se a si próprio constitui o critério do verdadeiro homem e uma espécie de justificação ética da tendência ao poder, como se o Estado primitivo se prolongasse até o presente. Quem não puder defender-se quando sofrer uma injustiça, mais lhe valerá morrer. Cf. Górg., 483B.” “As leis, a massa é quem faz, quer dizer, os fracos, que são os que concedem louvores e censuras segundo o padrão das suas conveniências.”

quando entra em cena um homem verdadeiramente forte, pisa em todo aquele amontoado de letras que são as nossas leis e instituições contrárias à natureza, e imediatamente volta a brilhar a chama do direito natural.” No caso de ser um homem verdadeiramente fraco, ídolo e ícone dos lumpen, chegou-se à desintegração máxima. É o direito natural não de uma casta legisladora na verdadeira acepção da palavra, mas o direito natural das bestas-feras.

Cálicles vê na educação apenas adestramento orientado no sentido de extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e a manter de pé o poder dos fracos. [Suma do Capital: pedagogia moderna] A formação começa na infância, como com os animais selvagens que se quer domesticar.” “Na concepção da lei como uma prisão contrária à natureza, Cálicles coincide com o sofista Antifonte e com a sua teoria do nomos e da physis.”

como cairá no ridículo sempre que pretender agir como pessoa privada ou pública, cada vez irá refugiando-se mais nos seus estudos, pois só neles se sentirá seguro. De tudo isto se depreende que, para fins de formação de paideia, é conveniente não se dedicar à filosofia senão durante certo tempo, pois, se o prazo deste estudo se prolonga, uma pessoa liberal torna-se servil, num estudo que agrilhoa o espírito e rouba totalmente a garra ao Homem. Esta maneira de encarar a paideia como uma simples fase da formação, para a qual se requerem só uns tantos anos, manifesta um perfeito antagonismo em relação ao elevado conceito de Platão, para quem ela abarca toda a vida do Homem.”

De que lhe adiantaria – diz – a sua filosofia da resignação perante a injustiça, se um belo dia o sepultassem na prisão e o acusassem injustamente de qualquer delito? Poderia acontecer que o acusassem de crime de morte, sem que ele <pudesse defender-se>. Podia acontecer que o esbofeteassem e que o autor da injúria se retirasse impune. A alusão à morte de Sócrates realça a força das palavras do cru realista aos olhos do leitor desta cena, que se supõe ocorrida muito tempo antes da condenação de Sócrates à morte.¹

Sócrates está satisfeito por ter enfim encontrado um adversário que diz abertamente o que pensa. Se conseguir fazê-lo incorrer também em contradição, já ninguém poderá objetar que Cálicles não exprimiu a sua verdadeira opinião, como Górgias e Polo.”

¹ Ao leitor cristão é inevitável também a associação com Cristo: sua altíssima e exigente moral demanda que a bofetada não seja paga nem defendida. Ninguém é digno de seguir esta elevada moral. Não há, no caso de Cristo, sentimento interno de injúria, nem ressentimento pela impunidade daquele que esbofeteia. Desde a bofetada já há uma corrupção: o não-nobre não está no lugar de esbofetear o nobre. Sequer passa pela sua cabeça – não se trata de sanção judicial ao ato vil. Isso, claro, numa República. Está errado bater como também está errado apanhar. É como a situação da mendicância na contemporaneidade: o princípio do justo caminho já foi perdido. Diante deste quadro, e somente deste quadro, tudo é permitido, nobres e vilões estão em equanimidade. Era do chorume.

Os modernos intérpretes de Platão fizeram muitas vezes da contradição entre esta maneira de definir o telos e a definição hedonística que dele se dá no Protágoras o ponto de partida para toda a sua concepção da evolução platônica, dando por certo que, até o Górgias, Platão não se elevou à altura moral do Fédon, com cuja tendência ao ascetismo e à positiva valoração ética da <morte> aquele coincide também.”

basta substituir, como norma, o prazer pelo bem, que é considerada a mais exata de todas as medidas por Platão, no Filebo, e por Aristóteles no Político, obra de juventude ainda acentuadamente platonizante.” O Político aristotélico não deve ser confundido com a sua Política, muito menos com o Político platônico.

E, como inequivocamente o Górgias nos ensina, a arete é aquilo cuja parousia faz os bons serem bons: quer dizer, é a Idéia, o protótipo de tudo o que é bom.”

Se o prazer e o desprazer não podem servir de norma à nossa conduta, a retórica tem de abandonar o posto diretivo que os seus representantes lhe atribuíam nos mais importantes assuntos da vida do Homem” “A escolha acertada do agradável e do desagradável, que só tenha a preocupação de saber se é bom ou mau: eis a missão decisiva da vida humana. Isto, porém, como o próprio Cálicles concede laconicamente a Sócrates, não incumbe a qualquer um.”

É agora que ganha significado pleno a interrogação de Sócrates sobre o caráter da retórica como saber, com que o Górgias principia. (…) dois tipos de vida (bioi) diferentes. Um baseia-se nas artes da lisonja, que na realidade não são artes, mas simples imagens enganosas delas. Atentando para a modalidade principal deste gênero, nós a chamamos de ideal retórico da vida.” “Em face dele aparece o tipo de vida filosófico. (…) trata-se, portanto, de uma verdadeira techne no pleno sentido da palavra (…) Esta terapêutica não existe só para o indivíduo, mas também para a coletividade. Por conseguinte, também a lisonja pode incidir sobre o indivíduo e sobre a massa. Platão aduz como exemplos da 2ª vários gêneros de poesia e de música, a música de flauta, a poesia coral e ditirâmbica e a tragédia. Todos eles visam exclusivamente [a]o prazer e, se neles descontarmos o ritmo, o metro e a melodia, ficará só a pura demegoria e a eloqüência pública (para a atitude negativa de Platão contribui, pois, a degeneração virtuosista da arte, na sua época). Esta concepção da poesia como parte da eloqüência, que mais tarde, adiantada já a Antiguidade, se generalizaria, aparece aqui pela 1ª vez, e tem em Platão um sentido francamente pejorativo.” “A análise da poesia segue a mesma linha que a da sofística e a da retórica, no Protágoras e no Górgias (…) O demos perante o qual o poeta aparece como retórico não é somente a parte masculina da cidade, mas uma massa mista de crianças, mulheres e homens, de livres e de escravos. No entanto, a retórica de primeiro plano, a que se dirige aos homens da cidade, ou seja, a retórica política, também não é melhor que o gênero por nós denominado poesia”

Se a grandeza de um estadista consiste realmente em satisfazer os seus próprios apetites e os da massa, então é indubitável que tais políticos merecem a fama que a História lhes confere. Porém, se a missão do estadista é infundir às suas obras determinada forma, um eidos tão perfeito quanto possível, para em seguida se orientar por ele, como fazem o pintor, o arquiteto, o construtor naval e todo e qualquer técnico, ordenando de modo lógico as partes do todo para que se ajustem bem, então chegaremos à conclusão de que aqueles estadistas não passaram de uns incompetentes. Assim como toda a produção de arte tem a sua forma e a sua ordem, de cuja realização depende a sua perfeição, e assim como o corpo humano tem o seu próprio cosmos, que chamamos de saúde, também na alma existe um cosmos e uma ordem.”

É certo que antes de Platão a língua grega não usa o termo cosmos neste sentido de ordem legal interior da alma; conhece, porém, o adjetivo kosmios, para exprimir uma conduta refletida e disciplinada. Também a lei de Sólon falava da eukosmia da conduta pública dos cidadãos e principalmente da juventude.”

devendo recordar-se que, no grego, a palavra <bom> não tem apenas o estrito sentido <ético> que hoje se dá a ela, mas é o adjetivo correspondente ao substantivo arete, e portanto designa toda a classe de virtude ou excelência.” “quando a língua grega designa o bem-estar com a expressão <fazer bem>, esta expressão encerra, para Platão, uma sabedoria mais profunda que a advertida por aqueles que a empregam: (…) <fazer bem> assenta pura e exclusivamente no <agir bem>.”

O que entre os deuses e os homens tem vigor não é a pleonexia, a ambição por mais; é a proporção geométrica. Mas de geometria nada entende Cálicles.”

Se se tratasse de se proteger contra as injustiças sofridas, não haveria outro caminho senão o de submeter-se incondicionalmente ao sistema político vigente na sua época. Quando um tirano furioso e desprovido de paideia domina o Estado, não tem outro remédio senão temer todo aquele que esteja espiritualmente acima dele. Jamais se poderá, pois, tornar seu amigo, e desprezará, ao mesmo tempo, os que forem piores do que ele. Por conseguinte, o tirano não poderá ter por amigos senão os que lhe sejam semelhantes, os que louvem e censurem o mesmo que ele louva e censura, e estejam, além disso, dispostos a se deixarem dominar por ele.”

Ambos aparecem colocados diante do mesmo problema: o de como se devem comportar para com o <tirano> do seu Estado – o demos ateniense – que exige sejam (sic) incondicionalmente respeitados os seus desejos. Sócrates mostrou que não ignora as conseqüências que a sua franqueza lhe pode acarretar e que está disposto a afrontá-las pelo bem da pátria. É Sócrates, o representante da virtude, quem é o herói. Cálicles, o defensor da moral do senhor, do direito do mais forte, é na realidade o homem fraco, que se adapta exteriormente para dominar, mediante a hábil flexibilidade do homem de palavras.”

Cálicles e Sócrates aparecem agora como a mais perfeita encarnação destes dois tipos de homem: o adulador e o lutador.”

É Platão quem, seguindo correntemente o hábito socrático da indagação dialética, introduz o conceito de exame na educação superior. Na República edifica totalmente sobre esta base a cultura do governante. Trata-se de um conceito tirado das technai dos especialistas: do médico, do arquiteto, etc., como o próprio Platão nos dá a entender pelos exemplos.”

Pelo que os seus críticos dizem dele, Péricles tornou os atenienses ociosos, covardes, tagarelas e ambiciosos, quando introduziu o pagamento de gratificações. Recebeu-os relativamente sossegados das mãos dos seus predecessores para convertê-los num povo revoltado, como a sua própria sorte o prova. Címon e Temístocles foram por esse povo enviados para o exílio, e Milcíades esteve para ser lançado no Hades.”

PRINCÍPIO DA ARETE DO S-H: “Ainda não existiu um estadista no sentido socrático da palavra. Os estadistas famosos de Atenas foram meros servidores do Estado, em vez de serem educadores do povo. Converteram-se no instrumento das fraquezas da natureza humana, que procuraram explorar, em vez de as superarem por meio da persuasão e da coação.”

Ninguém fale, porém, de ingratidão do povo que derrubar e expulsar os seus governantes. É o velho subterfúgio dos sofistas que têm a pretensão de educar os homens na virtude e se queixam de ingratidão quando os discípulos se portam mal para com eles e se recusam a pagar-lhes os honorários. Entre o sofista e o retórico não há diferença essencial, a não ser que por ela entendamos ser o retórico, que com tão grande desdém olha o sofista, muito inferior a ele na realidade, exatamente como o juiz o é em relação ao legislador e o médico em relação ao ginasta. Quando o retórico ou o sofista acusam quem dizem ter <educado>, é a si próprios e a sua educação que na realidade acusam.”

A opção pré-existencial da sorte da vida no além, que Platão pinta no final da República (617B-620D), serve de fundo metafísico a esta opção terrestre. A passagem do Górgias é, por sua vez, o desenvolvimento do tema da Apologia (29D) em que Sócrates opta também, ante o perigo iminente que ameaça a sua vida, pela conservação do seu bios filosófico.”

creio que somos pouquíssimos os atenienses (para não dizer que sou eu só) que nos esforçamos por praticar a verdadeira arte do Estado; talvez seja eu o único a defender a causa do Estado entre os homens deste tempo.”

É no Górgias que Platão abandona pela 1ª vez a simples atitude de exame e investigação predominante nos diálogos anteriores; apresenta ali o filósofo, na época em que esta investigação, de aparência meramente intelectual, e à qual ele atribui um tão alto valor para uma conduta reta, desvenda toda a sua profundidade, e em que o jogo, que ele veio seguindo de modo tão inexplicavelmente apaixonado, se transforma em luta contra o mundo inteiro, luta que exige o sacrifício da própria vida. Nos primeiros diálogos de Platão, a partir do Críton, soam de preferência os arpejos claros e alegres desta música filosófica, os quais atraem todos os amantes das musas. Mas quem não treme quando de repente ouve ressoar no Górgias as vozes profundas e brônzeas da sinfonia socrática e por trás daquela perfeita alegria capta o motivo da resignação diante da morte? Pela 1ª vez desde a Apologia aparecem aqui fundidas num todo a vida e a doutrina de Sócrates. Por entre a aparente indecisão lógica dos diálogos de Sócrates resplandece aqui a resolução incondicional da existência socrática, certa da sua meta final, uma existência, portanto, que já de algum modo deve possuir aquele saber tão ardentemente desejado e que exclui qualquer possibilidade de uma opção errônea da vontade.”

Platão expõe-no com a certeza – adquirida na unidade da palavra e da realidade na pessoa do seu mestre – de isto ser pura e simplesmente o autêntico Ser. O Górgias desvenda ao nosso olhar uma nova valoração da vida.”

Não é fácil considerar o Sócrates histórico o autor destas livres adaptações literárias dos mitos religiosos, mesmo que de vez em quando neles prendesse a atenção. Mas também não se pode aceitar, por corresponder a uma concepção excessivamente tosca da verdade espiritual, a hipótese tão difundida de que foi nas suas viagens ou de outro modo qualquer que Platão assimilou a influência dos mistérios órficos ou outros mitos parecidos, e os combinou, na sua concepção, com a ética socrática. [talvez se refira principalmente a Nietzsche? Pouco provável, haja vista a nota de rodapé a seguir.] Os mitos platônicos sobre o destino da alma no além-morte não são produtos dogmáticos de nenhum sincretismo histórico-religioso.(*) Interpretá-los assim seria menosprezar completamente a capacidade poética criadora de Platão, que neles atinge um dos seus pontos culminantes.

(*) Neste erro incorre a maioria dos investigadores que abordam o elemento órfico de Platão, movidos pelo interesse do historiador das religiões. O que vai mais longe neste sentido é Macchioro, que faz derivar do orfismo a maior parte da filosofia de Platão.”

Há 3 mundos e 4 reinos aquáticos no mais inferior deles (Fédon), mas quem liga, se somos apenas homens da segunda caverna que irão parar no Hades ou não? Nossa integridade ética ou a falta dela não se alterarão por causa disso.

SOBRE O VALOR DOS VALORES DE UM PONTO DE VISTA EXTRA-MORAL: “Sem um tal ponto de apoio num mundo invisível, a existência do homem que vive e pensa como Sócrates perderia o equilíbrio, pelo menos se for vista pelos olhos de seres limitados ao mundo dos sentidos. A verdade da valoração socrática da vida só se podia compreender se referida a um <além>, tal como o descrevia a linguagem vigorosa e sensível das representações órficas da vida post-mortem: uma morada onde se podia emitir um juízo definitivo sobre o valor e o desvalor, a felicidade e a ruína do Homem, onde a <própria alma> era julgada pela <própria alma>, sem o invólucro protetor e enganoso da beleza, da posição social, da riqueza e do poder. Este <juízo>, que a imaginação religiosa transpõe para uma 2ª vida, situada para além da morte, torna-se para Platão uma verdade superior, quando procura desenvolver até o fim o conceito socrático da personalidade humana como um valor puramente interior, baseado em si próprio.”

as injustiças passadas perduram na alma e formam a essência dela.”

As incuráveis – na maioria almas de tiranos e homens de poder, que já não é possível salvar com nenhuma terapêutica – são erigidas em exemplos eternos, paradeigmata,¹ para benefício das outras.”

¹ Paradigma e também arquétipo, norma.

Platão põe agora na pessoa do seu mestre a sua própria convicção apaixonada de ser Sócrates o verdadeiro educador de que o Estado precisa, e faz com que Sócrates, cheio de um sentimento da própria personalidade e com um pathos nada socrático, mas inteiramente platônico, denomine-se, baseado na sua pedagogia, o único estadista do seu tempo.”

Enquanto na Apologia este conflito podia ainda aparecer aos olhos de certos leitores como uma catástrofe isolada, o Górgias põe a descoberto que o pensamento de Platão gira sem cessar em torno daquele conflito.” “A Carta Sétima esclarece com precisão a perene importância filosófica que esta experiência vivida tem para Platão, e o faz com tal brilho que a obra e o testemunho pessoal se completam do modo mais perfeito.”

A crítica do Górgias dirige-se de maneira tão exclusiva contra os estadistas atenienses do presente e do passado, que há a aparência de que a vontade reformadora de Platão admitiria ainda a possibilidade de uma transformação política na sua própria pátria. No entanto, a Carta Sétima prova que já naquela época Platão não admitia tal possibilidade. Como é que o espírito socrático podia penetrar num Estado refratário até a medula, como o ateniense? Por trás do Górgias ergue-se já a idéia do Estado dos filósofos. A crítica demolidora do Estado histórico, contida nesta obra, não tende para a revolução violenta nem é a explosão de um fatalismo sombrio, de um estado de espírito calamitoso, o qual teria sido compreensível depois da bancarrota interna e externa de Atenas, subseqüente à guerra do Peloponeso.” O que é então? Um ligeiro escapismo que duraria 3 mil anos.

Para a maneira moderna de sentir confundem-se aqui duas missões distintas que, pelo menos até há pouco, era costume separarmos com rigor. A nossa política é política realista, a nossa ética individual, idealista.” “Foi no tempo de Sócrates que esta unidade sofreu o primeiro abalo sério. As razões do Estado e o sentimento moral dos indivíduos começaram a divorciar-se cada vez mais abertamente, à medida que se embrutecia a vida política e se tornava independente e mais afinado o sentimento moral dos melhores indivíduos. Esta ruptura da 1ª harmonia entre a virtude humana e a virtude cívica (…) constitui a premissa histórica do pensamento platônico sobre a filosofia do Estado. Era agora revelado que o poder do Estado de submeter os espíritos ao seu império – poder evidente na antiga cidade-Estado – tinha o seu reverso perigoso. Com o tempo, forçosamente levaria os indivíduos de cultura superior a enveredarem por atalhos e a afastarem-se do Estado ou a aplicarem-lhe a sua norma ética ideal, gerando desse modo um conflito insolúvel entre o seu modo de ver e o Estado real.”

A Idéia de Ser do Filho de Deus não é animada, mas um quadro na parede.

segundo o modo de ver de Platão, o Estado não pode ficar para trás em face desta evolução moral e tem de encetar o caminho de se converter em educador e médico de almas ou então resignar-se, caso não queira assumir esta missão, a ser considerado um organismo degenerado e indigno da sua autoridade.”

Longe de se opor ao saber profissional, é deste que ele tira o seu ideal.” “É precisamente ao chegar ao ponto da evolução em que esperamos deparar com o moderno conceito de consciência pessoal e de livre decisão moral do indivíduo que nós vemos este conceito ser de novo eliminado e em seu lugar instaurada uma verdade filosófica objetiva que reivindica para si o direito de dominar toda a vida da comunidade humana e, portanto, do indivíduo.”

Aquela brincadeira de infância: o último a chegar é a mulher do tirano.

3.8 O Mênon

No Protágoras, Sócrates procurara ganhar os sofistas para a sua causa. Mas quanto mais tentava aprofundar a sua tese de que a virtude só podia ser, em última instância, um saber, afastando-se assim da sua primitiva negação da possibilidade de a virtude ser ensinada, mais Protágoras resistia a aceitar que a sua pretensão de passar por mestre da virtude só podia ser salvaguardada mediante a aceitação do axioma socrático de que a virtude é um saber.”

uma vez estabelecida a equivalência entre a virtude e o saber e esclarecida a importância deste saber-virtude para toda a educação, tornava-se urgentemente necessária uma investigação especial do problema do que era o saber assim concebido. Pois bem, o Mênon é o primeiro diálogo em que se aborda esta investigação. Esta é, aliás, a obra mais chegada no tempo ao grupo de diálogos que anteriormente comentamos, e constitui, portanto, a resposta mais imediata de Platão ao problema colocado no Protágoras: que espécie de saber é aquele que Sócrates considera fundamental para a arete?” “Em nenhum momento poderia haver um programa da sua escola que limitasse a filosofia ao problema do saber, principalmente se esta palavra se concebe com a generalidade abstrata da moderna teoria do conhecimento e da lógica moderna.”

Segundo Platão, é em começar por inquirir primeiro o que é a arete em si, antes de se aventurar a dizer como se entra na posse dela, que se baseia a nova formulação do problema por Sócrates. Quando Sócrates condiciona a aquisição da arete à solução do problema da sua essência, ou seja, a um difícil e complexo processo intelectual, isto significa que a arete passou a ser algo problemático para ele e para a sua época.”

Mênon aprendeu com Górgias, seu mestre, a distinguir a virtude do homem e a da mulher, a do adulto e a da criança, a do homem livre e a do escravo.”

Este algo, a partir de cujo ponto de vista as virtudes não aparecem múltiplas e distintas, mas, ao contrário, são todas uma e a mesma virtude, é o que Platão denomina eidos. (…) A locução <olhando para> aparece com freqüência na pena de Platão e exprime plasticamente a essência do que ele entende por eidos ou idea.” O Ser grego é acessível através da visão, e não da reflexão cartesiana da representação. O olho reflete a luz (as cores, a forma) assim como na era moderna a ‘mente’ reflete a própria ‘idéia’ (o próprio olho refletindo a forma)!

o eidos platônico se elabora de maneira absolutamente concreta, com base no problema da virtude (arete). Se queremos saber o que é a saúde, não vamos averiguar se ela se manifesta de modo diverso no homem, na mulher, etc., mas procuramos, sim, captar o eidos, sempre e em todas as partes idêntico, da saúde.”

Precisamente, o eidos do bem ou da arete, do qual Platão fala, não é outra coisa senão esta concepção do bem <em totalidade>. O característico disso é que este bem <em totalidade> é ao mesmo tempo designado por Platão como o verdadeiro real e existente, o que repugna a uma equiparação com o nosso <conceito> lógico, com o universal. No Mênon, tal como nos diálogos anteriores, não deparamos nunca com uma verdadeira definição da arete, e é evidente, aliás, que semelhante definição não tem de momento nada que ver com o problema da virtude em si, quer dizer, da idéia. O <que é> é explicado como idéia e não como definição.”

É Aristóteles quem, de certo modo, rompe a marcha por este caminho errado, ao sustentar que foi Sócrates quem primeiro procurou definir os conceitos universais, que Platão hipostasiou em uma realidade ontológica e assim inutilmente duplicou.” “A maioria dos lógicos modernos segue os passos de Aristóteles nesta reconstituição do processo interior que levou Platão a estabelecer a teoria das idéias. A <escola de Marburgo>, que durante algum tempo preconizou com grande insistência e em numerosas publicações uma nova interpretação platônica, declarou-se energicamente contrária à concepção aristotélica. Veja-se principalmente Paul NATORP, Platos Ideenlehre (Marburgo, 1910). Esta reação não levou diretamente a esclarecer a compreensão da verdadeira posição histórica dos dois grandes filósofos, porque pecava em sentido contrário. (…) Julius STENZEL, no seu primeiro livro, Studien zur Entwicklung der platonischen Dialektik (Breslau, 1917, trad. inglesa de D.J. Allan, Oxford, 1940 [op. cit. em negrito]), foi quem soube tirar as conclusões acertadas desta tentativa frustrada da escola de Marburgo e aprofundar a verdadeira situação histórica da lógica platônica do Ser.”

Este conceito lógico universal parece tão evidente aos olhos de um moderno que se considera simples apêndice fastidioso e problemático aquilo em que a idéia platônica ultrapassa este conceito (…) ainda que nós distingamos claramente em Platão os 2 aspectos – o do lógico universal e o do ontológico real –, o certo é que para ele formam absolutamente uma unidade.”

os equívocos dos intérpretes modernos não provêm tanto de se interpretarem mal as palavras do próprio Platão, coisa dificilmente concebível em si mesma, como do fato de para elas terem transferido certas noções lógicas de origem posterior.” “Na opinião de Aristóteles, Platão fizera dos conceitos universais entidades metafísicas, atribuindo-lhes uma existência independente, separada das coisas captadas pelos sentidos. A verdade é que Platão nunca deu o segundo passo (o de <hipostasiar> os conceitos), simplesmente porque também não dera o primeiro, ou seja, a abstração dos conceitos universais como tais. Longe disso: para ele, o conceito lógico aparece ainda completamente envolto na roupagem da idéia.”

A relação destes esforços dialéticos comuns com o ato de visão intelectual que aparece no fim deste caminho esclarece-se na Carta VII, por meio da comparação com o ato de friccionar 2 pedaços de madeira até fazerem fogo.”

Além do alto grau de consciência lógica que Platão revela constantemente neste diálogo, é eloqüente neste sentido principalmente a grande quantidade de termos técnicos que ele usa para designar os seus diferentes passos metódicos. Para fazer um <exercício>, como Platão faz aqui, é necessário dominar as regras que se querem tomar como base. Neste sentido, é muito instrutiva a arte consciente da ilustração dos processos lógicos por meio de exemplos (paradigmas), cuja função Platão põe continuamente em relevo.”

a essência não admite, como p.ex. o Fédon ensina, um mais e um menos, e nenhuma figura o é em maior ou menor grau que outra qualquer. O círculo não é figura em grau mais alto do que o retângulo. Cf. Fédon, 93B-D et Mênon 74E.” // Geometria aristotélica: círculo é a figura por excelência.

arte experimental x a priori autocontido em si mesmo

Enquanto o Górgias, para traçar o esboço de uma nova techne ético-política, tomava antes a Medicina por modelo, o Mênon segue principalmente o exemplo das matemáticas.”

A transposição acima, da arte médico-hipocrática às matemáticas, obriga a entrada da reminiscência no arcabouço platônico. A idéia de reminiscência se torna uma necessidade filosófica (reminiscência como visão interior preexistente):

Para se aproximar da natureza desta intuição interior, Platão recorre ao mundo de idéias do mito religioso. E como os gregos não podem representar-se nenhuma intuição sem objeto real, e por outro lado o espírito do Homem – p.ex., o do escravo da investigação geométrica anterior – não viu nem conhece ainda nada de semelhante, Platão interpreta a existência potencial do conhecimento matemático na alma como uma visão comunicada a esta numa vida anterior.”

Interessa menos a Platão a idéia da imortalidade, como base necessária para o seu conceito da personalidade moral, do que a possibilidade de essa idéia servir de fundo a sua nova teoria de um saber de certo modo inato na alma do Homem. Sem aquele fundo, este saber ficará reduzido a uma idéia pálida e vaga. Em contrapartida, em conexão com a preexistência, abrem-se perspectivas inimagináveis em várias direções, e o conhecimento do Bem em si, que se investiga, alcança a completa independência em relação a qualquer experiência exterior e uma dignidade quase religiosa.”

Sócrates sempre se detivera no não-saber. Platão, ao contrário, sente-se impetuosamente impelido a ir avançando até alcançar o saber [impossível por definição, caso em que nos tornaríamos deuses, cf. O Banquete]. Apesar disso, é na ausência de saber que ele vê o sinal da verdadeira grandeza de Sócrates, pois Platão interpreta-a como as dores do parto de um tipo completamente novo de saber, que Sócrates trazia nas entranhas. Trata-se daquele conhecimento interior da alma que o Mênon procura captar com precisão e descrever pela 1ª vez: a intuição das idéias. (…) E não foi porque só a partir desse momento Platão tivesse sido capaz de vê-la assim; é que ele só a julgou possível de assim ser explicada aos outros a partir do momento em que abordou a tarefa de expor a natureza maravilhosa deste saber, que descobria dentro de si próprio a raiz da sua certeza.” “Platão demonstra logo, à luz do exemplo matemático do episódio do escravo, que a aporia é precisamente a fonte do conhecimento e da compreensão.” “A digressão matemática do Mênon serviu para pôr em destaque a fecundidade educadora das aporias e para as apresentar como a primeira fase na senda do conhecimento positivo da verdade.” “No Mênon não faz mais do que indicar a teoria de que o saber socrático é reminiscência, bem como a teoria da imortalidade e da preexistência, que haviam de ser desenvolvidas mais tarde, no Fédon, na República, no Fedro e nas Leis. (…) A aspiração à verdade não é outra coisa senão a expansão na alma do conteúdo que por natureza ela contém.” “Não é por alguém lhe ensinar, mas sim por tirar do seu próprio espírito o saber, que o escravo descobre a verdade da regra matemática.”

A coragem de investigar aparece aqui como a característica da verdadeira virilidade. Trata-se, evidentemente, de explicar as censuras de críticos como Cálicles, segundo os quais a entrega permanente à filosofia produzia efeito deprimente e tirava a virilidade ao homem.”

Fica, todavia, sem determinação plena a relação entre a justiça e a virtude por antonomásia e vemos que a essência desta não fica esclarecida por aquela definição, em que se comete o erro lógico de querer explicar a essência da virtude mediante uma parte dela, que é a justiça.” Só o sábio (detentor do valor dos valores) pode arbitrar. Não se arbitra sobre o valor dos valores, apenas sobre os valores, com base no valor dos valores.

a experiência parece demonstrar que não existem professores de virtude, e que até hoje nem os homens mais importantes do passado e do presente de Atenas foram capazes de transmitir aos próprios filhos as suas virtudes e o seu caráter. Sócrates está disposto a admitir que aqueles homens possuíam a arete, mas, se esta consistisse num saber, teria por força de se ter manifestado como força educadora.”

EU SEI, MAS NÃO SEI COMO SEI: “Assim, ao terminar o Mênon, continuamos, aparentemente, no mesmo lugar em que estávamos no Protágoras. Mas isto é só aparência, pois na realidade o novo conceito do saber que com o auxílio dos exemplos matemáticos adquirimos na parte central do Mênon abre-nos as perspectivas para um tipo de conhecimento que não é suscetível de ser ensinado do exterior, mas nasce na própria alma de quem o inquire com base numa orientação correta do seu pensamento. Em Platão, o encanto da arte socrática do diálogo consiste em que nem sequer aqui, quando estamos tão próximos de alcançar o resultado, ele nos serve por suas mãos, mas faz com que o encontremos nós próprios.” “Com efeito, a nova paideia não é suscetível de <ensino>, tal como os sofistas o concebiam, e deste ponto de vista Sócrates tinha razão ao negar a possibilidade de educar os homens pelo simples fato de instruí-los.”

uma vez que o ensino dos sofistas não conduz à arete e a arete que os estadistas possuem por natureza não pode transmitir-se a outros, parece que só por obra do acaso divino a arete pode existir no mundo, a não ser que se encontre um estadista capaz de converter em estadista um outro homem. Todavia, esta expressão <a não ser que>, que facilmente poderia passar despercebida, contém na realidade a solução do dilema, pois já sabemos pelo Górgias que, segundo a paradoxal tese de Platão, é Sócrates o único verdadeiro estadistas que torna os homens melhores.”

um talento e um dom naturais que não saibam dar razão de si próprios.”

Já antes de abandonar o corpo, o espírito de Sócrates paira no Fédon, como o cisne apolíneo sobre as pradarias do Ser puro; no Banquete, em contrapartida, Platão apresenta o filósofo como a forma suprema do homem dionisíaco e o conhecimento da beleza eterna, a cuja visão ele se eleva, como a satisfação suprema do primitivo impulso humano, do eros, do grande daimon que mantém coeso, interior e exteriormente, o cosmos. Na República, finalmente, o saber do filósofo revela-se como a fonte, na alma, de toda a força legisladora e criadora de comunidades.”

o conhecimento do <sentido> é a força criadora que tudo dirige e tudo ordena.”

3.9 O Banquete

Já no Lísis, um dos seus mais graciosos diálogos menores, Platão colocara o problema da essência da amizade, frisando com isso um dos temas fundamentais da sua filosofia, que mais tarde desenvolveria em toda a sua plenitude, nas grandes obras da sua maturidade que tratam do eros: o Banquete e o Fedro.”

A sua teoria da amizade constitui o nervo de um modo de considerar o Estado, no qual vê primordialmente uma força educadora. Na República e na Carta Sétima, Platão fundamenta o seu afastamento de qualquer atividade política na carência total de amigos e camaradas certos que o pudessem ajudar na empresa da renovação da polis.¹ Quando a comunidade sofre de uma doença orgânica que lhe afeta o conjunto ou é destruída, a obra da sua reconstrução só pode partir de um grupo reduzido, mas fundamentalmente são, de homens com idênticas idéias, o qual sirva de célula germinal para um novo organismo”

¹ Eis o mal de todo “bom filosófo”!

É, portanto, um problema que ultrapassa em muito o âmbito que nas modernas sociedades, extremamente individualizadas, chamamos amizade. Para compreendermos claramente o verdadeiro alcance do conceito grego da philia, precisamos apenas seguir o desenvolvimento posterior deste conceito até chegarmos à teoria da amizade, sutilmente matizada, da Ética a Nicômaco.”

A psicologia trivial que em tempos de Platão se esforçava, com pouco êxito, por encontrar uma explicação para a amizade atribuía-a quer à semelhança de caráter quer à atração dos contrários. Elevando-se acima deste campo exterior de simples comparações psicológicas, o Lísis de Platão, em audacioso avanço, descobre o novo conceito de <primeiro amado>, que Platão exige e pressupõe como fonte e origem de toda a amizade entre os homens.” “por trás daquele <primeiro amado>, em virtude do qual amamos tudo o mais, estava o supremo valor, que o Bem encerra em si. A data do Lísis e a sua significação para o problema da evolução filosófica de Platão foram objeto de uma interessante polêmica entre M. POHLENZ (em Göttinger Gelehrte Anzeigen, 1916, núm. 5) e H. VON ARNIM (em Rheinisches Museum, Nova Série, t. LXXI, 1916, p. 364). A minha opinião coincide com a de Arnim quanto à origem mais antiga do Lísis.”

Com o próprio título da obra Platão indica já que, ao contrário do que ocorre na maioria dos seus diálogos, ela não gira em torno de uma figura central. Não estamos diante de um drama dialético como o Protágoras ou o Górgias. E ainda menos a podemos comparar a obras puramente científicas do tipo do Teeteto¹ ou do Parmênides, onde se expõe sobriamente o esforço realizado para resolver determinado problema.”

¹ https://seclusao.art.blog/2018/08/24/teeteto-ou-da-natureza-do-saber-ou-do-conhecimento-ou-acerca-da-nocao-de-silaba-e-sobre-narizes-achatados/

À volta da mesa do poeta trágico Ágaton, congregam-se representantes de todos os tipos de cultura espiritual da Grécia. Aquele poeta acaba de alcançar no agon dramático um brilhante triunfo e é ao mesmo tempo o festejado e o anfitrião. Mas é Sócrates quem, dentro de um círculo restrito, alcança o triunfo no agon dos discursos, um triunfo mais poderoso que o aplauso das 30 mil ou mais pessoas que no dia anterior aclamaram Ágaton no teatro. (…) Além do trágico, está presente Aristófanes, o melhor comediógrafo da época; e, dado que os discursos destas figuras marcam indubitavelmente o ponto culminante de todo o diálogo, antes de Sócrates, como último de todos, começar a falar, o resultado é o Banquete se tornar a encarnação visível do primado da filosofia sobre a poesia, primado que Platão postula na República. Para alcançar esta dignidade, a filosofia teve de converter-se também em poesia, ou pelo menos criar obras poéticas de 1ª grandeza, que, graças a sua força imortal e independentemente de toda a luta de opiniões, patenteassem ao nosso olhar a sua essência.”

A combinação da paideia aristocrática de Teógnis com o amor do poeta pelo distinto jovem Cirno, a quem dirige as suas exortações, ilumina a relação existente entre o banquete e o eros educacional que inspirou o Banquete platônico. (…) os banquetes (…) figuravam entre as formas fixas de sociabilidade de mestres e alunos”

Entre os títulos das obras perdidas de Aristóteles e outros discípulos de Platão aparecem mencionadas leis minuciosas destinadas a regulamentar os banquetes, semelhantes às que Platão preconizava nas Leis.(*) No início desta obra dedica um livro inteiro ao valor educacional do beber e das reuniões de bebedores, defendendo estas práticas contra os ataques de que eram alvo.

(*) Segundo ATENEU, V, Xenócrates, discípulo e segundo sucessor de Platão, escreveu as Leis para o banquete, destinadas à Academia; e outro tanto fez Aristóteles para a escola peripatética.”

A escola de Isócrates adota a atitude contrária. Reflete-se nela a sobriedade do mestre, que via no excesso de bebida a ruína da juventude ateniense. E nem sobre o eros pensava diferentemente. Mas Platão obriga as duas forças, Eros e Dioniso, a se colocarem a serviço da sua idéia. (…) Ele julga que, sem o impulso e o entusiasmo inesgotáveis e incessantemente renovados das forças irracionais do Homem, jamais será possível atingir o cume daquela transfiguração suprema que atinge o espírito, quando este contempla a idéia do Belo. A união do eros e da paideia, eis a idéia central do Banquete.”

Desconhecemos as experiências pessoais vivas que serviram de base a este processo de purificação. Sabemos que inspiraram uma das maiores obras poéticas da literatura universal.”

Censura os poetas, porque tendo por missão cantar em hinos os deuses, esqueceram-se de Eros, e propõe-se, em conseqüência, preencher esta lacuna, cantando em prosa o panegírico deste deus.”

Pausânias, sem abandonar o tom mitologizante do discurso de Fedro e firmando-se na dupla natureza de Afrodite, a serviço da qual se encontra Eros, distingue o Eros Pândemos e o Eros Urânios.” “O eros usual e corrente, o instinto irrefletido e vulgar, é vil e repudiável, porque tende à mera satisfação dos apetites sensuais; em contrapartida, o outro é de origem divina e o impulsiona o zelo de servir ao verdadeiro bem e à perfeição do amado.”

Na Élida e na Beócia, i.e., nas regiões da Grécia espiritualmente menos desenvolvidas e estagnadas numa fase de cultura arcaica, considera-se o eros como algo simplesmente intocável. Sucede o contrário na Jônia, quer dizer, de acordo com a interpretação de Pausânias, na parte do mundo helênico mais afim da maneira de ser asiática, onde o eros é rigorosamente castigado. O orador explica o fato pela influência dos bárbaros e das suas concepções políticas.” “Também não se pode negar que, segundo a lenda histórica, a democracia ateniense foi fundada por uma dupla de tiranicidas, Harmódio e Aristogeíton, unidos pelo eros para a vida e para a morte.” “Ao contrário da atitude de outros Estados que se citam, a atitude de Atenas e de Esparta não é de aprovação nem de condenação, mas antes equívoca e complexa.”

a opinião defendida por Pausânias procede essencialmente da própria Esparta, como também acontece com a prática da pederastia como tal. Este costume, derivado da vida nos acampamentos militantes da época das migrações das tribos – época muito mais próxima entre os dórios que entre os demais gregos e que se prolongava no modo de vida da casta guerreira espartana (…) Quando Esparta caiu e a sua influência específica desapareceu, o que sucedeu pouco depois da época em que nasceu o Banquete, a pederastia declinou rapidamente, pelo menos como ideal ético, e só perdurou nos séculos posteriores da Antiguidade como prática viciosa e desprezível dos cinaedi.” Werner escreve de uma perspectiva inevitavelmente homofóbica. Mas estes cinaedi com certeza são depravados sadomasoquistas da decadente Roma, como a palavra indica: usavam chicotes para torturar e lacerar suas vítimas, i.e., interesse libidinal e amoroso, assim como o doentio Ultra-Romantismo vai idealizar em obras como Venus in Furs.

A Platão, acontece-lhe com o eros o mesmo que com a polis e com a fé da velha Grécia, na qual se baseava: como poucos espíritos daquela época de transição, sente de maneira forte e pura todas aquelas idéias, mas transmite ao novo mundo, em cujo centro metafísico a projeta, apenas a imagem transfigurada da essência ideal delas.” Amizade platônica: essência ideal da pederastia. O gozo do professor em ensinar e do aluno em aprender.

Uma terceira forma de tradição espiritual é a que se manifesta no discurso de Erixímaco. Como médico, parte da observação da natureza, sendo que o seu horizonte visual não se limita ao Homem” “Erixímaco defende sistematicamente o poder gerador de Eros como princípio do devir de todo o mundo físico (…) À primeira vista, parece impossível estabelecer, do ponto de vista da physis, qualquer divisão entre as diferentes formas ou modalidades do eros, por um critério de valor moral, como Pausânias procurara fazer, partindo do nomos vigente na sociedade humana. (…) Na sua opinião, o denominador comum a que aquela distinção de ordem moral deve reduzir-se é a distinção entre o são e o enfermo.” “Compreendemos agora por que Platão escolheu um médico para representante da concepção naturalista. Ele o fez precisamente em vista desta distinção, que conduz à submissão do eros a um critério valorativo.” “O seu conceito da concórdia harmônica baseia-se na teoria heracliteana dos contrários, que aliás desempenhava também considerável papel no pensamento médico da época, como revela principalmente a obra pseudo-hipocrática Da Dieta.” Littré pende mais para “hipocratizar” ambos os livros “hipocráticos” sobre dieta alimentar.

Devem conceder-se todos os favores ao homem casto e conservar o seu eros; mais ainda, é preciso empregá-lo como meio para transplantar esse recato e essa moral para os homens que ainda os não possuem. Tal é o eros uranios, o amor pela musa Urânia. Em contrapartida, deve ser aplicado com cautela o eros pandemos, a inclinação para a musa Polímnia. (…) algo assim como o médico usa e fiscaliza as artes do cozinheiro.

Na sua intervenção, Erixímaco faz do eros uma potência alegórica tão universal, que a sua substância corre o risco de desaparecer no seio do geral. Em contrapartida, o comediógrafo Aristófanes volta, no seu engenhoso e genial discurso, a orientar-se para os fenômenos humanos concretos do amor”

Este impulso nostálgico todo-poderoso que em nós palpita só pode ser compreendido pela especial natureza do gênero humano. No grotesco mito da forma esférica do homem primitivo (…) vemos expressos, com a profundidade da fantasia cômica de Aristófanes, a idéia que até agora buscamos em vão nos discursos dos outros. O eros nasce do anseio metafísico do Homem por uma totalidade do Ser, inacessível para sempre à natureza do indivíduo.” “O amor por outro ser humano é aqui focalizado à luz do processo de aperfeiçoamento do próprio eu. Esta perfeição só é atingível na relação com um tu (…) Aristófanes focaliza o problema em toda a sua extensão, não só como amor entre 2 seres do mesmo sexo, mas sob todas as formas em que se apresenta. (…) Não é, evidentemente, a união física que faz com que um sinta um prazer tão grande com a presença do outro e a ela aspire com tanta força, mas é indubitavelmente uma coisa diferente o que a alma de ambos quer”

Assim como o saber era concebido no Mênon como um voltar a recordar o ser puro contemplado na preexistência, assim o eros aparece agora como a nostalgia da totalidade da natureza primitiva do Homem, tal como numa era anterior do mundo existiu, e portanto como orientação estimuladora em direção a algo que eternamente devia ser.” Um quê já de desembocadura no niilismo.

se pusermos este mito diante do espelho do discurso de Diotima, veremos bem que já se entrevê de maneira vaga, através dele, a norma do Bem, na qual encontram realização plena todo verdadeiro amor humano e toda amizade autêntica.

O último discurso antes daquele de Sócrates, reverso consciente da franca e expressiva pintura burlesca do poeta cômico, é o panegírico do jovem Ágaton (…) o mito de Aristófanes elevara o tema do eros acima da amizade masculina e convertera-o no problema da essência do amor em geral; na subseqüente declamação do poeta trágico em moda, tão aplaudido, a quem a comédia coeva [daquele tempo] motejava por ser amigo das mulheres, o tema da pederastia passa completamente para o segundo plano¹ (…) A imagem do eros traçada por Ágaton é a menos psicológica do mundo, coisa surpreendente, sobretudo se a compararmos com o discurso imediatamente anterior de Aristófanes, baseado inteiramente na ação exercida pelo eros sobre a alma humana. Ao contrário, o relato de Ágaton tem forte tendência para o idealismo.”

¹ Podemos dizer com confiança: como na obra de Jaeger inteira.

É a sua própria imagem refletida num espelho que ele nos pinta com enleio narcisista, na sua descrição de Eros.” “É este discurso que Platão escolhe para fundo imediato do discurso de Sócrates. Põe o esteta, sensualmente refinado e conhecedor, em contraste com o asceta filósofo”

Todo o eros representa um anseio por qualquer coisa que não se tem e se deseja ter. Por conseguinte, se Eros aspira ao Belo, é porque não é ele próprio o Belo (…) É a partir desta base dialética negativa que Platão desenvolve a teoria de Sócrates e de Diotima. Não é, contudo, em forma didática que ele a desenvolve, mas sim sob a forma do mito em que Eros aparece como descendente de Poros (riqueza) e de Penia (pobreza)”

Sócrates deixa Ágaton em paz assim que este, após as primeiras perguntas, lhe confessa, alardeando amável fraqueza, que já se sente como se não soubesse absolutamente nada de tudo o que acabava de falar. Assim se atam os pés à ânsia de saber mais que os outros, ânsia malsoante em boa sociedade. Mas a conversa é levada dialeticamente ao seu termo pelo recurso da sua deslocação para um passado remoto e da conversão de Sócrates, de interrogador molesto e temido que era, em ingênuo interrogado. Põe-se a contar aos convidados uma conversa que teve há muito tempo com a profetisa de Mantinéia, Diotima, acerca do eros.”

No domínio da religião grega, a forma dos mistérios era a forma mais pessoal da fé e Sócrates descreve aqui, como visão por ele vivida pessoalmente, a ascensão do filósofo até o mais alto cume, onde se conserva a nostalgia do eternamente belo, que palpita no fundo de todo o eros.”

Também não é um ser moral; é, sim, algo intermediário entre o moral e o imoral, um grande daimon que age como intérprete entre os deuses e os homens.”

Os deuses não filosofam nem aprendem, porque estão na posse de toda a sabedoria. Por sua vez, os tolos e os ignorantes não aspiram a adquirir conhecimento, pois o verdadeiro mal da incultura reside precisamente em que, sem nada saber, julga saber muito. Só o filósofo aspira a conhecer, pois sabe que não conhece e sente necessidade de conhecer. O filósofo ocupa um lugar intermediário entre a sabedoria e a ignorância; é por isso que só ele está apto para a cultura e se esforça sincera e seriamente por adquiri-la.”

À imagem do Eros traçada por Ágaton, a qual era simplesmente uma representação do ser amável e amado, Platão opõe, por conseguinte, uma imagem que tira os seus traços da essência do amante.”

O fato de que, apesar de tudo, a linguagem não chame de eros ou eran toda a vontade, mas reserve aquele nome e aquele verbo para exprimir certos anseios, tem, segundo Platão, o seu paralelo em outras palavras, como poiesis, ‘poesia’, a qual, embora signifique apenas ‘criação’, foi no entanto reservada pelo uso para um determinado tipo de atividade criadora. Na realidade, esta nova consciência de quanto há de arbitrário nesta ‘delimitação’ do significado de termos como eros ou poiesis não é senão um fenômeno concomitante do alargamento deste conceito, por obra de Platão e da operação pela qual ele procura enchê-lo de um conteúdo universal.”

São as palavras de Diotima o melhor e mais conciso comentário deste platonizante conceito aristotélico [?] do amor de si próprio.”

Por outro lado, esta transmutação parece privar o eros do seu sentido finito, verdadeiro e imediato, que é o desejo de algo concretamente belo. É por isso que Platão lhe faz justiça na parte seguinte do discurso de Diotima.” “A vontade física da procriação ultrapassa amplamente a esfera humana. Se partirmos do fato de que todo o eros é ânsia de ajudar o eu próprio autêntico a realizar-se, o impulso à procriação e perpetuação dos animais e dos homens aparecerá como a expressão do impulso de deixar no mundo um ser igual a eles próprios.”

Todo o eros espiritual é procriação, ânsia de cada um eternizar a si próprio numa façanha ou numa obra amorosa de criação pessoal que perdure e continue a viver na recordação dos homens. Todos os grandes poetas e artistas foram procriadores deste tipo e o são igualmente, no mais alto grau, os criadores e modeladores da comunidade estatal e doméstica.”

Para ele só é digna de se viver uma vida que decorra na constante contemplação desta beleza eterna. Não se trata portanto de um ato de contemplação a partir de um momento especial, de um momento estético de deslumbramento. A exigência de Platão só pode ser satisfeita por uma vida humana inteira projetada para esta meta (TELOS).”

O belo e o bom não passam de dois aspectos gêmeos de uma única realidade, que a linguagem corrente dos gregos funde numa unidade, ao designar a suprema arete do Homem como <ser belo e bom> (KALOKAGATHIA).” “Ora, para Platão existe absoluta harmonia entre o cosmos físico e o cosmos moral.”

já no amor pela beleza corpórea, fala-se dos ‘formosos discursos’ que provoca.”

Não é no afastamento do mundo daquele que conhece que se deve traduzir na prática esta separação da idéia universal do Belo das suas manifestações finitas.”

O sentido e razão de ser de toda a paideia é fazer triunfar o Homem dentro do homem. A distinção entre o homem-individualidade-fortuita e o homem superior serve de base para todo humanismo. Foi Platão quem tornou possível a existência do humanismo com esta concepção filosófica consciente, e o Banquete é a obra em que pela 1ª vez se expõe esta doutrina.”

Platão não deixa a obra terminar pelo afastamento do véu que cobre a idéia do Belo e pela interpretação filosófica do eros. A obra culmina na cena em que Alcibíades, à cabeça de um bando de companheiros ébrios,¹ irrompe casa adentro e em audacioso discurso aclama Sócrates como mestre do eros (…) A sua paixão pedagógica impele-o para todos os jovens belos e bem-dotados, mas no caso de Alcibíades é a profunda força de atração espiritual, que irradia de Sócrates, que surte efeito e que, invertendo a relação normal de amante e amado, faz com que seja o próprio Alcibíades a aspirar em vão pelo amor de Sócrates”

¹ O coro.

A tragédia do amor de Alcibíades por Sócrates, a quem procura e de quem ao mesmo tempo quer fugir, pois Sócrates é a consciência que o acusa a ele mesmo, é a tragédia de uma natureza filosófica esplendidamente dotada” “É a instintiva veneração do forte por aquilo que compreende ser a força (…) e a aversão que a debilidade do ambicioso e do invejoso sente contra a grandeza moral da verdadeira personalidade” “É indubitável que Alcibíades queria ser discípulo de Sócrates, mas a sua natureza não o deixa separar-se de si próprio. Alcibíades encarna o tipo que melhor podia servir a Platão para ilustrar que era aquele tipo que realmente Sócrates queria: é o jovem de aspirações geniais que toma nas suas mãos os assuntos dos atenienses, sem contudo preocupar-se consigo mesmo, embora isso lhe fosse tão necessário (Banq., 216 A). (…) Alcibíades queria trabalhar na edificação do Estado antes de edificar o <Estado dentro de si mesmo> (cf. Rep. IX, final).

Afinal de contas – flashback –: a virtude pode ser ensinada?

R: Não para alces!

3.10 A República – I

R.L. NETTLESHIP, The Theory of Education in the Republic of Plato (Chicago, 1906).

Nem o próprio Aristóteles, a quem costumamos chamar o sistemático por antonomásia, emprega ainda a palavra <sistema> com este significado.”

A criação de um tipo elevado de Homem, de que nos fala o Estado platônico, nada tem a ver com o povo em conjunto, concebido como raça.”

Os idiotas do Hades ou fundo oceânico.

ocupam livros inteiros (os livros 2 e 3) os debates sobre a música e a poesia; o problema do valor das ciências abstratas é colocado num lugar central (livros 5 a 7), e no livro 10 volta a ser examinado o problema da poesia, a partir de novos pontos de vista. Uma aparente exceção ao que foi dito é a investigação das formas de governo nos livros 8 e 9.”

Grandioso tema para os juristas, não só do nosso tempo, mas também da época de Platão, que pela primeira vez fez surgir a ciência comparada do Estado! Mas nem sequer sob este ponto de vista a atenção do filósofo incide sobre a vida jurídica real; é na teoria das ‘partes da alma’ que desemboca a investigação do problema do que é justo.”

O intérprete neoplatônico Porfírio sublinhava acertadamente que a teoria das partes da alma em Platão não é psicologia no sentido corrente, mas sim psicologia moral. Aristóteles não a adota na sua obra de psicologia, mas usa-a nos trabalhos éticos. O seu significado é pedagógico. Veja-se o meu Nemesios von Emesa (Berlim, 1913), p. 61.”

Cf. GOMPERZ, Griechische Denker, t. II. Gomperz defende que a descrição da educação dos governantes da República (livros 6-7) é apenas um pretexto para expor a epistemologia e a ontologia próprias de Platão. No mesmo sentido, Gomperz vê na educação dos guardiões, nos livros 2-3, outro pretexto que torna possível para Platão examinar extensamente toda a espécie de problemas nos diferentes campos da mitologia, da religião, da música, da poesia e da ginástica. Como se mostrará com a nossa análise da República, a essência da paideia platônica requer todos os elementos que Gomperz enumera, e teria sido impossível fazer a sua exposição sem a relacionar com eles num sentido filosófico. A paideia não é um simples elo externo que faz da obra um todo; constitui a sua verdadeira unidade interna.”

esta atitude (…) é típica da incompreensão do séc. XIX por esta obra de Platão. A ciência, que se elevava a uma orgulhosa altura a partir da sabedoria acadêmica do humanismo, já era (…) incapaz de compreender a sua própria origem. Este ideal científico desenvolveu-se nas ciências naturais, onde o foi buscar a filologia, com um desconhecimento total da sua própria essência.”

Um século antes, Jean-Jacques Rousseau soubera aproximar-se bem mais do Estado platônico, ao declarar que a República não era uma teoria do Estado, como pensavam aqueles que só julgavam os livros pelos títulos, mas sim o mais formoso estudo jamais escrito sobre educação.”

Hipódamo e Faleas, cujas utopias ainda conhecemos, nas suas linhas gerais, pela Política de Aristóteles, apresentam, como é próprio do espírito da época do racionalismo, esboços de uma ordem social justa e duradoura, cuja forma esquemática recorda, de certo modo, a geometria dos planos arquitetônicos traçados para a cidade pelo mesmo Hipódamo.

Veja-se o ‘Anônimo de Jâmbico’ em DIELS, Vorsokratiker, t. II 5ª.ed.”

Para o discípulo de Sócrates, já não pode significar a mera obediência às leis do Estado a legalidade que tinha sido outrora o baluarte protetor do Estado jurídico, perante um mundo de poderes feudais anárquicos e revolucionários.” “A lei, que fôra calculada para uma vigência longa e até eterna, mostrou-se necessitada de reformas ou ampliações.” “O direito torna-se uma simples função do poder.”

Como representante da filosofia da força de Cálicles, é escolhido na República o belicoso sofista Trasímaco; além disso, apesar da lúcida arte platônica da variação, deparamos também com algumas repetições da cena do Górgias.”

Glauco e Adimanto, em dois discursos que se sucedem um ao outro, expõem belicosamente o problema, numa forma rigorosa, a única que pode satisfazer a juventude da sua geração: é a justiça um bem que se deva buscar por si próprio ou apenas um meio que acarreta determinada utilidade? Ou figurará entre as coisas que amamos tanto por elas mesmas como pelos seus benéficos resultados?”

Quem dentre nós, na posse de um tal anel, teria na alma a firmeza adamantina necessária para resistir ao poder da tentação? (…) Já mencionamos a importância que tem o problema de o Homem, na presença de testemunhas, agir com tanta freqüência diferentemente de quando está só. (…) O conto do anel de Giges é em Platão símbolo genial desta concepção naturalista do poder e das aspirações humanas. Se queremos conhecer o verdadeiro valor da justiça para a vida do Homem, não temos outro caminho senão comparar a vida de uma pessoa completamente injusta, mas cujo verdadeiro caráter permaneça oculto, e a vida de um homem que, sendo verdadeiramente justo, não saiba ou não queira guardar sempre com o maior cuidado as aparências externas do direito, tão importantes.” “Porventura não exaltaram igualmente este ideal apenas pela recompensa que os deuses concedem ao justo?”

Adimanto fala impelido visivelmente por uma verdadeira angústia interior e, sobretudo para o final do discurso, as suas palavras respiram a sua experiência pessoal. Platão o faz representante da geração a que ele próprio pertencia. É assim que se tem de interpretar a escolha dos seus irmãos como interlocutores chamados a impulsionar a investigação e a formular em termos exatos, perante Sócrates, o problema que ele procura resolver.”

cada palavra sua é um golpe de crítica vibrado contra a educação até ali misturada, precisamente à base daqueles velhos poetas clássicos e daquelas famosíssimas autoridades morais, que na alma da juventude, tão reta no seu pensar, deixam cravado o espinho da dúvida. Platão e os seus irmãos eram o produto daquela antiga educação e consideravam-se vítimas dela.” “Adimanto insiste em que ao avaliar a justiça se prescinda completamente da utilidade social que traz consigo (…) A expressão que corresponde à utilidade social da arete é doxa. Na ética grega antiga, esta palavra corresponde sempre à arete e é equivalente a esta. Um bom exemplo de doxa neste sentido (reputação) está em SÓLON (frag. 1,4 Diehl). Portanto, Platão pretende aqui desligar a arete da sua vinculação a esta doxa.”

As pequenas censuras da voz interior, diz Adimanto, são facilmente abafadas pela experiência de que a injustiça permanece quase sempre ignorada; e a consciência religiosa de que o olhar de Deus nos vê pode ser contrariada com um pouquinho de ateísmo ou com as fórmulas rituais de qualquer religião de mistérios que permita ao Homem purificar-se das suas culpas.” “Formulado assim o problema da justiça, a investigação eleva-se a uma altura contemplativa a partir da qual todo o sentido da vida – tanto o valor moral como a felicidade – aparece deslocado exclusivamente para a vida interior do Homem. (…) não há outro caminho senão este, para se fugir ao completo relativismo implícito na teoria do direito do mais forte.”

A julgar pelo título da obra, pensar-se-á que o Estado será finalmente proclamado como a verdadeira e fundamental finalidade da longa investigação sobre a justiça. Mas Platão trata esse tema pura e simplesmente como um meio para um fim, e o fim é pôr em relevo a essência e a função da justiça na alma do Homem.”

A conseqüência inevitável desta elefantíase dos Estados, que se conservam tanto mais saudáveis quanto menores forem as suas proporções, é a ânsia territorial, pelo desmembramento e anexação de pedaços dos Estados vizinhos. Desvendamos assim a origem da guerra, que sempre nasce de causas econômicas. Platão refere-se aqui à guerra como um fato dado, reservando expressamente para outra investigação o problema de saber se a guerra é boa ou má. Como é natural, o passo imediato é a criação do ofício de guerreiro.” “O fato de lhes dar o nome de ‘guardiões’ já tem implícita a limitação das suas funções à defesa.”

logo nos vemos convertidos em escultores, aos quais é entregue a missão de formar, por assim dizer, com mão de artista, através da seleção dos caracteres mais adequados e da sua educação, o tipo de ‘guardião inteligente e valoroso’.”

Para o guerreiro ser um bom guardião dos seus, a sua alma tem de reunir, como os bons cães, duas qualidades aparentemente contraditórias: doçura para com os seus e agressividade contra os estranhos. E a ironia de Platão vê nesta qualidade um traço filosófico, já que tanto os cães como os ‘guardiães’ avaliam a diferença entre as pessoas conhecidas e as desconhecidas, como critério do que julgam seu e do que reputam estranho.”

quanto mais entramos nos pormenores da paideia dos ‘guardiões’, tanto mais nos penetra a sensação de irmos perdendo completamente de vista a chamada investigação fundamental sobre a justiça. É certo que, numa obra que se apresenta na forma de um diálogo tão ramificado, temos de aceitar como impostas de certo modo pelo tipo de composição muitas coisas que submetem a dura prova o nosso sentido sistemático da ordem

A educação dos ‘guardiões’ de acordo com um sistema legalmente estabelecido pelo Estado é uma inovação revolucionária de alcance histórico incalculável. É a ela que em última instância remonta a exigência do Estado moderno sobre a regulamentação autoritária da educação dos cidadãos, defendida principalmente desde o Século das Luzes e a época do absolutismo por todos os Estados, qualquer que fosse a sua forma de governo.” “em nenhum lado, fora de Esparta, existia, segundo testemunha Aristóteles, uma educação organizada pelo próprio Estado e pelas autoridades.”

Para ele, a solução do duplo problema da formação do corpo e da alma é a paideia da Grécia Antiga, com a sua divisão em ginástica e música, paideia que, portanto, ele conserva como base.”

o que é decisivo assenta precisamente na fecunda tensão entre o seu radicalismo conceitual e o seu sentido conservador a respeito da tradição espiritualmente plasmada. Por isso, antes de darmos ouvidos à sua crítica, é importante deixar claro que é sobre a paideia da antiga Grécia (por mais reformas que nela se introduzam) que a sua nova concepção filosófica repousa.” “Este debate não é, por conseguinte, um problema filosófico acessório, como o crítico moderno costuma pensar, mas tem para Platão uma importância filosófica absoluta.”

não há nada mais despropositado que o à-vontade com que nos pomos a contar às crianças histórias sobre qualquer tipo de homens. (…) aqueles que contam histórias e lendas devem ser vigiados, pois deixam na alma da criança um traço mais duradouro que as mãos dos que lhe cuidam do corpo. (…) É certo que um fundador de Estados não pode ser, como tal, um poeta, mas deve, sim, ter uma consciência clara dos tipos gerais que os poetas tomam como base das suas narrações. (…) Diante do olhar do leitor atual de Homero ou de Hesíodo aparecem imediatamente numerosas cenas que ele não julgaria diferentemente de Platão, se as medisse pela tabela do seu próprio sentimento moral.”

Só se pode recomeçar do zero porque o zero absoluto se chama Heleno.

Ser belo ou não? Eis o dilema do atraente.

Há uma continuidade ininterrupta que vai destes antiquíssimos testemunhos de condenação religiosa e moral de Homero até os Padres cristãos da Igreja, os quais não poucas vezes tiram das obras destes filósofos pagãos os seus argumentos e até as suas palavras contra o antropomorfismo dos deuses gregos. No fundo, a série começa logo com o próprio poeta da Odisséia, visivelmente preocupado em atribuir aos seus deuses, e de modo especial a Zeus, uma atitude mais digna do que a manifestada na Ilíada.”

É por isso que esta atitude se torna de tão difícil compreensão para o homem atual, visto não haver muito tempo que a ‘arte’ moderna teve de libertar-se, entre dores ingentes, do moralismo do Século das Luzes. Aqui está por que razão é para muitos de nós inabalável a tese de que o gozo de uma obra de ‘arte’ é moralmente indiferente. Não é que seja nosso propósito inquirir aqui da verdade ou falsidade desta teoria; a única coisa que nos interessa é deixar claro uma vez mais que ela não corresponde à maneira de sentir dos gregos.”

O EVANGELHO DE ENTÃO: “Na realidade, a chamada lei não-escrita encontra-se edificada na poesia. À falta de fundamentação racional, um verso de Homero é sempre o melhor argumento de autoridade, que nem os próprios filósofos desdenham. Esta autoridade só se pode comparar à da Bíblia e à dos Padres da Igreja, nos primeiros tempos do Cristianismo. § Só esta vigência universal da poesia como suma e compêndio de toda a cultura permite-nos compreender a crítica a que Platão a submete (…) O mundo que os poetas nos descrevem como real degrada-se em mundo de mera aparência, quando medido pelo conhecimento do Ser puro” Platão inimigo do moralismo, não da espontaneidade, como sempre é o filósofo. Jeane e o anel de Giges (mulher de César sem a substância, a mulher-contorno).

Nas apreciações modernas, nem sempre se dá conta, com a devida clareza, da relação existente entre a crítica platônica da poesia e a peculiar posição que o poeta ocupava entre os gregos, como educador do povo. O pensamento ‘histórico’ do séc. XIX também não foi em absoluto capaz de, no seu modo de encarar o passado, sobrepor-se às premissas ideológicas do seu próprio tempo. Buscávamos argumentos para desculpar Platão ou para apresentar os seus preceitos como mais inocentes do que na realidade são. Eram psicologicamente interpretados como a rebelião das forças racionais da alma do filósofo contra a sua própria natureza poética, ou explicava-se o seu desprezo dos poetas pela decadência cada vez mais acentuada da poesia, no próprio tempo dele.” A mesma posição intrincada em que se encontra hoje o crítico da ciência, porque não se pode fazer entender por virtualmente ninguém! Passa por místico, negacionista e charlatão aquele que é o mais científico de todos, na boa acepção. A mediatriz de Popper e Kuhn, tão abaixo de si, é sua nêmese, é a força gigantesca da ralé e do rebotalho dos reprodutores irrefletidos. Dos comunicólogos e formadores de opinião!

Encarava-se o problema com uma tendência excessiva a situar-se no ponto de vista da liberdade da arte. (…) retocava-se o quadro para evitar que Platão caísse na vizinhança da polícia artística da burocracia moderna.”

supondo que o tirano Dionísio se tivesse resolvido a pôr em prática o Estado platônico, teria fracassado neste ponto, ou então seria preciso proibir antes de mais nada os seus próprios dramas, caso fosse atendida a sentença judicial de Platão. No Estado platônico, a reforma da arte poética tem um alcance puramente espiritual e só é política na medida em que toda a finalidade espiritual encerra, em última instância, uma força de formação política.”

Essa poesia não tem cabimento no Estado seco e cheio de nervo que ele procura edificar, mas só em outros mais ricos e suntuosos. § É assim que a dignidade ímpar com que os gregos tinham envolvido a poesia converte-se na perdição dela.”

Como na realidade, porém, a poesia e o Estado não mudarão, fica aparentemente de pé, como único resultado visível aos olhos da crítica platônica, o abismo insuperável que daí por diante dividirá a alma grega.”

Mas por que é que Platão não declara sem rodeios que são as suas obras que se devem pôr nas mãos dos educadores e educandos como verdadeira poesia? É exclusivamente a ficção do diálogo falado que o impede. Na obra da senectude já abandona esta ilusão e pede que as Leis se propaguem no mundo degenerado, como o tipo de poesia de que ele necessita. E desta forma a poesia agonizante afirma uma vez mais o seu primado na obra do seu grande acusador.”

A sua crítica e seleção dos mitos, segundo a tabela do conteúdo de verdade moral e religiosa que contêm, pressupõem um princípio irrefutável.”

Rep., 379A (…) é a passagem onde a palavra teologia aparece pela primeira vez na história do espírito humano. Platão é o seu criador.”

Foda-se, eu sou o Poeta (a lei)!

A aspiração ideal do Homem culmina na arete heróica, mas sobre ela impera a moira, com a sua inelutável necessidade, e é a ela que também se acham submetidos, em última instância, a vontade e o êxito dos mortais. O espírito da poesia helênica é ‘trágico’, porque professa a conexão de tudo, mesmo das supremas aspirações do Homem, com o governo do sobre-humano em todos os destinos mortais. E nem a consciência da própria responsabilidade do indivíduo atuante pelos seus atos e desditas, consciência que foi crescendo à medida que se ia racionalizando a vida no séc. VI, pôde diminuir, no sentido moral de um Sólon, um Teógnis, um Simônides ou um Ésquilo, aquele último núcleo indestrutível da antiga fé na moira, que vive na tragédia do séc. V”

O conflito entre este ponto de vista religioso e a idéia moral da responsabilidade do homem que age mantém-se latente ao longo de toda a obra poética dos gregos.¹ Tinha necessariamente que instalar [sic – estalar] em ruptura aberta no momento em que o postulado ético radical de Sócrates fosse aplicado como pauta à interpretação da vida inteira. O mundo da arete em que Platão constrói a sua nova ordem fundamenta-se na premissa da autodeterminação moral do próprio eu sobre a base do conhecimento do bem. (…) se a divindade fosse tal que enredasse o homem ambicioso nas malhas da culpa, viveríamos todos num mundo em que a paideia careceria de toda razão de ser.²”

¹ O verdadeiramente trágico é que o cristianismo está do lado da responsabilidade demasiado humana, e é como um ateísmo quando comparado ao poder consolatório do politeísmo olímpico. Desta feita, a balança pende apenas para a culpa e um ideal inatingível, do mesmo lado, sem qualquer contrapeso. Um híbrido repulsivo de livre-arbítrio e destino manifesto ao qual o indivíduo moderno não pode se subtrair.

² Cristianismo.

No mundo visto pelos olhos de Demócrito, em que impera a lei da causalidade, não se concebe uma paideia como a platônica.”

Toda a crítica da antiga paideia se fundamenta, como princípio de divisão, na teoria platônica das 4 virtudes cardeais: a piedade, a valentia, o domínio de si próprio e a justiça. Esta última não é aqui levada em conta, o que expressamente se explica no final, alegando em abono disso o fato de ainda não se ter esclarecido o que é na realidade a justiça e o que significa para a vida e para a felicidade do Homem.”

A espantosa descrição que Homero faz do mundo infernal educaria no medo da morte os ‘guardiões’. Platão não pretende, naturalmente, desterrar Homero totalmente, mas submete-o a mutilações” “Ao zeloso guarda filológico da tradição parecerá isto, e é lógico, a mais terrível congeminação da arbitrariedade e da tirania. Para este, é intangível a palavra original do poeta.” “Mas, se atentarmos bem, veremos que a época em que a poesia era ainda coisa viva mostrava já certas tentativas curiosas e passos preliminares desta exigência platônica de recriação poética, os quais nos fazem ver com outros olhos aquela sua pretensão, considerada arbitrária. A necessidade de recriar poeticamente um verso já plasmado, nós a vemos, p.ex., sustentada por Sólon diante de um poeta do seu tempo, Mimnermo, o qual defendera, com sereno pessimismo, que o homem devia morrer quando atingisse os 60 anos. Sólon convida-o a modificar o sentido da poesia, fixando aos 80 anos o limite da idade.” Homero mesmo nunca foi Homero, convenhamos.

Essa eparnothosis [figura de linguagem; nesse sentido, aplicar interpretações mais atenuadas ou enfáticas, conforme o espírito do tempo exige] é aplicada generalizadamente pelos filósofos antigos na sua interpretação dos poetas, e deles se transmite mais tarde aos escritores cristãos. (…) É por isso que a censura de incompreensão racionalista dos poetas do passado, feita a Platão, não deixa de revelar, por sua vez, uma certa incompreensão histórica da parte dos críticos modernos, a respeito do que a tradição poética do seu povo significava para ele e para os seus contemporâneos. Quando, p.ex., Platão sustenta nas Leis que é preciso recriar poeticamente o antigo poeta espartano Tirteu – que enaltecia a bravura como a cúpula das virtudes cívicas e cuja obra continuava a ser a Bíblia do povo espartano – para em lugar da bravura pôr a virtude da justiça, capta-se diretamente a grandeza da força de persuasão que o verso de Tirteu devia ter alcançado na alma de quem só por meio de uma recriação poética julgava poder cumprir ao mesmo tempo o seu dever para com o poeta e para com a verdade.”

quanto mais intenso é o prazer, maior é a eficácia formativa de uma obra de arte sobre quem a contempla. Compreende-se, pois, que esta idéia da formação surgisse precisamente no seio do povo mais artístico do mundo, os gregos, onde a capacidade do prazer estético alcançou um grau mais elevado do que em nenhum outro povo da História.”

Aquiles, que aceita de Príamo um resgate pelo cadáver de Heitor e indenização monetária da parte de Agamemnon, lesa o sentimento moral dos séculos posteriores, como lesa o seu mestre Fênix, que o aconselha a reconciliar-se com Agamemnon, por uma compensação material. [?] As provocadoras palavras de Aquiles contra Esperqueu, o deus-rio, o ultraje que faz ao deus Apolo, a profanação do cadáver do nobre Heitor e a matança dos prisioneiros nas fogueiras de Pátroclo não merecem que se lhes dê crédito.”

O Inferno deveria ser só para incutir o medo de não ter vivido como se podia.

Esta verdade é a mais completa inversão do que nós entendemos por realismo artístico e do que já existia como tal na geração anterior a Platão.” Quem inverte apenas tem de se haver com o problema mais adiante.

a raivosa tenacidade com que ele trata o combate tem a sua mais profunda razão de ser na convicção de que a força educadora das imagens poéticas e musicais provadas pelos séculos é insubstituível. Segundo Platão, mesmo que a filosofia fosse capaz de descobrir o conhecimento redentor de uma norma suprema de viver, a sua missão educacional só seria cumprida pela metade

Não é só no conteúdo, mas sobretudo na forma, que se apóia o efeito da obra das musas.” Que alguém demonstrasse a verdade num tratado insípido, nada estaria provado – a não ser que se pode ser insípido até nas ações mais grandiosas!

Na maioria dos casos, nem sequer um ator trágico é capaz de representar bem a comédia, e um recitador de epopéias raras vezes está em condições de desempenhar um papel dramático.”

Não era[m] bons especialistas, mas apenas bons cidadãos em geral que a antiga paideia se propunha a formar.” “Constitui fenômeno raro, mas psicologicamente compreensível, a nítida predileção pela purificação das profissões especializadas, num gênio universal como o de Platão.”

O conceito platônico da mimesis dramática, no sentido da renúncia de si mesmo, é um conceito paidêutico; o da imitação da natureza, pura e simplesmente um conceito técnico.”

Aos artistas desse gênero moderno e cheio de encantos são prestadas no Estado platônico todas as honras e toda a admiração, ungem-lhes a cabeça e a adornam com fitas de lã; mas, uma vez honrados, acompanham-nos a outra cidade, visto que não há lugar para eles no Estado puramente educador. Nesse Estado admitem-se unicamente poetas mais secos e menos geradores de prazer.” “Platão, que no seu período pré-socrático tinha um grande fraco pela tragédia, teria seguramente conhecido por experiência própria, na sua pessoa e na de outros, o lado negativo destas paixões.”

as melodias ou harmonias como tais, desligadas da palavra, essas, sim, exigem a nossa atenção.” “Assim como no palco o espetáculo domina a poesia e criou o que Platão chama de teatrocracia, nos concertos a poesia era serva da música. (…) A música emancipada torna-se demagoga do reino dos sons.”

Não podemos escrever em detalhe a ginástica ou a música gregas, os fundamentos em que assentava a paideia do período antigo e do clássico, porque nisso não consente o legado da tradição. É por isso que na nossa exposição esses temas não são tratados em capítulo à parte, mas nos ocupamos deles onde quer que a sua imagem se apresente nos monumentos e discussões da Antiguidade”

Igualmente se reprovam as melodias lânguidas, quer jônicas quer lídias, boas para as orgias, mas inaceitáveis aqui, porque nem a embriaguez nem a languidez ficam bem aos ‘guardiões’. (…) Glauco (…) dá-se conta de que, nessas condições prevalecerão só as melodias dórica e frígia, mas Sócrates não se deixa arrastar a tais pormenores. Platão pinta-o assim, conscientemente, como o homem de verdadeira cultura, cujo olhar mergulha na essência das coisas, mas a quem não compete rivalizar com os especialistas. A precisão, que é no perito exigência natural, seria no homem culto pedantismo e não seria julgada digna de um homem livre. (…) E tal como as melodias ricas também a riqueza de instrumentos musicais se abandona. (…) São inteiramente suprimidas as flautas, as harpas e os címbalos, [grosso modo, a bateria ancestral] e conservam-se só a lira e a cítara [outro tipo de lira; curiosamente, porém, a harpa é outra lira, mais complexa que a lira e a cítara, talvez – isso é especulação – mais antiga que ambas], instrumentos adequados a melodias simples; no campo deverão soar apenas as gaitas dos pastores. Recordamos a este propósito a narração de que as autoridades espartanas proibiram a atuação do genial inovador Timóteo, mestre da música moderna daquele tempo, porque ele não utilizava a cítara de 7 cordas de Terpandro, santificada pela tradição, mas sim um instrumento com mais cordas e maior riqueza harmônica.”

Já acima dissemos que, pela sua origem, o termo grego ‘ritmo’ não implica a acepção de movimento, mas exprime em numerosas passagens o ‘momento’ de uma posição ou ordenação fixa de objetos [capítulo 1.6]. O olhar do grego descobre-o tanto no estado de quietude como no de movimento, no compasso da dança, do canto ou do discurso, principalmente se for em verso. Conforme o número de longas e breves de um ritmo e o seu nexo mútuo, produz-se uma ordenação distinta no passo ou na voz.”

a teoria do ethos na harmonia e no ritmo. É desta teoria que deriva o que Platão ensina sobre a seleção das harmonias

O DAIMON DA MÚSICA: “também na Poética de Aristóteles e na de Horácio a maneira de tratar os metros da poesia parte do mesmo ponto de vista, a saber: quais são os métodos mais indicados para cada conteúdo. Assistimos aqui a uma continuidade da tradição anterior a Platão, embora exista a tendência para identificar com ele este modo paidêutico de abordar o problema da música.”

Mas até o simples fato de esta teoria ser tirada de Dámon, o maior teórico musical do tempo de Sócrates, prova que não estamos diante de algo especificamente platônico, mas que é, antes, uma concepção da música peculiar aos gregos, a qual (…) foi desde o início decisiva para a posição dominante que a harmonia e o ritmo desempenhavam na cultura grega. § Aristóteles continua a desenvolver a teoria do ethos na música, no esboço sobre educação, contido no livro VIII da sua Política. Segue para isso na esteira de Platão, mas, como costuma acontecer-lhe em maior grau ainda que ao seu mestre, é intérprete da maneira de pensar do conjunto da Grécia.Uma espécie de sintetizador, jamais criador. Aristóteles, o Primeiro Enciclopedista.

Mas não concede nenhum ethos, em geral, às impressões transmitidas pela visão através das artes plásticas. Entende que este tipo de efeitos se limita a certas figuras pictóricas e escultóricas, e mesmo nestas só o reconhece em proporções restritas. Aliás, segundo Aristóteles, também não é de verdadeiros reflexos de um ethos que se trata, mas de meros sinais dele, expressos em cores e figuras. Nenhum ethos, p.ex., transparece nas obras do pintor Pauson, mas ele existe, em contrapartida, nas de Polignoto e nas de certos escultores. As obras musicais, pelo contrário, são imitações diretas de um ethos. O admirador da arte plástica dos gregos sentir-se-á inclinado a negar ao filósofo olhos de artista, e assim explicará a sua maneira diferente de julgar o conteúdo ético da música e o da pintura e escultura. Talvez com isso se pudesse relacionar a sua tese de que, nos sentidos humanos, é o ouvido o órgão espiritual por excelência, ao passo que Platão atribuía aos olhos a suprema afinidade com o espírito. [quanta contradição! se Platão privilegia a visão e ainda assim a música é hierarquicamente superior às artes plásticas – a-sonoras – em seu corpus!] Mas apesar de tudo fica de pé o fato de nenhum grego jamais se ter lembrado de reservar na paideia um lugar para as artes plásticas e a sua contemplação”

As palavras correspondentes, <educação> e <nutrição>, que a princípio tinham um significado quase idêntico, continuam a ser sempre termos gêmeos.”

Platão reconhece que a cultura do espírito exige também certos pressupostos de clima e certas condições de desenvolvimento. (…) O Estado é necessário como meio ambiente, como a atmosfera que o indivíduo respira. (…) É necessário que desde a mais tenra infância todo mundo respire neste ambiente qualquer coisa como o ar de uma região saudável.”

Uma pessoa corretamente educada na música, pelo fato de a assimilar espiritualmente, sente desabrochar dentro de si, desde a sua mocidade, e numa fase ainda inconsciente do desenvolvimento, uma certeza infalível de satisfação pelo belo e de repugnância pelo feio, a qual a habilita mais tarde a saudar elegantemente, como algo que lhe é afim, o conhecimento consciente, quando ele se apresenta.” “Esta educação adquire um novo significado, como fase prévia irrecusável para o conhecimento filosófico puro, que sem a base da cultura musical ficaria flutuando no ar.”

Segundo a teoria de Platão, por mais arguta que seja a inteligência, não tem acesso direto ao mundo dos valores, que, em última instância, é o que interessa à filosofia platônica. Na Carta Sétima, o processo de conhecer é descrito como um processo gradual que faz a alma parecer-se cada vez mais com a essência dos valores que aspira a conhecer.” “Para Platão, a educação do caráter é a via que conduz à educação dos olhos da inteligência, e modifica de tal maneira a sua natureza que lhe é possível alcançar o princípio supremo

Platão não toma de forma alguma por modelo as regras que os atletas têm de observar quanto à alimentação; estas regras tornam os atletas excessivamente sensíveis e sujeitam-nos em demasia à sua dieta; e principalmente o seu hábito de dormir muito não é o mais indicado para quem deve ser a vigilância em pessoa. Os ‘guardiões’ devem poder adaptar-se a todas as mudanças de comida, de bebida e de clima, sem que por causa disso corra perigo a sua saúde. Platão reclama para eles um tipo de ginástica totalmente diferente e mais simples”

Há duas coisas que para Platão constituem sintomas infalíveis de má paideia: os tribunais de justiça e os estabelecimentos de saúde. O grande desenvolvimento destas instituições é tudo, menos o orgulho da civilização. O objetivo do educador deve ser conseguir que se tornem supérfluas dentro do seu Estado.” “como é que um carpinteiro que adoece poderia entregar-se durante muito tempo a um tratamento que o impedisse de exercer a sua profissão? Não tem outro remédio senão trabalhar ou morrer.” E no entanto hoje o motorista de aplicativo não tem qualquer noção da verdadeira saúde. É tão aniquilado como cada um de nós, os “servos legalizados”. Sequer tem um pressentimento da possibilidade da consciência sobre seu grande problema.

existe uma natural afinidade eletiva entre a filosofia platônica e um corpo ao qual uma educação rigorosa põe na posse de uma saúde perfeita. (…) É certo que Platão postula no Fédon a necessidade de a alma voltar as costas ao mundo do corpo e dos sentidos, para se poder concentrar no exame das verdades puramente abstratas, mas o espírito que na República inspirava a paideia ginástica é um perfeito complemento deste quadro.”

ASPIRINAS PARA AQUILES: “Foi para os homens sãos, cujo corpo sofria passageiramente algum dano local, e com o fim de eliminar esse dano, que Asclépio inventou a arte da medicina. Em contrapartida, nunca nos poemas homéricos este deus ou os seus filhos se ocupam dos corpos minados pela doença. [o que é até objeto de uma famosa tragédia]” “Em contrapartida, o médico deve deixar morrer os corpos totalmente enfermos, como o juiz mata os homens cuja alma está incuravelmente enferma à força de crimes.” “Heródico¹ foi pondo obstáculos à morte, à força de prolongá-la artificialmente”

¹ “Herodicus was a 5th century BC Greek physician, dietician, sophist, and gymnastic-master. He was born in the city of Selymbria, a colony of the city-state Megara, and practiced medicine in various Greek cities including Selymbria, Megara, Athens, and Cnidos.”

O princípio da seleção rigorosa e consciente tem também a sua importância, do ponto de vista político, para a estrutura do Estado platônico, pois é sobre ela que assenta a possibilidade de manter de pé o sistema da diferenciação por escalões.”

Neste Estado não existe a mínima garantia de tipo constitucional contra o abuso dos poderes extraordinários e quase ilimitados que põe nas mãos daqueles que o regem. A única garantia efetiva de que de guardiões do Estado não se converterão em donos e senhores dele, de que não degenerarão de cães de guarda em lobos que devoram o rebanho que lhes cumpre guardar, reside, segundo o filósofo, numa boa educação.” “ele não se interessa aqui pelo Estado como problema técnico ou psicológico, mas o aborda simplesmente como delimitação e como fundo de um sistema perfeito de educação.”

NO MUNDO DA INOVAÇÃO JURÍDICA, DAMOS UM TAPA NA TESTA E GEMEMOS: “A idéia de um Estado ideal tem implícita a idéia de que tudo o que dele difere é necessariamente pior do que ele próprio. O que é simplesmente perfeito não deixa margem a nenhum desejo de progresso, mas apenas à vontade de conservá-lo. E para conservá-lo, não se dispõe de outros meios que não sejam os empregados para criá-lo. Depende tudo apenas de não se inovar nada na educação.”

O desprezo pela maquinaria administrativa e legislativa do Estado moderno, a substituição da legislação concreta pela força do costume e por um sistema público educacional que presidisse à vida inteira, a instituição de refeições coletivas para os ‘guardiões’, a supervisão governamental da música e a concepção dela como firme cidadela do Estado, são todos traços genuinamente espartanos. Mas só um filósofo da época da degenerescência da democracia ateniense e formado em oposição a ela podia oferecer esta interpretação de Esparta como o tipo de Estado em que se conseguia evitar com êxito o individualismo extremista.”

A renúncia de Platão a estas conquistas constitui, naturalmente, um extremo só explicável pela desesperada situação espiritual da Atenas daquele tempo. Platão chegou à trágica convicção de que até as leis e as constituições não passam de meras formas, que só têm valor quando no povo existe uma substância moral que as alimenta e conserva. Espíritos conservadores julgavam notar precisamente na democracia que aquilo que mantinha coeso esse Estado era, no fundo, uma coisa diferente daquilo que a sua ideologia própria fazia passar por tal.”

A perduração ininterrupta dessa lei não-escrita é que tinha sido o forte da democracia ateniense na sua época heróica; foi a sua decadência que, apesar de todas as leis em vigor, converteu em arbitrariedade a liberdade dela. Segundo Platão, uma educação do tipo daquela de Licurgo era o único caminho para restaurar, não a aristocracia de nascimento pela qual suspiravam muitos dos seus companheiros de classe, mas sim os antigos costumes e, por meio destes, consolidar de novo o Estado.”

ao atingirmos a meta da verdadeira educação, teríamos realizado também a verdadeira justiça”

Visto que, à exceção da justiça, se atribuiu a cada uma das 4 virtudes cardeais da antiga política o respectivo lugar dentro do Estado, pela sua localização numa classe especial da população, já não resta à justiça nenhum lugar especial nem classe nenhuma da qual seja patrimônio; e então surge intuitivamente perante o nosso olhar a solução do problema: a justiça consiste na perfeição com que cada classe dentro do Estado abraça a sua virtude específica e cumpre a missão especial que lhe cabe.

Lembramos, todavia que, na realidade, este estado de coisas não é a justiça no verdadeiro sentido da palavra, mas simplesmente a sua imagem refletida e ampliada na estrutura da comunidade; procuremos, pois, a essência e a raiz dela no próprio interior do Homem.”

Não é, pois, na ordem orgânica do Estado, em virtude da qual o sapateiro deve trabalhar como sapateiro e o carpinteiro desempenhar o seu ofício próprio, que a justiça consiste. Ela consiste na conformação interior da alma, de acordo com a qual cada uma das partes faz o que lhe compete e o Homem é capaz de se dominar e de congraçar numa unidade a multiplicidade contraditória das suas forças internas.”

Assim como a saúde é o bem supremo do corpo, a justiça é o bem supremo da alma. Com isto se vota ao mais completo ridículo a pergunta sobre se ela será saudável e útil para a vida (…) Não merece ser vivida a vida sem justiça, tal como não vale a pena viver uma vida sem saúde.”

se só existe uma forma de justiça, existem, em contrapartida, muitas formas de degenerescência dela, com o que desperta de novo em nós a recordação da medicina e da saúde.”

Não há no Estado platônico nenhum traço que tenha produzido nos contemporâneos e na posteridade uma sensação tão grande como a digressão sobre o regime da comunidade de mulheres e de prole, entre os ‘guardiões’. O próprio Platão tem de vencer certa resistência para exprimir na República o seu paradoxal critério sobre este ponto, pois teme a tempestade de indignação que irá levantar.” Note-se que se diz da comunidade de prole dos guardiães. A ralé segue sendo ralé, e portanto seus núcleos familiares, que são indiferentes à máxima coesão deste Estado, não sofrem interferência em relação ao costume tradicional. Tradicional ou contemporâneo a Platão e à história conhecida da Antiguidade? Pois temos muitas razões para inferir que a civilização provém de castas em que tudo era estruturado comunalmente.

Quem como ele é educado para se devotar completamente ao serviço da coletividade, quem não tem casa própria nem propriedade alguma nem vida privada, como poderá possuir e governar uma família? Se toda a acumulação de propriedade particular é reprovável, por fomentar o egoísmo econômico e familiar e entorpecer, dessa forma, a realização da verdadeira unidade entre os cidadãos, é natural que nem sequer diante da família, como instituição jurídica e ética, Platão se detenha, mas tal como o resto a sacrifique também.”

Em Esparta, onde o homem da classe dominante vivia entregue quase por inteiro ao cumprimento de seus deveres cívicos e militares, durante a vida inteira, a vida de família desempenhava só um papel secundário e os costumes da mulher, neste estado tão severo em tudo o mais, tinham na Grécia fama de licenciosos.” Esparta eram os Cantões Suíços daquele tempo. Atenas, uma Paris ou Berlim.

É bem significativo que a sua comunidade de mulheres e de filhos se limite à classe dos ‘guardiões’, que estão a serviço direto do Estado, e não se torne extensiva à massa da população trabalhadora. A Igreja resolveria mais tarde este problema, pela imposição do dever de celibato aos sacerdotes, que nela representam a classe dominante. Mas Platão, que pessoalmente era celibatário, não acreditava que esta forma se pudesse levar em consideração dentro do seu Estado” Pois compreendia a força do instinto mesmo diante do Estado ideal. “O lema da exclusão de toda a propriedade individual, incluindo a da mulher, combinado com o princípio da seleção da raça, leva à exigência da comunidade de mulheres e de filhos para os ‘guardiões’.” Um sistema ainda menos hereditário que a democracia moderna, para não dizer da monarquia eurocêntrica, uma vez que hoje basta com ter Kubitschek ou Brizola no sobrenome para estar virtualmente eleito. Perversão da meritocracia platônica, nada platônica, se é que me faço entender.

Não partilha a opinião dominante no seu país, segundo a qual a mulher é destinada pela natureza exclusivamente a conceber e a criar filhos e a governar a casa. É certo que reconhece que a mulher é em geral mais fraca do que o homem, mas não crê que isto seja obstáculo para ela participar nas funções e nos deveres de ‘guardiões’.”

Platão prevê com toda a clareza as conseqüências a que esta lei se expõe e que parecem ameaçar com a maldição do ridículo as suas revolucionárias inovações. As mulheres deverão, nuas, alternar com os homens na palestra, e não só as jovens, mas também as enrugadas mulheres de idade, do mesmo modo que nos ginásios é freqüente ver muitos homens já idosos praticando os seus exercícios. Mas Platão não acredita que esta norma ponha a moral em perigo; e que se pense disto o que se quiser, o certo é que o mero fato de ele poder formular tal proposição demonstra a mudança imensa de sensibilidade que se operara em relação à posição do homem perante a mulher, desde a época anterior a Péricles, em que Heródoto escrevia, na sua narração sobre Giges e Candaules, que ao despojar-se do vestido a mulher despojava-se também do poder. Platão observa que os bárbaros consideravam a nudez desonrosa também para o homem e que o sentimento moral dos gregos da Ásia Menor, influenciado por aqueles, tinha certa afinidade com tal maneira de pensar. O sentimento moral dos gregos da Ásia Menor revela-se na sua arte do séc. VI, que, sob este aspecto, é muito diferente da arte do Peloponeso.”

A figura do corpo nu do atleta varão convertera-se há muito em tema fundamental das artes plásticas, sob a influência da ginástica e do seu ideal de arete física e também sob a ação do seu sentimento do moralmente decente e decoroso.” “há quanto tempo a implantação da ginástica nua entre os homens levantou a mesma tempestade de troça e indignação que hoje levanta a proposta de tornar esta prática extensiva à mulher?”

não existem profissões só acessíveis ao homem ou à mulher.”

IVO BRUNS, Vorträge und Aufsätze [Conferências e ensaios] (Munique, 1905) (sobre a emancipação da mulher em Atenas)

o conceito de ‘os melhores’ não se pode definir no seu sentido pleno, enquanto não se explicitar o princípio da seleção” “É na melhor educação que se deve basear o governo dos melhores; aquela, por sua vez, exige como terreno de cultura as melhores aptidões naturais. Esta idéia era corrente no tempo de Platão e provinha principalmente da teoria pedagógica dos sofistas.”

Já Teógnis, nos seus poemas exortativos, profetizara à nobreza arruinada da sua cidade pátria, ansiosa por se restaurar financeiramente por meio de casamentos com filhas de plebeus ricos, as desastrosas conseqüências que esta mistura de raças traria à conservação da antiga arete dos nobres.” “O velho Teógnis não sonhara sequer chegar a tais conseqüências. Entre a moral racional de Teógnis e o sistema platônico de ‘controle’ estatal, cabia como solução intermediária a paideia espartana, preocupada em velar pela procriação de uma descendência saudável, no caso da camada senhorial da sociedade.”

Estas medidas eugenésicas de Platão, baseadas nas suas intenções educacionais, seguem as normas da medicina grega”

O cuidado dos recém-nascidos deve subtrair-se absolutamente à jurisdição das mães.” “As mães só terão acesso às crianças para amamentá-las, mas nem sequer conhecerão os próprios filhos, pois deverão querer a todos por igual.” “O objetivo supremo de Platão era conseguir que as alegrias e as dores de cada um fossem as alegrias e dores de todos.”

Devem eles ser iniciados na guerra logo desde a infância, tal como os filhos dos oleiros aprendem a arte da olaria, vendo o pai trabalhar ou dando-lhe uma ajuda na sua tarefa.” “Poder-se-ia pensar que a mera contemplação das batalhas é menos eficaz, como meio de educação bélica, do que o adestramento regular da juventude em jogos guerreiros, onde ela possa participar ativamente. (…) Trata-se de um processo de enrijecimento espiritual, por meio do contato com a espantosa mecânica da guerra autêntica.”

Tirteu e Platão são os psicólogos da batalha e vêem o verdadeiro problema que ela implica para um ser humano.”

ele proíbe a devastação dos campos e o incêndio das casas, fatos que também não são habituais nas guerras civis de um Estado civilizado do séc. IV, mas atraem sobre a cabeça dos culpados a maldição dos deuses” “Despojar por mera sede de lucro os caídos no campo de batalha é punido como indigno de um homem livre, bem como impedir que se levantem do campo os mortos. As armas são a única coisa que um guerreiro pode arrebatar ao inimigo caído.”

Ainda na obra De iure belli ac pacis, escrita no séc. XVI pelo grande humanista e pai do direito internacional Hugo Grócio, reconhecia-se como não-contrário à natureza o direito de escravizar os inimigos, em caso de guerra.” “na opinião de Grócio só sob o cristianismo se conseguiu o que o Sócrates platônico em vão pregara aos gregos como um preceito do instinto nacional de autoconservação. Mas o próprio Grócio observa que também os maometanos seguiam esta mesma regra de direito internacional, nas lutas contra povos da sua religião. Devemos, portanto, generalizar a sua tese no sentido de que não foi o Estado antigo nem a idéia nacional do séc. IV, mas sim a comunidade de fé das religiões universais, a qual se estendia a povos diversos, que assentou os fundamentos que possibilitaram a realização parcial dos postulados de Platão.”

a grande verdade educacional que a República ilustra plasticamente é a estrita correlação entre a forma e o espaço. Não é só de um princípio artístico que se trata, mas sim de uma lei do mundo moral. O homem perfeito só num Estado perfeito se pode formar”

É sobre estes 2 conceitos procedentes da Grécia primitiva, o de paradigma e o de mimesis, modelo e imitação, que toda a paideia grega assenta. A República de Platão representa uma nova etapa dentro dela.”

É certo que os Estados atuais, como o Górgias punha em relevo, fazem da aspiração ao poder um fim em si, e por isso não estão habilitados a cumprir a missão educacional na qual Platão vê a essência do Estado. Enquanto o poder político e o espírito filosófico não coincidirem, Platão julga impossível uma solução construtiva do problema grego da formação do Homem, em sentido socrático, e portanto da superação dos males da sociedade presente. Surge assim a famosa tese platônica segundo a qual não acabará a miséria política do mundo enquanto os filósofos não se tornarem reis ou os reis não começarem a investigar de forma verdadeiramente filosófica. É este postulado que ocupa o lugar central da República. Não se trata de uma engenhosa frase incidental, mas da fórmula que oferece a solução ideal para aquele trágico divórcio entre o Estado e a educação filosófica que vimos em obras anteriores de Platão.” Enunciado perene, ainda vigente no “pós-Marx” e no “pós-Nietzsche”!

E assim, na República, a Filosofia aparece pela primeira vez no primeiro plano da atenção.”

Platão não condena o poder como uma coisa ‘má em si’; submete apenas o seu conceito a um esclarecimento dialético radical, que o limpa da mancha do egoísmo. Liberta-o da arbitrariedade e volta a reduzi-lo à vontade pura, cuja meta inamovível é, por natureza, o Bem. Nenhum ser humano pode voluntariamente enganar-se naquilo que considera bom e salutar. O verdadeiro poder só pode consistir na capacidade de realizar a aspiração natural que lança o Homem para aquela meta. A sua premissa é, portanto, o conhecimento real do Bem. E é assim que a filosofia torna-se paradoxalmente o caminho para o verdadeiro poder.”

a economia artística da República solicita a ilusão de, por assim dizer, ser aqui a 1ª vez que o leitor se vê obrigado a meditar sobre a filosofia” “No seu isolamento atual, ela própria tem dificuldade em compreender que foi só batalhando com aqueles problemas que conseguiu forjar o grandioso caráter que na sua 1ª fase criadora a distinguiu. A resignada frase de Hegel, dizendo que a coruja de Atena só se levanta ao entardecer, contém sem dúvida uma certa verdade e a consciência dela estende a sua sombra trágica sobre o esforço heróico que o espírito humano se dispõe a realizar à última hora, com a tentativa platônica de salvação do Estado.”

ele [o filósofo] pode dizer o que é justo e belo por si; as opiniões da massa a respeito destas e das demais coisas oscilam na penumbra entre o não-ser e o verdadeiro Ser. E nisto não diferem da massa os estadistas.” “os caprichos da massa tornam-se a pauta suprema da conduta política e o espírito desta adaptação vai pouco a pouco se infiltrando em todas as manifestações da vida. Este sistema de adaptação exclui a possibilidade de uma autêntica educação do Homem, orientada de acordo com a pauta dos valores imutáveis.” “É o conhecimento da verdade que deve ocupar o trono do Estado reconstruído.” “O conhecimento da norma suprema, que o filósofo abriga na sua alma, é o fecho da cúpula do sistema do Estado educacional platônico.”

Platão não parece subscrever o clamor dos sofistas e humanistas contra o profissionalismo da cultura. Parece paradoxal esta atitude, num homem que como ele tem em tão alto apreço o saber pelo próprio saber.” “Platão volta ao conceito de techne política que formulara no Górgias, e isso nos lembra ao mesmo tempo as dúvidas iniciais apontadas por Sócrates no Protágoras sobre a possibilidade de ensinar a virtude política. (…) Na República, Platão já não deixa Sócrates albergar nenhuma dúvida.”

Platão não leva muito a sério as dúvidas formuladas sobre a missão política do filósofo. O exame destas dúvidas serve-lhe de pretexto para se desvencilhar de muitos daqueles que se arrogam o nome de filósofos. Mas a par disto defende com o máximo rigor a verdadeira filosofia e considera qualquer concessão feita aos críticos como uma acusação contra o mundo. A imagem por ele traçada do destino do filósofo converte-se numa tragédia impressionante. Se nas obras de Platão há alguma página escrita com o sangue do seu coração, é esta. Já não é só o destino de Sócrates, feito símbolo, o que move a sua pena. Mistura-se a ele, aqui, a história da sua própria ambição suprema e o ‘fracasso’ das suas forças ante a missão que outrora se julgara especificamente chamado a cumprir.”

dá-nos uma definição filosófica, indispensável para a compreensão da sua tese sobre os governantes-filósofos, principalmente para o leitor atual, que facilmente pode associar à palavra grega incorporada aos nossos idiomas a idéia de erudito. O seu ‘filósofo’ não é exatamente um professor de Filosofia, que se arrogue um título destes, baseado nos conhecimentos que tem da sua especialidade. E ainda menos é um ‘pensador original’, pois não seria possível existirem simultaneamente tantos pensadores quanto os ‘filósofos’ de que Platão precisa para governar o seu Estado.”

amante da cultura” “a personalidade humana altamente cultivada”

QUANDO CULTURA ERA SABER, E NÃO UM “SABER NÃO-TÉCNICO”: “Platão concebe o filósofo como um homem de grande memória, de percepção rápida e sedento de saber. Um tal homem despreza tudo o que é minúsculo, o seu olhar eleva-se sempre ao aspecto global das coisas e abarca, de uma vigia altíssima, a existência e o tempo. Não tem a vida em grande apreço nem sente grande apego aos bens exteriores. É estranho a ele tudo o que seja gabolice. É grande em tudo, mas sem por isso deixar de possuir um certo encanto.” Comparar com os atributos dos últimos homens e de Zaratustra.

Vivemos a Era da Crítica (Sofística 2.0).

o representante da arete perfeita (…) O filósofo platônico não é senão a forma do kaloskagathos, quer dizer, a forma do ideal supremo de cultura do período grego clássico, renovada num sentido socrático.”

DE TALES A SCHOPENHAUER: “A censura da incapacidade destes homens recai, na realidade, sobre aqueles que não sabem usar a sua capacidade. (…) Cada um dos dotes, se é desenvolvido de forma unilateral e desligado dos outros, torna-se um obstáculo a uma formação verdadeiramente filosófica. (…) O desenvolvimento são do Homem é condicionado por uma boa alimentação, pela estação do ano e pela região; esta norma geral, que vigora para todas as plantas e animais, afeta de maneira especial os temperamentos melhores e mais vigorosos. (…) Um temperamento filosófico, que em terreno propício é chamado a florescer maravilhosamente, produz como fruto o contrário dos seus magníficos dotes, se for semeado ou plantado no solo de uma má educação” O caso do tirano erudito.

Platão defende a idéia deste destino inapreensível para a inteligência humana e que as mentes religiosas não consideram fruto do mero acaso, mas antes obra de um poder miraculoso.”

da maneira como os temperamentos filosóficos se salvam milagrosamente de todos os obstáculos com que o ambiente corrupto ameaça desde o primeiro instante a trajetória da sua formação. Segundo Platão, o que infunde caráter trágico à existência do homem filosófico neste mundo é o fato de só pelo influxo de uma graça ou tyche divina especial ele poder sobrepujar os obstáculos” O leão na caverna (Z4)

Os que culpam os sofistas da degenerescência da juventude é que são os piores sofistas. Na realidade, é a influência do Estado e da sociedade que educa os homens e faz deles o que quer.” “Nenhum caráter, nenhuma personalidade se pode formar senão de acordo com esta paideia exercida pela massa, e não ser que venha em seu auxílio a graça especial dos deuses.” “professores e educadores só podem educar as pessoas naquilo que a massa lhes ordena e que impera na opinião pública.” “Os educadores que melhor entendem as palavras e o tom mais de agrado da ‘grande besta’. São os homens que fazem profissão da adaptação.”

a salvação dos temperamentos filosóficos pode acontecer neste mundo. Aqui, aparece tacitamente aos olhos do leitor o nexo causal entre a salvação pessoal de Platão e o fato de ter encontrado em Sócrates o verdadeiro educador. Estamos na presença do caso excepcional em que uma personalidade individual pode transmitir aos discípulos bens de valor eterno. Longe, porém, de receber qualquer recompensa, este educador de educadores teve de pagar com a vida a sua independência em relação à educação da massa.” Um Sócrates pode ensinar a outro Sócrates a virtude. Singularidade radical e extrema.

O conhecimento do que é bom em si é uma característica essencial do filósofo. Falar de uma massa filosófica constitui para Platão uma contradição em si. É precisamente a hostilidade mútua a relação natural entre a massa e a Filosofia’

missão interior”

caracteres como os de Alcibíades e Crítias, cujos defeitos se haviam tentado imputar a Sócrates e ao seu sistema educacional.” “logo foram corrompidos pelo meio ambiente” “têm um grande ímpeto e um fulgor espiritual que os levam a se distinguirem da massa.”

São raríssimos os caracteres espirituais que conseguem furtar-se à corrupção. Talvez o consiga um homem muito culto e de caráter nobre, que se veja obrigado a viver no exílio como um estranho e a quem este isolamento involuntário sirva de tábua de salvação para não cair sob a influência corruptora, uma grande alma que tenha nascido numa cidade pequena e que, por se desinteressar dela, se volte para o mundo espiritual; ou então o representante de uma especialidade, que com razão compreenda a mesquinhez dela e lhe vire as costas para enveredar pela senda da Filosofia. (cf. Rep. 496 B-C)”

a mais profunda das resignações”

E quando vê os outros viverem no meio da impureza, sente-se satisfeito por se ver limpo da injustiça e poder viver a trabalhar no que é seu e deixar um dia este mundo no final da sua carreira”

Bem longe da crença de poder transformar o Estado real do seu tempo, e rebelde também à idéia de se lançar na arena da luta política, volta a ser aqui o que era lá: o verdadeiro homem desconhecido para a opinião do mundo.” “É o seu afastamento de toda a atuação pública que constitui a sua verdadeira força. Platão já na Apologia descrevera Sócrates como o homem que sabia perfeitamente por que é que o seu daimon o desviara sempre, ao longo de toda a sua vida, de atuar na política.” “Quem realmente quiser lutar em prol da justiça é na vida privada que tem de fazê-lo” “foi a morte de Sócrates que gerou a grande crise na vontade política de Platão.” “O filósofo faz da necessidade da minoria uma virtude.”

Professores e alunos sempre tinham existido, mas seria um anacronismo histórico considerar escolas do tipo platônico as coletividades deste gênero que conhecemos da filosofia pré-socrática. (…) as circunstâncias de Platão ter fundado a Academia logo após a sua primeira viagem ao Ocidente grego, na qual teve ocasião de estabelecer um contato bastante estreito com os pitagóricos, indica que existia entre estes fatos uma íntima relação.”

J.L. Stocks fez uma tentativa para salvar a historicidade da tradição contida em CÍCERO, Tusc. Disp., V, 3, 8, segundo a qual foi Pitágoras quem empregou a reivindicou para si a palavra filósofo. Eu, porém, nunca pude aceitar os argumentos do meu excelente amigo cuja morte prematura foi uma perda considerável para os estudos clássicos.”

Apesar da especulação platônica sobre o Estado, a escola de Platão não agia como grupo político na vida da sua cidade natal, como agiam os pitagóricos, antes da destruição da sua Ordem.”

Na realidade, a Academia não teria podido existir senão no seio da democracia ateniense, que deixava Platão falar, ainda quando criticava o seu próprio Estado. Havia já muito tempo que nela se considerava um erro grave ter condenado Sócrates, e via-se no seu herdeiro principalmente o homem que aumentava o renome espiritual da cidade, que, apesar de vacilar na sua posição externa de poder, se ia tornando cada vez mais o centro espiritual do mundo helênico.”

Depois de o filósofo baixar à resignação da grandeza ignorada e do retraimento perante o mundo, é difícil voltar à idéia do que representa o homem chamado a dominar o Estado futuro.” “O filósofo é uma planta divina que necessariamente irá degenerar ou adaptar-se, quando transplantada para o solo árido dos Estados atuais.” “Na penúria em que Platão vive, a sua filosofia é unicamente formação de si mesmo, e não cultura.”

Persevera na sua disposição permanente e de certo modo escatológica de se entregar como força auxiliar ao mundo divinamente perfeito que pertence ao ‘porvir’.” “protege o conceito de ‘porvir’, para o qual o filósofo se forma, do perigo de escorregar para o imaginário” “É esta posição intermediária – que ele ocupa entre a pura investigação, desligada de todo o fim ético e prático, e a cultura meramente pragmática, política, dos sofistas – que faz o humanismo platônico ser realmente superior a ambos.”

3.11 A República – II

Platão não procura, no que se segue, definir em sentido rigoroso a natureza do Bem-em-si. Em nenhuma das suas obras o faz, apesar da freqüência com que elas, no final da investigação, conduzem a este ponto. O Filebo é dentre as obras de Platão aquela em que se investiga de forma mais sistemática o problema aqui proposto: se é o prazer ou a razão o bem supremo. Mas nem sequer ali se chega no fim a qualquer definição do que é o Bem. O que se faz é apenas deduzir 3 das suas características: a beleza, a simetria e a verdade”

recusando tudo o que seja excessivamente técnico-filosófico e exemplificando em vez disso, por meio de uma analogia plástica, a posição e a ação do Bem no mundo. Uma alegoria, em que a máxima força poética conjuga-se com a sutileza plástica do traçado lógico, descobre repentinamente o lugar e o sentido da idéia do Bem, como princípio supremo da filosofia platônica, lugar e sentido que até agora se tinham conservado deliberadamente obscuros nas obras de Platão, ou então como um ponto esboçado na distância.”

A ‘contemplação’ era na dialética platônica a expressão da função espiritual em virtude da qual se vê no múltiplo a unidade da idéia e que o próprio Platão caracteriza por vezes com o nome de synopsis. Mas como, ao chegar ao seu último pedaço, já se não pode exarar por escrito o caminho dialético que conduz à contemplação da idéia do Bem, substitui-o pela contemplação sensível do seu ‘análogo’ no mundo visível.”

Podemos dizer que a visão é o mais solar dos nossos sentidos, mas a capacidade de ver provém principalmente da luz que o Sol difunde e que banha aquela, do exterior.”

O SER-DO-ENTE: “Ao mundo do visível não dá o Sol apenas a visibilidade, mas o nascimento, o crescimento e a nutrição. (…) também o mundo do cognoscível não recebe da idéia do bem só a cognoscibilidade, mas ainda o ser, embora o Bem em si não seja o Ser, mas algo superior a ele pela sua posição e pelo seu poder.” “O mesmo se diz de Deus em ARISTÓTELES (Dial. frag., edição WALZER, P. 100, frag. 49 ROSE) (…) As vacilações (…) implicam (…) uma alternativa, ou seja, duas afirmações coincidentes com a verdade.” O melhor discípulo de Parmênides.

JAEGER, The Theology of the Early Greek Philosophers (La teología de los primeros filósofos griegos, FCE, 1952)

No livro VIII da Cidade de Deus, que elaborou conscientemente para enfrentar a República de Platão, Santo Agostinho entrega a este o cetro de toda a teologia anterior ao Cristianismo.”

Karl STUMPF, Verhältnis des platonischen Gottes zur Idee des Guten (Halle, 1869)

Hermann Lotze, pai da moderna teoria filosófica do <valor>”

SOLMSEN, Plato’s Theology, 1942

BOVET, Le Dieu de Platon (Tese de Genebra), 1902

A pergunta socrática sobre qual é a natureza e unidade da arete revela-se finalmente como problema do Bem divino, a ‘medida de todas as coisas’ (como se define Deus nas Leis).”

já alguns dos filósofos pré-platônicos evitavam a palavra THEOS ou preferiam falar de <o divino>”

Platão parece deter-se apenas no aspecto metafísico da idéia do Bem. Parece ter perdido completamente de vista a relação que ela tem com a missão da cultura do Homem. É isto que leva constantemente os intérpretes a arrancarem a comparação do solo em que está enraizada e a encará-la como um símbolo auto-suficiente da metafísica ou da teoria do conhecimento de Platão, sobretudo quando têm em conta que ela forma o final do livro VI, aparecendo assim (contra a intenção platônica) como o remate da sua exposição e desligada do que vem a seguir.” “Uma antologia que culmina na idéia do Bem: eis a metafísica da paideia. O ser de que Platão fala não está desligado do Homem e da sua vontade.”

Mas a meta fica além do mundo dos fenômenos diretamente dado e está oculta ao olhar do homem sensorial por um múltiplo invólucro. Romper estes invólucros impeditivos é o primeiro passo que se tem de dar para que a luz do Bem jorre no olhar da alma e lhe faça ver o mundo da verdade.” O mundo-verdade de Nietzsche é uma ficção; o mundo da verdade platônico é, dessa mesma perspectiva, ainda o aquém, “aparência”. Platão entendido corretamente nega o platonismo.

Só ao chegarmos ao segundo segmento principal da linha saímos do campo das meras opiniões para entrarmos no do conhecimento e da investigação científica, no reino da verdade, quer dizer, na esfera em que se processará a educação platônica dos governantes-filósofos.”

Só quando entramos na segunda e última fase do mundo inteligível alcançamos um tipo de conhecimento que, embora parta de hipóteses também, não as aceita, à maneira das matemáticas, como princípios, mas simplesmente como o que a própria palavra indica, ou seja, como premissas e degraus, para a partir deles erguer-se logo a seguir até o absoluto, até o princípio universal. É este método de conhecimento que é o verdadeiro logos, o logos puro.” “Mas é visível que Platão não pretende explanar aqui, numa página, os últimos segredos da sua teoria do método e da sua lógica, como parecem pensar a maioria dos intérpretes, que sempre aqui viram o seu paraíso”

meras conjeturas” (1)

percepção sensorial dos objetos reais (…) simples imagem refletida” (2)

uma esfera de madeira” (3)

(a esfera em si)” (4)

Platão não afirma que o Ser sobre o qual versa o conhecimento matemático seja um reflexo do que a dialética concebe. Mas é algo semelhante a isto que ele parece pensar quando diz que as teses mais gerais que o matemático aceita como princípios são meras hipóteses para o filósofo, que delas parte para se elevar (…) A proporção matemática que ilustra as 4 fases vai desde a alegoria do Sol, que constitui o final e ponto culminante do livro VI, até a alegoria da caverna, com que o VII começa; e a ascensão do conhecimento até a idéia do Bem, que até aqui apenas de maneira abstrata fôra exposta, aparece neste livro plasmada como símbolo, com uma força poética insuperável.”

OS 4 NÍVEIS:

(1) Sombras;

(2) Reflexos;

(3) Imagens;

(4) e a imagem-em-si. RAZÃO (mas não é a Verdade ou o Absoluto).

Um quinto nível, inatingível, SOL, seria, portanto, a Idéia no sentido de Além.

A princípio não poderia ver senão sombras, em seguida já conseguiria ver as imagens dos homens e das coisas refletidas na água, e só por fim estaria apto a ver diretamente as próprias coisas. Contemplaria depois o céu e as estrelas da noite e a sua luz (…) considera-se feliz pela mudança ocorrida e lamenta os seus antigos irmãos de cativeiro. (…) preferiria ser o mais humilde jornaleiro do mundo da luz do espírito a ser o rei daquele mundo de sombras. E se por acaso voltasse outra vez ao interior da caverna e se pusesse, como antigamente, a rivalizar com os outros cativos, cairia no ridículo, pois já não conseguiria ver nada nas sombras e lhe diriam que arruinara os olhos ao sair para a luz. E se procurasse libertar qualquer dos outros e arrancá-los das trevas, correria o risco de o matarem, caso pudessem apoderar-se da sua pessoa.”

O conceito de esperança é aqui empregado com especial referência à expectativa que o iniciado nos mistérios experimenta em relação ao além. A idéia da passagem do terreno à outra vida é aqui transferida para a passagem da alma do reino do visível ao reino do invisível.”

A repugnância do verdadeiro filósofo em se ocupar dos assuntos humanos e a sua ânsia de permanecer nas alturas nada tem de surpreendente, se esta comparação corresponde à realidade; e é perfeitamente compreensível que o filósofo tenha de cair por força no ridículo, ao regressar deste espetáculo divino às misérias do mundo dos homens (…) os transtornos desorientadores da visão que afetam os olhos da alma, quando ela desce da luz às trevas, são diferentes dos que se produzem ao passar das sombras da ignorância para a luz, e quem chegar ao fundo do problema não se rirá, mas considerará, num caso, feliz a alma, e no outro a lamentará.”

Diante das profundas comparações contidas nesta passagem, que desde a Antiguidade foi inúmeras vezes interpretada nos mais diversos sentidos, estamos nós em situação extraordinariamente favorável, porque o próprio Platão encarregou-se de comentá-la e esclarecê-la, de maneira suficientemente clara, completa e concisa.”

A comparação do Sol e da caverna, agrupadas numa unidade, como vimos pela proporção matemática das 4 gradações do Ser, representam uma só encarnação simbólica da essência da paideia.”

no primeiro parágrafo do livro VII (…) Platão aponta a caverna expressamente como uma alegoria da paideia. Para falar mais exatamente, apresenta-a como uma alegoria da natureza humana e da sua atitude perante a cultura e a incultura, a paideia e a apaideusia. Para o leitor capaz de compreender de uma só vez o encadeamento lógico de mais de uma tese, está implícita nela uma dupla referência para trás e para frente.”

Novo Protágoras: o Sol é a medida de todas as coisas.

A paideia não é focalizada aqui do ponto de vista do absoluto, como na alegoria do Sol, mas antes do ponto de vista do Homem: como transformação e purificação da alma para poder contemplar o Ser supremo. Ao desviar a nossa atenção da meta para o pathos deste processo interior de cultura, Platão aproxima-nos ao mesmo tempo da verdadeira exposição da sua trajetória metódica, no ensino das matemáticas e da dialética.”

No fundo, é logo desde as primeiras obras que Platão se esforça por fazer compreender a ignorância socrática como a aporia de um homem que caminha para a superação e aprofundamento do saber até então dominante. O que se diz na República sobre este problema não pode, naturalmente, ser comparado, quanto à precisão, com os diálogos especialmente consagrados ao tema do saber, mas limita-se a ordenar os seus resultados.”

CONTRA A INOCUIDADE DO DISCURSO <LEIAM LIVROS>: “A verdadeira educação consiste em despertar os dotes que dormitam na alma. Põe em funcionamento o órgão por meio do qual se aprende e se compreende; e conservando a metáfora do olhar e da capacidade visual poderíamos dizer que a cultura do Homem consiste em orientar acertadamente a alma para a fonte da luz, do conhecimento. Assim como os nossos olhos não poderiam voltar-se para a luz a não ser dirigindo o corpo inteiro para ela,¹ também nos devemos desviar <com toda a alma> do corpo do devir, até que ela esteja em condições de suportar a contemplação das camadas mais luminosas do Ser.

[¹ O “falso” desprezo pelo corpo (o cristianismo como inversão do Platonismo, e não sua consumação).]

Portanto, é numa <conversão>, no sentido original, espacialmente simbólico, desta palavra que a essência da educação filosófica consiste. É um volver ou fazer girar <toda a alma> para a luz da idéia do Bem, que é a origem de tudo.(*) Este processo distingue-se, por um lado, do mesmo fenômeno na fé cristã, para o qual mais tarde foi transposto este conceito filosófico da conversão, porque este conhecer radica num ser objetivo; por outro lado, tal como Platão o concebe, está completamente isento do intelectualismo¹ que sem qualquer razão se censura nele.

(*) Cf. A. NOCK, Conversion (Oxford 1933). Este autor procura no helenismo clássico os antecedentes do fenômeno religioso cristão da conversão e menciona, entre outros, o passo platônico.”

¹ op. cit.

(*) “entre a alma do Homem e Deus interpõe-se, segundo a concepção platônica, o longo e duro caminho da perfeição. Sem perfeição não pode existir a arete. A ponte que Platão estende entre a alma e Deus é a paideia. Esta é incremento do verdadeiro Ser.”

O Estado das Leis é um Estado teônomo, não em oposição ao Estado da República, mas pelo contrário a sua imagem e semelhança. Guarda este princípio supremo, ainda que ele apareça nas Leis aplicado de maneira diferente e não deixe ao conhecimento filosófico senão a margem que corresponde ao grau inferior do Ser, sobre o qual assenta. Platão diz no Fédon que a descoberta do Bem e da causa final constitui a encruzilhada histórica dos caminhos da concepção da natureza, onde se separam o mundo pré-socrático e o mundo pós-socrático.”

Não pode haver a menor dúvida de que os discípulos viram na proclamação platônica do Bem como causa última do mundo – e assim o prova a elegia do altar de Philia, em Aristóteles – a fundação de uma religião nova e, ao menos uma vez neste mundo, viram realizada na pessoa do seu mestre, à guisa de exemplo, a fé platônica na identidade do bem e da felicidade.”

Platão é o criador do conceito de teologia, e a obra em que pela 1ª vez na História universal aparece este conceito revolucionário é a República, onde, com vistas a aplicar à educação o conhecimento de Deus (concebido como bem) são traçadas as linhas fundamentais da Teologia. A Teologia, i.e., o estudo dos problemas supremos pela inteligência filosófica, é um produto especificamente grego. É um fruto da suprema audácia do espírito, e os discípulos de Platão bateram-se contra o preconceito pan-helênico, na realidade um preconceito popular, segundo o qual a inveja dos deuses negava ao Homem a possibilidade de compreender estas coisas tão elevadas. Não eram apoiados na autoridade de uma revelação divina, na posse da qual julgassem se encontrar, que lutava contra eles, mas sim em nome do conhecimento da idéia do Bem, que Platão lhes ensinara e cuja essência é a total ausência de inveja.”

Podemos muito bem adotar o título de Spinoza e chamar à República – a obra fundamental de Platão, na qual se assentam as bases ideais da paideiaTractatus Theologico-Politicus.”

A imagem das ilhas da bem-aventurança, escolhida para caracterizar o paraíso da vida contemplativa, é tão feliz que conseguiu impor-se para sempre. Voltaremos a encontrá-la no Protréptico do jovem Aristóteles, obra em que o discípulo de Platão apregoa o seu ideal de vida, de onde aquela fórmula passa à literatura da Antiguidade e se difunde para além dela.”

É precisamente no momento da sua tensão máxima que o sentido político originário de toda a paideia grega triunfa no conteúdo ético e espiritual que Platão lhe infunde de novo.”

o filósofo deve descer outra vez à caverna.” Base do Zaratustra.

É este forte sentimento de responsabilidade social que distingue da filosofia dos pensadores pré-socráticos o ideal platônico da suprema cultura espiritual. O paradoxo histórico é que estes sábios, mais preocupados com o conhecimento da natureza do que com o Homem, tiveram uma ação política prática mais intensa do que Platão, apesar de todo o pensamento deste girar em torno dos problemas práticos.” “uma parte dos antigos historiadores da Filosofia apresentava os pensadores mais antigos precisamente como modelos da devida associação da ação e da idéia, ao passo que os filósofos posteriores se foram consagrando cada vez mais à teoria pura.”

Não sente nenhum dever de gratidão ativa para com o Estado degenerado da realidade, porque, embora também nele possam nascer filósofos, não é pelo fato de a opinião pública ou os órgãos deste Estado os estimularem que eles nascem lá.”

* * *

3.11.a. As matemáticas como propaideia

A lenda atribui a paternidade desta ciência ao herói Palamedes, que combateu em frente de Tróia e de quem se diz que ensinou ao chefe supremo Agamemnon o uso da nova arte para fins estratégicos e táticos. Platão ri daqueles que assim pensam, pois segundo isto Agamemnon não teria sido capaz até então sequer de contar os dedos, e muito menos os contingentes do seu exército e da sua frota.” “é sabido que o desenvolvimento da ciência da guerra no séc. IV requeria um conhecimento cada vez maior das matemáticas.” “É um estudo humanístico, pois sem ele o Homem não seria Homem.”

Não devemos esperar da sua maneira de enfocar o assunto que ele entre a fundo no conteúdo dos problemas matemáticos e muito menos que exponha todo um curso didático desta ciência.¹ Exatamente como faz ao tratar da música e da ginástica, Platão limita-se a traçar as linhas diretivas mais simples, segundo o espírito das quais se devem estudar estes problemas.”

¹ Não, por Zeus! Só um pouquinho de matemática já está ótimo…

A senda através da Filosofia, que Platão prescreve a esta cultura, exige dos futuros ‘governantes’ um anelo tão puro de cultura, que a referência à importância prática que estes conhecimentos possam vir a adquirir para eles quase pode ser considerada um perigo para a verdadeira fundamentação dos estudos matemáticos. Diz-nos a tradição que Platão levou a sério este problema quando lhe pediram que educasse o tirano Dionísio II para governar segundo as suas concepções. PLUTARCO, Díon, c. 13, informa que o príncipe e toda a côrte dedicaram-se durante certo tempo ao estudo das matemáticas e que o ar ficava cheio do pó que a multidão levantava ao traçar as figuras geométricas no chão. É principalmente a geometria que lhe fornece ocasião para polemizar contra os matemáticos que desenvolvem ridiculamente as suas demonstrações, como se as operações geométricas implicassem um fazer (praxis) e não um conhecer (gnosis).”

(*) “W.A. HEIDEL, ‘The Pythagoreans and Greek Mathematics’, em American Journal of Philology, 61 (1940), pp. 1-33, traça o desenvolvimento dos estudos matemáticos na Grécia mais primitiva, tanto quanto lhe permitem as provas que existem, em círculos não-pitagóricos, especialmente na Jônia.” Visão corroborada pelo recentíssimo (e excelente) trabalho de Tatiana Roque, História da Matemática.

Os pitagóricos medem as harmonias e os tons audíveis entre si e buscam neles o número, mas a sua missão termina onde começam os ‘problemas’, cuja investigação o nosso filósofo considera a verdadeira meta da sua cultura e que põe igualmente em relevo, ao tratar da geometria e da Astronomia.”

a regularidade matemática dos fenômenos celestes pressupõe a existência de agentes dotados de consciência racional.” No astrônomo/observador!

(*) “Timeu, 38 D. Repele-se aqui o exame pormenorizado da teoria das esferas, dizendo-se que este método daria maior importância ao secundário que à finalidade que deve servir. De modo diferente procede ARISTÓTELES na sua Metafísica, 8, onde critica as razões que dão os astrônomos para fixar o número exato das esferas embora se equivoquem ao fazer o cálculo.” Aristóteles dá sempre a impressão, em sua Metafísica, de não reconhecer qualquer diferença entre a Academia (platonismo, com que rompeu) e os pitagóricos (entre o Número e a Idéia enquanto entidades).

Sócrates aparece sempre como o homem que tudo sabe, seja qual for o ponto que se focalize, e embora só lhe interesse o que ele considera fundamental, quando a ocasião se apresenta revela um domínio assombroso em campos de conhecimento que, parece, deveriam ser-lhe estranhos.” “Nesse ponto, temos de controlar muito bem a liberdade soberana com que nos seus diálogos Platão faz de Sócrates o advogado dos seus próprios pensamentos.”

O Sócrates histórico¹ não teria repreendido severamente o seu interlocutor, como o Sócrates platônico, ao ouvi-lo justificar o valor da Astronomia pela sua utilidade para a agricultura, para a navegação e para a arte da guerra.”

¹ Reza a lenda (assim digo porque nunca o li) que Xenofonte é a melhor fonte. Xeno ‘é a melhor’ fonte!

O olhar para o alto em que a Astronomia estudada matematicamente educa a alma é perfeitamente diverso de voltar os olhos para o céu, como fazem os astrônomos profissionais.” Perfeitamente como meu próprio desenvolvimento cognitivo: a física teórica era o que me interessava porque eu desconhecia a metafísica e o ético, mas já queria olhar para dentro de mim mesmo mais do que olhar para um ponto espacial elevado.

A introdução da estereometria constitui uma surpresa e permite a Platão variar um pouco esta parte do seu estudo. A influência da prática de ensino na Academia transparece aqui, indubitavelmente. A tradição da história das matemáticas, que data da baixa Antiguidade e sobe até a obra fundamental de Eudemo, discípulo de Aristóteles, considera autor da estereometria o notável matemático Teeteto de Atenas, em memória do qual Platão escreveu, poucos anos depois da República, o diálogo que tem o seu nome. SUIDAS, Escol., em EUCL., Elem., XIII (t. 5, p. 654, 1-10, Heilberg). A atribuição do descobrimento dos 5 poliedros regulares a Pitágoras por Proclo (no índice geométrico) é lendária, como o provaram de modo irrefutável as recentes investigações de G. Junge, H. Vogt e E. Sachs.”

O conteúdo do último livro (o XIII, dedicado à estereometria dos Elementos de Euclides, a obra fundamental e imorredoura das matemáticas gregas, a qual apareceu uma só geração depois, devia ter essencialmente como base as descobertas de Teeteto.” Cf. T.L. HEATH, A Manual of Greek Mathematics (Oxford, 1931), p. 134.

Como nos encontramos separados por mais de 2 mil anos da época em que as matemáticas gregas receberam de Euclides a forma científica consagrada como clássica, a qual ainda hoje se conserva em vigor dentro dos limites então traçados, não se torna fácil para nós retroceder até a situação espiritual em que esta forma se encontrava ainda em gestação ou tendia a consumar-se. Se levarmos em conta que foi obra de poucas gerações, compreenderemos como o labor concentrado de um punhado de investigadores geniais, empenhados em impulsionar o seu progresso, criou uma atmosfera de confiança, mais ainda, de certeza na vitória”

Nem a filosofia platônica nem qualquer outra grande filosofia poderia ser concebida sem a influência fecundante dos novos problemas levantados e das novas soluções apresentadas pela ciência daquele tempo. Ao lado da Medicina, cuja influência podemos constantemente verificar, foram principalmente as matemáticas que a impulsionaram.” “O mais antigo contato de Platão com as matemáticas deve ter sido anterior às suas relações com os pitagóricos, uma vez que diálogos como o Protágoras e o Górgias, os quais revelam já um nítido interesse pelas matemáticas, foram escritos antes da 1ª viagem do filósofo à Sicília.”

As obras platônicas contemplam um Teodoro velho (Teodoro de Cirene, matemático de uma geração anterior a Teeteto) e um Teodoro jovem (não-matemático).

a tradição assenta numa reduplicação errônea acerca do que aconteceu na 3ª viagem; porém, quem Platão ia visitar na 1ª viagem à Itália, antes de ir a Siracusa (no ano de 388), senão os pitagóricos? É certo que DIÓGENES LAÉRCIO, III, 6, que dá informações sobre o caso, só menciona Filolau e Eurito, mas não Arquitas, como motivo da 1ª viagem.”

Há um dado da antiga biografia de Aristóteles que afirma ter ele cursado a escola de Platão ‘sob Eudoxo’. deste dado concluímos que houve um estreito contato da Academia com o grande matemático deste nome e com a sua escola; esse contato transparece por todas as vias na nossa tradição e nas relações pessoais de Aristóteles com ele, referidas na Ética, e as quais remontam a uma longa permanência de Eudoxo na escola platônica, cuja data se poderia fixar com precisão no ano em que Arist. entrou para a Academia (ano 367).”

Estes fatos indicam-nos insistentemente que nunca devemos perder de vista que o que se desdobra perante os nossos olhos nas obras literárias de Platão é apenas a fachada do edifício científico e das atividades docentes da Academia, cuja estrutura interna ele esboça.” “O fato de as críticas dirigidas a Platão versarem precisamente sobre a hipertrofia das matemáticas prova que era nestas que se via a pedra angular do seu sistema de cultura.”

PLATÃO PRECAVIDO CONTRA O DESPONTAR DO NIILISMO: “O moderno conceito da ciência, que traça a esta limites tão vastos como aqueles que a experiência humana pode alcançar, faz com que a hegemonia exclusiva das matemáticas na paideia platônica nos pareça, se bem que grandiosa, unilateral; isso nos inclina, talvez, a vermos também nesse fenômeno o efeito da supremacia temporal das matemáticas da sua época. Todavia, por mais que a consciência do progresso que irradiava dos seus grandes descobridores houvesse necessariamente de contribuir para a posição de predomínio que as matemáticas desfrutavam na Academia, a verdadeira razão disso deve ser buscada, em última instância, no caráter da própria filosofia platônica e no seu conceito do saber, que excluía da cultura os ramos puramente empíricos do saber. (…) O fato de depararmos, nos fragmentos conservados da comédia ática daquele tempo, com motejos às intermináveis disputas sustentadas por Platão e seus discípulos em torno da determinação do conceito das plantas e dos animais, e sua divisão, não contradiz em nada a imagem projetada diretamente pelos diálogos platônicos.”

* * *

o pensamento está para as opiniões como o Ser está para o devir”

o dialético é o homem que compreende a essência de cada coisa e sabe dar conta dela.”

O nome de ‘guardiões’ – em si estranho –, dado por Platão à classe dominante, foi escolhido, ao que parece, na previsão da virtude filosófica deste supremo estado de vigilância espiritual em que se trata de educá-los.”

Deverão ficar aborrecidos consigo próprios, quando se demonstrar para eles que trabalham em erro, em vez de se rebolarem como os porcos no esterco da sua própria incultura.”

Todas essas idéias são totalmente novas no tempo de Platão e encontram-se em oposição à fé cega no saudável senso comum daqueles que não aprenderam nada além do seu trabalho diário. Desde então têm aparecido no mundo escolas e exames em grande abundância e todavia, se Platão vivesse hoje entre nós, é muito duvidoso que ele pudesse concluir que as exigências estavam cumpridas em todos os requisitos.”

toda a iniciação prematura na cultura espiritual tropeça com um obstáculo enorme: a falta de interesse da criança em aprender. Esta falta de interesse não se pode combater pela coação, pois não há nada de mais oposto à essência profunda da cultura livre que o aprender pelo medo servil a um castigo.” Quem mais se aproxima deste legado pedagógico platônico na modernidade é Rousseau.

A educação espiritual descansará completamente durante este prazo, pois as fadigas e o cansaço são incompatíveis com o estudo.” “O princípio de que a educação espiritual deve reatar-se aos 20 anos tem esse corolário: aquela formação gímnica, que Platão trata de distinguir bem da participação voluntária, mais adiantada ou mais tardia, em outros exercícios de ginástica, deve preencher o período dos 17 aos 20 anos. É a idade em que Atenas instruía como efebos os moços varões aptos para o serviço das armas. O seu tempo de serviço durava 2 anos e começava aos 18.”

A longa duração da formação dialética, que na sua totalidade abrange 15 anos, e nem sequer neste período alcança o seu verdadeiro fim, põe em relevo, melhor do que outra coisa qualquer, o conceito platônico do saber e a essência desta trajetória nas suas diversas fases. A exigência deste plano de estudos parece à 1ª vista o sonho e o anseio de um especialista a quem os planos de ensino da sua disciplina não deixam nunca a margem de tempo que ele julga precisar para a consecução perfeita dos seus objetivos e que, pondo-se a ruminar uma utopia pedagógica, reclama para o estudo das suas matérias tantos anos de ensino quantos os meses que lhe são dedicados ao plano real.” “de um estudo da Filosofia limitado a alguns anos, como era habitual na sua época e ainda hoje continua a ser, nada havia a esperar, nem quanto à formação filosófica nem quanto à educação dos governantes.” Interessante. Quem sabe a completa marginalização da filosofia pelo Estado não seja o melhor que poderia acontecer?

A formação dialética de 15 anos que vai dos 20 aos 35 é, neste plano, o fundamento intelectual sobre o qual assenta a cultura dos governantes. E é extraordinariamente elucidativo que este ensino finde, como parecia natural, com o conhecimento da idéia do Bem: entre o período de formação dialética e esta base suprema, Platão intercala um 2º período de estudos de 15 anos, que vai dos 35 aos 50.”

Platão vê o perigo da dialética criar um sentimento de pretensa superioridade que leve os adeptos a usarem a arte recém-adquirida para refutar os outros e a fazerem deste jogo um fim em si.”

Platão esforça-se sempre por fazer compreender a diferença existente entre a paideia e a paidia, quer dizer entre a cultura e o mero passatempo.” “palavras que em grego têm, além do mais, a mesma raiz, já que ambas se relacionam originariamente com os atos da criança, do pais. (…) É curioso que os gregos tenham encontrado o problema do jogo na época em que aspiravam a penetrar de um modo filosófico mais profundo na paideia, matéria que eles levavam tão a sério. Contudo, a passagem do jogo para a máxima seriedade foi desde sempre o autenticamente natural”

a dialética conduz à refutação das idéias dominantes sobre o justo e o belo, i.e., das leis e costumes em vigor, sob os quais os jovens se criaram como se fossem seus pais.”

Platão entende que a garantia fundamental contra a anarquia reside na trajetória da cultura dialética acabar o mais tarde possível – é por isso que fixa seu final aos 50 anos”

O problema do número não é importante, uma vez que não afeta a própria essência da constituição. Podemos caracterizá-la como uma aristocracia no verdadeiro sentido da palavra. A cultura grega tivera por ponto de partida a nobreza de sangue; agora, no final de toda a evolução reaparece na visão platônica o princípio seletivo de uma nobreza do espírito, quer ela governe quer não.”

Não é um novo Estado, como nas Leis, que Platão toma como ponto de partida, mas sim uma polis já existente, que importa transformar.” Curiosamente o estereótipo é contrário (Leis como programa mais pragmático e, portanto, como se usara outra base). E isso porque a geografia ou formalidade da polis nada tem que ver: espiritualmente, o povo que migra já tem as condições mínimas (não ideais, mas satisfatórias mundanamante) para a instituição das Leis; já a República se fará aos poucos, como dito acima, não importa que no mesmo território, erradicando de tijolo em tijolo a moral corrompida dos pais dos primeiros guardiães, até consolidar-se o Estado ideal, e transformar a Filosofia numa crisálida, o que não significa tornar-se estanque: se é a melhor das Filosofias, ela justamente não decai nem corrompe, nem é substituída, por ser autêntica e dinâmica a cada florescer de uma nova gerações de guardiães. Na forja do Estado ideal não tem-se uma colônia desabitada para povoamento, mas tem-se todo o tempo do mundo. Se apenas a Europa moderna soubesse o verniz do primeiro…

3.11.b. A doutrina das formas de Estado como patologia da alma humana [Aristóteles como “o psiquiatra”]

só existe um Estado perfeito, ao passo que são numerosíssimas as variedades do Estado defeituoso.”

Também Aristóteles, na sua Política, enlaça numa unidade a teoria do Estado perfeito com a das formas falsas do Estado. O fato de que uma só ciência se encarrega destas 2 missões, aparentemente tão distintas, é considerado por ele um problema, que trata a fundo. [Aí seria necessária uma Ciência (da Grande) Política] Arist. (…) começa a investigar uma a uma todas as formas de Estado existentes, algumas das quais reconhece como acertadas, para finalmente expor o que entende por Estado perfeito [estudo de caso, mera observação empírica do que estava-ali]. É exatamente ao contrário de Platão que procede: este parte do problema da justiça absoluta e do Estado ideal em que ela se realiza, apresentando a seguir todas as demais formas do Estado como desvios da norma, e portanto como fenômenos de degenerescência.” Deus é a medida.

Podemos dar a questão por perdida quando a Política passa a ser um problema político, e não mais educacional. Neste mundo, não há “medicinas alternativas”!

O fato de existirem poucos homens, animais ou plantas perfeitamente sãos não converte a enfermidade em saúde nem faz da média deficiente, acusada na experiência, a norma.”

As formas reais do Estado são todas fenômenos de enfermidade e degenerescência.”

O DEVIR E O BEM: “Toda a teoria de Platão e de Arist. sobre as transformações do Estado não é senão uma teoria da stasis, palavra que tem em grego um significado mais vasto que o nosso conceito de ‘revolução’.”

Ainda na patologia vegetal de Teofrasto, que tem a forma clássica na sua obra Das Causas das Plantas, vemos claramente refletida a luta entre o conceito rigorosamente platônico da norma como a forma melhor e mais conveniente da planta, i.e., como a sua arete, e o conceito puramente estatístico do normal.”

É talvez pelo seu realismo e pela maneira como capta os pontos fracos, que a análise que Platão faz do tipo democrático se distingue da glorificação de Atenas feita na oração fúnebre de Péricles; e distingue-se também do panfleto crítico Constituição de Atenas, pela ausência de qualquer ressentimento oligárquico.”

O Estado real que mais se aproxima do Estado perfeito é o espartano” “A exposição deste sistema, para o qual Platão cria o conceito novo da timocracia, atendendo ao lado de que se ajusta por inteiro à pauta da honra, apresenta o encanto especial da individualização histórica, ao contrário das outras formas de Estado”

é conveniente estabelecer um paralelo entre a sua imagem de Esparta e o seu ideal de Estado, para ver o que no Estado platônico difere conscientemente do Estado espartano. Ainda mais importante, a este respeito, é a crítica direta do Estado espartano, nas Leis, livros I-II. É a falsa liga dos ‘metais’ que determina a composição contraditória do tipo espartano de homem. O elemento de ferro e de bronze nele existente impele-o ao lucro, à aquisição de dinheiro e de bens imóveis. Esse elemento, que é um elemento pobre da alma, tende a equilibrar-se por meio da riqueza exterior. Em contrapartida, o elemento de ouro e de prata impulsiona-o para a arete e o reconduz ao estado originário.” “Desta forma os elementos fundidos no caráter espartano entrechocam-se, até que por fim chegam a um compromisso entre a aristocracia e a oligarquia.” “os membros das classes inferiores, que antes gozavam da proteção daquela [a aristocracia] e eram chamados amigos e sustentáculos dos governantes, vêem-se reduzidos à escravidão e são doravante considerados periecos e hilotas. Vigiá-los torna-se para a camada dominante, em que se convertem os governantes, uma tarefa não menos importante que a de salvaguardar militarmente o Estado contra os perigos do exterior.” Vigiar é diferente de guardar.

Esparta inclina-se para o tipo de homem simples e corajoso, mais apto para a guerra do que para a paz.” “No exterior ostenta máxima sobriedade, mas as habitações privadas são verdadeiros tesouros e ninhos de luxo e dissipação.” “como crianças às escondidas dos pais, entregam-se voluptuosamente e em segredo aos prazeres proibidos, à margem da lei, que o Estado se glorifica de personificar.” “Esta hipocrisia é o produto inevitável da educação espartana, que não se baseia na convicção interior do Homem, mas numa rotina imposta à força. É a seqüela da carência de uma cultura verdadeiramente musical, que vem sempre unida à razão e à ânsia de saber.”

MÉTODO ANTI-HISTÓRICO: “Em toda esta parte da República, Platão invoca de novo o princípio fundamental a que o filósofo da paideia se deve ater: o método de fazer ressaltar o típico. O homem espartano (…) é, por isso, uma invenção platônica.”

TODO VALOR-BASE (VALOR DOS VALORES) IMPLICA UMA HIERARQUIA, E UMA HIERARQUIA, A ASSUNÇÃO DE UMA PERSPECTIVA: “Para Platão, o tipo representa a personificação de um valor ou de uma determinada fase de valor.” Enquanto, inversamente, na modernidade, o tipo-ideal de Weber, p.ex., pretende-se axiologicamente neutro.

autárquico, amigo das musas, embora de per si bem pouco musical; amigo de ouvir, mas perfeitamente incapaz de falar. É áspero para os escravos: ‘em vez de ser indiferente para com os escravos, como é o homem realmente culto.’ (Rep., 549 A 2)”

é obediente aos superiores, mas cobiçoso de poder e desejoso de se distinguir.” “Talvez despreze o dinheiro na juventude, mas, à medida que envelhece, vai nele se instalando a avareza.” “Talvez tenha um pai excelente que vive num estado mal-governado, o que o leva a se conservar o mais afastado possível das honras e dos cargos, e a velar um pouco o seu brilho, para não atrair sobre si atenções demais. Mas a mãe é uma mulher ambiciosa, que se sente insatisfeita com a posição ocupada na sociedade pelo marido. (…) Aborrece-a também que ele não a tenha em maior estima, e se limite a prestar-lhe a atenção estritamente necessária. Tudo isso a leva a inculcar no filho a idéia de que o pai é pouco viril e é preguiçoso, e todas aquelas coisas que as mulheres sempre dizem dos maridos deste tipo.¹ Também os escravos ganham suas simpatias, dizendo-lhe ao ouvido que o seu pai não é tão respeitado como devia ser, porque as pessoas como ele são consideradas palermas. Deste modo, a alma do filho é seduzida e arrastada, pois, enquanto o pai ‘rega’ e fortalece nele a parte racional da alma, as demais pessoas que o cercam estimulam nele a parte ambiciosa e impulsiva”

¹ Preconceito sexista?

O que essencialmente interessa a Platão, no seu estudo comparativo das diversas constituições, é captar estas diferenças típicas de estrutura do homem individual em cada uma das diferentes formas de Estado.”

O mais provável é que a sua análise do homem espartano fosse escrita um pouco antes da bancarrota do poder de Esparta, que ninguém esperava.”

seu Estado educacional, longe de representar o ponto culminante do império espiritual do ideal espartano, é de fato o golpe mais rude vibrado neste ideal.” “em Platão (…) a Esparta real desce das alturas de um ideal absoluto para a categoria da melhor das formas imperfeitas do Estado.”

É pela tirania que Platão sente a aversão mais profunda. Mas este sentimento fundamental, que parece ligá-lo à democracia clássica, separa-o, na realidade, desta forma de regime do seu tempo.” “Entre a liberdade e a escravidão não é só uma antítese que existe, pois os extremos às vezes se tocam”

A oligarquia é, por assim dizer, uma aristocracia baseada na crença materialista de que é a riqueza que constitui a essência da distinção.”

a falta de disposição dos ricos de contribuírem para os encargos da guerra.”

Ao chegar aqui, deparamos com uma reflexão muito detalhada sobre questões econômicas, a que não se deu importância nenhuma ao traçar a estrutura do Estado perfeito, porque este se preocupava exclusivamente com a missão educacional e deixava de lado todo o resto. Platão estabelecerá mais tarde nas Leis, de modo positivo e de forma legal, o que aqui expõe de forma crítica e de passagem, no plano dos princípios.”

a evolução operada no jovem” “Mata na alma a ambição em que o pai o educara e com ela a parte egoísta e impulsiva da qual brotam todos os atos ambiciosos. Humilhado pela pobreza, dedica-se à poupança e ao trabalho, e vai juntando moeda após moeda.”

“‘democratas moderados’, chamados de ‘oligarcas’ pelos democratas radicais.”

Platão domina maravilhosamente a arte de evitar a repetição pedante das mesmas idéias fundamentais em cada nova metabasis, ocultando-as por detrás de imagens que exprimem com grande força plástica as três partes da alma e as relações normais que entre elas devem existir.”

o homem oligárquico: homem poupador, trabalhador, eficiente, que em sóbria disciplina submete todos os outros anseios à ânsia única de acumular dinheiro, que desdenha as formas belas e não tem o mínimo sentido para a cultura, para a paideia, como o prova o fato de ele eleger um cego, Plutos, para chefe do coro. A sua incultura (apaideusia) estimula nele os impulsos do zangão, os instintos do pobre e do delinqüente, nascidos da mesma raiz da cobiça de dinheiro.” “sabe comedir-se (…) por medo” “visto de fora, o homem de dinheiro aparece como um tipo extraordinariamente belo e correto, mas há nele muito de fariseu, pois essa classe de homens não conhece o que é a verdadeira virtude e a harmonia interior.”

A existência de uma camada cada vez mais vasta de pessoas empobrecidas, exploradas pelos ricos, e o predomínio da usura e do juro acabam por se converter em causa de mal-estar e de perturbações sociais.” Quanta diferença para os tempos do “mercantilista” Montesquieu!

Nunca o realismo platônico se eleva a tão grande altura como quando descreve a psicologia do homem simples que, queimado pelo sol, nervoso e musculado, luta na guerra ao lado de um daqueles homens ricos, a quem vê debater-se, impotente, sob a gordura inútil”

Num abrir e fechar de olhos o Estado oligárquico desaparece e se instala a democracia.”

NASCE O LUGAR DE FALA: “Todos os cidadãos alcançam direitos iguais e os cargos são preenchidos por sorteio. É este traço, para Platão, a verdadeira característica essencial da democracia”

De um ponto de vista histórico, confunde-se aqui um fenômeno degenerativo com a própria essência da coisa, pois os próprios criadores da democracia ateniense coincidiram na crítica à mecanização da idéia de igualdade, tal como ela se manifesta na provisão de cargos por sorteio.”

No Menexeno,¹ seguindo a velha prática das orações fúnebres dos guerreiros, Platão exalta os méritos da democracia, por ter salvo a nação nas guerras pérsicas; mas na República não se faz nenhuma alusão a eles.”

¹ https://seclusao.art.blog/2019/12/01/menexeno/.

a idéia do dever de prestar contas, que é, segundo Os Persas de Ésquilo, o que distingue a forma de Estado ateniense do despotismo asiático.”

O indivíduo triunfa no seu caráter fortuito, naturalista; mas é precisamente isto que faz com que ‘o Homem’ e a sua verdadeira natureza sejam preteridos. Esta emancipação do indivíduo prejudica tanto o Homem como o sistema da coação e da disciplina exagerada que oprime o indivíduo. O que Platão descreve como o homem democrático é o que hoje chamaríamos de tipo individualista, que, tal como o tipo ambicioso, o avarento e o tirânico, surge efetivamente em todas as formas de Estado, mas constitui um perigo especial para a democracia.”

Platão acha duvidoso o valor desta liberdade porque todo mundo a goza.”

essa é a tua opinião, mas a minha é outra. Ao chegar aqui, o educador, que nesta atmosfera de incontrolabilidade sente-se como poderia sentir-se o peixe na terra seca, entra em choque com a tolerância política, que prefere escutar uma opinião insensata a reprimi-la pela violência.”

Aquele que se vir destituído do seu cargo pela lei ou por uma decisão judicial, continua apesar disso a governar,(*) [pelo dinheiro] sem que ninguém lhe impeça. O espírito da tolerância impera aqui sobre a justiça.

(*) Rep. 557 E.”

Por sua vez, são os próprios patrióticos guardas desta constituição ateniense que mais tendem a censurar estes defeitos do sistema, embora não se mostrem dispostos por isso a renunciar a suas vantagens.”

Enviam para o exílio o respeito (aidos), o qual chamam de tolice, e procedem à troca de nomes de todos os conceitos de valor. À prudência chamam agora falta de virilidade, à moderação e à ordem, mesquinhez inculta; e desterram dali todas as virtudes. Sob roupagens sedutoras, entronizam entre gritos de louvor tudo o que é contrário ao que elas representam, e chamam a anarquia de liberdade, a dilapidação dos bens do Estado de magnanimidade, e a desvergonha de valentia.”

TUCÍDIDES, III, 82, 4. Tal como aqui Platão, também ISÓCRATES no Areopagítico, 20, está evidentemente influenciado pela análise das crises políticas e dos seus sintomas em Tucídides. Esta teoria das crises adaptava-se magnificamente à concepção médica que Platão tinha dos fenômenos que se processavam no Estado e na alma dos indivíduos. Já acima, p. 452s., mostramos, à luz do exemplo do problema da causa da guerra, quanto estava o próprio pensamento de Tucídides fortemente influenciado pelo modelo da Medicina. Um novíssimo rebento do ponto de vista de Tucídides é a teoria das crises políticas que Jacob BURCKHARDT sustenta nas suas Weltgeschichtlichen Betrachtungen.”

Fiel a sua premissa, atribui ao homem democrático como tal a culpa exclusiva do que o historiador apresenta para a Grécia inteira como conseqüência deplorável da guerra do Peloponeso.”

Tão cedo viverá entre canções e vinho, como beberá água e emagrecerá; tão cedo se dedicará ao esporte como se sentirá mole e inativo ou entregue apenas aos interesses espirituais. Às vezes lança-se na política, levanta-se e fala, outras vezes retira-se para o campo, por achar formosa a vida rural, ou então dedica-se à especulação. A sua vida carece de ordem, mas ele a chama de vida formosa, liberal e feliz. Este homem é uma antologia de diversos caracteres e alberga um tesouro de idéias que se excluem uns aos outros.

A valorização platônica do homem democrático é absolutamente determinada pela conexão psíquica direta entre este tipo e as origens da tirania. É certo que a tirania é aparentemente a forma que mais se aproxima do Estado que Platão considera melhor. Tal como a monarquia do sábio e justo assenta no império de uma só pessoa.”

é apenas a forma da concentração e da unidade suprema de uma vontade, que tanto pode ser justa como absolutamente injusta. A injustiça é o princípio em que se baseia a tirania. Este antagonismo que se encerra sob uma forma exteriormente semelhante converte a tirania na caricatura do Estado ideal, para Platão, e a aproximação dela é o critério do mal. A tirania se caracteriza por um máximo de falta de liberdade. E é precisamente isso que explica que ela provenha da democracia, um regime que outorga um máximo de liberdade, visto que a exaltação extrema de qualquer estado de coisas, ao tornar-se um exagero, faz com que ele se transforme no contrário.” “Esta explicação médica do processo político baseia-se, naturalmente, na experiência do último quarto de século transcorrido desde a guerra do Peloponeso. A tirania antiga surgira com a passagem da aristocracia à democracia; a chamada tirania nova, do tempo de Platão, era a forma típica de liquidar a democracia, na altura em que esta chegava à fase mais radical e já irreversível da sua evolução.”

a experiência histórica posterior parece dar-lhe razão”

Para impedir esta passagem, a República romana chegou até, em épocas difíceis, a realizar a tentativa vitoriosa de converter em instituição legal da democracia o império de um único indivíduo, durante um período limitado: era este, com efeito, o significado do cargo de ditador.”

É certo que a teoria platônica das passagens de umas formas de Estado para outras não pretende apresentar nenhuma sucessão histórica; mas, pela maneira como apresenta a crise da liberdade, é o futuro de Atenas que Platão encara nos anos da última reintegração aparente que estava reservada a sua cidade. Talvez a história tivesse realmente seguido este caminho durante mais ou menos tempo, se o Estado ateniense pudesse continuar a se desenvolver, sujeito a meras leis internas. A tirania, porém, não surgira no próprio seio da democracia, mas seria imposta a ela por uma potência externa.”

Os pais adaptam-se ao nível da idade infantil e têm medo dos filhos; estes portam-se como adultos prematuros e pensam como velhos. Não sentem o mínimo respeito pelos pais nem dão guarida a nenhum sentimento de pudor, já que ambas as coisas chocariam o seu sentimento da verdadeira liberdade. Pessoas estranhas e estrangeiras arrogam-se a mesma posição que se fossem cidadãos do Estado, e os cidadãos vivem dentro do Estado desinteressados dele, como se fossem estrangeiros.” “Entre os jovens reina um espírito de maturidade próprio da velhice, ao passo que entre os velhos está na moda o espírito juvenil e nada se evita com tanto cuidado como a aparência de dureza e de rigor ‘despótico’.” Nada parece resumir com mais franqueza a impressão que tenho dos meus anos 2005-2016.

Parece-lhe que em nenhum lugar como no Estado democrático os cães, os burros e os cavalos andam com tanta liberdade, com tanto desembaraço e com tão grande sentimento de si próprios. Parecem querer dizer a todos os que encontram na rua: se você não sair da frente, não sou eu que vou lhe dar passagem.” O acabamento da Antropologia pede a supremacia da Veterinária.

Os zangões, cujo efeito pernicioso já pudemos observar no Estado oligárquico, são igualmente na democracia os germes das doenças que põem em perigo a vida coletiva. Um sábio apicultor elimina-os a tempo, do povo, a fim de salvar o conjunto da colméia. Os zangões são os demagogos que falam e atuam na tribuna, enquanto a massa zumbe a sua volta e não consente que ninguém exteriorize uma opinião diferente. O mel é a fortuna dos ricos e constitui o verdadeiro alimento dos zangões. A massa da população politicamente inativa, que vive do trabalho das suas mãos, não possui nada de grande, mas é chamada a decidir nas assembléias, e os demagogos pagam-lhe com um pouco de mel, quando ela se decide a confiscar a fortuna dos ricos; mas é para si próprios que os zangões guardam a maior parte dessa fortuna. Os abastados lançam-se na política para se defenderem com as únicas armas eficazes dentro do Estado. [as palavras] Por outro lado, porém, a sua resistência é interpretada como um grito de combate e a massa confere ao seu chefe poderes ilimitados. E assim nasce a tirania.” Perfeito.

Para proteger a vida, cerca-se de uma guarda pessoal que deliberadamente lhe entrega a multidão, a qual é suficientemente tola para se preocupar mais com ele do que consigo própria.”

Começa a agir como amigo do povo e seduz todo mundo com o seu trato afável. Nega que o seu governo tenha algo de comum com a tirania e faz ao povo grandes promessas” “Mas, para se tornar indispensável como chefe, vê-se forçado a procurar pretextos contínuos para realizar empreendimentos bélicos. Isto vai pouco a pouco atraindo sobre ele o ódio cada vez maior do povo, e as críticas sobem mesmo aos lábios dos seus sequazes mais fiéis e dos conselheiros mais chegados, os quais o ajudaram a subir ao poder e hoje ocupam elevados postos. E não tem outro remédio senão afastá-los todos, se quiser manter o seu poder. Os homens mais valentes, os mais puros e os mais sábios vêem-se obrigados a tornarem-se seus inimigos”

E para poder sustentar um séquito tão grande, precisa praticar mais um desacato: o confisco dos bens sagrados para o Estado. Finalmente o povo repara no que criou. Para fugir da sombra da escravidão que receava da parte de homens livres, caiu num despotismo entregue em mãos de escravos.”

Platão é o pai da psicanálise. É ele o primeiro que desmascara a monstruosidade do complexo de Édipo, a volúpia de se unir sexualmente à própria mãe, como sendo parte do eu inconsciente, que ele traz para a luz por meio da investigação das experiências dos sonhos; e apresenta ainda toda uma série de recalcados complexos de desejos análogos a este, que vão até o comércio sexual com os deuses,¹ a sodomia e o simples desejo de matar. Rep. 571 C-D” O leitor do século XX é mesmo um imbecil! O lado esclerosado de Platão, no que se refere à homofobia de um ateniense. (!!) Chega a ser incrível cunhar a frase. Curioso, aliás, como a sodomia faz Grécia e “Israel” confluírem.

¹ Ao quê isso hoje se equipara? Ex-Big Bosta Brasil, Anitta?…

LEI SOCIOLÓGICA: Quanto mais homofobia, mais gays. A sina LGBT.

SÓCRATES NA CELA (FÉDON): “Assim como, na sua opinião, é no irracional que se preforma o racional, também é no inconsciente que o irracional se forma. Da descoberta platônica das conexões existentes entre a vida dos sonhos e os atos do homem desperto tira Aristóteles sugestões importantes para as suas investigações sobre os sonhos; mas as investigações aristotélicas têm mais um caráter de ciências naturais” Não diga! E por isso não chegam a conclusão alguma. Bom, pelo menos ele tampouco inventa conclusões, como Freud!

Esta pedagogia do sono teve grande influência nos últimos tempos da Antiguidade.” “Não é moral, mas dietética, a receita que Platão dá à alma para o sono.”

O exemplo que nos 4 casos apresenta para pôr em destaque a deterioração da fase seguinte é o de um jovem que forma as suas opiniões e os seus ideais em oposição com os do pai.” “À medida que o pai exagera unilateralmente a sua tendência para o ideal que persegue, tendência legítima dentro de certos limites, a resistência natural da juventude perante os velhos, a qual se agita na alma do filho, vê alimentada a sua repugnância contra a adaptação integral ao tipo paterno da arete.”

tanto na alma como no Estado, o que fomenta a anarquia é o problema dos desempregados.”

A experiência mostra que a essência do tirânico está sempre associada principalmente a 3 forças psíquicas de destruição: o erotismo, o alcoolismo e a depressão maníaca. É quando o homem se torna, por predisposição, por hábito ou pelas duas coisas ao mesmo tempo, alcoólico, erótico ou melancólico, que a alma tirânica surge.”

Eros, o grande tirano, arrasta-o a todas as loucuras”

o tirânico existe em todos os tamanhos, desde o pequeno ladrão e salteador até o homem que as pequenas almas de tirano conseguem elevar ao poder supremo do Estado (…) Finalmente, repete-se numa fase superior o mesmo espetáculo de violência que a princípio o pequeno tirano dava em relação ao pai e à mãe e que agora o tirano grande faz contra a sua pátria-mãe e pai.”

Dáimon é o deus na sua ação e significado voltados para o Homem.”

Existem em grego várias palavras para exprimir o que nós chamamos ‘vida’: aion designa a vida como duração e tempo delimitado de viver; zoe significa antes o fenômeno natural da vida, o fato de estar vivo; bios é a vida considerada como unidade de vida individual, a que a morte põe termo, e também como subsistência: é, por conseguinte, a vida enquanto qualitativamente distinta daquela de outros seres humanos.”

São como os gregos que, às portas de Tróia lutavam pela recuperação de Helena sem saberem que a Helena de Tróia não passava de uma imagem enganosa e que, como conta Estesícoro, a verdadeira Helena se encontrava no Egito.” “E Platão leva tão longe o seu jogo irônico que determina as distâncias relativas a que os tipos de Homem correspondentes às diversas formas de Estado se encontram do verdadeiro prazer, calculando que o tirano vive 729 vezes menos agradavelmente que o homem platônico.”

O leão é o Homem considerado como ser temperamental, com os seus sentimentos de cólera, de pudor, de coragem, de entusiasmo. Mas o verdadeiro Homem, ou o Homem no homem, como este novo conceito é maravilhosamente explicado na alegoria platônica, é a parte espiritual da alma.”

Platão pediu-nos que o acompanhássemos na descoberta do Estado, e em vez dele descobrimos o Homem. Quer o Estado ideal seja realizável no futuro, quer seja irrealizável, podemos e devemos construir sem cessar o ‘Estado em nós’.” “este é o maior de todos os paradoxos forjados pelo pensamento de Platão.”

Na luta pela renovação da polis, esta renovação do próprio indivíduo era originariamente concebida como o germe de uma nova ordem universal. Porém, a interioridade da alma revela-se por fim como o último refúgio da inquebrantável vontade normativa do antigo homem da polis grega, que soubera construir outrora a cidade-Estado, mas que agora já não encontra no mundo nenhuma pátria.”

A seriedade com que nos tempos primitivos e no período clássico do Helenismo tinham sido concebidas as relações entre o indivíduo e a comunidade pareceu durante muito tempo traduzir-se num entrelaçamento sem par da vida do indivíduo com o espírito da polis. Do ponto de vista de Platão, contudo, compreendemos que precisamente este entrelaçamento total, caso se leve a cabo coerentemente, nos faz sair fora da esfera terrestre do Estado e nos eleva ao único mundo onde real e verdadeiramente pode imperar: o mundo divino.”

3.12 A República – III

como costuma acontecer em Platão, o problema da forma implica um profundo problema filosófico”

Na educação posterior dos governantes, baseada já num saber puramente filosófico, a poesia e a cultura musical não desempenham papel importante, razão pela qual Platão não teve até agora ocasião de dizer a sua última palavra acerca da missão educativa da poesia, do ponto de vista da Filosofia, i.e., do puro conhecimento da verdade. (…) Portanto, justifica-se absolutamente que Platão examine uma vez mais, sobre esta base, a questão da poesia.”

esta última batalha decisiva entre a Filosofia e a poesia. (…) Do ponto de vista ‘moderno’, que encara a poesia como simples literatura, é difícil de compreender esta exigência, que parece uma ordem tirânica, uma usurpação de direitos alheios. Mas, à luz da concepção grega da poesia como representante principal de toda a paideia, o debate entre a Filosofia e a poesia tem necessariamente de recrudescer no momento em que a Filosofia ganha consciência de si própria como paideia e por sua vez reivindica para si o primado da educação.

Este problema converte-se forçosamente num ataque a Homero, entre outras coisas porque todos amam este poeta, e portanto se compreenderá melhor quanto é sério o problema levantado, se o ataque incidir sobre ele, o poeta por antonomásia. (…) Dissuadiram-no até agora de professar publicamente estas opiniões uma timidez e um respeito santos para com o poeta, sentidos desde criança.”

É contra a poesia trágica que é dirigida a força principal do ataque, pois é nela que se manifesta mais vigoroso o elemento ‘patético’ impulsionador da ação que a poesia exerce sobre a alma.”

(*) “A descrição que em Íon, 531 C, Sócrates faz do conteúdo tão complexo do mundo das idéias homéricas parece muito com a de Rep., 598 E.”

Ainda na obra de Plutarco sobre a vida dos poetas, pertencente à época imperial, deparamos com igual feição realístico-escolar de considerar a poesia homérica a fornte de toda a sabedoria.”

Encontramo-nos aqui numa viragem da história da paideia grega. A luta trava-se em nome da verdade contra a aparência. (…) E como nunca nem em parte alguma, talvez, se poderá vir a realizar o Estado ideal, como Platão acaba de declarar, o repúdio da poesia não significa tanto o seu afastamento violento da vida do Homem, como uma delimitação nítida da sua influência espiritual para quantos aderirem às conclusões de Platão. A poesia estraga o espírito dos que a ouvem, se eles não possuírem o remédio do conhecimento da verdade. Isto quer dizer que se deve fazer descer a poesia para degrau mais baixo. Continuará sempre a ser matéria de gozo artístico, mas não lhe será acessível a dignidade suprema: a de se converter em educadora do Homem.” Terá sido fortuito meu gosto pela poesia ter despertado apenas mais tarde?

ATRÁS DO FILÓSOFO E DO MÚSICO: “a relação que existe entre a poesia e a verdade e entre a poesia e o Ser.” “Tal como alguém que pretendesse criar um segundo mundo, colocando a imagem deste no espelho, assim o pintor se limita a traçar a simples imagem refletida das coisas e da sua realidade aparente.” “O pintor é, assim, o criador imitativo de um produto que, à luz da verdade, ocupa o terceiro lugar. O poeta pertence à mesma categoria”

só lhe interessa saber se possuía a arte política e se era realmente capaz de educar os homens. Pergunta ao poeta, como num exame com todas as regras, se alguma vez melhorou uma cidade ou aperfeiçoou as suas instituições, como os antigos legisladores, ou se ganhou uma guerra, ou se, como Pitágoras e os seus discípulos, ofereceu aos homens, na vida privada, o modelo de uma vida nova (bios). Mas é indubitável que nunca chegou a congregar em redor de si, como os sofistas, os mestres da educação contemporâneos, discípulos e seguidores dedicados a cantar-lhe a fama. Isso era, sem dúvida, uma sátira manifesta aos sofistas, que consideravam Homero e os poetas antigos como seus iguais” Séculos nos separam como se fosse ontem!

A poesia é como o esplendor juvenil de um rosto humano, que em si não é belo e cujos encantos, por isso, desaparecem com a juventude.” Atribui à Poesia a crítica que Cálicles atribui à Filosofia.

É a consciência profunda de que a poesia não é uma planta que floresça em qualquer estação, idéia que pela 1ª vez começa a desenhar-se no espírito grego.”

A elevação do eu moral acima do Estado em decomposição, a substituição do espírito criador pela forma poética da criação, o retorno da alma a si própria, tudo isso são rasgos que só um gênio de primeira grandeza, como Platão, podia captar como visão de uma nova realidade.”

A sua obra é o reflexo dos preconceitos e ideais dominantes, mas falta-lhe a verdadeira arte da medida, sem a qual não é possível sobrepor-se à aparência. Em todo este diálogo é notável a ironia de Sócrates, que veste as suas profundas reflexões com a conhecida roupagem pedante e deixa ao leitor muita coisa em que pensar, com a escolha dos exemplos das mesas e das cadeiras.”

Mas a poesia coloca-se na fase infantil e, à semelhança da criança, que, ao sentir uma dor, leva a mão à parte dolorosa do corpo e chora, também ela acentua ainda mais o sentimento de dor que representa, imitando-a.”

Oh, I can no more!” – quão insuportável se tornou ler Dumas Filho e Eça de Queirós!

a parte passional da alma está sempre excitada e aparece sob múltiplas formas e, portanto, é mais fácil de imitar.” Um ator mediano não seria capaz de imitar o “ébrio contido”, tal qual Sócrates no Banquete. Já Alcibíades é um tipo muito simples e acessível!

Interessa-lhe um aspecto da alma diferente do psicofísico, interessa-lhe a alma como receptáculo de valores morais.”

Tal como o Estado, também a alma do Homem não se mostra nunca sob a sua forma perfeita, quando encarnada na realidade terrena. Só a vemos no estado em que Glauco a pinta, no emergir da ressaca da vida, coberta de algas e de conchas, alquebrada e gerida aqui e ali, estragada pelas ondas, mais semelhante a um bicho do que ao seu verdadeiro ser.”

A estrela polar do homem platônico já não pode ser a fama alcançada entre os seus concidadãos, como o fôra durante todos aqueles séculos de esplendor da antiga polis grega, mas apenas a fama perante Deus.” O Homem ou representantes da arete.

Faz uma tentativa audaciosa para conciliar a consciência moral do dever, que vive em nós, com a antiga e oposta fé grega no daimon, que encadeia magicamente todos os atos do Homem, desde o princípio até o fim. § A idéia da paideia pressupõe a liberdade de opção;(*) mas a ação do daimon pertence à esfera da ananke.

(*) (…) O conceito de opção em sentido ético, aparece desde muito cedo em Platão, relacionado com o problema da reta conduta (…) É sobre esta base que depois Arist. constrói na Ética a sua teoria da vontade.”

O único saber com valor é saber escolher, pois dá ao Homem a capacidade de adotar a verdadeira decisão. É este o sentido do mito, que o próprio Platão explica.”

LIVRO QUARTO: O CONFLITO DOS IDEAIS DE CULTURA NO SÉCULO IV

Este livro parte do mesmo ponto do que o precede, mas segue uma linha de desenvolvimento intelectual diferente. (…) O livro regressa na 2ª parte a Platão e estuda a fase posterior da sua carreira como filósofo.

4.1 A Medicina como paideia

Pode-se afirmar sem exagero que sem o modelo da Medicina seria inconcebível a ciência ética de Sócrates, a qual ocupa o lugar central nos diálogos de Platão.”

Apesar de tão evoluída, a Medicina dos nossos dias, fruto do renascimento da literatura médica da Antiguidade clássica na época do humanismo, é, pela sua especialização rigorosamente profissional, algo de totalmente distinto da ciência médica antiga.”

(*) “Anteriormente, ao contrário, era de Tales que se fazia partir a história da Medicina grega, de acordo com a teoria de CELSO (I Proem., 6), segundo a qual a filosofia onicientífica abarcava primitivamente todas as ciências. Isto é uma construção histórica romântica da época helenística.”

A Medicina jamais teria conseguido chegar a ciência, sem as investigações dos primeiros filósofos jônicos da natureza”

(*) “J.H. BREASTED, The Edwin Smith Surgical Papyrus published in Facsimile and Hieroglyphic Transliteration with Translation and Commentary (2 vols, Chicago, 1930). Cf. Abel REY, La Science Orientale avant les Grecs (Paris, 1930) (…) MEYERHOF, ‘Über den Papyrus Edwin Smith, das älteste chirurgiebuch der Welt’ in Deutsche Zeitschrift für Chirurgie, t. 231 (1931), pp. 545-90. »

Aos médicos egípcios não faltava por certo especialização, muito acentuada entre eles, nem empirismo. A solução do enigma não pode ser mais simples: reside pura e simplesmente no fato de aqueles homens não terem do conjunto da natureza o ponto de vista filosófico que os jônios tinham. Sabemos hoje que a Medicina egípcia já era bastante forte para superar a fase de magia e de bruxaria que a metrópole grega ainda conheceu no mundo arcaico que rodeava Píndaro.”

Quando um médico [todos os profissionais eram peripatéticos, ambulantes] chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais nada, a posição que ela ocupa em relação às várias correntes de ar e ao curso do Sol … assim como anotar o que se refere às águas … e à qualidade do solo … Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos astros … conhecerá antecipadamente a qualidade do ano … Pode ser que alguém julgue isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com a mudança do clima.” Hipócrates, Dos Ventos, Águas e Regiões

É o mesmo espírito da filosofia milesiana da natureza que inspira as memoráveis palavras do ensaio Da Doença Sagrada (a epilepsia), as quais asseveram que a dita enfermidade sagrada não é nem mais nem menos divina que outra qualquer e depende de causas naturais, como as restantes. Todas as doenças são divinas e humanas. (ver especialmente caps. I e XXI).”

As mais recentes investigações científicas a eles consagradas provaram em grande parte que os escritos que formam esta coleção – os quais se contradizem mutuamente em muitos trechos e até se combatem – não podem provir do mesmo autor, conclusão a que já a filologia hipocrática da Antiguidade havia chegado. Esta filologia, tal como a dedicada a Aristóteles, surgiu como fenômeno concomitante do renascimento espiritual daqueles dois grandes mestres do período helenístico e existiu enquanto permaneceram de pé a cultura grega e a ciência médica, como parte integrante dela. Os extensos e eruditos comentários de Galeno às obras de Hipócrates e todo o resto que nos chegou fragmentado ou na integridade – contribuições lexicográficas e outros escritos acerca daquele autor – e que é proveniente de uma etapa posterior da Antiguidade, põem-nos diante dos olhos uma imagem daquelas investigações eruditas que infunde respeito pela sua ciência e pela sua capacidade; mas ao mesmo tempo ficamos céticos perante a sua confiança excessiva em poder tornar a descobrir o autêntico Hipócrates, entre a massa dos escritos hipocráticos.”

É o mesmo fenômeno com que deparamos quando se trata de pôr em ordem a herança literária dos chefes de grandes escolas filosóficas, como Platão(*) e Arist., embora em menor grau do que no caso de Hipócrates.

(*) (…) Henri ALLINE, Histoire du Texte de Platon (Paris, 1915)

O ‘juramento’ hipocrático, que deviam prestar os que queriam ingressar na agremiação, continha entre outras a obrigação solene de guardar o segredo da doutrina. Era geralmente de pais a filhos que ela se transmitia, uma vez que estes podiam suceder àqueles no exercício da profissão. As pessoas estranhas, ao serem aceitas como discípulos, eram equiparadas aos filhos. Em troca, obrigavam-se a transmitir gratuitamente a arte médica aos filhos que o seu mestre deixasse ao morrer. Outro traço muito típico era também o de os discípulos se casarem, tal como os aprendizes, dentro da corporação. Do genro de Hipócrates, Polibo, expressamente se nos diz que era médico. Por acaso é o único membro da escola de Cós de quem Arist. cita nominalmente uma pormenorizada descrição do sistema circulatório.”

na profissão médica é tão forte ainda a solidariedade grupal que na prática profissional não é corrente frisar a paternidade individual de determinadas idéias e doutrinas. Era evidentemente na exposição oral dos ensinamentos perante o grande público que o médico investigador expunha em seu próprio nome as suas idéias pessoais.”

está comprovada pelas investigações do século passado a existência de uma escola médica em Cnido (Ásia Menor) e de outra escola grega ocidental, siciliana.”

…a progressiva tecnicização da vida e a diferenciação em profissões mais especializadas, para as quais se requer uma formação especial com altas exigências espirituais e éticas, mas só acessível a um reduzido número de pessoas. É significativo que as obras dos médicos falem muito de leigos e de profissionais. É uma distinção prenhe de conseqüências, que encontramos pela 1ª vez. A palavra leigo provém da linguagem da Igreja medieval e nas suas origens servia para designar os não-clérigos e mais tarde, em sentido lato, os não-professos; em contrapartida, o termo grego idiotes, que exprime a mesma idéia, tem origem político-social. Designa o indivíduo que não está enquadrado no Estado e na comunidade humana, mas vive a seu bel-prazer. Em oposição a ele, o médico sente-se um demiurgo, i.e., um homem de ação pública, nome também dado, aliás, a qualquer artífice que se dedique a produzir roupas ou ferramentas para o povo. Os leigos, encarados como objeto da atividade demiúrgica do médico, costumam também ser designados por membros do demos.”

O médico grego partilha com o artista a carência de um nome que diferencie das atividades do artífice, em sentido moderno, a sua alta capacidade.”

Quanto ao resto, as palavras citadas indicam desde logo que se sentia como problema a posição isolada, ainda que altíssima, que o novo tipo de médico ocupava no conjunto da comunidade.”

Surge uma literatura médica especial, destinada a pessoas estranhas à profissão. Felizmente chegaram até nós os 2 gêneros de literatura, a profissional e a destinada ao grande público. É à 1ª que pertence a grande massa das obras médicas conservadas. Estas obras não podem ser aqui apreciadas, porque o nosso interesse incide primordialmente na 2ª classe.”

(*) “Importa distinguir as conferências iatro-sofistas sobre temas genéricos, em prosa retórica, dos escritos redigidos em forma sóbria e objetiva, dirigidos igualmente ao grande público, como as obras Da Medicina Antiga, Da Doença Sagrada e Da Natureza do Homem. Os 4 livros Da Dieta são também obra literária. Esta literatura destina-se ao ensino dos leigos e à própria propaganda, necessária num mundo onde ainda não existia uma profissão médica autorizada pelo Estado. Cf. De Vet. Med., 1 e 12; De Arte, 1; De Victu ac., 8.”

É no jovem Eutidemo, que mais tarde se converteria em ardente partidário de Sócrates, que Xenofonte pinta este novo tipo de culto. Só tem interesses espirituais e já comprou uma biblioteca inteira. Compõem-na obras de Arquitetura, de Geometria, de Astronomia, e principalmente muitos livros de Medicina.”

também dentro dos campos especiais existe indubitavelmente uma forma de homem culto que corresponde àquele tipo de homem de cultura geral.” ARIST., Part. An., I, 1, 639 a 1

O conceito aristotélico de homem culto em matéria de Medicina ou de ciência natural é menos confuso que o tipo descrito por Platão e Xenofonte.”

O aparecimento dessa esfera intermediária entre a ciência profissional e o campo do profano integral é um fenômeno característico da história da cultura grega do período pós-sofístico.”

Hipócrates – diz-nos – ensina a perguntar sempre em 1º lugar se é simples ou multiforme a natureza do objeto acerca do qual queremos adquirir um verdadeiro saber e uma verdadeira capacidade e, no caso de ser simples, a continuar a investigar até que ponto é capaz de exercer influxo sobre outro objeto determinado ou de lhe sofrer a influência; se, pelo contrário, apresenta múltiplas formas ensina-nos a enumerar estas formas ou tipos e a verificar para cada uma delas o que verificaríamos se se tratasse de um objeto simples: como influi sobre os outros ou como é suscetível de por eles ser influenciado.”

Arist. distingue essencialmente entre a educação individual e a coletiva, apoiando-se para isso no exemplo da Medicina.”

bastará lembrar que para Arist. a ética versa sobre a regulação dos impulsos humanos do prazer e da dor.” “Por conseguinte, o comportamento moral é a tendência a concentrar-se no justo meio que para cada qual existe entre o excesso e o defeito. Os termos aqui usados por Ar., o conceito de excesso e de defeito, de ponto médio e de justa medida (…) e o do tato seguro, a recusa de uma regra absoluta e a exigência de uma norma adequada às características de cada caso concreto, são tudo termos e critérios tirados diretamente da [pior parte da] Medicina” “Ao tomarem por fundamento uma fase de conhecimento alcançada já num terreno paralelo, Platão e Ar. infundem a sua doutrina uma autoridade maior. Tudo está relacionado na estrutura da vida grega e uma pedra assenta sobre outra.”

Ainda não se fez até hoje nenhuma tentativa sistemática para definir o conceito de natureza na antiga literatura médica dos gregos, apesar da importância que isso teria para toda a história do espírito no mundo de então e na posteridade.”

Platão censura no Fédon a antiga filosofia da natureza, por não ter tido em conta o fator, imanente no cosmos, da adequação a um fim, fator relacionado da forma mais estreita com o método orgânico de investigação. O que nos filósofos da natureza faltava encontrava-o ele na ciência médica.” Acabo de ler (não há nem 5 dias!) a mesma observação na HISTÓRIA DA FILOSOFIA de Hegel (também no Seclusão: https://seclusao.art.blog/2021/10/04/historia-das-ideias-2-hegelianismos-o-pensamento-unico-que-falhou/; https://seclusao.art.blog/2021/08/12/lecciones-sobre-la-historia-de-la-filosofia-vol-ii-iii-hegel-trad-wenceslao-roces-fondo-de-cultura-economica-1833-1955-mexico/).

W. THEILER, Geschichte der Teleologischen Naturbetrachtung bis auf Aristoteles (Zurich, 1925)

A. BIER, ‘Beiträge Zur Heikunde’, in Münschener Medizinische Wochenschrift, 1931, nos. 9ss.

Em oposição a Galeno, Hipócrates era considerado um empirista puro, e com isto julgava-se estabelecida a incompatibilidade do ponto de vista teleológico com Hipócrates. Este era reputado um dos grandes representantes antigos da atitude puramente mecânico-causal em face da natureza. (cf. GOMPERZ, Griechische Denker, t. I)”

não nos espanta depararmos também com a palavra arete nas obras que condensam o pensamento médico antigo. Não é sob a influência de Platão que este termo penetra na Medicina. Pelo contrário (…) É especialmente nas doenças que na ação da natureza se revela a adequação a um fim. [que frase porcamente traduzida!] (…) Os sintomas da doença, e sobretudo a febre, representam já de si o início do processo de restabelecimento do estado normal. (…) o médico limita-se a averiguar onde pode intervir para ajudar o processo natural encaminhado à cura. A natureza a si própria se ajuda. O apressuramento da psyche em acudir à parte do corpo ferida – que Heráclito, frag. 67a, compara à precipitação da aranha em correr para o local da teia rasgada pela mosca – recorda a precipitação da natureza em acudir em auxílio do corpo, contra as doenças, segundo a doutrina dos hipocráticos. Este passo dá mais a impressão de uma teoria médica que de um aforismo de Heráclito.”

É neste ponto que o moderno vitalismo introduz, como nível intermédio entre o consciente e o inconsciente, o conceito fisiológico de estímulo[,] fonte das reações teleológicas do organismo. Em Hipócrates este conceito não aparece ainda.”

a edição de Hipócrates por Littré (pouco satisfatória de um ponto de vista crítico, [!] mas extraordinariamente meritória para o seu tempo e que ainda hoje temos de utilizar, à falta de outras edições melhores de muitas das obras daquele autor)” Cf. https://seclusao.art.blog/2021/04/07/les-oeuvres-completes-dhippocrate-tome-premier-trad-classica-de-littre/.

Embora a Medicina tentasse a princípio invadir o campo da ginástica, as obras dietéticas que se conservam atestam que não tardou a estabelecer-se uma divisão de jurisdições, em que o médico se submetia para certas coisas à autoridade do ginasta.”

Perderam-se as obras mais antigas sobre higiene. Se o critério cronológico vigente fosse certo, disporíamos para a época dos fins do séc. V e começos do IV, em que se principiou a desenvolver este aspecto da cultura física grega, de 2 testemunhos, além do breve escrito De um Regime de Vida Saudável e 4 livros Da Dieta, obra famosa na baixa Antiguidade; e ainda os extensos fragmentos, conservados por escritores posteriores, da obra perdida do importante médico Díocles de Caristo.”

Caráter totalmente diverso tem a obra verdadeiramente enciclopédica Da Dieta, que o autor empreendeu com o propósito de resumir e completar onde fosse preciso toda a literatura sobre o assunto, que já era muito copiosa na sua época. O autor é um filósofo e um sistemático, e caracterizá-lo-íamos com pouca justiça se o qualificássemos de simples compilador. É mais que duvidoso que as tentativas de análise desta obra, que até agora se fizeram e a retalharam para atribuir uns pedaços a um sofista heraclitizante, outros a um discípulo de Anaxágoras e outros ao dietético Heródico, representem a solução do enigma.” “Temos de nos decidir a situar Da Dieta não mais antes de começos do século, mas sim bem dentro, do séc. IV.”

Um conhecido fragmento do dramaturgo Epícrates, procedente desta época, fala de algumas tentativas de classificação de todo o mundo animal e vegetal feitas na Academia, na presença de um médico siciliano, entre outros.” “Foi mais tarde, nas obras de Espeusipo e Aristóteles, que vieram à luz da publicidade as investigações da Academia sobre a classificação do reino animal e vegetal. O sistema do dietético apresenta certas semelhanças com os daqueles dois.”

Os numerosos pontos de contato da sua interpretação casuística dos vários tipos de imagens projetadas nos sonhos com os livros de sonhos hindus e babilônicos de época anterior e posterior levaram já outros investigadores à conclusão de que estamos perante uma influência direta do Oriente na ciência médica dos gregos. Essa influência oriental pode ter-se produzido por si mesma também em época anterior. Mas em nenhuma época se enquadra melhor do que no séc. IV, na Jônia de Eudoxo de Cnido” “Os gregos não podiam ser acessíveis à sabedoria e superstição orientais sobre a vida dos sonhos, antes que a alma se convertesse para eles próprios no centro do pensamento, o que nesta forma científico-teórica não sucedeu antes do séc. IV.” “O escrito de Arist. ‘Da Profecia dos Sonhos’, chegado até nós, prova que o problema do valor de realidade dos sonhos reaparece no séc. IV já numa fase científica.”

Também a linguagem Da Dieta encaixa melhor nos meados do que no começo do séc. IV ou em período anterior. Ainda se continuou a escrever em dialeto jônico ao longo de todo este séc., e os períodos construídos aqui e além, corretamente longos, antitéticos e isocóricos [simétricos, de dimensão e ênfase paralelas], indicam mais a época de Isócrates e da sua retórica que a de Górgias. Um estilo como o do dietético é inconcebível ao lado da redação perfeitamente despida de retórica e simplista das obras de medicina profissional que com certa segurança podemos situar na época de Hipócrates ou na geração posterior a ele. Diferem também consideravelmente das obras de uma época anterior, dirigidas a um vasto público e fortemente influenciadas pela prosa sofística.”

Observamos primeiro a influência da antiga filosofia da natureza sobre a Medicina do séc. V e em seguida a repercussão da nova Medicina empírica sobre a filosofia de Platão e Aristóteles. Em Díocles, autor que se encontra visivelmente influenciado pelas grandes escolas filosóficas de Atenas, a Medicina volta a ser a parte que recebe, embora seja certo que não recebe nada sem contribuir por sua vez com alguma coisa.”

a mais rigorosa de todas as ciências em matéria de provas, a Matemática, tem necessariamente que pressupor como fatores dados certas qualidades das grandezas ou dos números.”

não estranha que os gregos, como todos os testemunhos o indicam, fossem grandes madrugadores. Não convém levantar-se logo depois do despertar, mas deve esperar-se que a lassidão do sono se dissipe dos membros, e em seguida friccionar a cabeça e o pescoço nos locais em que estiverem expostos à pressão da almofada. Antes de defecar, recomenda-se que se esfregue o corpo inteiro com um pouco de azeite misturado com água, no Verão. [!] Friccionar-se-á o corpo, de maneira suave e uniforme, fazendo funcionar ao mesmo tempo todas as articulações. O banho imediatamente após o levantar não é indicado. [!] Deve-se esfregar o rosto e olhos com água fria e límpida, lavando previamente as mãos. Segue-se a isto uma série de pormenores precisos sobre o cuidado dos dentes, do nariz, dos ouvidos, do cabelo e do couro cabeludo. Este último deve ser conservado elástico e limpo, para a transpiração, e ao mesmo tempo rijo. [?] Realizadas todas estas operações, aquele que tiver o que fazer dirigir-se-á ao seu trabalho, depois de ter comido alguma coisa. Quem dispuser de tempo para isso, deve dar um passeio, quer antes quer depois do desjejum, passeio cujo caráter e duração devem ajustar-se à constituição física e à saúde do indivíduo.”

a pessoa deverá sentar-se para resolver seus assuntos domésticos ou para outras ocupações suas até à hora do exercício físico. Para a prática deste, os jovens irão ao ginásio e as pessoas idosas ou fracas aos banhos ou a qualquer outro local ensolarado para se friccionarem.” “É preferível que a própria pessoa se friccione a que se deixe massagear por outra, pois os próprios movimentos substituem a ginástica.” Curioso como terceirizaram tudo – da massagem à malhação!

Aos cuidados matinais do corpo segue-se o almoço que deve ser muito leve e não-flácido, para que possa ser digerido antes da ginástica da tarde. [A sabedoria espanhola!] Para logo e depois do almoço está indicada uma breve sesta em local escuro, fresco e sem correntes de ar; em seguida, alguns trabalhos caseiros e um passeio e, por fim, após breve repouso, os exercícios físicos da segunda parte do dia. Este finda com a refeição principal. Díocles não fala dos diversos exercícios; e a literatura dietética não nos informaria acerca deste ponto, o mais importante da cultura física grega, se não fosse por intermédio do autor da obra Da Dieta, que, coerente com o seu método diferente de todos os outros, faz seguir a classificação das comidas e bebidas de uma enumeração de todos os tipos de esforços físicos e psíquicos, incluindo entre eles os exercícios gímnicos. [!] Díocles, por seu lado, exclui da dieta a ginástica, que deixa inteiramente a cargo do ginasta. Edifica, porém, todo o seu plano médico diário sobre os 2 pilares dos exercícios matinais e vespertinos, no ginásio.” Até mesmo o sr. Abílio Diniz leva uma vida de escravo!

Filosofar queima calorias?, eis a questão.

Díocles, no entanto, repara naturalmente que não vive num mundo médico abstrato e por conseguinte não procede como se todos os homens vivessem exclusivamente preocupados com a conservação da saúde. O autor da obra Da Dieta compreende também este problema social e a necessidade de chegar a um acordo entre os princípios ideais do método e as condições materiais de vida do paciente.” “Em seguida, vai descontando coisas para os que também têm de trabalhar e dispõem de pouco tempo para dedicar aos cuidados do corpo. Não se deve, porém, pensar que os médicos gregos só escreviam para os ricos. Isto seria falso. Também os filósofos de então pressupunham um ócio total para o seu bios, deixando que cada qual descontasse deste ideal a parte necessária.”

O exemplo da cultura física médica revela precisamente que a polis grega era, mesmo na sua forma democrática, uma aristocracia socialUma Águas Claras pensante, sem carros, todos “tabeliães” de meio-período. Todos, i.e., 10% da população.

Nenhum dos grandes tipos de vida profissional do nosso tempo, nem o comerciante nem o político, nem o cientista, o operário ou o camponês se enquadraria no âmbito deste estilo de vida da Grécia.”

Seria um erro pensar que os kaloi kagathoi passavam todo o dia no ginásio, friccionando-se e fazendo exercícios, depilando-se e colorindo-se de areia, para voltarem a se lavar, devotados a uma atividade que até o agon livre convertia em febril trabalho especializado.”

o conceito de são é ampliado até formar um conceito normativo universal aplicável ao mundo” “A Medicina grega é simultaneamente raiz e fruto desta concepção do mundo, que constitui o seu alvo constante” “Se a Medicina pôde conquistar uma posição tão representativa da cultura grega, foi por ter sabido proclamar no campo mais próximo ao da experiência imediata do Homem a vigência inviolável desta idéia fundamental da alma grega.” Ah, a barbárie!

4.2 A retórica de Isócrates e o seu ideal de cultura

Isócrates, como mais destacado representante da retórica, personifica a antítese clássica do que Platão e a sua escola representam. A partir de então ressoa como nota fundamental através da história da cultura antiga o pleito da Filosofia e da retórica, cada uma das quais pretendendo ser a melhor forma de educação.”

(*) “H. Von ARMIN, Leben und Werke des Dion von Prusa (Berlim, 1898), pp. 4-114, faz um resumo histórico bastante completo da evolução desta polêmica.”

Nas suas fases subseqüentes, o antagonismo degenera por completo, a espaços, numa luta puramente acadêmica, uma vez que ambas as partes carecem de autêntico conteúdo vital; na época em que o debate principia, elas representam ainda as forças e necessidades verdadeiramente motoras da nação grega e é no centro do palco da vida política que o seu diálogo se trava. É isto que lhe dá o colorido dos verdadeiros acontecimentos históricos e o grande estilo que lhe assegura o interesse permanente da posteridade; mais ainda: olhando para trás, reparamos que nesta luta ganham expressão os problemas verdadeiramente decisivos da história grega daquele tempo.

Tal como Platão, também Isócrates encontrou nestes últimos tempos admiradores e expositores; e a partir do Renascimento imperou, indiscutivelmente, mais que qualquer outro mestre da Antiguidade, na prática pedagógica do humanismo. Do ponto de vista histórico, é perfeitamente legítimo que o seu nome seja destacado nas capas dos livros modernos como o pai da ‘cultura humanística’, na medida em que não são os sofistas os que têm direito a reivindicar este título.”

(*) “Cf. o livro do discípulo de E. Drerup, August BURK, Die Pädagogik des Isokrates als Grundlegung des Humanistischen Bildungsideals (Würzburg, 1923), especialmente os capítulos sobre a ‘Sobrevivência da pedagogia isocrática’, pp. 199 ss., e ‘Isócrates e o humanismo’, pp. 221 ss.. Posteriormente publicaram-se 4 conferência de Drerup, com o título Der Humanismus in seiner Gecshichte, seinem Kulterwerten und seiner Vorbereitung in Unterrichtswesen der Griechen (Paderborn, 1934). Estudiosos britânicos como Burnet [op. cit.] e Ernest Barker chamam Isócrates de pai do humanismo.” Werner e esses autores seus contemporâneos devem ter influenciado Heidegger. Um assunto deveras simples, tratado em menos de 1500 páginas!

(*) “Isto visa igualmente àqueles que numa história da paideia exigem que se comece por definir o que se entende por tal. Era o mesmo que pedir ao historiador da Filosofia que se cingisse à definição de Platão, ou à de Epicuro, à de Kant ou à de Hume, cada um dos quais entendia por Filosofia uma coisa totalmente diferente. A missão de um livro de história sobre a paideia é descrever com a maior fidelidade possível, tanto na sua peculiaridade individual como na sua ligação histórica, os diversos significados, formas de manifestação e camadas espirituais da paideia grega.”

Não deixa de ter importância saber que o que os educadores atuais consideram muitas vezes a essência do ‘humanismo’ é substancialmente a continuação da linha retórica da cultura antiga e que, na realidade, a história do humanismo chega infinitamente mais longe, pois abrange a totalidade das repercussões da paideia grega e, portanto, a ação universal da Filosofia e da ciência helênica.(*) Encarada desta forma, a consciência da autêntica paideia dos gregos converte-se diretamente na autocrítica do humanismo erudito dos tempos modernos.(**)

(*) Cf. sobre isso o meu ensaio ‘Platos Stellung in Aufbau der Griechischen Bildung‘ (Berlim, 1928), publicado pela 1ª vez em Die Antike, vol. IV, 1928, nos 1-2.

(**) (…) A habitual construção histórica do humanismo com as rígidas divisões de Idade Média e Renascimento, escolasticismo e humanismo torna-se insustentável (…) Non datur saltus in historia humanitatis.”

O antigo dualismo helênico da educação gímnica acabou por descer finalmente para um nível inferior.”

UM POLEMISTA EXTEMPORÂNEO: “É possível que o amargor e o sarcasmo lacerante com que Platão a persegue sejam em parte explicáveis pelo peculiar sentimento do vencedor, quando se vê forçado a lutar contra um inimigo que, dentro dos seus limites, parece indomável. Torna-se difícil compreender a apaixonada atitude de Platão, se pensarmos que seus ataques se dirigem exclusivamente contra os grandes sofistas da geração de Sócrates, nos quais ele vê personificado aquele tipo de cultura: Protágoras, Górgias, Hípias e Pródico. Estes homens já estavam mortos e meio esquecidos, quando Platão escreveu os seus diálogos, pois vivia-se depressa naquele século; e era necessária toda a arte de Platão para arrancar ao reino das sombras, como por encanto, a ação exercida sobre os contemporâneos por aquelas figuras, outrora célebres.”

(*) “O Protágoras e o Górgias de Platão datam da 1ª década do séc. IV; em contrapartida, a fundação da escola de Isócrates não pode ser anterior ao ano 390, pois os discursos chegados até nós permitem-nos seguir as suas atividades de redator de discursos forenses por conta de outros até fins da referida década. E talvez até a devamos situar mais próximo de nós, na década de 80.”

(*) “Em Antídosis, 270, Isócrates reivindica o título de PHILOSOPHIA só para a sua obra, entendendo que os restantes educadores, dialéticos, matemáticos e os ‘tecnógrafos’ retóricos não têm direito a usá-lo.”

Hoje, depois de se ter imposto, desde há bastantes séculos, o sentido platônico da palavra filosofia, parece pura arbitrariedade aquela inversão” “Era Isócrates quem se cingia à linguagem usual, ao incluir na categoria dos sofistas Sócrates e os seus discípulos, assim como Protágoras ou Hípias, empregando por outro lado o termo filosofia para designar todas as modalidades da formação geral do espírito, que é, p.ex., o sentido que também Tucídides lhe dá.” “Atenas fundou a cultura (PHILOSOPHIA), diz aqui Isócrates, referindo-se evidentemente, ao exprimir-se assim, ao caráter da coletividade e não ao punhado de sutis dialéticos que se agrupavam ao redor de Sócrates ou de Platão.”

(*) “BLASS assinala justamente que no tempo de Isócrates a palavra filosofia ainda significava cultura, razão pela qual nada tem de ridícula a sua pretensão de ensinar filosofia. Acha, porém, arrogância a pretensão de Isócrates a ser o único representante da verdadeira filosofia, i.e., da verdadeira cultura. Mas, no fim de contas, igual pretensão, de serem os únicos a ensinar a verdadeira cultura, tinham Platão e todas as outras escolas. Cf., p.ex., PLATÃO, Carta VII, 326 A; Rep., 490 A, etc.”

Os retóricos e os sofistas dos diálogos de Platão carecem, logo de início, de razão contra Sócrates, pelo simples fato de serem estrangeiros e por não compreenderem de modo nenhum o verdadeiro problema deste Estado e dos seus habitantes. Aparecem, sempre, no mundo ateniense, tão fechado em si mesmo, com o seu saber já definido e importado de fora. (Cf. Platão Prot., 313 C ss.) É certo que falam uma espécie de linguagem internacional que qualquer homem culto pode compreender, mas falta-lhes o tom ateniense e a graça e a espontânea facilidade do trato, sem as quais é impossível conseguir um êxito completo neste solo.”

(*) “É duvidoso até que ponto merece crédito histórico a exposição de Platão no Fedro, quando põe na boca de Sócrates uma profecia sobre o grande futuro de Isócrates. Pode ser que não tivesse mais fundamento que uma impressão passageira causada ao velho Sócrates pelo jovem retórico. Não é forçoso que tal observação correspondia a um conhecimento íntimo, e muito menos a uma relação de discípulo a mestre. No entanto encontramos em Isócrates numerosos pontos de contato com o pensamento socrático, pontos que H. GOMPERZ, em ‘Isokrates und die Socratik’ (Wiener Studien, 27, 1905, p. 163 e 28, 1906, p. 1), estudou mais profundamente que ninguém. É com razão que sugere a hipótese de Isócrates dever os seus conhecimentos à literatura socrática, o que é abonado pelo fato de não se bater contra estas idéias antes da 2ª década do séc. IV, quando já ele próprio atuava como teórico da educação. Parece-me todavia que Gomperz exagera a influência de Antístenes sobre Isócrates.”

Ele próprio conta que era um homem de constituição física fraca. Não só não tinha voz potente, mas sentia uma timidez invencível sempre que tivesse que falar em público. A massa como tal assustava-o. É evidente que, ao falar sem qualquer escrúpulo desta agorafobia, Isócrates não pretende desculpar apenas a sua abstenção completa de toda a atividade política, mas tem ainda a consciência de que esta disposição de espírito constitui um traço original, enraizado nas camadas profundas do seu ser. Tal como no caso de Sócrates, o seu afastamento da política não provém da falta de interesse, mas de uma problemática que, ao mesmo tempo, dificulta e aprofunda a sua compreensão da verdadeira missão do kairos. (…) é de outro ponto (…) que a obra de renovação deve partir.”

Habitava-o um político sonhador, cujo pensamento, no fundo, seguia os mesmos trâmites do dos políticos de fato, guiado por idéias feitas de desejos, como as de poder, fama, prosperidade, expansão.”

Platão censurava a retórica por ensinar apenas meios de persuasão, sem ser capaz de apontar nenhuma finalidade, razão pela qual só servia para fornecer aos homens armas espirituais para a consecução dos seus objetivos contrários à moral. Era um defeito inegável e constituía, além disso, para a retórica, uma fonte de perigos, numa época como aquela em que a consciência dos melhores se tornava cada vez mais sensível. Na sua orientação para a idéia pan-helênica viu Isócrates o caminho por onde se podia resolver também este problema. Tratava-se, por assim dizer, de encontrar um meio-termo (…) A nova retórica tinha de encontrar um objetivo que fosse eticamente defensável e suscetível, além disso, de aplicação política prática. Na sua opinião, era com uma nova ética nacional que isto se conseguiria.” A decadência e os nacionalistas. Ex: pan-eslavismo, etc.

Não é raro que idéias, que o mestre concebe nos seus últimos anos e com as quais entusiasma os discípulos, definam para estes a orientação de toda a sua atividade.”

Graças ao seu programa, os defeitos da sua própria natureza, tanto os do corpo como os do espírito e caráter, e ainda os da própria retórica, tornam-se quase virtudes ou pelo menos ganham a aparência de tais. Nunca o retórico, ideólogo e panfletista político voltaria a encontrar-se numa situação tão favorável nem a poder gabar-se de exercer uma influência semelhante sobre a nação inteira”

Felizmente não foram poucas as vezes que ele se exprimiu acerca da sua arte e dos seus objetivos como educador, com aquele jeito consciente que lhe era próprio e que a cada passo se interrompia para refletir em voz alta sobre o que dizia e como e por que dizia; mais ainda, no início da sua carreira escreveu várias obras de caráter programático, para esclarecer bem a posição por ele ocupada entre os outros representantes da cultura do seu tempo.”

Nada sabemos das razões nem da data da sua passagem da atividade de escritor de discursos (logógrafo, como p.ex. Lísias e Demóstenes, equivalente em certos aspectos à de um advogado, nos nossos dias) à de mestre de retórica.”

(*) “Os ‘discursos’ de Isócrates nunca foram pronunciados como tais. É pura ficção a sua forma oratória.”

(*) “Que o discurso Contra os Sofistas se deva situar no início da sua atividade docente o próprio Isócrates é quem o afirma em Antíd., 193. (…) julgo impossível evitar a conclusão de que o discurso Contra os Sofistas também ataca violentamente Platão, além de outros socráticos. Como obras suas anteriores pressupõe já o Protágoras e o Górgias, e talvez também o Mênon (…) A concepção de Muenscher, expressa na Realenziklopädie de Pauly-Wissowa (…) segundo a qual Isócrates, na época do discurso Contra os (…), se achava ainda identificado com Platão quanto ao essencial, não se fundamenta no próprio discurso (…) Esse falso ponto de vista deriva exclusivamente da localização demasiado remota do Fedro, onde Platão vê com melhores olhos Isócrates do que os retóricos do tipo de Lísias. A hipótese de sua origem imediatamente posterior ao discurso Contra os (…) levar-nos-ia necessariamente a interpretar este discurso como pró-Platão, o que forçaria a verdade.”

E tinha de fato de parecer necessariamente estranha a mudança da atitude socrática de dúvida acerca da existência de algo que se pudesse chamar educação para o pathos pedagógico dos primeiros diálogos platônicos.” “Ele próprio pretende, naturalmente, ser um educador, mas mostra certa compreensão pelos profanos que preferem não ouvir falar de educação para nada, a confiarem nas promessas dos ‘filósofos’.”

(*) “Segundo a maior probabilidade, foi a confusão entre a sua dialética e a erística – que na polêmica de Isócrates era firmemente mantida – que levou Platão a traçar no Eutidemo uma linha divisória nítida entre Sócrates e os espadachins erísticos. (…)”

Todos os traços característicos do platonismo que são evidentes para uma inteligência mediana são aqui habilmente resumidos em pouco espaço: o estranho método polêmico das perguntas e das respostas; a importância quase mística atribuída à phronesis, i.e., ao conhecimento dos valores, qual órgão especial da razão; o vigoroso intelectualismo, que espera toda a salvação do saber, e a quase religiosa transcendência da promessa de eudaimonia feita pelo filósofo. Isócrates refere-se, evidentemente, às características terminológicas do novo estilo filosófico, características que ele sabe captar com a fina intuição do conhecedor da língua para descobrir o que deverá chocar ou parecer ridículo à maioria das pessoas cultas”

os regulamentos da Academia exigem que os honorários sejam de antemão depositados num banco ateniense.” “É um argumento [isocrático] que parece de mau gosto mas que não deixa de ser engenhoso. Também Platão no Górgias argumentava maliciosamente e em termos parecidos contra os retóricos que se queixavam de que os seus discípulos abusavam da arte oratória, sem verem que com isso era na realidade a si próprios que acusavam, pois, se fosse certo que a retórica tornava os discípulos melhores, seria inconcebível que estes abusassem do que tinham aprendido.”

(*) “(…) O Górgias é agora unanimemente situado, e por motivos convincentes, na segunda metade da 1ª década do séc. IV (…)”

(*) “Devia ser mais aplicável a Antístenes do que a Platão a censura referente aos escassos honorários que os filósofos recebiam dos seus alunos; é, porém, muito pouco o que sabemos acerca destas coisas, para podermos emitir um juízo seguro. (…) Sobre os honorários dos socráticos, veja-se DIÓGENES, II, 62, 65, 80 e IV, 14.”

Nenhum domínio da vida tolera menos do que este a redução de todos os casos concretos a uma série de esquemas e formas fundamentais fixas. Platão dá o nome de idéias a estas formas fundamentais no campo das manifestações lógicas. Como vimos, foi da Medicina do seu tempo que ele tirou esse tipo de intuição plástica e o transpôs para a análise do Ser.”

(*) “É no Crátilo, no Teeteto, no Político e nas Leis que Platão compara as suas ‘idéias’ às letras do alfabeto.”

Em princípio, Isócrates não repele, nem de longe, a possibilidade de uma teoria retórica das idéias: as suas obras revelam que se ia aproximando cada vez mais dela e que edificava a sua oratória, em todos os aspectos, nas linhas do domínio destas formas fundamentais da oratória.”

Numa palavra: a arte oratória é criação poética. Não pode prescindir [d]a técnica, mas tampouco se pode deixar absorver por ela. E assim como os sofistas se julgavam os verdadeiros continuadores dos poetas e adaptaram o gênero deles a sua prosa, também Isócrates tem consciência de continuar a obra dos poetas e de assumir o papel que eles desempenhavam, até há pouco, na vida da nação.” “E quanto menos Isócrates espera ou deseja percorrer o caminho do estadista prático, mais ele necessita do sopro da poesia para a sua missão puramente espiritual”

É ele próprio que, como Píndaro, estabelece também o paralelo entre as suas criações e as dos artistas plásticos e orgulhosamente se equipara a Fídias. Em Ant., 2. Isócrates compara-se ao escultor Fídias e aos pintores Zêux[is] e Parrásio, os maiores artistas da Grécia; Platão procede da mesma forma na RepúblicaTodo escritor chega independentemente a este juízo!

Também ser escultor era para o sentimento social dos gregos da época clássica um conceito que ainda estava ligado a algo de ofício e de rotina. E no entanto este ofício englobava toda a série de cambiantes que iam desde o modesto canteiro até o genial criador do Partenon.”

É com muita cautela que Isócrates se pronuncia acerca da utilidade da educação. Reconhece que o fator decisivo são os dons naturais e confessa francamente que as pessoas de talento e sem cultura chegam freqüentemente mais longe que as pessoas cultas mas sem talento, isso supondo que se possa realmente falar de cultura sem algo que realmente valha a pena cultivar.” “Mais tarde, na República, Platão fará depender da coincidência de qualidades que raramente coexistem na realidade a consecução do supremo objetivo da cultura.”

Platão aspira a formar a alma por meio do conhecimento das idéias como normas absolutas do bom, do justo, do belo, etc., de acordo com a lei da sua estrutura imanente à própria alma, até conseguir realizar nela um cosmos inteligível que abarque a totalidade do Ser. Isócrates, ao contrário, não admite este saber universal. O órgão da cultura retórica é a simples opinião, embora admita no espírito, como ele próprio acentua repetidas vezes, uma capacidade prática para alcançar com certeza o objetivo, a qual, sem possuir um verdadeiro saber, em sentido absoluto, lhe permite optar pela solução acertada.” O <excêntrico discípulo de Parmênides>.

também Isócrates não é capaz de descrever mais que os elementos e as fases do processo cultural, por trás das quais continua a ser um mistério a formação, como tal, do Homem. (…) É portanto unicamente da justa combinação entre natureza e arte que a cultura depende.”

Os redatores de discursos trabalhavam para ganhar o pão, pois o seu artigo era, na prática, o mais procurado. Conhecemos esse gênero de trabalho pelos discursos-modelo publicados por Antifonte, Lísias, Iseu, Demóstenes e pelo próprio Isócrates nos seus primeiros tempos. Esse gênero é uma das flores mais curiosas do jardim da literatura grega, um produto específico do solo ático. A mania de litigar dos atenienses, tão ridicularizada na comédia, é o reverso do Estado jurídico, do qual tão orgulhosos se sentiam. A ela se devia o interesse geral que os debates judiciais e as competições agonísticas despertavam. Os discursos-modelo dos logógrafos servem ao mesmo tempo de propaganda dos seus automotores, [?] de modelo proposto à imitação dos discípulos e da matéria de entretenimento para o público leitor.” “Não se deve pôr em dúvida a sinceridade desta repugnância, que basta para explicar a razão por que Isócrates renunciou a esta atividade.”

Isócrates segue, pois, Platão na crítica, mas não na construção positiva. Não acredita na possibilidade de ensinar a virtude, como não acredita na possibilidade de ensinar o senso artístico, e como Platão só reserva o nome de techne para uma educação capaz de fazer isto, Isócrates julga impossível que ele exista.”

Isócrates deve ter ficado com a mesma impressão dos primeiros diálogos de Platão que era gerada na maioria dos leitores modernos até há pouco: a de tratar apenas de problemas de iniciação moral, que estranhamente apareciam em íntima relação com a dialética. Em contrapartida, a retórica tem a vantagem de ser uma cultura inteiramente política. Precisa apenas encontrar um novo caminho, uma nova atitude, para neste campo alcançar um posto espiritual diretivo. A antiga retórica não conseguira grande coisa, porque se ofereceu como instrumento à política diária, em vez de se elevar acima dela. Já se revela aqui a certeza de poder infundir à vida política da nação um pathos mais elevado. Infelizmente falta a parte principal do fragmento do discurso Contra os Sofistas que chegou até nós (…) A diversificação de Isócrates em relação ao objetivo educacional de Platão deve ter tido que mudar, necessariamente, quando aquele adquiriu consciência prática do princípio da filosofia platônica. De fato, esse princípio já se anunciava na declaração expressa no Górgias platônico de que era Sócrates o único estadista autêntico do seu tempo, visto que aspirava a tornar melhores os cidadãos. Esta declaração podia ser facilmente interpretada como simples paradoxo, sobretudo por Isócrates, que via na ânsia de originalidade e na caça aos paradoxos inéditos a motivação fundamental de todos os escritos contemporâneos e temia, com razão, que neste terreno lhe fosse difícil rivalizar com Platão e com os filósofos. Mais tarde, no Filipe, voltando os olhos para trás, a fim de abarcar a obra de Platão, pouco depois de sua morte, já o considera o grande teórico do Estado, embora, infelizmente, o seu pensamento não seja realizável. Levanta-se, assim, o problema de saber quando teria surgido nele este novo ponto de vista sobre Platão. A resposta ele nos dá em Helena, modelo de encômio, que incide sobre um tema mítico e cujo louvor nos tem de parecer, por força, tanto mais paradoxal quanto ela é, em geral, alvo de censuras.”

O HIMENEU DE PÃ E HELENA:Panegírico (380): o programa da unificação dos Estados gregos através de uma guerra nacional comum contra os bárbaros. Na 1ª década, Isócrates move-se ainda por inteiro nas águas de Górgias.”

(*) “(…) É o próprio ARISTÓTELES quem afirma, em Ret., III, 14, 1414 b 26, que não é necessário, precisamente no gênero literário dos discursos epidícticos, que o prólogo esteja organicamente ligado ao corpo principal da obra. Como exemplo, dá a Helena de Isócrates e compara o prólogo do encômio ao prelúdio (proaulion) de um concerto de flauta, unido por laços muito frouxos ao próprio concerto.”

(*) “(…) A respeito de Antístenes, cf. ARISTÓTELES, Metaf. n 29, 1204 b 33, e ainda o comentário de Alexandre de Afrodísia a esta passagem; e PLATÃO, Sofista, 251 B.”

Dessa vez, Isócrates já distingue os socráticos dos simples erísticos, que não se propõem educar ninguém, mas pretendem apenas colocar outros homens em dificuldades. Censura a todos quererem refutar outros, quando eles próprios já se encontram há muito refutados”

Isócrates exprime a sua posição perante o ideal platônico da precisão e solidez científicas, na fórmula de que o mínimo avanço no conhecimento das coisas verdadeiramente importantes deve ser preferido à maior superioridade espiritual imaginável em matérias mesquinhas e sem importância, que não têm nenhuma utilidade para a vida. Naturalmente, como psicólogo que é, compreende a predileção da juventude pela arte polêmica da dialética, pois não tem o menor interesse pelos assuntos sérios, quer públicos, quer privados, mas quanto mais inútil for o jogo mais a diverte. Merecem, porém, censura os pretensos educadores que incitam os discípulos a este passatempo, pois incorrem com isso na mesma falta que eles próprios censuram aos representantes da eloqüência forense: a de corromper a juventude.” Inconciliável com o Platonismo. O que é o mesquinho e o que é o importante? Pergunte ao Ser!

a ala radical dos socráticos: Antístenes e Aristipo.”

É por isso que a repulsa de Isócrates pelo amplo ‘rodeio’ teórico de Platão cresce à medida que ambos mais parecem coincidir no tocante ao fim prático da educação. Isócrates só reconhece o caminho direto. A sua educação nada sabe da tensão interior que existe no espírito de Platão entre a vontade propulsora que o incita a agir e o retraimento proveniente da longa preparação teórica. É certo que Isócrates está suficientemente afastado da política cotidiana e dos manejos dos estadistas do seu tempo para compreender as objeções que Platão formula contra eles. O que ele, homem do meio-termo, não compreende é a radical exigência ética da socrática, que se intromete entre os indivíduos e o Estado. Procura melhorar a vida política por um caminho diferente do da utopia. Sente indubitavelmente a arraigada repugnância do cidadão culto e abastado contra as selvagens degenerações tanto do domínio das massas como da tirania dos indivíduos (…) Não partilha, porém, o radical espírito reformador de Platão e nada está mais longe do seu espírito que o consagrar a vida inteira a tal missão.” Desconhece a arte do sacrifício.

A guerra pusera em evidência que o anterior estado de coisas era insustentável e urgia abordar uma reconstrução dos Estados gregos.”

DA HIPOCRISIA COMO NECESSIDADE FENOMÊNICA QUE INTEGRA O ABSOLUTO

Há mais semelhança entre o mundo antigo e o nosso do que pode medir qualquer vã filosofia sob o Sol! A certeza íntima que temos de que nossas utopias calarão fundo no coração de uma humanidade que sequer veremos… Porém, enquanto indivíduos deste mundo, mesmo sabendo que “já vivemos para a posteridade”, resta-nos uma máscara protetora e conciliadora: somos intelectuais de esquerda. Sem nosso lado panfletário que nos serve de mola nosso eu-ideal fica sem esteio.

4.3 Educação política e ideal pan-helênico

Em nenhuma parte a tendência a l’art pour l’art tem menos razão de ser do que na arte da expressão espiritual.”

O significado etimológico da retórica, para o bem ou para o mal, a polis.”

O problema da retórica é ser retórica demais.

A falência do Estado de Péricles colocava um problema: saber se Atenas, depois da sua lenta recuperação, devia enveredar de novo pelo mesmo caminho de expansão imperialista (que já uma vez a levara à beira do abismo).” Síndrome de Vasco da Gama. Vencer absolutamente é tombar – vide Roma.

Estava muito longe de comungar a fé numa paz eterna.”

Que o imperialismo, caso fosse inevitável, se dirigisse contra os outros povos, de nível cultural inferior e inimigos naturais dos gregos”

(*) “É por necessidade que se expõem de maneira sintética as tendências pan-helênicas surgidas antes de Isócrates; não escasseiam as investigações de detalhe. Limita-se a Isócrates o escudo (sic) de J. KESSLER, ‘Isokrates und die panhellenische Idee’ in: Studien Zur Geschichte und Kultur des Altertums, t. IV, CADERNO 3 (Paderborn, 1911). (…)“

Nas celebrações olímpicas e píticas, interrompia-se, sob a imposição da paz divina, o estrépito das armas esgrimidas entre gregos”

Trata-se de reconciliar Esparta com Atenas, para em seguida estes 2 Estados, os mais fortes, compartilharem a hegemonia sobre a Grécia.”

Isócrates traça um quadro da grandeza de Atenas que remonta até a pré-história mítica.” “Este quadro histórico baseia-se inteiramente nos princípios segundo os quais a política ateniense se interpreta a si mesma. É uma política intrinsecamente semelhante, muito semelhante mesmo, à que inspira a política externa inglesa dos tempos modernos. Por outro lado, este processo de interpretação retroativa da história antiga de Atenas à luz das pretensões políticas de agora tem um paralelo próximo na interpretação que Treitschke dá da história antiga da Prússia-Brande[m]burgo, do ponto de vista do papel diretivo nacional mais tarde assumido por este Estado. Os tempos primitivos pseudo-históricos são sempre mais próprios do que quaisquer outros posteriores e mais bem-conhecidos para se deixarem moldar neste tipo de construções.” Hitler sabia-o muito bem.

Todo o mito nacional e cultural traz consigo esta estreiteza de horizontes e esta exaltação absolutista da sua própria raça. Quer ser aceito mais como artigo de fé que como fria verdade científica. É por isso que diante dele não se podem alegar dados históricos.”

O que domina a sua filosofia da História, e sobretudo a sua construção da história primitiva de Atenas, é a sua fé na missão peculiar da cultura ateniense.” “Em oposição com o caráter exclusivista de Esparta, a cultura ateniense caracteriza-se por atrair os estrangeiros, em vez de os repudiar.” “Aos combates de força física e de destreza, desde remotos tempos característicos da Grécia inteira, juntam-se em Atenas os agones da oratória e do espírito. Estes torneios converteram as fugazes festas nacionais olímpicas e píticas numa grande panegyris ininterrupta.” “A imagem esplendorosa que Isócrates tem diante dos olhos não deixa margem para a problemática trágica em que Platão, com grande sutileza, penetra os perigos do meio.”

O logos, no duplo sentido de linguagem e espírito, converte-se para Isócrates no symbolon da paideusis.”

Segundo a tese de Isócrates, o resultado da obra espiritual de Atenas foi o nome dos gregos não designar no futuro uma raça, mas antes um grau supremo do espírito.”

À primeira vista, parece um imenso paradoxo Isócrates proclamar esta missão supranacional da cultura do seu povo, movido precisamente por um insuperável sentimento de orgulho nacional; mas esta aparente contradição desaparece logo que relacionamos a idéia supranacional do Helenismo, a sua paideia de âmbito universal, com o objetivo da conquista e colonização da Ásia pelos gregos.” “Há uma forma de sentimento nacional que se manifesta como exclusão dos outros povos: é fruto da fraqueza e do separatismo, pois nasce da consciência de que só através do isolamento artificial se poderá afirmar.”

Com base em analogias atuais poderíamos sentir-nos tentados a designar isto pelo nome de propaganda cultural e a comparar a retórica à imprensa e à publicidade modernas, precursoras da conquista econômica e militar. Contudo, a fórmula de Isócrates nasce de uma profunda visão da estrutura real do espírito e da paideia gregas, e a História prova que era algo mais (…) Sem a vigência universal da paideia grega que ele aqui proclama pela 1ª vez, não teria sido possível a existência de um império universal greco-macedônico nem a da cultura helenística universal.” Alexandre, o Isócrates prático.

Esta parte do discurso termina com uma defesa contra a crítica dos métodos do imperialismo ateniense da primeira liga marítima, crítica utilizada por Esparta, depois de ganhar a guerra, para manter Atenas em permanente sujeição, o que constituía um obstáculo moral no caminho da restauração do poder marítimo ateniense.”

O Panegírico foi definido como o programa da segunda liga marítima de Atenas.(*) Esta concepção exagera as relações existentes entre esta obra e a política real e não avalia com exatidão o elemento ideológico contido nela. É, no entanto, exata no sentido de que Isócrates exige o restabelecimento do poder de Atenas, como meio indispensável para a consecução do seu fim, que é a sujeição do reino da Pérsia.

(*) Assim pensam Wilamowitz e Drerup. Cf. também G. MATHIEU, Les idées politiques d’Isócrate (Paris, 1925). »

(*) “Já no Plataico de Isócrates vemos que o domínio marítimo ateniense apresenta um aspecto muito menos pan-helênico e muito mais particularista. Acerca da data deste opúsculo, cf. o meu Demóstenes, O Estadista e a sua Evolução, pp. 199-203 (Berlim, 1939).”

A exigência de submeter a política a valores eternos tinha de parecer exagerada a alguns; mas esta exigência de que ela fosse moldada por um princípio superior era geral, e a ética nacional de Isócrates tinha que parecer a muitos de seus discípulos uma saída feliz e oportuna, entre os extremos do ceticismo moral e da retirada filosófica para o Absoluto.” “O seu objetivo transcende a forma do Estado historicamente dada e entra no reino do ideal. Isto implicava a confissão do seu divórcio da realidade política circundante.” “Já não está por trás dele uma classe nobre superior ou todo um povo; está o círculo escolhido de um movimento espiritual ou uma escola fechada, que só pode esperar exercer uma influência mediata na vida da comunidade”

e-Sócrates

4.4 A educação do príncipe

Nicocles, filho de Evágoras (…) era discípulo de Isócrates, de cuja escola saiu, como do cavalo de Tróia, toda uma série de governantes, segundo a famosa frase de Cícero.” “O orgulho que Isócrates sente pelos discípulos, que também se manifesta abundantemente na Antídosis, é um dos aspectos amáveis da sua vaidade”

As 3 obras do grupo do Nicocles são modelos da arte pedagógica praticada na escola de Isócrates. Enquanto no Panegírico ressoa, por assim dizer, o acorde pan-helênico, o tom fundamental da intenção política em que esta educação se inspira, nas obras cipriotas surge mais claramente o ponto em que apóia, na prática, a paideia de Isócrates.” “estas obras abrem-nos os horizontes de um problema que (…) tinha forçosamente de ser de suma importância: o de a possibilidade de a cultura influir no Estado através da educação dos governantes. Este problema surge-nos na literatura do século IV, em escritores e pensadores da mais variada orientação: em toda a filosofia de Platão e nas suas tentativas práticas de influenciar o tirano Dionísio, as quais o próprio Platão descreve na Carta Sétima como a tragédia da paideia; em Isócrates, nas suas obras sobre Nicocles, na mensagem a Dionísio de Siracusa, no Arquidamo, no Filipe, e sobretudo nas relações com o seu discípulo Timóteo; na grande novela pedagógica de Xenofonte, a Ciropedia; na amizade filosófica de Aristóteles com o tirano Hermias de Atarneu, e principalmente nas relações pedagógicas daquele com o futuro dominador do mundo, Alexandre. Também o Protréptico de Arist. era um discurso exortativo dirigido a um tirano de Chipre, Témison.”

Nem todos os poetas que circulavam pelas côrtes dos tiranos do séc. IV eram simples parasitas e aduladores, que logo se punham a cantar a democracia, quando os tiranos caíam, como Platão censura aos poetas do seu tempo.”

A encarnação da verdadeira arete na imagem de uma personagem histórica individual, tal como Isócrates a traça aqui, pode comparar-se à fusão da pessoa e coisa na descrição platônica de Sócrates”

dois discursos, Nicocles e A Nicocles

Ao enquadrar assim num esquema absoluto a tirania, que os gregos de resto consideravam a suma e compêndio da arbitrariedade, legaliza-a de certo modo e insinua no tirano a vontade de governar o povo de acordo com uma lei fixa e uma norma superior. No séc. IV deparamos repetidas vezes com o problema de saber como converter a tirania numa constituição mais suave.” Como transformar o cobre em ouro.

chamamos retóricos aos homens em condições de falar diante de muitos e denominamos homens de bom juízo os que são capazes de refletir com acerto no seu foro íntimo.”

ao contrário de Platão, Isócrates não considera como missão de Estado a educação do cidadão e o seu aperfeiçoamento pessoal” “É com facilidade que Isócrates transforma em ideologia de despotismo esclarecido a sua fé fortemente materialista no bem-estar.” “Teoricamente é pessimista em face do paradoxo filosófico da possibilidade de ensinar a virtude; praticamente, porém, a sua vontade educativa permanece intacta.” “Enquanto Platão relutava em empreender o caminho de Siracusa e só o fez a instâncias e rogos insistentes dos amigos e do próprio soberano, Isócrates não espera que o convidem.

O seu sentido do direito natural exige sempre a verdadeira arete como justificação do poder sobre o Estado, e não instituições que funcionem de modo automático, mas sem personalidade. Isto, porém, não deve confundir-se, como prova ostensivamente o testemunho de Isócrates, com a glorificação do poder à margem de qualquer lei.” “O soberano deve reunir no seu caráter o amor pelo Estado. Deve, por assim dizer, unir em si a Antígona e Creonte.”

(*) “(…) Já AULO GÉLIO, Noct. Att., XIII, 7, emitia a este respeito um juízo correto ao distinguir humanitas – paideia. O conceito de filantropia não tem qualquer acepção central em Isócrates; o fulcro do seu pensamento é o conceito de paideia, que serve de base ao seu ‘humanismo’. (…)”

O trabalho deve ser lucrativo, mas a mania de pleitear deve infligir ao culpado danos sensíveis. As palavras de Isócrates refletem neste aspecto a existência do povo ateniense e a fúria processual nele desencadeada.”

Faz que a tua palavra seja mais certa que as juras dos outros. (…) Porta-te para com os Estados mais fracos como desejarias que os Estados mais fortes se portassem para contigo. (…) Não tenhas por grande o soberano que estenda a mão para coisas maiores do que as que pode alcançar, mas sim quem, aspirando a coisas elevadas saiba levar a cabo o que empreende (…) Não conceda a tua amizade a todos quantos desejem ser teus amigos, mas só a quem for digno da tua natureza. Não escolhas, para tal, os homens cujo convívio mais te agrade, mas antes os que te ajudem a governar melhor o Estado.”

o rei é o espelho do caráter da polis inteira. Aqui, como em Platão, reaparece em fase superior a idéia de modelo da antiga paideia da nobreza grega, idéia que é transposta do problema da educação individual para a educação de toda a cidade. Mas, enquanto Platão desloca o paradigma para o absoluto, para a idéia do Bem e, portanto, para Deus, medida de todas as coisas, Isócrates confina-se à idéia do modelo pessoal.” “a idéia da paideia é no seu tempo o verdadeiramente vivo e o sentido supremo da existência humana.”

A dignidade é real, mas faz o povo retrair-se. A amabilidade torna fácil e agradável o trato com os homens, mas tende a rebaixar a categoria do rei.” “Baseia a formação do monarca não no conhecimento dos supremos conceitos universais teóricos das matemáticas e da dialética, como Platão, mas sim no conhecimento da História. Aparece neste traço pela 1ª vez a influência espiritual direta da historiografia sobre o pensamento político e a cultura da época. Mesmo sem precisarmos recordar os múltiplos conhecimentos soltos que, como provamos, Isócrates deve a Tucídides, também aqui somos forçados a pensar sobretudo nele, no novo gênero de historiografia política que este historiador criou.”

A paideia de velho estilo, que se conservava dentro do âmbito da ginástica e da música, ainda não reconhecia nem o pensamento nem o saber históricos. O passado não faltava totalmente, já que que era inseparável da poesia; mas só revestia nela a forma da narração dos feitos heróicos de certas personagens ou do próprio povo, e o histórico ainda não se diferenciava claramente do mítico.”

A VERDADEIRA FILOSOFIA É ATEMPORAL: “Nos esboços platônicos de um vasto sistema de paideia científica são tomados em consideração até os ramos mais recentes das matemáticas, da Medicina e da Astronomia; mas a grande e nova criação da historiografia política fica totalmente na sombra. Aparentemente, isto poderia justificar a impressão de que a verdadeira influência de Tucídides se limitou aos círculos estritamente profissionais, i.e., aos seus imitadores isolados, que se esforçavam por escrever outro fragmento da História, segundo as orientações do mestre. Mas não devemos perder de vista, para este efeito, a outra grande representante da paideia grega do seu tempo, a retórica. Assim como o poder formativo das matemáticas só foi plenamente reconhecido, como era lógico, pela paideia filosófica, assim o novo poder educativo do saber histórico, que se revela na obra de Tucídides, encontra o seu lugar no âmbito do sistema da cultura retórica.”

Na retórica posterior, perdura este interesse pela História na forma de paradigma histórico, o qual recorda as origens paidêuticas desta atitude em face da História. Mas a eloqüência verdadeiramente política já morreu nesta época tardia, por ter perdido a base com o desaparecimento da cidade-Estado grega. Por essa razão, o emprego dos exemplos históricos passou a ser nela uma coisa morta e puramente ornamental. O sistema retórico de cultura de Isócrates, nascido ainda de debates verdadeiramente políticos e de grande estilo, é o único da Antiguidade grega em que cabe seriamente o estudo histórico. Temos paralelo disso em Roma principalmente em Cícero”

Prefere-se a pior comédia às sentenças escolhidas dos poetas mais profundos.” “Transparece aqui o sentimento de que a nova arte da retórica, posta ao serviço das concepções educativas, representa uma desvantagem decisiva em relação à poesia. Os verdadeiros mestres na direção das almas (psicagogia) são aqueles velhos poetas, aos quais todos têm de regressar constantemente depois de ouvirem as novas teorias, e isto pela simples razão de serem mais agradáveis.”

O triunfo posterior da cultura retórica sobre a filosófica, ao menos entre as camadas mais amplas da gente culta, deriva em parte da superioridade da forma, que era sempre o primordial para a retórica (…) a Filosofia e a Ciência deixaram mais tarde de rivalizar com a retórica neste campo e cederam conscientemente ao desleixo da forma, desleixo que chegaram até a equiparar à cientificidade.Nota curiosa: Heráclito, Parmênides, Platão, Kierkegaard, Nietzsche, Deleuze, Baudrillard: Os reis-filósofos são também poetas. Kant, Hegel, Sartre (nos escritos técnicos), Heidegger: estilistas inábeis.

4.5 Autoridade e liberdade na democracia radical

Da desintegração causada pelas guerras pérsicas se levantou Atenas e se converteu em guia da Hélade, pois o medo fez com que todas as suas forças espirituais se concentrassem na meta da recuperação. Mas, em seguida, do cume do poder assim conseguido de novo se precipitou subitamente na guerra do Peloponeso, pouco faltando para se ver agrilhoada à servidão. Os espartanos, por seu lado, deveram o seu antigo poderio à sóbria vida de guerreiros, em virtude da qual se foram elevando dos começos insignificantes de sua história até o domínio sobre o Peloponeso. Mas este poderio impeliu-os à soberba, até que por fim, depois de conseguirem a hegemonia por terra e por mar, se viram reduzidos à mesma situação de penúria que Atenas. Isócrates alude aqui à derrota de Esparta em Leuctra, que tão profunda impressão causou nas pessoas da época, sem excluir os admiradores incondicionais de Esparta; prova-o a mudança sofrida pelos juízos acerca de Esparta e das suas instituições estatais, na literatura política do séc. IV. Platão, Xenofonte e Aristóteles, tal como Isócrates, citam repetidas vezes o desmoronamento da hegemonia espartana na Hélade, que explicam dizendo que os espartanos não souberam usar sabiamente o seu poder.”

Sob o comando de Cononte, e principalmente sob o de seu filho Timóteo, [seria o mesmo de acima?] logramos a hegemonia sobre toda a Grécia; mas não tardamos a perdê-la outra vez, por não termos a constituição de que precisávamos para defendê-la.”

Segundo a conclusão a que Isócrates chega, os homens eram diferentes nos tempos de Sólon ou de Clístenes; portanto, o único meio de livrá-los do seu individualismo exagerado é restaurar a constituição do Estado que vigorava naquele século.” Só homens restaurados restauram códigos deteriorados.

A tarefa de formar os homens desloca-se, assim, do campo da existência espiritual para o da educação exterior, em que o Estado se converte autoritariamente em agente externo da missão educativa. Desta forma, a paideia torna-se mecânica, e este defeito ressalta com maior força do contraste entre o modo puramente técnico como Isócrates pretende realizá-la e a concepção romântica do passado, que ele assim aspira a fazer ressurgir.” Mas ao menos ele recuou de sua oposição diametral a Platão, revalorizando o papel do Estado.

É elucidativo reparar como a imagem ideal do passado que Isócrates traça para caracterizar o espírito da educação a que aspira se vai inadvertidamente convertendo num sonho utópico, em que se esfumam todas as cores do presente e se resolvem todos os problemas. Esta estranha maneira de encarar a História só se compreende quando se vê que todos os louvores tributados ao passado são simplesmente concebidos como a negação de um mal correlativo do presente.”

No tempo dos pais da democracia ateniense, Sólon e Clístenes, ainda não se confundia o desenfreio com a democracia, a arbitrariedade com a liberdade, a licenciosidade da palavra com a igualdade, a absoluta falta de domínio do comportamento com a suprema felicidade; ao contrário, os indivíduos deste jaez eram castigados e existia a preocupação de tornar melhores os homens.¹ (…) A época da decomposição da forma só conhece a paideia no sentido negativo da corrupção que se transmite do conjunto a cada um dos membros. Isócrates apresenta em termos semelhantes a paideia negativa que nasce da ambição de poder da polis e faz variar o espírito dos cidadãos. (De Pace, 77). (…) é característico da época o fato de a paideia em sentido positivo só ser possível na forma de reação consciente dos indivíduos isolados contra as tendências gerais da evolução.”

¹ O dito se aplica completamente ao presente, é só pensar na licenciosidade boçal com que uma Damares se arroga o direito de “falar o que quiser” quando pisa numa igreja com fins políticos. Uma liberdade que o texto da Constituição não lhe deu, mas que o afrouxamento dos costumes democráticos e o descaso de um Supremo Tribunal Federal, que só agora e lentamente vem revendo sua conduta, decerto semearam.

(*) “…é interessante que este mesmo lema trabalhar e poupar (…) apareça em PLATÃO, Rep., 553 C, para caracterizar o homem oligárquico. Dificilmente Isócrates teria tirado desta caricatura as cores para pintar a sua imagem ideal: é por isso que é tanto mais interessante a sua coincidência com Platão”

O restabelecimento do Areópago fez-se no 1º período dos Trinta, altura em que Teramenes e a ala moderada dos conservadores tinham uma influência decisiva na política. O regresso dos democratas após a expulsão dos Trinta anulou evidentemente estas medidas legislativas; e o fato de Teramenes, autor do lema constituição dos maiores, ter sido morto por Crítias e pelos elementos oligárquicos radicais também não contribuiu para que este grupo moderado e a sua herança espiritual fossem vistos com mais simpatia no período seguinte de restauração do governo do povo. Compreende-se, assim, que Isócrates evite intencionalmente a expressão constituição dos maiores ou a transcreva sob outras formas, para não causar escândalo.

(*) “…Contra a opinião dos que pretendiam dissuadir o autor de publicar esta obra, por acharem incurável a situação de Atenas e perigosa a hostilidade dos dirigentes radicais contra os moderados, devem naturalmente ter-se levantado vozes aconselhando a publicação, pois de outra forma jamais se teria resolvido a isso um homem tão prudente [medroso] como Isócrates….”

(*) “De modo semelhante, PLATÃO, Carta VII, 326 A, indica-nos que concebera e expusera oralmente vários decênios atrás, antes da sua 1ª viagem à Sicília, as idéias publicadas mais tarde na República….”

Os atenienses tão depressa acorrem com 300 bois para o sacrifício como deixam cair no mais completo esquecimento as festas consagradas pelos seus maiores.”

Antiquitates Rerum Humanarum et Divinarum de Varrão, obra gigantesca de erudição histórico-cultural e teológica. Esta obra nasceu de uma situação interna análoga à da época isocrática. (…) Para poder escrever coisas como as que se citaram acima, tinha de ter estudado com certa precisão as práticas religiosas e as festas da antiga Atenas”

Os pobres não conheciam ainda a inveja da classe abastada, mas os sem-fortuna partilhavam a felicidade dos outros e era com razão que olhavam a riqueza daqueles como a fonte do seu próprio sustento.” Eis o espírito contido no Coriolano de Shakespeare. Já hoje vivemos o dilema de uma “elite” que é invejosa do pobre em ascensão, incapaz de reconhecer que a felicidade desta classe emergente é e deve ser reflexo da sua própria na partilha nacional. Não se reconhecem absoluto como imbuídos da missão de sustentar essa massa, embora se jactem em dizer que criam riqueza, que portanto seriam a fonte do crescimento econômico, sem se dar conta que sem a integração pobre-rico por meio do trabalho ninguém propriamente enriquece, na competição canibal internacional. O país fica apenas mais fraco e mais isolado, e a maior riqueza do rico às expensas de explorar o trabalhador, despido de seus direitos fundamentais, converte-se numa falsa riqueza, ou pelo menos numa riqueza relativamente parca comparada a outras nações em que há maior justiça social.

períodos de industrialização e crescimento do capital” “investia-se produtivamente o dinheiro” Eu é que contextualizo para o presente; mas Jaeger, como sempre, vê essas categorias ainda não-nascentes na própria Grécia Antiga, tão antepassada do Capital! Se há uma crítica severa a fazer a sua magnum opus, sempre achei e acharei que seria esta.

Era a confiança mútua que presidia à vida dos negócios e os pobres davam tanta importância como os possuidores de grandes fortunas à segurança das relações econômicas. Ninguém escondia a própria fortuna nem temia que ela se tornasse do domínio público, mas todos a empregavam praticamente, com a convicção de que isto não só era vantajoso para a situação econômica da cidade, mas até aumentava a própria fortuna.” Exatamente o que falei acima sobre o Brasil contemporâneo! Foi com a decomposição da oligarquia ateniense que Atenas caiu. É com a decomposição ainda mais abrupta da nossa elite do atraso cada vez mais atrasada que o Brasil está sendo jogado para a periferia da periferia das lideranças mundiais.

O defeito do sistema vigente reside em se limitar em Atenas a paideia ao pais, isto é, à infância. (Areop., 37). Desde a época dos sofistas, todas as cabeças da paideia grega, Platão e Isócrates principalmente, concordavam em que a paideia não se limitava ao ensino escolar. Para eles, era cultura, formação da alma humana. É isto que distingue a paideia grega do sistema educacional das outras nações. Era um ideal absoluto. (…) no passado (…) se velava pelos adultos ainda com maior cuidado do que pelas crianças.”

Este organismo só era acessível a pessoas escolhidas pelo nascimento e que na vida tivessem dado provas de caráter irrepreensível. Este princípio de seleção fazia do Areópago a mais distinta corporação da sua classe existente na Grécia.” Talvez extremamente corporativista; nobre, todavia.

O que importa, portanto, é infundir à polis um ethos bom e não dotá-la de um amontoado cada vez maior de leis especiais para cada setor da existência. (…) Platão acreditava poder renunciar por completo a uma legislação especializada no seu Estado ideal, pois supunha que nele a educação atuaria automaticamente” A Inglaterra e sua Constituição enxuta como eterna miragem moderna. Como ser enxuto, p.ex., em legislação tributária?

Isócrates considera irrecusável que a paideia se adapte à situação de fortuna de cada indivíduo. Este ponto de vista teve certa importância na teoria dos gregos sobre a juventude” “Só na República de Platão ele é eliminado: toda a educação superior fica a cargo do Estado e da elite por ele supervisada.” “A concentração da educação no Estado devia ser encarada por Isócrates como uma exigência totalmente irreal de um radicalismo pedagógico que não serviria de fato para criar uma elite espiritual” Mas se é que o Estado tem condições de cuidar da educação, seria somente de um seletíssimo número. A educação de viés ultrapopular e abrangendo cem por cento da população, mesmo a elite, mesmo os despolitizados, vivendo de fazer concessões em prol da inclusão, seria hipócrita ou semeadora de desastres e desestabilizações futuras do governo.

A equiparação estabelecida entre a educação do espírito e as diversas modalidades do esporte é característica da concepção da paideia como um jogo distinto, concepção que Isócrates partilha com o aristocrata Cálicles do Górgias de Platão.”

o Areópago mantinha os cidadãos dentro dos limites, palavra que já em Sólon aparece e que desde então se repete com freqüência em declarações sobre a disciplina legal dos cidadãos.” “As pessoas comportavam-se com seriedade e não tinham o prurido de passar por excêntricas ou espirituosas.”

aidos, aquele sentimento respeitoso de santo temor” “não é fácil definir este sentimento de pejo ou de temor: é um fenômeno inibitório de grande complexidade espiritual, formado por múltiplos motivos sociais, morais e éticos, ou antes o sentimento de onde brota esse fenômeno.”

o seu conceito de democracia é substancialmente mais amplo do que o da maioria dos democratas do tempo.”

* * *

Ninguém repetiu este ataque à demagogia tirânica e ao materialismo da massa com maior força de convicção do que Demóstenes, campeão da liberdade democrática contra os seus opressores estrangeiros.”

Finalmente, ao afirmar que os atenienses estavam obrigados, não só para consigo mesmos, mas também pela sua missão como salvadores e protetores de toda a Grécia, a se sobreporem à presente situação economicamente ruim e de indolência e a sujeitarem-se a uma educação rigorosa, capaz de habilitar outra vez o povo a cumprir o seu destino histórico, Demóstenes fez sua também a idéia com que culmina o discurso sobre o Areópago.

A tragédia da renúncia à força reside nisto: quando as idéias de Isócrates começavam assim a lançar raízes no coração da juventude, já o seu autor abandonara definitivamente a fé no ressurgimento de Atenas como poder independente e como guia de uma grande federação de Estados. No discurso de Isócrates sobre a paz, assistimos à abdicação de todos os seus planos que visavam ressuscitar no interior do país a criação política de Timóteo e erguer o império renovado da 2ª liga marítima ateniense. Hoje não podemos ler o programa educativo contido no discurso sobre o Areópago sem pensar na renúncia que no Discurso sobre a Paz, redigido no final da guerra perdida, Isócrates recomenda ao povo ateniense em relação aos antigos confederados separados” “Isócrates aconselha agora a que se conserve a paz não só com os confederados apóstatas, mas ainda com o mundo inteiro, com o qual Atenas se encontra em litígio.”

A zona de domínio da liga ficou reduzida à terça parte do território que possuía no tempo da sua máxima expansão, sob o comando de Timóteo. E o número dos confederados baixou em proporção, uma vez que os mais importantes foram voltando as costas à liga. A situação financeira era catastrófica.”

Este programa apresenta grande afinidade com o escrito de Xenofonte sobre receitas públicas, que apareceu na mesma época e pretendia apontar uma saída à crítica situação. A direção efetiva do Estado passou para as mãos do grupo conservador, encabeçado pelo político Eubulo, cujas idéias se orientavam na mesma direção.” “é evidente (…) que os 2 discursos não podem provir da mesma época.” “isso vem também confirmar a nossa conclusão de que o discurso sobre o Areópago tem necessariamente que datar de época anterior ao agudo rebentar da crise”

UM GRANDE XADREZ ENTRE DOIS IMPÉRIOS: “No Areopagítico não há a mínima dúvida acerca da excelência do domínio marítimo nem da sua importância histórica tanto para Atenas como para a Grécia” “O Discurso sobre a Paz, levado pelo seu pessimismo, tende, pelo contrário, a provar que o princípio de todos os males foi precisamente o começo do domínio naval.” “É a completa mudança diante do problema da força operada desde o Panegírico até o Discurso sobre a Paz, que explica a apreciação antagônica da paz de Antálcidas, nas 2 obras. O Panegírico condena-a do modo mais severo, considerando-a símbolo da vergonhosa submissão dos gregos aos persas, vergonha só possível após a ruína do domínio marítimo ateniense. (…) a paz de Antálcidas aparece agora como a plataforma desejável a que importa voltar para reorganizar a quebrantada vida política da Grécia. (…) e compreende-se que os sentimentos antipersas do nosso autor voltassem a se avivar mais tarde no Filipe, assim que com o rei da Macedônia surgiu um novo campeão da causa grega.”

No Panegírico, o imperialismo é justificado pela relação que tem com o bem-estar do conjunto da nação grega; no Discurso sobre a Paz, o domínio e a tendência à expansão do poder são pura e simplesmente repudiados, afirmando-se expressamente a validade da moral privada, mesmo nas relações entre Estados. [!]” Admissão tácita de que Atenas não tinha mais vocação para liderar o mundo. No máximo, estaria já muito em vantagem, dada a situação precária vigente, se conseguisse se tornar uma polis entre iguais.

A tendência ao poder e ao domínio é apresentada como a fonte de todos os males da história grega. Isócrates considera que esta tendência é por essência análoga à tirania e, portanto, intrinsecamente incompatível com a democracia.” Muito interessante e precursor do ângulo do anti-imperialismo e constitucionalismo modernos, porém trágico para os atenienses de então.

Com efeito, a tendência ao poder está profundamente enraizada no interior do homem e é necessário um gigantesco esforço do espírito para arrancá-la pela raiz. (…) E, assim como no Areopagítico são apresentados como escola de tudo quanto é bom a legalidade e a severidade da ordem de vida dos antepassados, assim no Discurso sobre a Paz se atribui à educação do povo e dos seus dirigentes, corrompida por obra do poder, tudo o que há de mau e desregrado no presente.”

O verdadeiro modelador das almas humanas é a ânsia de poder, a aspiração a mais. Esta, quando domina o Estado e a sua ação, não tarda a converter-se também em lei suprema da conduta individual.” “A democracia converte-se, pois, como se vê, na renúncia à tendência de poder. Mas isto não equivalerá, talvez, à eliminação voluntária da única democracia importante que ainda existia, na sua luta com as outras formas de governo, que buscam o mesmo objetivo por caminho direto, sem tropeçarem nos obstáculos constitucionais das liberdades cívicas? Eis um problema realmente sugestivo. Na realidade, devemos reconhecer que a exigência de Isócrates de se renunciar ao poder arbitrário do domínio ateniense era proclamada numa época em que aquele poder já desaparecera de fato pela força dos acontecimentos. A fundamentação moral através da vontade livre não passava de uma justificação a posteriori, que de certo modo facilitava a tarefa dos impotentes herdeiros do antigo esplendor, aliviando a consciência dos patriotas cuja mentalidade discorresse ainda pelos trâmites da tradicional política de força.”

E quase parece inconcebível que o Estado ateniense, relegado por ele ao papel de funcionário aposentado, tenha podido erguer-se de novo, sob a direção de Demóstenes, para a derradeira luta, uma luta em que já não se buscava a conquista de um poder maior, mas sim a defesa da última coisa que lhe restava, após a perda do seu império: a liberdade.”

4.6 Isócrates defende a sua paideia

Isócrates fala muito de si próprio nas suas obras, mas esta necessidade encontra a sua expressão mais pura numa das suas últimas criações (…) o discurso sobre as trocas de fortuna, a Antídosis, que é o nome que este conceito tem na língua ática.”

(*) “Em Antíd., 9, indica uma idade de 82 anos. Este discurso perdera-se na sua maior parte; só o princípio e o fim dele se conservaram, até que em 1812 o grego Mistoxides descobriu a parte principal (72 a 309).

Cada uma das pessoas sobrecarregadas com o imposto da trierarquia tinha direito, se considerasse o gravame injusto, a dar o nome de um cidadão mais rico a quem se pudesse com maior razão exigir o cumprimento do mesmo dever; e para demonstrar que a riqueza desse cidadão era maior que a sua podia pedir que trocasse de fortuna consigo. Em razão deste costume foram dirigidos à pessoa e à atividade docente de Isócrates diversos ataques que, embora não rigorosamente relacionados com o fundo da questão, tinham certa relação com a sua fama de ter juntado uma grande fortuna, com as suas atividades publicitárias e educativas.”

O processo por causa da troca de fortunas é apenas o motivo para redigir uma obra em que, a pretexto de ter sido publicamente argüido, defende, i.e., situa sob o ângulo que lhe parece adequado a sua vida, o seu caráter e as suas atividades didáticas. Na mesma obra, disserta pormenorizadamente sobre a estranha mistura de discurso forense, de autodefesa e da autobiografia que a Antídosis representa e pretende que esta mescla de idéias seja apreciada como uma sutileza especial da sua arte retórica. (…) Foi Platão, na Apologia de Sócrates, o 1º a converter o discurso forense de defesa em forma literária de confissão, em que uma personalidade destacada no plano espiritual procura prestar contas dos seus atos. Esta nova forma de auto-retrato literário deve ter causado funda impressão na mentalidade egocêntrica de Isócrates, que dela se serve no discurso sobre a troca de fortunas.” “1º monumento autêntico da autobiografia que possuímos, ou antes, como 1º relato do seu espírito e da sua vida, a Antídosis interessa-nos ainda de maneira especial, por ser a exposição mais ampla que ele nos deixou sobre os objetivos e os resultados da sua paideia.”

Na Antídosis, Isócrates toma, indubitavelmente, posição perante ataques como os de Aristóteles.” “É a grandeza do seu objetivo que distingue os seus discursos de todos os outros, pois se ventilam neles os interesses da nação grega e não os deste ou daquele indivíduo.” “É por isso que a sua arte congrega a sua volta numerosos discípulos, ao passo que os redatores empíricos de discursos são incapazes de formar realmente uma escola.”

imitação, conceito que tende cada vez mais a tornar-se a verdadeira medula do seu sistema educativo.”

já no fim da vida (…) Isócrates apresenta-se à opinião literária como um clássico consumado, que propõe como modelo as suas próprias obras. É aqui que tem as suas raízes o classicismo posterior. A todas as suas obras antepõe ele o Panegírico, tanto pela exemplaridade da forma como pelo testemunho do seu sentir patriótico, nas quais não se destaca tanto o pan-helenismo como o seu consciente sentimento de ateniense. É certo que os seus concidadãos punham este último em dúvida. No entanto, depois de ter apresentado 2 anos antes a talassocracia ateniense como a raiz de todos os males, era evidente que não podia publicar sem qualquer retoque o Panegírico

Isócrates tem certeza que com este discurso voltará agora a ser calorosamente aplaudido pelos círculos patrióticos de Atenas, mas não deixa de ser significativo que, para contrabalançar essa glorificação de Atenas e da sua grandeza histórica, insira de seguida um fragmento da sua obra mais recente, o Discurso sobre a Paz, e precisamente aquela parte do discurso em que prega uma paz duradoura e a renúncia ao domínio de Atenas sobre os mares.”

Seria interessante saber se, quando fala dos legisladores, Isócrates quer se referir também a Platão, que naquela época andava entregue à redação das suas Leis. Este fato devia ser conhecido nos círculos espirituais de Atenas interessados nestas questões e jorrava uma nova e derradeira luz sobre a vontade educativa de Platão.”

das leis se louvam as mais antigas e dos discursos os mais modernos.” Antíd., 82

E a sua obra de educador tem também uma importância superior à dos filósofos ou sofistas que exortam o homem à virtude da justiça e ao autodomínio, pois é só aos indivíduos que o seu apelo à phronesis, ao conhecimento moral e a uma conduta de acordo com ele, se dirige, dando-se eles por satisfeitos quando conseguem atrair alguns homens. A atuação de Isócrates, ao contrário, dirige-se à polis inteira e procura incitá-la a realizar ações que a tornem feliz e libertem os outros gregos das suas dores.”

Para o leitor moderno, o essencial é a sua herança literária, através da qual continua a nos falar. Mas para o ateniense, sobretudo para aquele que não conhecesse com precisão a longa série de estadistas e de outras eminentes personalidades da vida pública saídos da escola de Isócrates, tal enumeração tinha de significar forçosamente mais que a mera palavra escrita.”

(*) “Hemipo, discípulo de Calímaco, compôs a obra Sobre os Estudiosos de Filosofia que se tornaram Governantes, baseando-se nas listas dos estóicos e acadêmicos de Filodemo, que haviam sido descobertas. (…) É natural que o tirano Hermias de Atarneu desempenhasse nela um papel importante, juntamente com os seus conselheiros políticos Erasto e Corisco, discípulos de Platão. (…) Por certo que em tais listas figuravam ainda Díon e alguns platônicos mais jovens, como Eudemo de Chipre e os seus correligionários, mortos em Siracusa na luta contra a tirania. Mas era também discípulo de Platão o assassino de Díon, Calipo, que a seguir se fez tirano. Em Heracléia, no Ponto, foi ainda um discípulo de Isócrates e Platão – Clearco – que se entronizou como tirano depois de derrubar e assassinar o platônico Quíon. Cf. MEYER, Geschichte des Altertums, t. V, p. 980.”

Crítias e Alcibíades. Os socráticos tinham-se esforçado naquela época por absolver o seu mestre de qualquer responsabilidade no futuro papel desempenhado por aqueles homens na história da sua pátria, durante os mais difíceis tempos da provação de Atenas.”

a tragédia da sua carreira como educador (apesar de tão cheia de êxitos, vista de fora), tragédia que é para ele, ao mesmo tempo, a do Estado ateniense. Esta tragédia radica no velho problema das relações entre as grandes personalidades e a massa, na vida da democracia grega.”

Não era um temperamento vigoroso, endurecido nos trabalhos, mas sim um homem de nervos sensíveis e de saúde delicada. Comparado com Cares, o militarão cheio de cicatrizes, o deus da guerra do partido radical, a quem Isócrates se quer evidentemente referir nesta narração, embora sem lhe mencionar o nome, Timóteo representa o ideal do estratego moderno.”

Timóteo não era inimigo do povo nem inimigo do Homem; não era soberbo nem sofria de nenhuma outra má qualidade deste gênero. O sentimento da sua própria grandeza, que lhe era tão útil como chefe militar, é o que o tornava difícil no trato diário e lhe dava uma certa aparência de homem altivo e brusco.”

É impossível contemplar esta imagem, sem pensar no exemplo de Homero, que Isócrates deve ter tido presente, ao escrever estas páginas, em que se entretecem verdade e poesia: referimo-nos ao discurso exortativo de Fênix a Aquiles, no livro IX da Ilíada. O problema que se colocava aqui era o mesmo: moderar o sentimento da megalopsychia, da grandeza de alma, pela sua inserção na estrutura de uma comunidade humana freqüentemente rebelde ao reconhecimento e à gratidão.”

Timóteo, muito embora me desse razão quando eu assim falava, era incapaz de modificar a sua natureza. Era kaloskagathos, digno da cidade e da Grécia, jamais comparável àquela classe de homens a quem incomoda tudo quanto os ultrapasse.” Antíd., 138.

a ficção de um concidadão ter solicitado judicialmente trocar com ele de patrimônio o obriga a focar também este aspecto material da sua profissão.”

Àquela data, a sua riqueza despertava quase inevitavelmente a inveja e a cobiça da massa; e, enquanto antigamente quem possuía uma grande fortuna sentia orgulho em exibi-la, no tempo de Isócrates todos procuravam ocultar o que possuíam, com medo de perdê-lo, ainda que tivesse sido adquirido por meios lícitos. Isócrates, porém, não pretende furtar-se ao problema da sua fortuna; ao contrário, este problema é visivelmente para ele um ponto cardeal para o qual pretende dirigir a atenção do leitor, uma vez que o êxito material das suas atividades docentes é, aos seus olhos e aos da maioria dos seus contemporâneos, o critério supremo para ajuizar das suas obras. Considera injusto pretender-se medir os ordenados dos professores pelos dos comediantes – que no entanto eram considerados exorbitantemente altos – e aconselha a compará-los aos de pessoas da mesma categoria e profissão. Entre estas menciona o seu mestre Górgias, que ensinou na Tessália, numa época em que os tessálios eram os homens mais ricos de toda a Grécia; e ele era tido pelo mais rico de todos os retóricos. Pois bem: quando morreu, Górgias não deixou mais de 1100 estateres.” “E não foi dos seus concidadãos que recebeu o dinheiro, mas sim de estrangeiros atraídos a Atenas pela fama do seu nome, contribuindo desta forma para a prosperidade econômica da sua cidade natal. O sólido caráter burguês de Isócrates e da sua formação ressalta neste ponto com a maior clareza, se o compararmos, p.ex., com a atitude aristocrática de Platão, que nunca explorou como negócio a educação filosófica.” “A regulamentação dos honorários era em uns e outros, bem como nos médicos, absolutamente individual. Não esqueçamos que a atitude de Platão perante estes problemas representa a exceção.”

(*) “Esta substituição da ginástica e da música pela ginástica e a filosofia (isto é, pela retórica) indica claramente que Isócrates se eleva acima da antiga paideia dos gregos, e à velha educação, baseada na poesia, substitui uma nova e mais bela forma de educação do espírito. Contudo a sua ‘filosofia’ pressupõe o adestramento ‘musical’ de estilo antigo, tal como o faz o sistema educativo ideal de Platão para os governantes filósofos, na República. Na idade avançada (Panat., 34), Isócrates acalentava o desejo de tratar a fundo a posição que a poesia ocupava no reino da cultura.” Não só na Rep. de Platão, como também no Fédon.

Assim como até o corpo mais frágil se fortalece, quando por ele se vela cuidadosamente, e os animais se podem amestrar e mudam de caráter por meio da domesticação, assim também existe uma disciplina que forma o espírito do Homem. Os profanos tendem a desdenhar a importância que o fator tempo tem aqui, e ficam céticos se não apalpam os resultados dos esforços ao cabo de poucos dias ou, quando muito, ao fim de um ano. Isócrates repete aqui a sua teoria dos diversos graus de eficiência da paideia. Mas, embora reconhecendo esta diversidade, continua a defender sem vacilar que a eficiência pode ser comprovada em todos os seres mais ou menos dotados. Todos exibem em maior ou menor medida o selo da mesma formação espiritual.”

Cita-se até, segundo uma paródia livre de Eurípides, um verso das suas lições de retórica, o qual reza assim, transcrito para prosa: Seria deplorável guardar silêncio e deixar falar Isócrates. Aristóteles propunha-se satisfazer com estes cursos a necessidade que os seus discípulos sentiam de uma cultura formal. O ensino retórico tendia a completar o estudo da dialética.”

(*) “…A mim o que parece mais verossímil é o Fedro ser posterior ao Grilo de Aristóteles (pouco depois de 362), ainda que não muito posterior. Tanto no Grilo como no Górgias, a retórica não é considerada techne, ao passo que no Fedro pode-se converter em tal. (…) Em todo caso, creio que o Fedro deve ser considerado anterior à Antídosis (ano 353).”

Ambas as coisas tinham forçosamente de atentar contra a Escola de Isócrates e provocar a sua indignação. Um dos seus discípulos, Cefisodoro, compôs contra Arist. uma extensa obra em 4 livros (…) O caráter irônico de Arist. leva-nos a pensar que a sua inovação deve por força ter originado uma polêmica mordaz, embora na sua Retórica citasse freqüentemente os discursos de Isócrates como modelos de oratória.”

Platão, apesar de todas as suas reservas, não tinha outro remédio senão compreender a diferença profunda que existia entre Isócrates e outros retóricos do tipo de Lísias. Quando põe na boca de Sócrates a profecia de que Isócrates saberá desenvolver um dia os seus dons naturais de ordem mais filosófica e criar algo de pessoal, põe-nos o problema de vermos até que ponto a trajetória posterior do retórico satisfez realmente aquelas esperanças.”

(*) “Em Antíd., 258, Isócrates afirma cautelosamente que são certos filósofos erísticos os que o difamam; estabelece, pois, distinção entre o próprio Platão e o seu discípulo Arist..”

É certo que não se pode dar o nome de Filosofia a esta cultura meramente lógica e conceitual, visto que não dá normas nem para bem falar nem para bem agir. É, no entanto, um exercício da alma e uma iniciação à verdadeira Filosofia, à cultura político-retórica.” Vd. o Político: o Jovem Sócrates, um matemático ateniense, e o Estrangeiro em busca da definição do Homem Político.

(*) “…Platão julga ter refutado no Górgias estas censuras de Cálicles, mas Isócrates volta a colhê-las na sua totalidade, prova de que este antagonismo entre os 2 ideais de cultura é eterno….”

antigos sofistas (termo com que se refere aos que hoje designamos por pré-socráticos).”

(*) “Já na Helena, 2-3, Isóc. atacara os filósofos pré-socráticos, Protágoras, Górgias, Zenão e Melisso,¹ como simples rebuscadores de paradoxos, e prevenira contra a sua imitação. Na Antídosis critica Empédocles, Íon [não se sabe se é o Íon de Quio já citado], Alcmeôn, Parmênides, Melisso e Górgias. É claro que não critica Górgias como retórico, mas sim como inventor do famoso argumento o ser não é, que foi uma exageração dos paradoxos tão do gosto dos filósofos eleatas.” Não poupava o próprio mestre – mas, mais grave, não devia saber puxar muita coisa de proveito do que lia, para atirar a torto e a direito assim e ver qualidade tão-só em si.

¹ Provavelmente um campeão da irrelevância. Só citado agora; bastante superficialmente discorrido na História da Filosofia hegeliana. Um péssimo discípulo de Zenão, caso o tenha realmente sido.

as especulações metafísicas sobre o Ser e a natureza, ligadas aos nomes de Empédocles, Parmênides, Melisso e outros são por ele consideradas pura insensatez e provocam a sua indignação. No Parmênides e no Teeteto de Platão discutem-se vivamente os problemas da escola eleata, de Heráclito e de Protágoras. Nas listas das obras de Arist. são especialmente citadas obras de Xenófanes, Zenão, Melisso, Alcmeôn, Górgias e os pitagóricos. Estes estudos nasceram do contato intensivo da Academia com os pensadores antigos e os seus frutos já se manifestaram nas partes mais antigas da Metafísica de Arist., sobretudo no livro I, que trata dos pensadores anteriores a ele.” “Isóc., involuntariamente, já não consegue mais exprimir o seu pensar discrepante senão na forma da negação do ponto de vista platônico.” O início da “síndrome” que já dura +2000 anos.

De modo esquemático:

Parmênides ——(V)—– Sócrates —– Platão

Parmênides ——(O)—– Górgias —– Isócrates,

onde (V) = Verdade e (O) = Opinião, conforme desmembrados do Um de Parm..

Segundo Isóc., a censura que Platão dirige no Górgias aos grandes estadistas do passado cai sobre aquele mesmo que a formula, pois, ao aplicar aos homens uma pauta sobre-humana, o que faz é precisamente praticar uma injustiça contra os melhores dente eles. (…) opinião acertada (…) concedida como dom divino)” DV

Ad infinitum a mesma crítica ao Übermensch

Enquanto para Platão a fase superior da arete e da paideia começa para além deste êxito baseado no instinto e na inspiração, o sistema educativo de Isócrates, sujeitando-se por si mesmo a uma limitação consciente e levado pelo seu ceticismo de princípio, move-se exclusivamente na fase do simples critério pessoal e da mera opinião. A opinião certa não é para ele um problema de conhecimento exato, mas sim de gênio, e como tal inexplicável e refratário a ser transmitido por meio do ensino.”

Em parte alguma as limitações espirituais de Isócrates ressaltam com maior clareza do que na crítica à teoria platônica da paideia.” Um aristocrata é um aristocrata, crendo num Homem ou não (somente homens).

(*) “Antíd., 274-5: uma techne do tipo da que exigem os dialéticos nunca existiu antes, tampouco existe agora. Mas antes de inventar tal paideia conviria abster-se de prometê-la aos outros….”

À essência da pleonexia (desejo de mais), profundamente enraizada na natureza do Homem, como instinto de posse, dedica ele aqui uma investigação especial, em que procura dar a este conceito um sentido positivo. É neste ponto que Isócrates traça uma nítida linha divisória entre si próprio e o Cálicles de Platão. Esta linha divisória é a da moral.”

(*) “De Pace, 33. Já nesta obra (…) se vê claramente que Isócrates é contrário ao amoralismo do Cálicles platônico e à sua teoria do direito do mais forte (…) Na Antídosis, Isó. procura separar nitidamente as duas coisas.” Sempre haverá “duas” Vontades de Potência: a do Bom (Melhor) e a dos maus. Todo mestre será malversado. E embora separáveis, sempre terão o mesmo nome. Não se trata de contestar o “princípio natural” da “sobrevivência do mais forte”, mas de estabelecer: o que é o mais forte?

(*) “Antíd., 282 e 285. Em 283, Isó. censura o abuso das palavras em que incorremos filósofos, ao transpô-las das coisas supremas para as coisas piores e mais reprováveis. Na realidade, ele próprio muda o sentido do termo pleonexia, de algo moralmente repugnante em algo ideal. Ao fazê-lo, segue sensivelmente o exemplo de Platão, que no Banq., 206 A define o eros idealizado como o impulso para a assimilação do mais belo e do melhor…”

Isócrates aceita a moral prática dos socráticos, embora sem a dialética nem a ontologia platônicas” Isócrates quer as vantagens da Filosofia sem seus efeitos colaterais! Hipertrofia que se repetiu na Alemanha: quando o culto se torna o bárbaro. E, no fundo, Caetano Veloso filosofa em alemão. Somos seus continuadores.

Não é próprio do ateniense desprezar o logos nem sentir ódio à cultura do espírito, ódio freqüente agora entre os políticos poderosos e entre a massa, e que constitui um sintoma de degenerescência do Estado ático.” “é ao espírito ático que se deve a fama da cidade no mundo inteiro.” “Ao perseguirem os representantes da cultura espiritual, os atenienses procedem como procederiam os espartanos se punissem as atividades guerreiras, ou os tessálios se anatematizassem a criação de cavalos e a equitação.”

MUDA BRASIL”, MBL, etc.: “A tendência mais extremista da democracia foi adotando uma atitude cada vez mais hostil para com a cultura, à medida que se ia definindo a ligação entre a cultura e a crítica política.” “O que revoltava a massa, a criação de uma nova aristocracia espiritual em vez da antiga nobreza de sangue, que já tinha definitivamente perdido a sua importância, era o ideal consciente da educação isocrática.”

Finge-se pronunciar estas palavras perante um tribunal, mas na realidade brotam do refúgio de um recanto, a partir do qual já não se apresenta a mínima possibilidade de influir no andamento das coisas, porque já se tornou insondável o abismo entre o indivíduo e a massa, entre a cultura e a incultura.”

Na nova estrela ascendente do rei Filipe da Macedônia, na qual os defensores da polis viam um signo funesto, viu Isó. totalmente o contrário, a luz de um futuro melhor; e no seu Filipe saudou o adversário de Atenas como o homem a quem a tyche conferira a missão de realizar o seu ideal pan-helênico.” “Dos homens que eram, em Atenas, a alma da resistência contra a Macedônia, mesmo de Demóstenes, falava só como de homens incapazes de fazerem qualquer bem à polis.”

O ancião de 97 anos [!] (…) espalha-se em considerações históricas sobre a melhor forma de governo, que consiste, segundo Isó., numa combinação correta dos 3 tipos fundamentais de constituição.” “Esta teoria influenciou os estadistas peripatéticos e através deles informou a obra do historiador Políbio – sobretudo no modo de expor o espírito do Estado romano – e ainda o ideal de Estado de Cícero, no seu De Republica.”

4.7 Xenofonte: o cavaleiro e o soldado ideais

Se deixarmos de lado (…) Platão (…) só um homem dentre os escritores do círculo socrático, Xenofonte, chegou até nós através de numerosos escritos. Em contrapartida, discípulos como Antístenes, Ésquines e Aristipo, preocupados apenas com imitar as diatribes morais do seu mestre, dificilmente representam para nós mais do que simples nomes.” Com efeito, os dois últimos estão citados apenas duas vezes nesse amplo resumo, contando com a menção acima.

Mesmo que não seja lido como o primeiro prosador grego, pela transparente simplicidade da sua linguagem (e ainda hoje assim é considerado nas nossas escolas); mesmo que o julguemos através da leitura dos grandes autores do seu século, de um Tucídides, de um Platão ou de um Demóstenes; muitas coisas que hoje nos poderiam parecer espiritualmente banais ganham, pelo encanto da sua pena, um aspecto diferente.”

Xenofonte, que nascera num dos demos atenienses, o mesmo de que Isócrates descendia, passou pelas mesmas experiências infelizes deste e de Platão, na última década da guerra do Peloponeso, época em que se tornou adulto.” “Não foi Sócrates, porém, quem marcou o destino da sua vida, mas sim a ardente inclinação para a guerra e para a aventura” “o mais brilhante dos seus livros, a Anábase ou Expedição de Ciro

ao regressar da campanha da Ásia, uniu-se diretamente aos espartanos que sob o comando de Agesilau combatiam em prol da liberdade dos gregos da Ásia Menor e voltou à Grécia com o rei”

Alfred CROISET, Xenophon, son charactère et son talent (Paris, 1873)

E teve que pagar com a extradição para fora da sua cidade as inapreciáveis experiências militares, etnográficas e geográficas adquiridas na sua campanha asiática.”

O gosto pelas variadas atividades de agricultor, juntamente com a recordação de Sócrates e a inclinação para tudo quanto fosse histórico e militar, é uma das principais características da personalidade de Xenofonte”

Xenofonte permaneceu longe da pátria durante os decênios do novo apogeu ateniense, com a 2ª liga marítima; não voltou a ser chamado a sua cidade antes da decadência desta liga, a última grande criação política de Atenas, data em que procurou contribuir com alguns pequenos escritos de caráter prático para a obra de reorganização do exército e da economia. (…) A sua vida abrange, pois, pouco mais ou menos, o mesmo período da de Platão.”

Quando redigiu o seu escrito em defesa de Sócrates, que figura agora como livro primeiro, à cabeça das suas Memoráveis, escritas muito depois – motivadas principalmente pela polêmica literária que ao final da década de noventa provocou o livro difamatório do sofista Polícrates contra Sócrates e os socráticos –, era a uma razão predominantemente política que obedecia a sua incorporação no círculo dos defensores de Sócrates: ao desejo de provar, lá do exílio, que Sócrates não devia ser identificado com as tendências de Alcibíades ou de Crítias, os quais as escolas concorrentes lhe pretendiam atribuir como discípulos, a fim de desacreditarem como suspeito de espírito antidemocrático tudo quanto tivesse qualquer relação com Sócrates. Nem sequer os acusadores do mestre se tinham atrevido a tanto, no seu processo.”

sentimentos antidemocráticos, misodemia

A redação de um capítulo como a conversa entre Sócrates e Péricles o Moço, Mem., III, 5, em que se parte do pressuposto que o principal inimigo de Atenas são os tebanos (…) só se pode conceber na altura em que Atenas e Esparta eram aliadas contra Tebas, após o início do novo apogeu desta cidade, i.e., nas décadas de 60 ou 50 do século IV.”

Embora transpareça constantemente em Xenofonte o orgulho nacional e a fé na superioridade da cultura e do talento gregos, ele está muito longe de pensar que a verdadeira arete seja um dom dos deuses depositado no berço de qualquer burguesinho helênico.” [!]

Entre os persas considerava-se incorreto cuspir e assoar o nariz”

Na imagem de Ciro traçada por Xen. aparecem intimamente associadas a helenofilia e a alta arete persa. Ciro é o Alexandre dos persas e só difere do macedônio pela sua tyche. A lança que o trespassou podia ter derrubado também Alexandre. [?] Cf. An., I, 8, 27. Alexandre professava a mesma idéia de Ciro acerca da bravura pessoal do chefe, idéia que os gregos do séc. IV consideravam romântica. Expunha-se ao perigo sem qualquer finalidade e era ferido com freqüência.” Agamemnon não podia ser um protótipo do ateniense clássico? Péricles não combatia?

[?] Já entendemos que Alexandre não era um imortal – é necessária toda essa ênfase?!

PAN-PAN-HELENISMO: “Estes gregos vislumbraram agora, embora sem terem percebido claramente, a possibilidade e as condições de uma influência da cultura grega para além das fronteiras da própria raça.”

De outra forma não teria podido surgir um livro como a Ciropedia, que apresenta aos gregos o ideal da verdadeira virtude de um monarca, encarnado na pessoa de um rei persa.

Esta obra, em cujo título figurava a palavra paideia, é para nós decepcionante, no sentido de que é só no seu começo que trata realmente da educação de Ciro.(*) Não estamos na presença de uma novela cultural da Antiguidade, mas sim de uma biografia completa, ainda que muito romanceada, do rei que fundou o império persa.

(*) (…) Também a Anábase tira o título do 1º capítulo da obra, apesar da parte principal se consagrar à narração da retirada dos gregos, i.e., da katabasis. Não faltam exemplos deste tipo de títulos na literatura grega.”

O mero fato de os gregos do séc. IV poderem entusiasmar-se com tal figura atesta como os tempos tinham mudado (…) Entramos na era da educação dos príncipes.”

O guerreiro de Xen. é o homem que confia singelamente em Deus. Na sua obra sobre os deveres do capitão de cavalaria, há uma passagem onde diz que se algum leitor se espantar de todos os seus atos começarem com Deus, é porque nunca se viu forçado a viver em perigo constante.”

O centro da sua educação é a praça pública diante do palácio real, rodeada também por outros edifícios públicos. Deste lugar estão banidos comerciantes e lojistas, para que o seu bulício não se misture à eukosmia da gente culta. É patente o contraste com o que acontecia em Atenas e na Grécia. Aqui, a praça e as imediações dos edifícios viam-se cercadas de tendas de comércio e cheias de azáfama ruidosa e agitada dos negócios.” “Os diretores da educação infantil saem das fileiras dos velhos escolhidos como mais aptos para esta função; os educadores dos jovens capazes de pegar em armas, dos <efebos>, são distintos representantes dos homens de idade madura. As crianças, como na Grécia os adultos, têm uma espécie de tribunal perante o qual podem apresentar suas queixas e agravos, contra os gatunos, assaltantes e autores de atos violentos, de fraude ou de injúria. Os autores de um desacato são disciplinarmente castigados; mas também o são aqueles que acusam inocentes. Xenofonte salienta como peculiar atributo dos persas o grave castigo com que sancionam a ingratidão. Esta é considerada a raiz de todo o impudor e, portanto, de todo o mal.”

O regime de vida das crianças é o mais simples que se possa imaginar. Trazem de casa para a escola um pedaço de pão e uma salada, bem como uma caneca para tirarem e beberem água, e todos comem juntos sob a vigilância do mestre. Este sistema de educação chega até os 16 ou 17 anos; nessa idade, o jovem ingressa no corpo dos efebos, onde permanece durante 10 anos.”

O alto apreço que se tem pelo exercício de caça é, segundo Xen., um sintoma de saúde do sistema persa. O nosso autor celebra as virtudes desta prática que enrijece o homem, e tanto aqui como na sua obra sobre o Estado dos espartanos e no Cinegético, concebe-a como um dos elementos essenciais de toda a paideia correta.”

Só ingressam na classe dos efebos as crianças cujos pais disponham de recursos para enviar os filhos a esta escola de kalokagathia, em vez de fazerem-nos trabalhar, e só alcançam a categoria de adultos e a seguir a dignidade de anciãos os efebos que completam o tempo de serviço militar.” Do contrário permanecem presos em Neverland.

Aos cidadãos espartanos com plenitude de direitos tinha, contudo, de parecer estranho que até o rei dos persas e a alta nobreza se entregassem fervorosamente à agricultura. Em Esparta eram considerados banais estes trabalhos”

Tudo isto tinha que parecer muito estranho ao público grego, se excetuarmos talvez o de Esparta (…) Isto recordará ao leitor moderno as escolas de cadetes dos Estados militares do tipo do antigo Estado prussiano, chamadas a fornecer ao exército o material humano e, assim, a formarem os seus pupilos desde a infância.” “apesar de Xen. entender que a linhagem é aqui substituída pela norma da independência financeira dos pais das crianças que se pretende educar, o mais provável é que esta categoria coincidisse quanto ao essencial com a nobreza dos proprietários de terras do Estado persa.”

No prólogo da Ciropedia volta resolutamente as costas aos persas do seu tempo e explica as razões da sua decadência. E igual atitude adota para com a Esparta dos seus dias, no final da sua obra sobre o Estado espartano. Não teria procedido assim, sem dúvida, em vida do rei Agesilau, a quem exaltou numa apologia, escrita quando a sua morte (360), como a personificação da autêntica virtude espartana.”

A exuberante vida oriental, que muitos consideram típica da Pérsia, é para ele característica da Média [país de nascimento de Parysatis, mãe de Ciro]. Foi esta a principal razão do império medo ter caído nas mãos dos persas, logo que estes tiveram consciência da sua superioridade. Este povo persa, o do tempo de Ciro, não era um povo de escravos, mas de homens livres e iguais em direitos

Em tempos de Xen. e de Platão, e com certeza muito antes, este cosmos espartano já aparecia aos olhos do mundo como uma formação acabada. Contudo, devemos exclusivamente ao interesse destes pensadores e escritores pela paideia dos espartanos o ter-se conservado algum conhecimento de Esparta digno de nota.”

Os escritos de Platão sobre o Estado são o melhor comentário ao que a mentalidade grega entendia por imitação. Os gregos tendiam menos do que nós a encarar na sua individualidade única uma criação coerente consigo própria, mesmo quando determinada pelas condições de sua essência” “É o princípio da educação como função pública que constitui a verdadeira contribuição de Esparta para a história da cultura, contribuição cuja importância é impossível exagerar.”

pela 1ª vez na literatura ganhou caráter agudo o problema do campo e da cidade.” “Este amor ao campo está tão distante do bucolismo sentimental dos poetas idílicos gregos como do espírito rústico e burlesco das cenas campestres de Aristófanes.”

Para justificar o interesse pela agricultura em geral e apresentá-la como um tipo de atividade merecedora do respeito social, Sócrates [o Sóc. xenofôntico, i.e.] lembra o exemplo dos reis persas, que só consideravam digna de se associar aos deveres militares uma única paixão: o cultivo da terra

Para velar pelos frutos da terra é mais indicada a alma tímida da mulher do que a coragem do homem, a qual é, em contrapartida, indispensável para evitar que no trabalho do campo se cometam transgressões ou desacatos. São inatos à alma feminina o amor às crianças e a abnegada devoção para cuidar delas. O homem está mais apto a suportar o calor e o frio, a percorrer caminhos longos e penosos ou a defender as terras de armas na mão.” Blablablá de capataz.

SEMENTINHA DA REV. INDUSTRIAL: “Se a presença pessoal do fazendeiro não faz os trabalhadores retesarem voluntariamente os músculos [ih, negócio meio estranho!] e trabalharem a um ritmo preciso e harmonioso, é porque o patrão carece da capacidade indispensável para o desempenho da sua missão”

Também Platão nas Leis atribui à caça um lugar na sua legislação educativa. É no final, depois das leis sobre o ensino matemático-astronômico, muito distante das normas sobre a ginástica e a instrução do soldado e bastante desligada delas, que esta seção figura. Talvez isto permita chegar à conclusão de que se trata de uma adição posterior à redação da obra. É possível que tenha sido precisamente o aparecimento da obra de Xen. que chamou a atenção de Platão para esta lacuna do seu sistema educativo. Em todo caso, a publicação do Cinegético coincide mais ou menos com os anos em que Platão trabalhava nas Leis.”

Platão não se resolve absolutamente a reconhecer como paideia tudo quanto no seu tempo se chamava caça. Não quer, porém, estabelecer nenhuma lei sobre isso e, como com tanta freqüência faz nas Leis, limita-se a misturar louvores e censuras no tocante a certos gêneros de caça. Condena severamente toda sorte de pesca de rede e de anzol, por entender que não fortalece o caráter do homem. Só autoriza, portanto, a caça a quadrúpedes e ainda por cima praticada abertamente e em pleno dia, não durante a noite ou valendo-se de redes ou armadilhas.”

Como argumento para provar o caráter apócrifo do Cinegético quis-se aduzir o fato do autor não indicar que a caça devia ser feita a cavalo, pois era esta a forma como os atenienses distintos a praticavam.” “O que deve figurar indiscutivelmente num livro sobre a caça é, isso sim, a maneira de adestrar os cães. E Xen. condensa no Cinegético a sua experiência nesta arte com inúmeros pormenores cheios de encanto, que o definem como grande conhecedor destes animais.” “ao reivindicar o reconhecimento da caça como meio e caminho para a formação da personalidade, vai contra a corrente da evolução da sua época” “a caça a feras, como o leão, o leopardo, a pantera e o urso só se praticava naquele tempo na Macedônia, na Ásia Menor e no interior da Ásia.”

A obra vem citada na relação dos escritos de Xen. por Diógenes Laércio, relação que remonta aos trabalhos de catalogação dos filólogos alexandrinos do séc. III a.C..”

É interessante notar que também em matéria de paideia existem agora peritos e leigos, ainda que neste campo o leigo exerça com maior vigor que em nenhum outro a sua crítica.”

4.8 O Fedro de Platão: filosofia e retórica

Constituía o compêndio mais resumido das idéias platônicas acerca da relação entre a palavra escrita e falada e o pensamento, e conseqüentemente era o pórtico por onde todos entravam no templo da filosofia de Platão. O entusiasmo ditirâmbico pelo qual no Fedro Sócrates se deixa arrastar nos discursos sobre o eros – entusiasmo que ele próprio ironicamente faz notar – era tido por indício seguro das origens remotas deste diálogo. Já a crítica antiga caracterizara, em parte, como mau ou ‘juvenil’ o estilo destes discursos, o que indubitavelmente equivalia a primitivo, não em sentido biológico, mas no sentido de valoração artística, i.e., de censura a um estilo excessivamente redundante.” “A condenação intrínseca do Fedro como um problema juvenil é, a meu ver, uma improvisação digna da ignorância de Diógenes Laércio. É evidente que este pensava que o verdadeiro problema do diálogo era o tema do discurso de Lísias, que figura no começo do Fedro e é, sem dúvida, um tema pueril.”

Parecia lógico que Platão fornecesse logo no início da sua carreira literária uma explicação sobre a sua atitude perante a obra de escritor em geral e sobre o valor da palavra escrita para a filosofia” “E foi precisamente com a ajuda do Fedro que Schleiermacher descobriu esta nova interpretação formal, que viria a fornecer a pauta para todo o resto. (…) Mas à medida que as investigações sobre Platão foram assimilando, no decorrer do séc. XIX, a idéia de evolução histórica (…) descobriram-se indícios que sugeriam uma origem mais tardia” “Esta viragem foi feita sobretudo por Karl Friedrich HERMANN, Geschichte und System der platonischen Philosophie (Heidelberg, 1839).”

Finalmente, via-se que a riqueza do vocabulário e a complexidade de composição com que nesta obra se expõe o pensamento platônico traíam a sua proveniência da época da sua maturidade (…) Depois de situarem durante certo tempo o Fedro na época do Banquete, i.e., no período intermédio (após a fundação da escola platônica), os intérpretes viam-se agora obrigados a deslocar de novo este diálogo para a última fase da vida do filósofo. Hermann situa o Fedro, ao lado de obras como o Menexeno, o Banquete e o Fédon, na época por ele designada como 3º período da obra escrita de Platão, antes da República, do Timeu e das Leis. Usener e Wilamowitz defendiam ainda, contra Hermann, a primitiva cronologia de Schlei.; Wilamowitz, contudo, abandonou mais tarde este ponto de vista. Mais longe ainda que Hermann foi H. von ARNIM, ao situar o Fedro entre as últimas obras de Platão, no seu livro Platos Jugenddialogue und die Entstehungzeit des Phaidros (Leipzig, 1914).”

STENZEL, Plato’s Method of Dialectic, 1940

(*) “…Isto confirma o testemunho de CIC., Or., 13, tirado dos eruditos helenísticos que classifica o Fedro como obra de velhice de Platão.”

É certo que grande parte das dificuldades que a composição da obra apresenta ao leitor deriva apenas do paralelismo, explicável mas falso, com o Banquete. Se o compararmos com esta obra, que trata toda ela do problema do eros, é fácil vermos no Fedro o 2º grande diálogo erótico de Platão.”

É nas suas relações com o problema da retórica que reside a unidade do Fedro. As 2 partes da obra dedicam-se em igual medida a este problema.” “A chamada parte erótica, ou seja, a 1ª, começa com a leitura e a crítica de um discurso de Lísias, apresentado como o dirigente da mais influente escola retórica de Atenas, e que no tempo de Sócrates estava no apogeu do seu prestígio. (…) como, a partir das falsas premissas de Lísias sobre o eros se pode tratar melhor do que ele o mesmo tema ou como deve esta questão ser exposta, quando se sabe verdadeiramente o que ela é.”

autêntica retórica” “deixa sem solução o problema de saber se alguma vez chegará a existir este tipo de retórica. Apesar disso, Platão faz Sócrates dizer que deposita grandes esperanças no jovem Isócrates, e o diálogo termina com as elogiosas palavras do mestre a este novo retórico. § Estes elogios tributados a Isóc. formam um contraste consciente com as mesmas censuras dirigidas a Lís., que encabeçam tanto a parte I como a parte II”

MESTRE DA ANACRONIA: “Embora seja difícil dizer a priori a que época da atuação de Isóc. pode corresponder este episódio, é evidente que a profecia sobre a grandeza futura deste homem não teria tido qualquer sentido na juventude de Platão, quando ainda não existia nenhuma escola sua nem nada que permitisse distingui-lo dos outros redatores de discursos. É preciso que a nova retórica já tenha apresentado provas decisivas da potência de espírito de seu autor, para que Platão pudesse pensar em cingir com o laurel daquela profecia socrática(*) a fronte do homem da mais importante das escolas de Atenas suas opositoras.

(*) CIC.: <haec de adolescentes Socrates auguratur at ea de seniore scribit Plato et scribit aequalis.>

O Fedro só pode ser compreendido como nova fase da atitude de Platão para com a retórica. Essa atitude é ainda de franca recusa no Górgias, onde a retórica é a suma de uma cultura que não se baseia na verdade mas sim na mera aparência. É certo que, separando bem, já se descobrem de vez em quando neste diálogo certas referências ao que poderíamos chamar a própria consciência retórica de Platão.”

O que é decisivo é que o ponto de partida desta obra seja a leitura de um discurso-modelo de Lís., dado por este aos discípulos para o aprenderem de cor. (…) A escolha do eros como tema do discurso obedece à freqüência com que os exercícios dos retóricos se valiam deste tema. Entre os títulos das obras perdidas de Arist. encontramos citada toda uma coleção deste tipo de teses retóricas sobre o eros.” “Também no Banquete o problema do eros, concretamente no início do duelo oral e no discurso de Fedro, aparece como um tema nitidamente retórico.”

A juventude ateniense andava muito preocupada com saber se e em que circunstâncias era lícito ceder à exigências do amante, aludindo com isto fundamentalmente à entrega física. [dar o cu] Já conhecemos este problema, pelo discurso de Pausânias contido no Banquete. Lísias vence os que consideravam lícito, com a tese perversa de que era sempre melhor para o amado entregar-se a um amigo que não se encontrasse dominado pelo eros, mas conservasse o sangue-frio. Este amigo não se deixava arrastar pelas turbulências sentimentais do amor nem prejudicaria o seu jovem amigo, isolando-o egoistamente, à força, de todos os outros homens, para prendê-lo exclusivamente a ele. No seu 1º discurso, que pronuncia de cabeça descoberta, pois não lhe passa despercebido o caráter blasfemo da tese, Sócrates reforça estes argumentos com uma rigorosa classificação e definição das diversas classes de apetites. Coincide plenamente com Lís. em considerar o eros uma modalidade do apetite sensual, edificando sobre esta premissa a sua argumentação.”

Nada é mais contrário ao alto conceito do caráter de um eros como o proclamado no discurso de Diotima (…) Mas é esta maneira forçada de abordar dialeticamente o problema que torna imprescindível que a discussão, arrastada pela força de uma necessidade interna, transcenda este tema concreto do eros e se eleve às verdadeiras alturas da contemplação filosófica.”

O eros é aqui situado no mesmo plano dos dotes poéticos e proféticos e a inspiração apresentada como sua essência comum.”

MITO DA CAVERNA II: “O discurso vai subindo àquela região supraceleste em que a alma, impelida pelo eros e seguindo o deus que lhe é afim por essência, já é digna de contemplar o Ser puro. Sócrates justifica o estilo poético do seu discurso, recorrendo a Fedro, em atenção ao qual emprega este recurso. Nem de outro modo se pode falar a um discípulo e admirador da cultura retórica. Mas Sócrates prova-lhe que o filósofo com facilidade sabe ultrapassar a sua arte, caso o pretenda. O vôo entusiástico das suas palavras não é um frio artifício como tão freqüentemente o é o estilo sublime dos retóricos”

É possível ensinar a virtude?” Só sendo virtuoso.

É possível ensinar a falta de virtude?” Não.

Tautologia, enfim: só aprende a virtude quem é virtuoso. Dormente, desencaminhado, jovem e inexperiente demais… Inconsciente… Ou apenas um virtuoso que finalmente pode abrir o coração diante de outro virtuoso. A sina do virtuoso, de ambos os lados.

É principalmente com os recursos da comparação que a argumentação dos retóricos opera.” “É o conhecimento do díspar e do semelhante que serve de base a qualquer definição lógica de um objeto. E supondo que o objetivo fosse enganar o auditório, i.e., levá-lo a conclusões falsas a partir de meras aparências, também isto pressupunha um conhecimento exato do método dialético de classificação, pois só assim se poderia penetrar nos diversos graus de semelhança das coisas.”

É importante para nós sabermos que foi da filosofia, e não da teoria artística da retórica ou dos poetas, que a exigência da unidade orgânica de uma obra literária partiu, e que ela teve de ser proclamada por um artista-filósofo, admirador da integridade orgânica da natureza e, ao mesmo tempo, um gênio da lógica.”

o que impeliu Platão a escrever o Fedro foi a clareza cada vez maior com que via a ligação entre os problemas teóricos aparentemente difíceis e abstratos da sua posterior teoria das idéias e as mais simples exigências que que se colocavam à capacidade de falar e de escrever, que, naquela época, constituíam um tema muito procurado e muito debatido.” “Em vez de se deixar arrastar pelo tom antipático ou desdenhoso da polêmica, que Isóc. gostava de usar também contra Platão, no início das suas atividades, este sabe combinar os elogios ao adversário, que respeita, com a referência às profundas conexões espirituais existentes entre os 2 campos.”

O resto da retórica, tudo o que Lísias e outros como ele ensinam aos seus alunos, não pode nunca constituir, por si, uma técnica.¹ Forma, por assim dizer, a parte pré-técnica da retórica. Platão vai enumerando de um modo deliberadamente cômico toda a terminologia das várias partes do discurso que os retóricos distinguem nos seus manuais. Todos os representantes da antiga retórica aparecem neste quadro com os seus nomes, e alguns deles com as suas invenções pessoais, que revelam certa tendência para uma crescente complicação.”

dotes naturais” X “prática”, “conhecimento”

¹ “a sua crítica da retórica anterior vai-se transformando nas suas mãos num ideal perfeitamente pessoal dessa arte, ideal cuja realização, unicamente, lhe permite converter-se de fato em techne, no verdadeiro sentido da palavra.”

A grandeza de Péricles como orador devia-se a sua profunda cultura de espírito. Era a concepção filosófica do mundo do seu amigo e protegido Anaxágoras que dava forma a todo o seu pensamento” “Estes heróis da arete da verdadeira eloquência, no mito e na história pátria, não só se citam como figuras paradigmáticas para apoiar e ilustrar o conceito platônico de retórica, mas ainda como o contrário da secura e da penúria escolasticista¹ dos técnicos e especialistas modernos da arte oratória.”

¹ Novamente, esperamos que Jaeger não esteja usando o termo escolasticista no – indiretamente associável ao, mas incabíbel, anacrônico – sentido católico do termo, e sim no sentido de doutrina ou escola, mais universal.

Quem julgar que com qualquer rotina pode ir avante achará este caminho desmedidamente longo e trabalhoso.”

É claro que, como Platão reconhece no final, a verdadeira finalidade da retórica não consiste em falar para agradar aos homens, mas sim em agradar a Deus.(*) (…) Todas as aporias das suas obras anteriores vêm agora desembocar na atitude rigorosamente teocêntrica que caracteriza a paideia da sua última fase.

(*) (…) Portanto, é naquele ponto da retórica em que transparece a concepção do mundo própria do relativismo de Protágoras e dos sofistas que se apóia um novo ideal da arte oratória, cuja norma é o Bem eterno. [Quase a prova cabal da cronologia tardia do Fedro.]

O ANTI-COMPILADOR (FALSO SABER): “Platão mostra-se muito inclinado a aceitar a arte de escrever dos retóricos profissionais. Mas nem por ser uma invenção genial se deve considerar agradável a Deus. O mito da invenção da arte da escrita, i.e., dos sinais escritos, pelo deus egípcio Toth serve para esclarecer isso. Quando o deus acorreu a Thamos de Tebas com a sua nova descoberta, gabando-se de com ela oferecer aos homens um recurso salvador para a sua memória e portanto para o seu saber, Thamos retorquiu-lhe que a invenção da escrita serviria, ao contrário, para desleixo da memória e para levar o esquecimento às almas” Uma instância em que um homem sábio ensina um deus. Este Thamos é só uma máscara para Sócrates, que anteviu o problema do “discurso charmoso”.

Toda a grandeza de Platão se revela nesta posição soberana por ele adotada ante a palavra escrita, posição que tanto o afeta, nas suas atividades de criação literária, como a produção dos retóricos.”

A posição paralela adotada no Fedro foi desde muito cedo relacionada com a forma platônica dos escritos filosóficos, ou seja, com o diálogo socrático; e viu-se nela uma razão fundamental para considerar esta obra uma exposição programática. Na realidade, é difícil de conceber que, com este ceticismo em relação à palavra escrita, o Platão da 1ª fase pudesse enfrentar a sua gigantesca obra de escritor. Em contrapartida, esta atitude perante a obra já realizada podia explicar-se psicologicamente, a posteriori, como um meio de preservar a sua liberdade mesmo em relação à própria obra escrita.” E das malversações de um futuro distante.

As suas produções caem em todas as mãos, tanto nas de quem as compreende como nas de gente falha de compreensão, [Kikuchis] e a palavra escrita é incapaz de se explicar ou defender, quando injustamente atacada. Precisa de outrem, como advogado. A verdadeira escrita é a que se grava na alma do que aprende (…) o único proveito do escrito com tinta é recordar o que já se sabe.” Ah, tantas ressonâncias… Ou diria reminiscências…

Quem se interessar pela verdadeira cultura do espírito não se contentará com os escassos frutos temporãos cultivados como desfastio no horto retórico, mas terá a necessária paciência para deixar amadurecer os frutos da autêntica cultura filosófica do espírito. [frase redundante] Já pela República e pelo Teeteto conhecemos esta defesa da cultura filosófica: o seu pressuposto é o princípio do longo rodeio, é importante ver como Platão sempre volta a ele. A semeadura da paideia platônica só pode frutificar em regime de longo convívio, como diz a Carta Sétima, e não em poucos semestres de regime escolar.”

Uma vez filósofo, sempre filósofo. Ou, posto que sempre filósofo, no arremate de uma biografia, pode finalmente declarar: foi filósofo. Princípio do anti-gracismo ou dos “filósofos por um tempo”, estagiários prostitutos do saber.

4.9 Platão e Dionísio: a tragédia da paideia

Quando a crítica filológica destes últimos decênios logrou reivindicar como testemunhos autênticos do próprio Platão as cartas sétima e oitava, durante muito tempo consideradas apócrifas, acrescentou com isso um importante capítulo à história da paideia.(*) É certo que fatos exteriores referentes às relações entre o filósofo e o mais poderoso tirano do seu tempo ficariam de pé, mesmo que estas cartas, a sétima em especial, não fossem documentos autobiográficos de 1ª categoria, mas apenas uma ficção sensacionalista de qualquer requintado falsário literário, que tivesse querido explorar como rendoso tema novelesco o contato do grande Platão com a política do tempo.

(*) (…) Sobre a autenticidade das Cartas VII e VIII, cf. WILAMOWITZ, Platon/Platão, vol. II, e recentemente G. PASCUALI, Le Lettere di Platone (Florença, 1938). Há eruditos que reconhecem a autenticidade de todas as cartas em bloco, mas tal hipótese esbarra com dificuldades insuperáveis.”

O observador histórico descobre, porém, um encanto insuperável em poder ler aqui a tragédia de Siracusa; e a maneira como Plutarco, na sua vida de Díon, adorna os acontecimentos para convertê-los em drama, não agüenta em nenhum sentido a comparação com a vida que extravasa do âmago da principal fonte de informação destes acontecimentos: a Carta VII de Platão.”

Platão insistia sempre na ação, no bios, apesar de o campo de ação tender a restringir-se cada vez mais do Estado exterior para o Estado dentro de nós.”

Os seus irmãos Adimanto e Glauco aparecem diretamente na República como a personificação da juventude ateniense apaixonada pela política. Glauco pretende enveredar pela carreira política logo aos 20 anos e Sócrates tem de se esforçar muito para o fazer desistir do seu propósito. Crítias, tio de Platão, é o célebre oligarca e cabecilha revolucionário do ano 403. Platão coloca-o mais de uma vez em seus diálogos como interlocutor e tencionava, além disso, dedicar-lhe o diálogo que traz o seu nome, obra que não chegou a acabar e que havia de encerrar a trilogia encabeçada pela República.”

ano 388: (…) empreendeu, cerca dos 40 anos, a sua viagem a Siracusa, onde a sua teoria arrebatou por completo a alma ardorosa e nobre de Díon, parente próximo e amigo do poderoso senhor de Siracusa. A tentativa de Díon para ganhar para o seu ideal o próprio Dionísio I estava, naturalmente, condenada ao fracasso. A grande confiança humana que este político realista, de cálculo frio, depositava no seu parente Díon, homem todo entusiasta (…) baseava-se mais na absoluta lealdade e pureza de caráter de Díon que na sua capacidade para contemplar o mundo do estadista de ação com os olhos do tirano. Platão diz na carta que Díon esperava que o seu parente desse a Siracusa uma constituição e governasse o Estado de acordo com as melhores leis.”

Este episódio é o prelúdio da tragédia que mais tarde se desencadearia entre Platão, Díon e Dionísio II, filho e sucessor de Dionísio I. Platão regressou a Atenas, enriquecido com uma grande experiência, e ali fundou, pouco depois, a sua escola. No entanto, as relações com Díon sobreviveram ao fracasso que havia de fortalecer Platão na sua decisão de se abster de toda a política ativa, decisão proclamada já na Apologia.”

A República de Platão saíra (…) na década de 70. Esta obra deve ter constituído um novo incitamento para as idéias de Díon, pois nela apareciam formulados em forma clássica os pensamentos que tempos atrás ouvira exprimir ao seu autor. Poucos anos depois de publicado, este livro ocupava o centro das discussões.”

certos sábios (…) pretenderam descobrir no Estado de regime de castas dos egípcios ou no Estado hierárquico-teocrático de Moisés o protótipo da paideia platônica ou algo de semelhante a ela. (…) cf. meu ensaio ‘Greeks and Jews’ in: Journal of Religion, 1938.”

O Estado perfeito é um mito, Rep. 501 E. Mas um príncipe filósofo podia torná-lo realidade, 502 A-B.” Mais do que um príncipe, uma casta inteira.

Neste plano de Díon, o único fato real intangível era o poder ilimitado do tirano, e esse fato não poderia prometer nada de bom, pois ninguém sabia o uso que seria feito do poder. Mas a fé de Díon era suficientemente audaciosa para especular com a juventude de Dionísio. Juventude queria dizer maleabilidade e, conquanto ao inexperiente jovem tivesse faltado até agora aquela amadurecida visão moral e intelectual que Platão exige do seu príncipe ideal, outro ponto de apoio não parecia surgir para converter em realidade a idéia platônica.”

Os planos de educação do tirano, iniciados após a subida deste ao trono, tinham fracassado após 2 tentativas. O poderoso Estado dos Dionísios igualmente se afundara, pois, uma vez frustrados os seus esforços educativos, Díon, desterrado pelo tirano, acabou por fazer uso da violência. Foi também de curta duração a sua vitória sobre o tirano. Após breve domínio, sucumbiu às mãos de assassinos, vítima das dissensões surgidas no seu próprio campo. A chamada carta de Platão, escrita depois do assassinato do amigo, constitui um esclarecimento e uma justificação dos seus atos perante a opinião pública, embora revista a forma de um conselho dirigido ao filho e partidários de Díon na Sicília, exortando-os a permanecerem fiéis ao ideal do falecido.”

Só a tyche divina podia tornar o governante filósofo ou o filósofo governante. (…) Quando Díon pôs Platão em contato com Dionísio, a tyche divina pareceu estender a mão. E foi ela também que guiou a um fim trágico a cadeia das causas e efeitos quando o soberano não reconheceu aquela mão e a afastou.”

No fundo, é a primitiva concepção grega da natureza humana”

Na República ainda parecia existir um largo abismo entre o princípio divino do todo, o princípio do Bem, e a vida humana autêntica. Mas o interesse de Platão dirige-se em grau crescente à forma e ao modo de executar a sua ação no reino do visível, i.e., na História, na vida, no campo do concreto.” Se foi isso, Platão ficou bastante senil; não só pelo conteúdo das Leis, o que é óbvio, mas diante da própria idéia de escrever o livro não como um tratado filosófico moral qualquer, mas como um panfleto-para-a-ação, segunda metade da conduta platônica na qual não acredito, daí sublinhar em verde este trecho de Jaeger.

O significado deste episódio ultrapassa em muito o puramente biográfico. Ganha o valor de ilustração direta da teoria da República, 2º a qual a universal experiência da inutilidade dos filósofos neste mundo equivale, realmente, a uma declaração da miséria do mundo e não diz nada contra a Filosofia.”

Díon aceitava a pessoa do soberano como um fato dado, do qual se tinha de partir, pelo que, em vez de tirar Dionísio, por seleção, da classe dos guardiões, era preciso prepará-lo a posteriori para o desempenho de uma função que na realidade já exercia. Isto representava uma limitação muito séria aos postulados estabelecidos por Platão.” “Na República, Platão apontava como condição mais importante para a educação poder prosperar a atmosfera ou meio ambiente em que se processava.” “Fala a seguir do medo que nele infundia o aventuroso empreendimento a que Díon o arrastava e justifica esse medo por meio da sua experiência pedagógica, a qual lhe dizia que a gente nova se entusiasma facilmente, mas carece de constância nos seus anseios. Estava convencido de que o caráter provado e a idade já madura de Díon eram o único ponto de apoio firme, em todas as circunstâncias.”

agia (…) pelo receio de parecer um homem só de palavras. A resignação que tão comoventemente se espelha na República já tinha implícito, no fundo, uma resposta negativa a este esforço para arrancá-lo ao seu isolamento. Platão arriscava agora a fama na tentativa de refutar com a própria conduta o seu pessimismo, bem-justificado. Como ele próprio conta, abandonou a sua atividade docente em Atenas, atividade absolutamente digna dele, para se entregar à pressão de uma tirania que de modo nenhum se harmonizava com as suas concepções filosóficas. Mas julgava conservar, assim, limpo de culpa o seu nome perante o Zeus da hospitalidade e também, em última análise, perante a sua vocação filosófica, que não lhe consentia escolher o caminho mais cômodo.”

Dionísio, o Velho, embora confiasse humanamente em Díon, e com razão, procurou subtraí-lo à influência do filósofo, mandando este embora. Seu filho, mais fraco, deu ouvidos aos inimigos invejosos de Díon, desejosos de conquistarem autoridade sobre ele próprio, os quais insinuavam que, sob o manto das suas idéias filosóficas reformadoras, Díon conspirava para derrubá-lo e tornar-se tirano. (…) Dionísio, no entanto, não abrigava suspeitas contra as intenções do filósofo e sentia-se, além disso, lisonjeado pela sua amizade com ele; nestas condições, fez precisamente o contrário do que seu pai teria feito na mesma situação: exilou Díon e procurou conquistar a amizade de Platão.”

Platão regressou, pois, a Atenas, embora tivesse que prometer que voltaria, uma vez terminada a guerra que entretanto rebentava. Evitava romper de todo com o tirano, pensando principalmente em Díon e esperançoso em ver o seu amigo voltar do exílio à pátria.” “Não é fácil compreender o que levou Platão a aceitar um novo convite de Dionísio, poucos anos depois de ter fracassado a sua 1ª missão junto dele. Como razões para justificar a sua conduta alega os incessantes pedidos dos seus amigos de Siracusa, principalmente dos pitagóricos do sul da Itália e do grande matemático Arquitas (que governava Tarento) e seus partidários. Antes de deixar Siracusa, Platão estabelecera laços políticos entre estes elementos e Dionísio; se agora recusasse o novo convite do tirano, esses laços poderiam perigar. Este mandou um barco de guerra a Atenas buscar Platão (…) prometeu-lhe além disso que o seu amigo seria chamado do exílio, caso aceitasse o convite.” “Desta vez a narração platônica passa pura e simplesmente por alto tudo quanto se refere ao seu acolhimento e à situação política com que deparou ao chegar a Siracusa, para se fixar exclusivamente no estado da educação que ali encontrou.”

Um espírito animado do verdadeiro amor ao saber sente-se fortalecido no seu desejo pela consciência dos obstáculos que se erguem diante dele, e põe em ação todas as suas forças e as do seu guia espiritual para alcançar a almejada meta; ao contrário, o homem rebelde à cultura retrocede, atemorizado, perante o esforço e o severo regime de vida que lhe é imposto, e sente-se incapaz de enveredar por este caminho.”

Pretende a tradição que Dionísio, após a queda do seu regime, se dedicou ao ensino em Corinto. Platão, aliás, menciona a existência daquele livro em que, parece, a sua doutrina era plagiada, só por ter ouvido falar, pois nunca chegou a lê-lo. Contudo, isto dá-lhe ensejo para um esclarecimento da sua obra de escritor e da relação entre ela e a sua teoria, o que não pode surpreender-nos muito, depois do que nos diz no Fedro (…) Nada tem de estranho que seja precisamente nos derradeiros anos da sua vida que se multipliquem estas declarações sobre a impossibilidade de plasmar satisfatoriamente em forma escrita a verdadeira essência dos seus conhecimentos.”

Sobre a certeza suprema que serve de ponto de apoio ao seu pensamento, nada existe nem existirá jamais escrito pelo seu punho. A teologia de Arist. é, no pensar deste pelo menos, matéria de ensino, a disciplina suprema entre outras disciplinas. É indubitável que Platão julga possível e necessário operar, através da gradação do saber que na República pinta como paideia filosófica, a catarse do espírito, a fim de purificá-lo dos elementos sensíveis apegados a ele e encaminhá-los cada vez mais para o Absoluto.” Palavra ironicamente poluída pelo mau uso sistemático.

É nesta passagem que Platão emprega a metáfora da faísca que salta e se prende à alma de quem passa por tal processo.”

a contemplação, que é finalidade da semelhança com Deus, continua a ser para Platão um arrheton. Já o Banquete pintava em termos semelhantes, como uma mistagogia, a ascensão da alma à contemplação do eternamente belo; e diz no Timeu: é difícil descobrir o criador e pai deste todo e, uma vez descoberto, é impossível declarar publicamente a sua essência.

Platão, que viveu algum tempo como prisioneiro no palácio do rei, acabou por ser alojado no quartel da guarda pessoal, que era hostil ao filósofo e constituía uma ameaça para a sua vida, até que por fim Arquitas de Tarento, secretamente informado do sucedido, consegue que o tirano consinta no regresso de Platão. Na viagem de volta encontra-se nas festas de Olímpia com o desterrado Díon. O amigo dá-lhe parte do plano que elaborou para se vingar, mas Platão nega-se a participar nos preparativos.” “Deixava, no entanto, a Díon a liberdade para recrutar adeptos entre os seus partidários, alguns dos quais se alistaram como voluntários no seu corpo de liberdade. E embora a tirania de Siracusa dificilmente pudesse vir a ser derrubada sem o apoio ativo da Academia, Platão sempre encarou o sucedido como uma tragédia e, depois da queda dos 2 beligerantes, aplicou-lhes a palavra de Sólon: foram eles próprios os culpados da sua ruína.

a diferente atitude adotada pelos 2 homens, e revelada neste episódio, só leva a separar nitidamente o idealismo de Díon, puro e otimista, mas ligeiro e superficial, da heróica resignação de Platão, baseada num instinto infalível.” “Platão recusa, por princípio, a revolução como processo político.”

constitui um importante sinal dos tempos o fato de ambos, Isóc. e Platão, se julgarem na obrigação de comparecer perante o público com o seu querer e destino pessoal.”

4.10 As Leis

Um homem tão erudito como Plutarco sentia-se orgulhoso por figurar entre o reduzido número de conhecedores das Leis; e na época bizantina a transmissão da obra esteve por um fio, como o revela o fato de provirem de um único exemplar todos os manuscritos que nos chegaram.(*) Já em pleno séc. XIX os autores não sabiam o que fazer das Leis e o mais representativo dos historiadores da filosofia neste período, Eduard Zeller, chegou mesmo a declarar, num trabalho do seu 1º período, que se tratava de uma obra apócrifa.

(*) Sobre a tradição documental das Leis, cf. L.A. POST, The Vatican Plato and its Relations (Middletown, 1934).”

E como as Leis representavam mais que 1/5 da obra escrita de Platão (…) um tal estado de coisas indica como ainda se tomava pouco a sério (…) [a sua] filosofia (…) como as Leis não eram, pelo seu conteúdo, nem lógica nem ontologia, esta obra era considerada secundária pelos filósofos.”

Tal como a República, obra em que culmina a 1ª fase literária de Platão, as Leis são uma exposição universal do bios humano. É curioso, porém, que depois de terminar aquela obra, o filósofo tenha sentido a necessidade de traçar de novo e sob outra forma aquela imagem de conjunto, erguendo um 2º Estado junto ao Estado perfeito da República. Como dizem as Leis, trata-se ali de um Estado feito só para deuses e filhos de deuses.” “o divino e perfeito do qual se aproxima, sem (…) com ele coincidir (…) se deduz (…) que (…) não significa de forma alguma o abandono do seu ideal de Estado anterior. (…) é, pois (…) no diferente grau de paideia pressuposto que a diferença entre as 2 obras reside.”

Filipe de Opunte, secretário e confidente de Platão, que depois da morte do mesmo editou e dividiu em 12 livros as Leis

(*) “…A tradição sobre a redação da Epínomis por Filipe não deve ser separada da informação segundo a qual foi ele que editou as Leis, com base nas tábuas de cera legadas por Platão (…) E esta notícia devia proceder de uma fonte antiga muito boa, provavelmente da primitiva Academia. O estilo da Epínomis confirma cabalmente o teor da informação. A.E. TAYLOR, ‘Plato and the authorship of the Epinomis’ (in Proceed. Brit. Acad., vol. XV) e H. RAEDER, ‘Platons Epinomis’ (in Danske Videnskab. Selskab., Hist.-phil. Medd., 26, 1) (…) F. MUELLER, Stilistische Untersuchüng der Epinomis (Berlim, 1927) (…) A minha investigação acerca da Epínomis (premiada em 1913 pela Academia de Berlim) está inédita.”

Nem sequer seria fácil ir traçando, como fizemos com a República, as linhas gerais deste volumoso estudo, visto que a composição das Leis e a sua unidade levantam um problema dificílimo”

Do ponto de vista da história da filosofia as Leis estão, quanto ao método, sob muitos aspectos, mais próximas de Arist.. O velho Platão procura, com os seus princípios, aprofundar uma matéria cada vez mais ampla, em lugar de ir tornando mais insondável o abismo entre a idéia e o fenômeno, como fizera nos anos anteriores.” Parmênides, Platão, Nietzsche: o caminho da opinião, o caminho da verdade. não-Um, Leis, VdP; Um, República, Zaratustra.

é demasiado tarde que a ação do legislador intervém, pois a sua missão mais importante não consiste precisamente em castigar as transgressões, mas em evitar que elas sejam praticadas. Ao dizer isto, Platão segue o exemplo da ciência médica, cuja tendência cada vez mais nítida daquele tempo era encarar como verdadeiro objeto da sua ação não o homem enfermo, mas o homem são. Daqui deriva a importância tão grande, decisiva até, que a Medicina do tempo concedia à dietética.”

(*) “O próprio Platão nos fornece diversas indicações para a compreensão do estilo, solene e lento, retorcido por vezes. Nada o repugna tanto quanto aqueles homens incultos e seguros de si, conhecidos pelo seu veloz ritmo psíquico, os intelectuais….”

Platão converte-se em legislador. Em tudo se pode comparar os grandes representantes da legislação grega; só difere deles em se elevar ao princípio modelador fundamental que as suas obras potencialmente continham: a idéia de que o legislador é o protótipo do educador.”

Foi neste conceito platônico do ‘ethos’ das Leis que se originou o famoso ensinamento de Montesquieu, L’Esprit des Lois, o qual tão grande importância haveria de ter para a vida do Estado moderno.” E ainda assim, quão pouco filosófico e limitado no alcance!

Ao lado destas 2 típicas personagens dóricas que no espiritual procedem como irmãos gêmeos, introduz Platão no seu diálogo, como 3ª personagem e principal interlocutor, o estrangeiro de Atenas, personagem misteriosa e soberanamente superior, que as outras reconhecem e respeitam de bom grado, apesar da sua marcada aversão por todo ateniense médio.”

As Leis revelam, numa forma mais concreta do que qualquer das suas outras obras, a tendência, em que Platão se inspira desde o início, a fundir numa unidade superior a essência dórica e a ática.” “Segundo Platão, o pior que podia acontecer seria misturarem-se e confundirem-se entre si todas as estirpes gregas. Isto seria para ele um mal comparável à mistura de gregos e bárbaros.” “a iminência da fundação de uma colônia. Trata-se de dar à polis cretense que vai ser fundada a melhor constituição, dentro das circunstâncias.” “É certo que na República mal se menciona a Esparta histórica, a propósito da edificação do Estado perfeito; é que Platão move-se ali totalmente no reino do ideal. Mas, na série das constituições degeneradas, a timocracia espartana figura como o tipo de constituição da realidade empírica que mais se aproxima do ideal.” “Nenhum aspecto da obra platônica oferece uma base para se falar de um espartanismo unilateral; nisto, as Leis constituem o melhor comentário à República.”

meu ensaio Tyrtaios Über die Wahre Arete, 1932

é no poeta, supremo legislador da vida humana, que deve buscar-se a idéia primordial da arete humana” “Os poetas surgem sempre como representantes clássicos dos valores vigentes. Mas, desta forma, são ao mesmo tempo referidos a uma forma suprema, e é a comprovação dialética desta norma que constitui a contribuição da filosofia para a obra da paideia.”

Para quem considera a vitória o único sentido da existência é a coragem, necessariamente, a única virtude. Seguimos acima a polêmica travada em torno da aceitação das virtudes, desde os dias em que Tirteu anunciou ao mundo a primazia do ideal varonil espartano, como um dos temas mais grandiosos que ressoam através da poesia grega. Platão retoma de novo este problema filosófico: e o velho litígio entre Tirteu, que celebrava a bravura, e Teógnis, para quem toda a arete se condensava na justiça, é decidido por Platão a favor do segundo. O passo decisivo que supera o antigo ideal dórico é a fundação do Estado jurídico.”

Os legisladores dóricos nos ensinam que se deve partir conscientemente de um determinado conceito de arete. É nisto que estes legisladores devem realmente servir de modelo”

Como já Teógnis dizia da justiça, os bens superiores têm sempre implícitos os bens ou virtudes inferiores. E a verdadeira unidade que os engloba todos, os divinos e os humanos, é a phronesis, a arete do espírito. Com este declaração Platão supera todos os conceitos de virtude que os primeiros poetas gregos (…) estabeleceram.”

o beber, tal como outros tantos chamados bens da vida, não é em si nem bom nem mau. Platão exige que nos banquetes impere severa disciplina, cujo instrumento deve ser um bom presidente de mesa, que refreie os elementos caótico e selvagens, e os encaminhe para o verdadeiro cosmos. Por trás da prolixa investigação sobre o valor dos banquetes nas Leis está o costume da celebração de banquetes na Academia platônica.” O Banquete responde todas as perguntas neste tocante: todos os convidados são refinados, exceto Alcibíades, e o modelo de conduta é Sócrates.

O estilo da sua velhice caracteriza-se pela tendência quase filosófica a dar importância a um certo problema particular, a partir do qual o autor abre em seguida caminho para considerações mais gerais.”

O problema da decadência da cultura ocupa inteiramente o seu espírito, desde o 1º instante. A decadência dos Estados, de que fala com freqüência e que lhe servia de ponto de partida, não é mais do que uma parte do problema.” “Recuperar para a sua época esta totalidade da arete, que é o mesmo que dizer a totalidade do homem e da vida, era a mais difícil das missões, a qual, pela sua importância, não sofria comparação com qualquer contribuição de conhecimentos especiais que o espírito filosófico pudesse dar.”

É característico nesta obra, como em todas as posteriores à República, falar muito do <divino> ou Deus; isto explica-se ou por Platão ter mais tarde abandonado a primitiva prevenção contra o uso desta palavra para designar o seu princípio, [de sempre, a Idéia e nada mais – sim, a Idéia é a medida de todas as coisas; a perfeição é o modelo de todas as condutas] ou pela sua aplicação sem reservas indicar outra fase de conhecimento mais próxima da doxa [muito aquém da capacidade dos guardiães da Repúblicadeus como a certeza dos ainda titubeantes, pré-requisito necessário para alçar vôos mais altos, i.e., o limite dos “pré-socráticos”, que ainda não sabem que não sabem]. No entanto, neste passo, como em geral em toda a obra, Platão mostra-se muito interessado na concatenação psicológica através da qual o princípio supremo atua na alma do homem.”

A obediência da alma ao logos é o que denominamos domínio de si. Com isto fica também esclarecido o que é a paideia: é a direção da vida humana pelo fio do logos, manejado por Deus. Platão não explana por si próprio em detalhe estas conclusões derivadas das suas premissas, mas limita-se a dizer que o leitor pode agora ver claramente o que são a arete e a maldade”

A embriaguez intensifica as sensações de prazer e debilita as energias espirituais. É como se o homem voltasse à infância. Esse estado é a pedra-de-toque para comprovar a força dos fatores inibitórios do pudor e da timidez, que atuam inconscientemente.”

a alma deve igualmente expor-se à tentação do prazer, para se fortificar contra ele. Platão não chega a explorar a casuística dos tipos de prazer para os quais esse meio de verificação foi concebido.” Estar tentado é muito melhor que estar logrado.

Na 1ª infância, a educação tem de se preocupar exclusivamente com as sensações de prazer e dor e a respectiva orientação. São elas o verdadeiro material sobre o que versa, nessa idade, a educação. Assim concebida, a paideia converte-se em pedagogia.”

Platão faz agora depender cada vez mais a educação superior da sorte que caiba na alma da criança a este precoce tratamento do ethos. Era uma descoberta inevitável para quem, como ele, fizera da equação socrática entre a vontade e o saber o ponto de partida da sua paideia.”

A ação do próprio logos só pode frutificar, numa fase posterior, com a condição do logos de outrem, do educador ou dos pais, lhe ter aberto o caminho na fase inconsciente. Toda a arete, na medida em que arete é ethos, formação moral no atual sentido da palavra, assenta na sinfonia da razão e do hábito. (…) Platão chega aqui ao ponto donde parte também a Ética de Arist.” Quem foi o meu educador? O maior mistério. Eu sou Nicômaco, mas quem foi meu Aristóteles?

Na chamada Grande Ética, nascida na antiga escola peripatética e pela tradição falsamente atribuída ao próprio Arist. [Hegel caiu], esta evolução leva a pôr totalmente em dúvida a essencial ligação da ética com o espírito e a sua cultura, e a não mais lhe reconhecer outra missão que a de educar os impulsos.” A ética a-histórica é o apequenamento da Ética. Psicanálise é o homem menor, último. Ultimado e boçal. Adorno (Minima moralia), p.ex., desespera completamente de qualquer possibilidade de arete no séc. XX.

<DE MARX A NIETZSCHE>: “Vem 1º um período em que Platão considerava como meta suprema aprofundar cada vez mais a visão e o conhecimento consciente, levado pela fé na ação que sobre toda a cultura moral da personalidade esta exaltação e este aprofundamento exerciam; depois, no fim da vida, a obra de Platão volta a colocar em 1º plano a antiga idéia grega da formação do Homem,¹ e o filósofo vê agora a sua verdade à nova luz.”

¹ Um Übermensch, neste caso! O homem com “h” maiúsculo é a medida…

aparente regresso do ideal ao histórico. Depois de atingir o ponto máximo, na sua caminhada para o puro ideal, sente a necessidade de, na medida do possível, realizar este ideal e plasmá-lo em vida, necessidade que o puxa de novo para o mundo [como com todo bom educador] e faz dele [P.] um prometéico forjador de homens.”

Trata aqui de formação no mais estrito sentido da palavra, da maneira de andar e de se comportar, e de todas as manifestações do ethos interior da alma.”

Ao contrário dos outros animais, o homem possui o sentido da ordem e da desordem nos movimentos, o que chamamos ritmo e harmonia.” Merece questionamento. Na verdade este é o erro, a separação mente-corpo promovida pelo Iluminismo de todas as épocas. Ademais, não seria a criança ainda um animal, que depois regride?

QUEM NÃO APRECIA A MÚSICA (CORRETAMENTE!) E NÃO SABE DANÇAR… “Quem não tiver passado pela escola do prazer nos movimentos rítmicos e na harmonia das canções corais é um homem inculto.” Sinto-me como um animal na pista de dança, diria o clubber nietzschiano.

Esta unidade do ético e do estéticomal existia na arte do seu tempo. É por meio da corêutica, que tem presente como modelo, que o filósofo se propõe a restaurá-la.¹ Isto pressupõe uma norma absoluta do belo e constitui o maior dos problemas para o educador que pretenda edificar tudo sobre uma base artística.”

¹ Origem da Tragédia: o Coro de Eurípides como décadence [ironia: de-cadência: falta de cadência].

Platão amplia a vista à procura de um país onde existam formas sagradas e fixas da arte, libertas de toda a ânsia de inovação e de toda a arbitrariedade. E só as encontra no Egito, onde a arte não sofre, aparentemente, evolução e conserva com todo o rigor um sentido espantoso para o que a tradição já consagrou.(*) A partir do seu ponto de vista, o filósofo julga adquirir uma nova compreensão deste estado de coisas” Paradoxal: impossível repetir Platão – ou Homero ou Sófocles –, sobretudo porque conseguir imitá-lo seria criar.

(*) “A arte egípcia tinha por força de causar aos gregos, povo de sensibilidade desperta e fugaz, a impressão de não haver nela qualquer mudança ou evolução.”

Na sua opinião, o destino da arte depende da sua capacidade para se manter independente do gosto hedonístico e materialista do público. Cícero disse uma vez que o requintado gosto do público de Atenas era tabela para apreciar a elevação do nível artístico, e atribui à ausência de tal critério a sensaboria da arte em outras terras.” A decadência de uma grande nação é, ainda, mais majestosa do que a opulência de uns bem-aventurados temporários, sortudos nanicos.

a comissão instituída por Atenas para atribuir os maiores prêmios às melhores obras apresentadas em público”

O leitor da nossa exposição não terá dificuldade em compreender o que Platão quer dizer. A discussão da arete suprema e sobre os supremos bens da vida corre ao longo de 2 séculos, através da poesia antiga. É a ela que se liga a posição conscientemente adotada por Platão nas Leis. As odes dos poetas são para ele epodos, exortações dirigidas à alma de quem as escuta, para que sob o encanto da forma assimile docilmente, como um remédio açucarado, o conteúdo sério que encerram.”

Para Platão, o que chamamos tradição histórica não é muito mais recuado do que ontem ou anteontem, comparado com as sombrias épocas pré-históricas, em que a evolução da raça humana avançava a passo de caracol. Só uma pequena parte dos homens da época anterior se salva, de cada vez, das grandes inundações da superfície da Terra, das pestes e outras calamidades semelhantes, a fim de entrar na idade seguinte”

Guiado por Homero, narra a passagem do estado ciclópico, desprovido de leis, para a submissão sistemática a normas e para o regime patriarcal.” Para fora do regime patriarcal, diria o ingênuo Hegel!

Na época em que Platão escreveu as Leis, na década 4ª ou 5ª do séc. IV, erguia-se aos olhos das pessoas reflexivas do mundo grego, como um imenso problema, o destino dos povos dóricos – a imagem da sua passada grandeza e do alto nível espiritual que outrora haviam tido, seguidos da tragédia da sua decadência, selada pela aniquilação de Esparta em Leuctra.” “Acontecia no passado, com os dórios do Peloponeso, o mesmo problema que o presente parecia pôr ao conjunto dos Estados gregos” “o que ditou a ruína dos reinos dóricos?”

ARISTÓTELES diz (…) que teriam conseguido o domínio do mundo, se se tivessem unido dentro de um só Estado. É difícil não ver nisto a influência do ideal pan-helenístico de Isócrates. (…) (cf. o final da Helena).”

A imaginação histórica de Platão via nestes acontecimentos dos sécs. VIII e VII, que no seu tempo eram quase míticos, a verdadeira e irremediável tragédia.”

Quando Platão escreveu as Leis, ainda Isóc. não pensara em Filipe da Macedônia como chefe potencial dos Estados gregos contra a Pérsia. De fato, o seu Filipe foi escrito depois da morte de Platão.”

sete axiomas de governo” “premissa que não pode ser demonstrada, da qual partimos numa dedução científica, principalmente em matemática. Segundo o testemunho de Arist., é neste campo que esta terminologia aparece pela 1ª vez.” “fundamentação geral da política (o que não exclui necessariamente a sua 1ª acepção de exigência de governo).” “Também o nº fixo dessas regras fundamentais que Platão vai enumerando (de 1 até 7) põe em destaque o seu sentido axiomático; com o nº, assinala-lhes Platão o caráter restrito, como também faz a geometria de Euclides.”

NÓS, DA ERA DO AQUÁRIO OU ERA DO AZAR: “1) os pais devem governar os filhos; 2) os nobres devem governar os não-nobres; 3) os velhos os jovens; 4) os senhores os escravos; 5) os melhores os piores; 6) os homens cultos e sensatos os incultos. O 7º axioma é o princípio democrático que diz: o que é eleito por sorte deve imperar sobre aquele em que a eleição não tenha recaído. Nesta passagem, como nas Leis em geral, Platão aceita a sorte como decisão divina e não vê nela um mecanismo sem-sentido, o que freqüentemente fazia ao criticar a democracia nas obras anteriores.”

nas Leis ele mostra-se resolutamente contrário à unificação do poder (…) O exemplo de Esparta prova que uma constituição mista é mais duradoura. A instituição da monarquia é limitada em Esparta tanto pelo regime dos reis como pela intervenção dos gerontes e dos éforos.”

os 2 homens realmente superiores que criaram este império, Ciro e Dario, não souberam educar os filhos.(*) Era nas mãos de rainhas ambiciosas, de novas ricas, que estava a paideia dos príncipes persas. Assim se explica que Cambises e Xerxes tenham em tão pouco tempo dilapidado tudo quanto seus pais conquistaram.

(*) desde então não apareceu mais na Pérsia nenhum grande rei; 695 E.”

Platão risca também a Ciropedia de Xenofonte. Nada encontra na Pérsia que possa servir de modelo aos gregos. É evidente que foi a existência de uma obra em que se louvava a paideia dos persas que deu pretexto a Platão para se deter tão demoradamente nela. (…) Platão confronta a Pérsia com Atenas, os 2 Estados politicamente antagônicos, e prova que ambos se desmoronaram pelo mesmo vício: a ausência de uma autêntica paideia. Com isto rouba à crítica o seu ferrão político partidário.”

Na descrição deste aidos, que era o que efetivamente mantinha a coesão interna do edifício social, coincide com o Areopagítico de Isóc., obra escrita na mesma época das Leis.”

faz derivar esta evolução de Atenas da decadência da música e da poesia e da sua degeneração numa indisciplina amusical.” “O quadro que Platão traça da evolução da música grega é integralmente focado do ponto de vista da sua concepção da paideia. Poderia pensar-se que os teóricos da música posteriores a ele se emanciparam deste critério, para exporem a evolução desta arte de acordo com idéias puramente artísticas, mas na obra do Pseudo-Plutarco, c. 27, a evolução da histórica da música segue uma trajetória que parte do seu primitivo caráter propedêutico para se aproximar cada vez mais do teatral, acabando, por fim, por se entregar completamente a este. O testemunho de Platão é várias vezes invocado em apoio da tese. Examinando o assunto com cuidado, vê-se que a imagem por ele traçada da história da música é tirada de Aristoxeno, historiador peripatético da música.”

Os peritos na paideusis podiam escutar até o final sem interrupções, e a multidão conservava-se ordeira, sob a batuta do mantenedor da ordem. Mas veio a seguir outra época em que os indivíduos de grandes dotes poéticos, mas sem nenhum discernimento quanto ao conteúdo normativo da arte, impelidos por um êxtase dionisíaco e arrastados pelas simples sensações, confundiam os ditirambos com os peanes e os hinos com os trenos, procurando imitar com a cítara os efeitos ruidosos da música de flauta. (…) Impunha-se assim no reino das musas a ausência de leis e incitava-se a multidão à loucura de julgar estas coisas e de exteriorizar os seus juízos com estrepitosas manifestações. O silencioso sossego do teatro transmutou-se em algaraviada e a distinção que até ali reinara neste campo foi substituída pela teatrocracia, pelo império do público inculto. Se realmente fosse uma democracia de homens livres, nada teria havido a objetar: mas era apenas a petulância e o desenfreamento de todos em tudo, desenfreamento e petulância que se não detinham perante nada.”

Por um instante pareceu que iria aqui brotar da crítica do processo histórico a estrutura do Estado ideal, uma vez que Platão estabelecia os axiomas de governo, dos quais devia partir qualquer tentativa desta natureza. Abriam-se de novo, cada vez mais vastos, os horizontes históricos, para assegurar a correta aplicação destes axiomas. Interpretados em sentido platônico, estes horizontes conduzem à idéia de uma constituição mista, que o filósofo vê realizada na antiga Esparta. A Pérsia e Atenas, ao invés, representam, na sua forma de Estado atual, os extremos exagerados da tirania e da arbitrariedade, que nascem de uma ausência de paideia.”

A conversação toma assim um rumo prático, que é o mesmo que dizer sistemático, pois a partir de agora vemos um filósofo influir na estruturação da polis.” “o 1º preceito, de acordo com o qual a cidade a fundar não deverá ser marítima, se relaciona com o critério fundamental da educação platônica. Na Constituição de Atenas, é à evolução desta cidade como potência marítima que Arist. atribui a radicalização da democracia ateniense num governo de massas. Era uma idéia originária do grupo conservador, moderado, dos democratas atenienses, que voltava à luta para impor a sua influência, precisamente na altura em que Platão escrevia as Leis e Arist. forjava na Academia as suas concepções, após a derrota da 2ª liga marítima. Platão coincide com Arist. e com o velho Isóc. tanto na atitude negativa em face do domínio marítimo ateniense como na fé numa constituição mista.” “enquanto Platão vê encarnado em Esparta o ideal da constituição mista (Leis, 629), Isóc. transplanta este ideal para a antiga Atenas”

A aversão da nobreza pelas tendências ao domínio marítimo e pelo armamento naval transparece já na crítica que os velhos elementos conservadores do Conselho de Estado fazem à política do jovem rei Xerxes, em Os Persas de Ésquilo. (…) Platão vai ainda mais longe e nega importância decisiva à batalha naval de Salamina, que constituía o título de glória nacional dos atenienses. Para ele, foi o esmagamento das forças terrestres dos persas em Maratona e Platéia que salvou a Grécia da escravidão.”

É Deus quem manda mais, a seguir vêm a tyche e o kairos e, como 3º fator, a indústria humana, a techne, que lhes acrescenta o que a arte do timoneiro faz no meio da tempestade, ajuda por certo nada desprezível.”

Segundo Platão, é só em grau, e não por essência, que as restantes formas de regime político diferem da tirania. Todas são despotismos, e a lei que nelas vigora é a expressão da vontade da classe dominante a cada momento. Contudo, não é a própria essência da lei que a torna o direito do mais forte. Platão aplica os seus axiomas a este problema e chega à conclusão de que os mais aptos para governar são os que obedecem mais rigorosamente à verdadeira lei.”

Outros pensadores gregos anteriores a Platão haviam apregoado como o divino a inesgotável unidade-totalidade, a força motriz primordial ou o espírito formador do mundo. A partir do seu ponto de vista filosófico, que parte do ético ou do educacional, Platão considera-o antes a norma das normas, a medida das medidas. Assim concebido, o conceito de Deus converte-se em centro e fonte de toda a legislação, e esta na sua expressão imediata e realização terrena.”

A sua filosofia da natureza é o fundo necessário sobre o qual se projetam a sua paideia e a sua teoria do Estado, tais quais estão expostas nas suas obras políticas mais importantes, a República e as Leis. Em rigor, seria falta de integridade excluir da exposição da sua paideia o Timeu ou outra qualquer obra platônica”

NE PLUS ULTRA: “Devemos ter presente que a Idéia é, em Platão, a mais alta realidade do que existe e que, portanto, a idéia do Bom representa o grau de bem mais poderoso, e superior a qualquer outra coisa do mundo.”

Não é a 1ª vez que vemos um poeta ou pensador grego proclamar a sua medida suprema dos valores, sob forma de correção de um antecessor famoso. (…) Em vez dos antigos deuses individuais da polis aparece Deus <medida de todas as coisas>, o agathon de Platão, forma primordial de toda a arete. O cosmos torna-se uma conexão teleológica e Deus passa a ser o pedagogo universal.” “o legislador é o homem divino que no seu íntimo alberga o verdadeiro logos e convence a polis a convertê-lo em lei; e a lei é o fio por meio do qual Deus move o seu joguete, o homem.” O Destino tem de querer o homem nobre.

…os livros X e XII das LeisA parte chata! Infelizmente nosso mundo não é digno nem de uma ciência dos astros. Efetivamente cumprimos a profecia de transformar estrelas em pó.

O preâmbulo torna-se muito mais longo do que a própria lei.”

A idade matrimonial do homem é fixada entre os 30 e os 35 anos. Os que permanecerem celibatários depois de atingirem esta idade são obrigados a pagar uma multa anual em dinheiro, processo destinado a impedir que o celibato fosse explorado como meio para enriquecer. Os celibatários estão, além disso, excluídos das honras que na polis os mais jovens tributam aos anciãos. Nunca são <anciãos> em sentido social.”

A instituição dos cargos públicos e a definição das atribuições a eles inerentes deve preceder o corpo das leis, de acordo com as quais os funcionários irão governar.”

Ivo BRUNS, Platos Gesetze, pp. 189s., considera 734 E 6 – 735 A 4 um fragmento erradio do 1º projeto de Platão.”

Um dos encantos principais das Leis consiste precisamente em elas se ocuparem a fundo de um problema que não só a República omite por completo, mas que, além disso, nunca fôra seriamente abordado nas discussões sobre a verdadeira educação, desde que o movimento sofístico principiara.”

paideia do povo” “É o último passo para a realização plena do programa do movimento socrático, um passo chamado a ter uma importância incalculável, apesar de nenhum legislador do seu tempo se ter sentido tentado a tornar realidade o ideal platônico de uma educação geral da massa do povo. Como se pôs em evidência, foi quando a educação pretendeu ser mais do que uma aprendizagem meramente técnica e profissional, com o primitivo ideal aristocrático de formação da personalidade humana no seu conjunto, que, como sempre sucede, a história da paideia grega começou.” “mas, mesmo na democracia ateniense, esta missão estava inteiramente confiada à iniciativa privada individual. O passo revolucionário que Platão dá nas Leis e que constitui a sua última palavra sobre o Estado e a educação consiste em instituir uma verdadeira educação popular a cargo do Estado.”

(*) “A aceitação da existência de uma casa e de uma família no Estado das Leis já representa uma aproximação da realidade vigente. Os fundamentos desta ordem social são assentes na parte da obra que trata da distribuição da propriedade territorial (735 B s.). (…) a consagração da propriedade privada é por sua vez, como Platão observa (740 A), a expressão de uma determinada fase da educação de cultura: a do presente

No atual estado de coisas, a educação privada segue em direções contrárias conforme as diversas famílias, sem que o legislador possa opor-se a estas contradições, que as mais das vezes se manifestam em coisas pequenas, quase imperceptíveis. Se, porém, atentarmos nos seus efeitos de conjunto, veremos que estas diferenças na concepção do que deve ser uma educação acertada chegam mesmo a pôr em questão a obra da legislação escrita.”

TESTEMUNHAS DE DIANA: “Não é uma seleção dos esposos a cargo do Estado, como faz na República para os ‘guardiões’ (…) Mas recomenda aos cônjuges que dediquem a estes problemas uma atenção especial e cria uma comissão de mulheres que devem instalar-se no templo de Ilithya, deusa dos partos. Têm neste templo as suas horas de serviço, em que realizam as suas deliberações. Outorga-se-lhes um direito de inspeção sobre os matrimônios, como o período de procriação, extensivo aos 10 anos subseqüentes a sua celebração. Esta comissão de mulheres intervém quando os cônjuges são incapazes de procriar. No 2º caso, dissolve-se o matrimônio.”

Estatui-se um sistema penal bastante desenvolvido, sobretudo no tocante à honra, para castigar os que de maneira consciente e obstinada agirem contra o que os bons conselhos e a razão indicam.”

Ao prescrever a necessidade de a criança se mover ainda antes de sair do seio materno, não faz mais do que estender a este campo o sistema de exercícios físicos a que a Medicina do seu tempo dedicava um interesse primordial. Platão lembra o exemplo dos galos de briga ou outras aves pequenas criadas para a luta, às quais os donos treinam para a sua missão, levando-as consigo no braço ou sob a axila, em longos passeios.” “Platão não quer que as crianças andem antes dos 3 anos, com medo de que fiquem canejas [parecidas com cães!]. As amas têm de ser suficientemente fortes para as carregarem no colo até aquela idade. Exagera-se sem dúvida”

da teoria do tratamento físico do recém-nascido passa diretamente à teoria do caráter.”

O descontentamento e o mau humor contribuem para a sensação de medo. Platão preconiza o justo meio-termo entre a brandura e a opressão. A primeira torna a criança hipersensível e excessivamente caprichosa, a 2ª mata nela a liberdade e torna-a hipócrita¹ e misantropa. O educador deve evitar com o maior cuidado criar na criança o que hoje denominaríamos um complexo de inferioridade, resultado a que facilmente conduz uma educação opressiva. O objetivo deve ser educar a criança na alegria

¹ Em que sentido? De que emulará o pai ruim quando for pai, oprimindo os outros e alegando que “foi assim que fui criado”? Se assim for, é outra superestimação da psicologia da infância de Platão.

O hábito tem grande força, a ponto de Platão derivar a palavra caráter de hábito em grego.” “Não é como leis, mas como usos não-escritos que Platão encara estas normas.”

ANTROPOLOGIA ANTIGA: “Está por trás desta obra, como o atestam as muitas e interessantes citações de costumes de povos estrangeiros nas Leis, um estudo dos nomina gregos e bárbaros suficientemente extenso para poder estabelecer uma comparação com as próprias leis. Platão menciona e dá como exemplos os costumes dos espartanos, celtas, iberos, persas, cartagineses, citas, trácios, saurômatas, cretenses e muitas outras cidades e regiões gregas.”

PEDAGOGIA AINDA MUITO AVANÇADA:Dos 3 aos 6 anos (…) Nesta idade, são as crianças, quando se juntam, que devem inventar os seus jogos, sem que estes lhes sejam prescritos. Platão quer que estas reuniões de crianças se efetuem nos lugares sagrados de cada bairro da cidade. Precede deste modo a moderna aquisição dos jardins de infância.” “A educação dos meninos e meninas deve estar entregue às mulheres, em regime de co-educação, até os 6 anos. A partir dos +6 anos, Platão estabelece a separação dos 2 sexos. A formação da criança deve adestrar tanto a mão esquerda como a direita e não uma só.”

O serviço militar obrigatório de todos os cidadãos não era originariamente apenas uma instituição espartana; era também a base jurídica em que assentava a existência civil da democracia ateniense. Não só não era considerada antidemocrática, mas, ao contrário, via-se nela o pressuposto evidente das liberdades que todo cidadão deste Estado desfrutava. Dadas a freqüência das guerras que Atenas se viu obrigada a travar no séc. V, a época do seu maior poder, impunha-se como evidente por si próprio o cumprimento deste dever. Com o aparecimento do regime de mercenários no séc. IV, começam as queixas universais contra a decadência da capacidade e do espírito militar dos cidadãos. Subsistiu, contudo, o serviço militar obrigatório de 2 anos para os efebos, o qual, à vista daquilo, foi considerado uma exigência de maior importância que anteriormente para a educação da juventude.” “Mas nessa altura a liberdade já se perdera para sempre. O remédio aplicou-se tarde demais para poder surtir efeito; é que a grande massa dos cidadãos só compreendeu a necessidade de reforçar a sua capacidade militar quando se viu perante o fato consumado da derrota que acabou definitivamente com a democracia ateniense.”

A palavra antigo não tem qualquer sentido depreciativo, como acontece na era atual, em que tanto mudam as modas. Novos jogos significam um novo espírito na juventude, o qual, por seu turno, exige novas leis. Toda mudança (a não ser que se trate de mudar o que está mal) é, em si, perigosa, quer se processe no tocante ao clima, quer se refira à dieta corporal, ou ao caráter da pessoa.”

as Leis proíbem tudo o que não sejam canções e danças oficiais. O termo nomos tem em grego a dupla acepção de lei e de canção.” “As normas dadas aos poetas vivos, que devem ter sempre presente, como pauta, o espírito das leis, estão sem dúvida concebidas somente para a época subseqüente à fundação do novo Estado, uma vez que depois não se deve introduzir nem a mínima alteração nas canções admitidas.”

Quando tentamos imaginar o edifício educativo de Platão como um Estado, ele nos parece surpreendente; quando, porém, pensamos na maior instituição educativa do mundo pós-clássico, a Igreja Católica, vemos que a obra de Platão é uma espécie de antecipação profética de muitos traços da essência do Catolicismo.(*) O que hoje aparece desdobrado em Estado e Igreja constituía ainda para Platão uma unidade, dentro do conceito da polis. Mas nada contribuiu tanto para desfazer esta unidade e criar um reino espiritual, ao lado do terrestre e acima dele, como as imensas exigências que Platão faz à potência espiritual educativa da sociedade humana.

(*) Platão castiga com a pena de morte os que negarem a verdade do sistema e duvidarem da existência de Deus [do seu sistema, da Constituição; portanto, não há nada de medieval nisso]: cf. Leis, liv. X, 907 D – 909 D.” Essa tese é completamente absurda: Platão antecipa o sistema universal de educação pública, moderno, laico, porém com tolerância religiosa.

a escolaridade geral obrigatória; a equitação para a mulher; a construção de escolas e ginásios públicos; a educação para os 2 sexos, que na República Platão reservava aos ‘guardiões’; a rigorosa divisão do tempo nas tarefas diárias; o trabalho noturno (totalmente ignorado dos gregos) para as pessoas com postos diretivos na vida pública e privada; a fiscalização dos professores; e a criação, no Estado, de uma autoridade suprema em matéria de instrução, com um ministro da educação à frente.” “todos os funcionários se reúnem no Santuário de Apolo e, em votação secreta, elegem o membro do conselho secreto do Estado, o guardião da lei que cada qual julgar mais capaz para dirigir os assuntos da educação. Os seus colegas mais chegados não participam na prova para verificação da dignidade da pessoa eleita. A duração do cargo é de 5 anos, no termo dos quais não se pode reeleger o titular do posto. Ao abandonar, porém, as suas funções, incorporar-se-á como membro ao conselho noturno do Estado, ao qual pertencerá, natural e automaticamente, em 1º lugar, como inspetor-geral da paideia.”

Aprendiam-se de cor poemas inteiros, como outras fontes da mesma época confirmam (XENOFONTE, Banq., IV, 6), tendência que obedecia à concepção da poesia como enciclopédia de todo o saber e que Platão combate na República.” “Para não sobrecarregar a memória em demasia, pensa que só se devem assimilar trechos soltos de obras poéticas.” “No fundo vemos espreitar, naturalmente, o perigo de muitos elogiarem esta obra unicamente com a intenção de ocuparem um cargo.” A Bíblia como única leitura da vida de um enorme contingente de pessoas parece o descalabro supremo. Li hoje mesmo (18/11/21) em Memórias da Casa dos Mortos, Dosto., que na prisão na Sibéria este era o único livro permitido.

A introdução legal das próprias obras de Platão como objeto de ensino, em vez dos poetas antigos, nas escolas e orquestras do seu Estado do futuro, é o último passo lógico e coerente dado neste caminho.” Aqui, Nietzsche 2 milênios depois, foi bastante mais humilde, reconhecendo que sua obra era mera destruição, o negativo do que adviria…

É elucidativo ver como o filósofo que na República fundava sobre a dialética e as matemáticas a cultura dos governantes, se põe a cogitar nas Leis sobre se este tipo de saber é realmente aconselhável para a cultura do povo.” “O que Platão exige da matemática no livro VII das Leis corresponde ao nível popular de cultura. Cf. 735 A 4.” Infelizmente o mundo moderno acrescentou muito conhecimento teórico inútil a esta disciplina. E o nível popular de cultura sabe, tragicamente, menos que os gregos.

O que Platão expõe aqui corresponde, evidentemente, a uma informação mais recente sobre o nível de conhecimento das matemáticas egípcias. Este conhecimento devia-o, provavelmente, a Eudoxo, que vivera e fizera observações no Egito, durante muito tempo. (DIÓGENES LAÉRCIO, VIII, 87) [Compilador suspeito. De toda forma, isso vai contra o palpite nietzschiano do “estágio egípcio” de Sócrates ou Platão.]” “Que deve ter sido Eudoxo o veículo da informação confirma-o quase com caráter de certeza o fato de Platão relacionar esta referência com a introdução de outra teoria desconhecida também dos gregos daquele tempo e que tinha a maior importância para o culto divino. Referimo-nos à teoria astronômica segundo a qual os planetas ostentam o seu nome sem qualquer razão, pois, ao invés do que parece à 1ª vista, não se movem no firmamento 1º para diante e depois em sentido inverso: descrevem, sim, um movimento de translação sempre no mesmo sentido. Esta teoria fôra estabelecida por Eudoxo e a ela se devia o conhecimento – que neste ponto Platão menciona concretamente – de o planeta Saturno, que parecia mover-se mais lentamente, ser na realidade o mais rápido de todos e o que percorria uma órbita maior. T.L. HEATH, op. cit., p. 188 … sistema ‘filolaico’” “Daqui, a exigência do ensino matemático e astronômico na escola primária desemboca diretamente na peculiar teologia das Leis, que vê na contemplação do ciclo matemático eterno dos astros uma fonte essencial da sua fé em Deus.” Se é verdade que quanto menos sabemos dos astros menos temos uma cultura, como explicar nosso estágio atual, de uma Física hipertrofiada e cultura estanque? Existe uma justa medida? PARADOXO: Querendo instituir o monoteísmo (o reconhecimento de uma norma absoluta), Platão acaba por exaltar e reacalorar o entusiasmo e a devoção aos deuses do Olimpo (na forma dos planetas conhecidos). O importante é o eterno retorno das órbitas do sistema solar, que um dia reseta, recomeça, não os corpos celestes em separado.

MAIS UM PRECEDENTE PERIGOSO: “Mas também no campo espiritual se deve isolar contra todas as influências ocasionais do exterior que possam desviar a ação das suas leis perfeitas. As viagens ao estrangeiro só serão autorizadas aos mensageiros, embaixadores e theoroi. (…) [estes eram] ‘observadores’ da cultura e das leis de outros homens [nasce a antropologia institucional] (…) Sem um conhecimento dos homens, bons e maus, nenhum Estado pode tornar-se perfeito nem conservar as suas leis. A finalidade principal destas viagens de estudo ao estrangeiro é levar os theoroi a travarem relações com as poucas personalidades superiores, homens divinos, que existem no meio da multidão e com os quais vale a pena falar e chegar a um entendimento. [Metalinguagem – formato escolhido para as Leis!]” “a tyche divina torna também possível, excepcionalmente, o aparecimento destes homens num meio hostil. [Ou já não possuiríamos nenhum sábio.] O próprio Platão viveu muito tempo ausente de Atenas e a lei sobre as viagens ou missões ao estrangeiro dos homens espiritualmente mais notáveis provém, segundo todos os indícios, das suas experiências pessoais.” “Depois de deixar o seu cargo, Sólon fez uma viagem através da Ásia e do Egito para se informar por si mesmo“Só a homens experientes, com os 50 anos já completos, se encomenda uma tal missão. Ao regressarem à pátria é-lhes facultado livre acesso ao órgão supremo da autoridade, o conselho secreto e noturno do Estado.” “Os que regressam do estrangeiro, depois de terem observado de perto as instituições dos outros homens, devem dar parte de todas as sugestões que dos outros tenham recebido em matéria de legislação e educação, bem como das suas próprias observações. Os seus conselhos devem, todavia, ser submetidos a uma crítica severa, para que a sua aplicação não sirva de veículo a influências perturbadoras.”

(*) “O órgão do Estado que deve conhecer o objetivo é o conselho noturno 962 C 5. Os governantes são definidos na República, no mesmo sentido, como aqueles que possuem o conhecimento do paradigma, a Idéia do Bem.”

#Pesquisa futura: a relação entre o Um parmenídeo e o Bem em Platão.

Hoje, relendo, creio que nem é necessário ou possível efetuar tal pesquisa! Ambos são indistinguíveis ou um o dégradé do outro.

a conhecida hipótese moderna, segundo a qual Platão abandonou a teoria das idéias, nos últimos anos da sua vida. Cf. Jackson, Lutoslawki e outros [homens que estão errados].” Jamais ouvira falar disso!

VALOR, O ALFA E O ÔMEGA DA VIDA SÁBIA

no livro XII, Platão remete para a dialética, dando por suposto que se trata de algo conhecido dos seus leitores; voltar a tratar do seu valor cultural seria apenas repetir o que já expusera“Neste ponto capital, o pensamento de Platão mantém-se inabalável desde a 1ª à última das suas obras.” “No que se refere à formação filosófica, os componentes do conselho noturno não ficam atrás dos guardiões da República.” “A verdade que os governantes devem possuir é o conhecimento dos valores, i.e., das coisas de que vale a pena preocuparem-se na ação.” “Para poderem aplicar praticamente esta pauta nas leis e na vida, o legislador e os órgãos do governo devem possuir o conhecimento de Deus como ser e valor supremo.”

A uma história da paideia grega não lhe interessa entrar numa análise pormenorizada da estrutura conceitual desta teologia. É uma questão que compete a uma história da teologia filosófica dos gregos e que nesta perspectiva trataremos em outro lugar. A paideia e a teologia filosófica dos gregos foram as 2 formas principais por cujo meio o helenismo influiu na História Universal, durante os sécs. em que praticamente nada se conservava da ciência e da arte gregas. Ambas as coisas, a arete humana e o ideal divino, aparecem primitivamente ligadas em Homero. Platão restaura esta ligação, num grau diferente.” Efetivamente hoje entendo de forma menos crítica (menos discordante e rabugenta, quero dizer) que quando li as Leis pela 1ª vez: a palavra deus e o que implica não podem estar ausentes de uma discussão sobre a formação e o valor dos valores. Não Jeová, mas outra abstração… Nesse sentido, também é talvez precipitado chamar de teologia o estudo desses valores gregos – até que se entenda que teologia filosófica nada tem a ver com as religiões monoteístas hoje em voga.

O ponto culminante desta trajetória é o final das Leis, a que devemos juntar o livro X, inteiramente consagrado ao problema de Deus. O prolongamento histórico da metafísica platônica na teologia de Arist. e de outros discípulos de Platão vem confirmar que por trás das soluções esboçadas no final desta criação plat. se esconde nada mais nada menos que o projeto desta ciência das coisas supremas (…) Não se acusa aqui nenhuma diferença entre um simples saber cultural e um supremo saber, contra o que ultimamente se procurou estabelecer (MAX SCHELER, Die Formen des Wissens und die Bildung)” A quem caberia o cetro do ministério na modernidade: o sacerdote, o legislador, o pedagogo ou o filósofo? Nós não podemos reconciliar as especialidades.

Desde Arist., que das Leis de Platão encaminhou para a sua teologia estas 2 fontes da certeza de Deus,(*) até a Crítica da Razão Prática, de Kant, que, no fim de todas as suas idéias teóricas destinadas a derrubá-lo, voltou outra vez a desembocar praticamente nele, nunca a humanidade logrou, com a filosofia, erguer-se acima deste conhecimento. Estes fatos, dignos de sobre eles se meditar, foram reunidos e apreciados no meu Aristóteles, pp. 187 s.

(*) “corpos celestes”, “alma”

Kant reduziu a fé no conhecimento a um mínimo na Crítica da Razão Pura, mas deu uma volta de 180º logo depois. A Faculdade do Juízo pode ser considerada um anexo, pois não retoma o ceticismo moral do 1º volume, apenas estabelece, em que pese Deus, a autonomia do artista. Deleuze faz escândalo da pretensa “revolução de fim da vida” de Kant – mas bem conhecemos Deleuze! Meu máximo respeito: Kant, assim como Nietzsche e Platão, buscava o máximo conhecimento, num nível tremendamente superior aos empreendimentos de Aristóteles e Hegel, p.ex. E foi íntegro nas suas fases tão distintas durante a “trilogia”: como Platão, detectou o niilismo moral-epistemológico passível de nascer da crítica acabada da Razão pura; não só seu imperativo categórico atacou o problema, mas o ceticismo foi revisado da ótica “sobrenatural” do dom estético anos mais tarde…

EPÍLOGO – TRANSIÇÃO

E.1 Demóstenes: agonia e transformação da cidade-Estado

(*) “Georges CLEMENCEAU, Démosthène (Paris, 1926). Acerca das vacilações e diferenças nacionais que nos tempos modernos se notam nos juízos sobre Demóstenes, cf. Charles Darwin ADAMS, Demosthenes and his influences (Londres, 1927) na série ‘Our Debt to Greece and Rome’. O autor mostra claramente a predileção que os democratas do séc. XVIII sentiam por Demóstenes e a repulsa que esta figura desperta nos modernos historiadores alemães.”

Engelbert DRERUP, Imagens de uma Antiga República de Advogados / Demosthenes um Urteil des Altertums, 1923

O mais erudito representante da ortodoxia demosteniana de velho estilo é Arnold SCHAEFER, Demosthenes und Seine Zeit, 3 vols. (Leipzig, 1856).”

GLOTZ & CLOCHÉ, Démosthène, 1937

P. TREVES, Demostene e la libertà Grega, 1933

meu livro, Demóstenes: O Estadista e a sua Evolução.”

mundos que até há poucos decênios pareciam hermeticamente fechados e independentes, como a história do Estado e da filosofia, do jornalismo e da retórica, aparecem agora como membros vivos de uma unidade orgânica, participando no mesmo grande processo vital da nação.”

A polis, considerada como forma definitiva da vida política e espiritual, é o dado fundamental da história grega nos sécs. que vão de Homero a Alexandre.” “O melhor livro recente sobre a polis é o de G. GLOTZ, La Cité Grecque, 1928.”

O problema da autonomia da polis não mais acalmou desde a sua 1ª transgressão pela política imperial ateniense de Péricles, que rebaixou os confederados ao plano de simples súditos.” “o abandono do Estado autônomo da polis era tão incompatível com a mentalidade política dos gregos como até hoje o tem sido, praticamente, com a nossa própria mentalidade política, a renúncia ao princípio dos Estados nacionais para adotarmos formas de Estado mais amplas na Europa.”

Enquanto com Platão o espírito filosófico da época se vira com todas as suas forças para o problema espiritual do Estado e aborda a missão da sua reconstrução moral, independentemente das condições de tempo e de espaço, o Estado ateniense real vai, pouco a pouco, se sobrepondo a seu abatimento e recupera uma liberdade de movimento que lhe abre perspectivas para um lento fortalecimento do seu poder.” “Atenas, apoiada pelos que anteriormente tinham sido aliados de Esparta, por Tebas e Corinto, conseguiu reconquistar gradualmente a sua posição no mundo dos Estados gregos e reconstruir, com dinheiro persa, as fortificações que tinha sido obrigada a destruir depois da guerra. Depois veio o 2º passo: Tebas desligou-se de Esparta, o que brindou Atenas com a possibilidade de fundar a 2ª liga marítima, a qual, evitando a política excessivamente centralizada da 1ª liga, soube estreitar os vínculos de Atenas com os seus aliados. A sua cabeça destacaram-se políticos e soldados de verdadeira grandeza, como Timóteo, Cabrias, Ifícrates e Calístrato; e o abnegado impulso do sentimento patriótico dos anos que se seguiram à fundação da nova liga marítima deu, na guerra dos 7 anos contra Esparta, travada ao lado de Tebas, o magnífico fruto da paz do ano 371, que conferiu a Atenas a indiscutível primazia no mar e legalizou definitivamente a nova liga, mediante tratados internacionais.”

esta nova juventude sente-se atraída para o turbilhão do movimento político; e são os jovens metecos estrangeiros das pequenas cidades e de países vizinhos da Grécia, como Aristóteles, Xenófanes, Heráclides e Filipe de Opunte aqueles que se consagram inteiramente à vida platônica de uma pura investigação.”

Foi o florescimento outonal da vida do Estado ateniense na época de Demóstenes que desenvolveu a eloqüência política como gênero admiradíssimo de arte literária.”

PLUTARCO, Demóstenes

Os discursos de Péricles como estadista, tal como realmente tinham sido pronunciados por ele, não puderam servir de modelo ao jovem Demóstenes, pois não tinham sido publicados literariamente nem se conservam. Com efeito, o único eco da eloqüência política de Atenas na época do seu esplendor eram os discursos reproduzidos na obra de Tucídides, cujo perfil artístico e espiritual e cuja profundidade de pensamento sobrepujavam toda a prática da oratória política, tal como a realidade a oferecia.”

Sobre a análise da forma oratória em Demóstenes deve consultar-se principalmente a obra de F. BLASS, Geschichte der Attischen Beredsamkeit, t. III, parte I.” “os seus discursos não são mera ficção literária, como a crítica moderna muitas vezes julga”

Atenas, que estivera 1º ao lado de Tebas contra Esparta, separou-se dos seus aliados tebanos na paz de 371, para guardar a tempo nos seus celeiros a colheita da guerra.” “Neste momento a política ateniense de Calístrato mudou de quadrante e firmou abertamente aliança com Esparta, para contrabalançar o poder da sua antiga aliada (…) Nascia assim a idéia do equilíbrio, que deu forma à política ateniense das décadas seguintes e com a qual se procurou estabelecer um novo sistema no mundo dos Estados gregos.”

Demóstenes teve de pôr-se desde muito cedo em contato com os tribunais, forçado pela própria experiência da sua vida: a dilapidação da grande fortuna que lhe legara seu pai, levada a cabo pelos seus autores; e depois de ter comparecido pessoalmente ante os juízes, como orador em defesa da sua própria causa, escolheu a carreira de redator de discursos forenses e de conselheiro jurídico. (DEMÓSTENES, Contra Afobo e Contra Onetor)” + Contra Andrócio, Contra Timócrates e Contra Leptines.

a coerência sistemática da sua conduta se revela a principal força de Demó., ainda que naquela altura fosse para outros e sob a direção de outros que ele trabalhasse.” “É sobre o problema de política externa que o seu interesse incide logo desde o início”

A concepção política, representada no campo literário por Isóc., e no campo da política efetiva por Eubulo, principal dirigente da corrente de oposição da classe opulenta, rejeitava conseqüentemente toda a atividade política externa por parte do Estado enfraquecido, e via o seu futuro na sua limitação consciente aos problemas de uma prudente política interna e econômica.”

Desde o surpreendente aparecimento de Tebas como 3ª potência ao lado de Esparta e Atenas, este plano de equilíbrio tinha que se impor necessariamente como o testamento e a herança clássica do mais eficiente período da política ateniense, depois de Péricles.”

Desde a perda de Anfípolis, cidade marítima macedônica, cuja posse se discutia desde tempos remotos, que o rei Filipe se encontrava em guerra com Atenas, que reivindicava para si este antigo ponto de apoio do seu comércio e da sua frota.” “Interveio em seguida na guerra entre Tebas e a Fócida, derrotou os focenses e já se dispunha a penetrar na Grécia central pelas Termópilas, para aí se impor como árbitro, quando os atenienses se ergueram e enviarem àquele desfiladeiro, fácil de defender, um corpo de exército que barrou o caminho a Filipe (Arnaldo MOMIGLIANO, Filippo il Macedone (Florença, 1934). Este não procurou forçar a passagem: dirigiu-se para o norte; marchou através da Trácia sem encontrar resistência séria e, de súbito, ameaçou Atenas nos Dardanelos, onde ninguém o esperava. Todos os cálculos de Demóstenes quanto à proteção dos estreitos contra os trácios se tornaram inúteis de um só golpe: o quadro mudara por completo e o perigo macedônio revelava-se fulminantemente em toda a sua grandeza.” “Agora já não se tratava de uma luta de princípios entre a intervenção e a não-intervenção.” “O não ter tomado a sério a guerra de bloqueio colocava Atenas, inesperadamente, na defensiva.”

É um problema de difícil solução saber se Demóstenes, em condições mais favoráveis, teria podido converter-se num desses estadistas construtivos e criadores cuja existência pressupõe um país de energias em crescimento. O que se pode afirmar é que, na Atenas do seu tempo, teria sido inconcebível sem um adversário como Filipe da Macedônia, que o obrigou a pôr em ação a sua profunda e ampla visão, a sua decisão e tenaz coerência.”

A ciência do séc. XIX excede não raras vezes, na aplicação do seu ceticismo, os limites do suscetível de ser provado, e foi o que também neste caso aconteceu. (…) Já os antigos reuniram estes discursos numa categoria especial, sob o nome de Filípicas, mas não é unicamente o terem sido pronunciados contra o mesmo adversário que os caracteriza e distingue dos discursos anteriores. É na grandiosa idéia da educação do povo que a sua unidade se baseia, idéia que foi expressa de maneira concisa e lapidar na tese do discurso sobre o armamento.”

Nos povos governados democraticamente, a decisão de lutar não dimana das ordens do <governo>: é, sim, do íntimo do cidadão que ela deve brotar, pois todos tomam parte na decisão. As Filípicas de Demó. são todas dedicadas à formidável tarefa de preparar o povo para tomar esta decisão, para a qual faltava à maioria desse povo clareza de visão e capacidade de sacrifício.” “só por uma completa ausência de capacidade espiritual de distinção se poderia confundir com a demagogia corrente o dom de Demóstenes para se servir ocasionalmente desta linguagem.” Jaeger exagera? Só lendo Demóstenes para descobrir!

D. tinha 31 anos quando subiu à tribuna com o seu programa de ação.”

E assim como em Sólon o problema da participação dos deuses no infortúnio do Estado anda ligado à idéia da tyche, assim também esta idéia reaparece, sob novas variantes, nos discursos em que D. põe em guarda contra Filipe. (…) O adiantado processo de individualização desta época faz com que os homens, na sua ânsia de liberdade, sintam com maior intensidade a sua submissão efetiva ao curso exterior do mundo. O séc. que se inicia com as tragédia de Eurípides encontra-se, mais que nenhum outro, penetrado pela idéia de tyche, e tende cada vez mais a abandonar-se à resignação.”

Isto confere uma especial importância ao fator ético nos discursos de D. procedentes desta época, fator sem paralelo nos discursos de política externa de outros autores, que a literatura grega conservou.” “É precisamente aqui, na forma como aprofunda a psicologia e a moral do simples cidadão, que D. se revela um verdadeiro educador.”

(*) “A obra de Virgínia (sic) WOODS, Types of Rulers in the Tragedies of Aeschylus (tese de doutoramento pela Universidade de Chicago, 1941), contém uma análise completa do ethos político dos governantes, no drama ateniense do 1º período. Este estudo foi feito por sugestão minha.”

É no estilo que o sentido trágico desta época deixa sua marca. As suas profundas sombras patéticas reaparecem nos rostos das mais grandiosas obras de arte plástica do mesmo período, modeladas por Escopas

GREECE – CIRCA 2002: Head of Atalanta, by Skopas (420-340 BC), sculpture from the Athena Alea Temple in Tagea, (Greece). Greek Civilization, 4th Century BC. Athens, Ethnikó Arheologikó Moussío (National Archaeological Museum) (Photo by DeAgostini/Getty Images)

D. não teria conseguido tornar-se o maior dos clássicos da época helenística, em que se integrava mal o seu ideal político, se não tivesse sabido dar uma expressão perfeita ao tom das suas emoções espirituais.” “O orador e o estadista confundem-se e formam nele uma unidade. A forma oratória pura não seria nada sem o peso específico do espírito do homem de Estado, que força por se exprimir nela.”

A queda de Olinto e a destruição das numerosas e florescentes cidades da península da Cálcida, as quais formavam a Liga Olíntica, obrigaram Atenas a negociar a paz com Filipe da Macedônia. Esta paz foi firmada no ano 346 e Demóstenes encontrava-se também entre aqueles que a desejavam por razões de princípio. Opôs-se, contudo, à aceitação das condições propostas pelo adversário, pois lhe entregavam, sem proteção, os territórios da Grécia central e deixavam Atenas à mercê de um cerco cada vez mais apertado. Não pôde, porém, impedir que a paz se firmasse nestas bases e, no seu Discurso sobre a Paz, teve até que se pronunciar contra a resistência armada, quando já era um fato a ocupação pelo macedônio do território da Fócida e das Termópilas, tão importantes para o domínio da Grécia central.”

O Discurso sobre as Simorias e o que defende a liberdade dos ródios são testemunhos clássicos da sua contínua e vigilante disposição de acalmar a mera verborréia da embriaguez sentimental chauvinista.” “Até hoje, nem os seus críticos nem os simples políticos sentimentais que se lhe seguiram souberam compreendê-lo, e é isso que explica que tenham atribuído a vacilações de caráter o que não é senão rigorosa coerência de pensamento, expressa numa conduta elasticamente variável.”

A unificação da Hélade não podia ser levada a cabo sob a forma de absorção dos diversos Estados autônomos num Estado nacional unitário, ainda que o progressivo enfraquecimento dos Estados já estivesse adiantado como o estava agora. Só de fora podia vir. A resistência contra o inimigo comum era o único fator que poderia fundir todos os gregos, unificando-os como nação. O fato de Isóc. considerar como inimigo o império persa, cujo ataque fizera, há 50 anos, esquecer aos gregos as suas dissensões internas, e não a Macedônia, que era no presente o único perigo sério e real, podia explicar-se pela força da inércia, visto que Isóc. já vinha pregando havia várias décadas a idéia desta cruzada.(*) Todavia, era um erro político imperdoável pensar que podia afastar o perigo macedônio, aclamando Filipe, o inimigo da liberdade de Atenas e de todos os gregos, como chefe predestinado desta futura guerra nacional.

(*) U. WILCKEN, ‘Philip II von Makedonien und die Panhellenische Idee’, in Ber. Berl. Akad., 1929.”

Filipe soube compreender com perspicácia que era possível vencer um povo como o grego com as suas próprias armas, pois onde imperam a cultura e a liberdade existem sempre a desunião e a discrepância quanto ao caminho a seguir nos problemas mais importantes. A multidão é demasiado míope para descobrir logo o caminho certo. D. fala muito da agitação a favor da Maced., explorada em todas as cidades gregas.” “D. não se propunha a persuadir nenhum conselho secreto da coroa, mas um povo desinteressado e mal-dirigido”

Os seus discursos proferidos em tempo de paz são uma série ininterrupta de tentativas destinadas a opor este seu pan-helenismo ao pan-helenismo pró-macedônio de Isóc.”

e agora Tebas, que teria sido naquela ocasião mais importante para Atenas que a própria Esparta, sentia-se mais estreitamente ligada a Filipe do que lhes aconselhava o seu próprio interesse; a isso fôra forçada pela política de Atenas e de Esparta, que apoiavam os seus adversários da Fócida. D. considerou sempre má política aquele apoio dado aos focenses somente por ódio contra Tebas. E eis que agora o rei da Fócida oferecia a Filipe a ocasião para intervir na Grécia central.”


“Mas a aliança com Tebas só à última hora, antes da
batalha de Queronéia, foi levada a efeito: cf. o Discurso da Coroa, 174-9. Foi um triunfo trágico para D.. No meio de uma Grécia como esta, dividida e desintegrada, parecia trabalho de Sísifo formar uma frente pan-helênica de combate contra Filipe. E mesmo assim D. conseguiu-o, após longos anos de esforço. Esta sua evolução até se tornar paladino da liberdade grega é tanto mais surpreendente quanto a realização política da idéia do pan-helenismo parecia um sonho, mesmo depois de ter sido proclamada pela retórica.”

nenhuma contradição irredutível medeia entre a atitude política realista dos primeiros discursos e o programa da luta pan-helênica da última fase de D., assim como não há contradição entre o Bismarck da 1ª fase, defensor dos interesses puramente prussianos, e o fundador da unidade política dos alemães em 1870.”

Na grande batalha espiritual de rompimento que são o Discurso do Quersoneso e a Terceira Filípica, pouco antes do começo da guerra, D. reaparece a nossos olhos como o dirigente popular dos primeiros discursos contra Filipe, anteriores à paz do ano 346.” “Mas os gregos continuam inativos diante da expansão aniquiladora da potência de Filipe, como diante de uma tempestade ou uma catástrofe elementar da natureza, que o homem contempla passivamente, dominado pelo sentimento de total impotência, esperando que o raio caia, talvez, na casa do vizinho.”

Olinto, Erétria, Oreos reconhecem hoje: se o tivéssemos visto antes, não teríamos sido aniquiladas; mas agora é tarde.” Fil., III

Quando as vagas podem mais que o leme, já todo o esforço é vão.”

O sentido de lucro da massa e a corrupção dos oradores têm de se render e render-se-ão em face do espírito heróico daquela Grécia que outrora venceu a guerra contra os persas.”

Muitos anos atrás D. já se tinha perguntado inevitavelmente, face desse paralelo histórico, se os atenienses do seu tempo não seriam uma raça degenerada, diferente da do passado. Ele, porém, não é nem um historiador, nem um teórico da cultura, unicamente preocupado em verificar fatos. Neste campo é também, forçosamente, o educador que vê diante de si uma missão a cumprir. Por muito desfavoráveis que os sinais pareçam, não acredita na degenerescência do caráter do povo. Um homem como ele jamais seria capaz de renunciar ao Estado ateniense e de lhe voltar as costas como a um doente incurável. É certo que os atos deste povo se converteram em atos mesquinhos e lucrativos, mas como poderia ser outra a mentalidade destes homens? O que é que lhes poderia infundir um sentido mais elevado da existência, um ímpeto mais audacioso? Isóc. só sabe tirar do paralelo histórico com o passado uma conclusão: a de que este passado desapareceu para sempre. Mas um estadista ávido de ação não podia aceitar esta conclusão, enquanto restasse na sua fortaleza um baluarte para defender.”

K. JOST, Das Beispiel und Vorbild der Vorfahren bei den attischen Rednern und Geschichtschreibern bis Demosthenes (Paderborn, 1936)

Mesmo que o abismo entre o ontem e o hoje fosse ainda mais profundo, Atenas não poderia separar-se da sua história sem renunciar a si mesma. Quanto maior a grandeza da história de um povo, mais ela se lhe impõe como destino nas épocas de decadência, mais trágica é a possibilidade de se furtar ao seu dever, ainda que este seja irrealizável.(*) É indubitável que D. não se enganava conscientemente, nem empurrava levianamente os atenienses para uma aventura.

(*) <Que havia, pois, de fazer a polis, ó Ésquines, quando viu que como Filipe tentava estabelecer o seu império e a sua tirania sobre a Hélade? Ou que havia de dizer ou propor o homem que, como eu, se sentia conselheiro do povo de Atenas, e que desde os seus começos até o dia em que subiu à tribuna dos oradores não fez outra coisa senão lutar pela pátria e pelos supremos lauréis da sua honra e da sua fama?> Discurso da Coroa”

a arte do possível” “político realista” “existência ideal”

Até o mais sábio dos estadistas se vê aqui diante de um mistério da natureza que a razão humana é incapaz de resolver de antemão. Logo que os fatos se verificam, sucede com bastante freqüência aparecerem como verdadeiros estadistas pessoas para quem isto não era mais que um novo problema de cálculo e para quem, portanto, não era fácil fugir a um risco que não se sentiam interiormente obrigados a correr nem pela fé no seu povo, nem pelo sentimento da sua própria dignidade, nem pela intuição de um destino inelutável. Neste momento decisivo foi D. o homem em quem a feição heróica do espírito da polis grega encontrou esta grave expressão. Basta-nos contemplar o seu rosto toldado por sombrias preocupações, sulcado de rugas, tal como a obra do artista o conservou, para compreendermos que também ele não era por natureza nem um Aquiles nem um Diomedes, mas simplesmente, como os demais, um filho do seu tempo. Mas quem não vê precisamente que a luta parece tanto mais nobre quanto mais sobre-humanos parecem os deveres por ele pregados a uma geração de nervos tão sensíveis e com uma vida interior individualista?” “Já Tucídides dissera que os atenienses só eram capazes de enfrentar um perigo com plena consciência dele, e não como outros, cuja valentia nascia não raras vezes da ignorância do perigo.”

D. pensa que Atenas estará perdida, se aguardar que o inimigo penetre no país. (…) Já antes forcejara por atrair a Pérsia a sua causa; e, à vista da queda deste império logo após Filipe da M. ter conseguido submeter os gregos, a neutralidade da Pérsia perante a sorte de Atenas revelou-se uma enganosa ilusão. D. acreditara que a força da sua lógica de estadista conseguiria convencer o grande rei do que aguardava a Pérsia, se Filipe derrotasse os gregos.”

Na Quarta Filípica faz pressão para se chegar a um acordo, a um compromisso pelo menos, a uma desintoxicação da atmosfera.”

Os antigos Estados, apesar de se terem agrupado para travar a última batalha pela liberdade, já não foram capazes de fazer frente ao poder militar organizado do reino macedônio. A sua história desembocou no grande império que Alexandre, depois da súbita morte violenta do rei Filipe em mãos assassinas, fundou na sua irresistível campanha de conquistas que realizou através da Ásia, sobre as ruínas do império persa. Com a colonização, a economia e a ciência gregas viram abrir-se novos e imprevistos horizontes de desenvolvimento, mesmo depois da desintegração do império de Alexandre, nos Estados dos diádocos, logo a seguir à morte prematura do seu fundador.”

A morte poupou a Isóc. a dor de ter de reconhecer demasiado tarde que a vitória, sobre um inimigo imaginário, de um povo que perdeu a sua independência não representa nunca uma verdadeira exaltação do sentimento nacional, e que a unidade imposta de fora não pode nunca solucionar o problema da desintegração dos Estados. Todos os verdadeiros gregos teriam preferido durante a campanha de Alexandre receber a notícia da morte do novo Aquiles, a implorá-lo (sic) como deus, obedecendo a ordens supremas. A espera febril dessa notícia por todos os patriotas, com as suas alternativas de sucessivos desenganos e de precipitadas tentativas de insurreição, constitui por si só uma tragédia.”

Ainda que as suas armas tivessem triunfado, os gregos não teriam mais futuro político, nem fora do domínio estrangeiro nem sob o seu jugo. A forma histórica de vida do seu Estado já havia caducado e nenhuma nova organização artificial podia substituí-la. É falso medir a sua evolução pela pauta do moderno Estado nacional.”

Só uma vez, na batalha de D. em prol da independência da sua pátria, se produziu na história da Grécia uma onda de sentimento nacional, traduzido na realidade política pela existência comum, frente ao inimigo exterior. Foi neste instante do seu derradeiro esforço para manter a sua existência e o seu ideal que o Estado agonizante da polis alcançou nos discursos de D. a imortalidade.”

Demóstenes confessa com espírito verdadeiramente trágico a verdade dos seus atos e exorta o povo a não desejar ter tomado outra decisão senão a que o passado lhe impunha.”

HISTÓRIA DAS IDÉIAS 3: SCHOPENHAUER: MULTIFACETAS

As citações e comentários a seguir são baseados exclusivamente na obra O Mundo como Vontade e como Representação. O post com mais aspas e comentários deste livro está em data mais remota no Seclusão. Todas as citações do 2º e 3º volume, que não existem em Português, foram traduzidas por mim para esta compilação.

ÍNDICE (usar CTRL+F para pular para o tópico desejado)

Em negrito, o capítulo (tópico de capítulo) mais importante.

1. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO A ENTENDER KANT, O PRIMEIRO FENOMENÓLOGO DA IDADE MODERNA

1.1 COISA-EM-SI = VONTADE

2. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO NÃO-SOCIALISTA A DENUNCIAR E REFUTAR O IDEALISMO HEGELIANO: COMO DESCONTAMINAR-SE DE HEGEL, O CHARLATÃO

3. CRÍTICA DA RELIGIÃO: A ESCOLÁSTICA DUROU ATÉ KANT, MAS FOI CONTINUADA PELO HEGELIANISMO: A verdadeira filosofia deve compreender que nunca estará dissociada das religiões e se situar honestamente no campo

3.1 CRISTIANISMO, FIGURA AMBIVALENTE PARA SCHOPENHAUER

3.1.1 CRISTIANISMO PRIMITIVO, NOVO TESTAMENTO & DOGMAS

3.1.2 O PODER SECULAR DO CATOLICISMO

3.1.3 REFORMA PROTESTANTE

3.2 PRECURSOR ORIENTALISTA: EXALTAÇÃO DO HINDUÍSMO E DO BUDISMO

3.3 POLITEÍSMO, PANTEÍSMO, GNOSTICISMO, RELIGIÕES MENORES

3.4 ÉTICA: O DILEMA DE CILA OU CARIBDE: ACEITAÇÃO DO FENÔMENO OU ASCETISMO

3.4.1 A VIDA DO HOMEM SANTO

4. O FILÓSOFO QUE COMPREENDEU PLATÃO A MEIAS: POR QUE A IDÉIA DE PLATÃO DEVE SER LIDA COMO A ANTI-IDÉIA POR EXCELÊNCIA, I.E., COMO VONTADE, ASSIM ENUNCIADA DESDE A ANTIGUIDADE

5. O ANTI-ARISTÓTELES: CONSEQÜÊNCIA DA HIPER-VALORIZAÇÃO ARISTOTÉLICA PROMOVIDA PELO(A) HEGELIANISMO/ESCOLÁSTICA: O Aristotelismo deve ser superado

6. POR QUE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE ESTÃO, ESSENCIALMENTE, EM PÓLOS OPOSTOS NA FILOSOFIA – E NÃO O CONTRÁRIO – MESMO QUE AQUELE SEJA O PRINCIPAL PRECURSOR DESTE

7. DESPROPÓSITO DA VIDA HUMANA CONSCIENTE: A EXISTÊNCIA É SÓ UM SONHO

8. SOBRE O SUICÍDIO

9. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS

9.1 A MATEMÁTICA E A LÓGICA: ARISTÓTELES E NIILISMO

9.2 A ASTRONOMIA

9.3 A FÍSICA

9.4 A BIOLOGIA

10. A MEDICINA

10.1 CONTRIBUIÇÕES À PSIQUIATRIA (FISIOLOGIA DO GÊNIO)

11. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS

11.1 A HISTÓRIA

11.2 O DIREITO

11.3 SOBRE A EVOLUÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS LÍNGUAS: SUMA DEPRECIAÇÃO DO HOMEM ALEMÃO

12. SCHOPENHAUER E A ESTÉTICA: APERFEIÇOADOR DE KANT

12.1 ARQUITETURA

12.2 ESCULTURA

12.3 PINTURA

12.4 POESIA E TEATRO

12.5 METAFÍSICA DO GÊNIO

12.6 MÚSICA, O PALIATIVO FINAL

13. A FAMOSA MISOGINIA SCHOPENHAUERIANA

14. RESÍDUOS: AFORISMOS, PASSAGENS DIFÍCEIS DE CLASSIFICAR, CONSOLAÇÕES OU INVECTIVAS CONTRA FILÓSOFOS OU PERSONALIDADES MENORES

1. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO A ENTENDER KANT, O PRIMEIRO FENOMENÓLOGO DA IDADE MODERNA

Com Locke a coisa-em-si é sem cor, som, cheiro, gosto, não é nem quente nem fria, nem mole nem rígida, nem macia nem áspera; e no entanto ela conserva extensão e forma, é impenetrável, está em repouso ou movimento, possui massa e número. Com Kant, a coisa-em-si já se despiu de todas essas últimas qualidades, porque elas só são possíveis por intermédio do tempo, espaço e da causalidade, e este trio emana do intelecto (cérebro), assim como as cores, os tons, os aromas, etc., se originam dos nervos dos órgãos dos sentidos.”

Em geral, este é o ponto em que a filosofia de Kant conduz à minha, ou em que esta brota daquela como um galho do tronco. Os leitores se convencerão disso quando lerem com atenção na Crítica da razão pura p. 536 e 537 (V, 564), e depois ainda compararem com esta passagem a introdução à Crítica da faculdade de juízo, p. XVIII e XIX da 3ªed., ou p. 13 da edição Rosenkranz, em que é até mesmo dito: ‘O conceito de liberdade pode tornar representável uma coisa-em-si (que é de fato a vontade) em seu objeto (Objekt), mas não na intuição; ao contrário, o conceito de natureza pode tornar de fato representável seu objeto (Gegenstand) na intuição, mas não como coisa-em-si.’Resumo: o sentido da vida não está dado! Por isso existe o mundo: para o Ser ser!

Queremos conhecer a significação dessas representações. Perguntamos se este mundo não é nada além de representação, caso em que teria de desfilar diante de nós como um sonho inessencial ou um fantasma vaporoso, sem merecer nossa atenção.” Será a conclusão nas últimas linhas do primeiro tomo, mesmo que inadvertida. Em resumo, este momento é o pulo do gato ainda-kantiano-demais da filosofia schopenhaueriana…

Já na audição se dá algo completamente diferente. Tons podem provocar dores imediatamente e, sem referência à harmonia ou à melodia, podem ser também de imediato sensualmente agradáveis. O tato, enquanto uno com o sentimento do corpo inteiro, está ainda mais submetido a esse influxo imediato sobre a vontade, embora também haja tato destituído de dor ou agrado. O odor, entretanto, é sempre agradável ou desagradável; o paladar ainda mais. Portanto, estes 2 últimos sentidos são os mais intimamente ligados à vontade. Eis por que sempre foram chamados de sentidos menos nobres e, por Kant, de sentidos subjetivos.”

O excelente livro de Thomas Reid,¹ Inquiry into the Human Mind on the Principles of Common Sense [o livro não tem tradução ao português, mas se uma houvesse, seria Investigação da mente humana segundo os princípios do senso comum; em breve, tradução completa minha no Seclusão], serve de prova negativa das verdades kantianas, e nos convence piamente da inadequação dos sentidos para produzirem a percepção objetiva das coisas, e nos convence também da origem não-empírica da percepção do espaço e do tempo. (…) O livro de Thomas Reid é, enfim, muito instrutivo e digno de nosso tempo – dez vezes mais digno do que a soma de toda a filosofia que vem sendo escrita desde Kant.”

¹ 1710-1796, adversário de David Hume.

O intelecto deve, primeiro de tudo, unir em um ponto todas as impressões, ao tempo em que gera suas implicações de acordo com suas respectivas funções, seja se resumindo a meras percepções ou atingindo concepções, um ponto que será, por assim dizer, o foco de todas as suas ramificações, tudo a fim de que a unidade da consciência se apresente como idêntica ao eu volitivo, cuja mera função do conhecimento ela é. Esse ponto de convergência da consciência, ou o eu teórico, é simplesmente a unidade sintética da apercepção kantiana, a partir da qual todas as idéias se estendem, como num colar de contas ou ramo de árvore, e com base no que o <eu penso>, como o fio condutor de tudo que é derivado, <deve ser capaz de acompanhar todas as idéias que formulamos>.”

1.1 COISA-EM-SI = VONTADE

a palavra do enigma é dada ao sujeito do conhecimento que aparece como indivíduo. Tal palavra se chama VONTADE.” “Isso que se furta a toda fundamentação, contudo, é justamente a coisa-em-si, aquilo que essencialmente não é representação, não é objeto do conhecimento e só se torna cognoscível quando entra naquela forma.”

a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade. – Decisões da vontade referentes ao futuro são simples ponderações da razão sobre o que se vai querer um dia (…) apenas a execução estampa a decisão, que até então não passa de propósito cambiável, existente apenas in abstracto na razão. Só na reflexão o querer e o agir se diferenciam; na efetividade são uma única e mesma coisa.” “No entanto, é totalmente incorreto denominar a dor e o prazer representações, o que de modo algum são, mas afecções imediatas da vontade em seu fenômeno, o corpo, vale dizer, um querer ou não-querer impositivo e instantâneo sofrido por ele.” Grande erro de Schopenhauer: frase responsável pela hedionda vitória da psicanálise (fracasso da humanidade) no século XX.

Fenômeno se chama representação, e nada mais.” Este “…e nada mais”, até este e nada mais!, Freud copiou de Sch., em seu Projeto para uma Psicologia [Pseudo]científica (1895). Também no Seclusão: https://seclusao.art.blog/2021/02/27/escritos-precoces-de-freud-incluindo-o-projeto/.

COISA-EM-SI, entretanto, é apenas a VONTADE. (…) Aparece em cada força da natureza que faz efeito cegamente, na ação ponderada do ser humano: se ambas diferem, isso concerne tão-somente ao grau da aparição, não à essência do que aparece.” Erro fundamental reparado por Nietzsche.

Também me compreenderá mal quem pensar que é indiferente se indico a essência em si de cada fenômeno por vontade ou qualquer outra palavra. Este seria o caso se a coisa-em-si fosse algo cuja existência pudéssemos simplesmente DEDUZIR e, assim, conhecê-la apenas mediatamente, in abstracto. Então se poderia denominá-la como bem se quisesse. O nome seria um mero sinal de uma grandeza desconhecida. (…) Até os dias atuais subsumiu-se o conceito de VONTADE sob o conceito de FORÇA.” “renunciamos ao único conhecimento imediato que temos da essência íntima do mundo: fazemos tal conhecimento se dissipar num conceito abstraído do fenômeno, com o qual nunca poderemos ir além deste último.Ao mesmo tempo que sentimos a segurança e verdade por trás destas palavras, ou nestas palavras, sentimos também a hesitação, dúvida e autocontradição do sistema schopenhaueriano (mas somente quem já chegou ao final do livro quarto e voltou a comparar algumas afirmações clássicas do autor pode reparar nesta segunda parte).

SÍNTESE IMPECÁVEL DA OBRA: “A totalidade do processo é o auto-conhecimento da Vontade; começa nisso e retorna a isso, e constitui o que Kant chamara de fenômeno em oposição à coisa-em-si.” “Assim sendo, a totalidade é, em última instância, a Vontade, que de e por si mesma se converte em representação, e é essa unidade fenomenal que chamamos com letra maiúscula de a Representação.”

Kant assumira afoitamente que, aparte o conhecimento objetivo, quer seja, aparte o mundo como representação, nada nos é dado salvo a consciência, a partir da qual ele elaborou aquele mínimo que ainda lhe restava de propriamente metafísico, i.e., sua teologia moral, à qual ele atribuiu, não obstante, e de forma conseqüente, por um lado, validade exclusivamente prática, e absolutamente nenhuma validade teórica para existir. Ele pecou ao não ver que (…) nossa própria natureza fenomênica deve também estar enquadrada no mundo da coisa-em-si, isto é, na raiz das representações, a Vontade [que é imoral].”

A polêmica de Lucrécio (IV, pp. 824-58) contra a teleologia é tão crua e desajeitada que refuta a si mesma e nos convence do oposto. Agora quanto à de Bacon (De augm. scient., III, 4), ele não faz, em 1º lugar, distinção no tocante ao uso de causas finais entre naturezas organizadas e não-organizadas (o que seria o ponto focal); em seus exemplos de causas finais, mistura a ambas. A partir daí, Bacon bane as causas finais da física e da metafísica, de uma só vez; mas esta última é, de acordo consigo, o que é a metafísica para muitos ainda hoje, idêntica à teologia especulativa. (…) Por fim, Spinoza (Ética, I, proposição 36, apêndice) torna bastante claro que ele identifica a teleologia com a físico-teologia – contra a qual se expressa com amargura – de tal maneira que chega a enunciar Natura nihil frustra agere: hoc est, quod in usum hominum non sit [A natureza não age em vão, i.e., nunca faz nada que não seja de proveito para o homem], bem como que Deus fez tudo para dirigir o homem,¹ etc.” “Seu propósito era meramente bloquear a passagem ao teísmo; e, confessemos, ele reconheceu de maneira acertada que a prova físico-teológica² é o maior adversário do teísmo. Mas estava reservado a Kant o encargo de refutar esta prova, e a mim o de fornecer a correta exposição da filosofia kantiana, de modo que satisfiz à velha máxima: Est enim verum index sui et falsi [Há uma medida verdadeira do que é verdadeiro e do que é falso], ou seja, há um critério avaliador das aparências, que supera o ceticismo.”

¹ E que, portanto, existindo o homem, deus se retira de todo do mundo e não é mais necessário.

² Aquilo que os escolásticos tanto buscaram e desenvolveram até seus últimos limites. Mais detalhes em uma das notas de rodapé das próximas aspas.

Com efeito, toda mente sã e funcional deve, considerando a natureza organizada, no mínimo chegar à teleologia spinozista, a não ser que esta mente seja deturpada por opiniões preconcebidas, ou físico-teológicas¹ ou antropo-teleológicas,² as primeiras absorvidas por Spinoza em seu argumento teleológico panteísta, as segundas condenadas, pela mesma razão, no spinozismo.”

¹ Neste trecho se torna ainda mais claro o que Sch. entende por físico-teologia, i.e., uma física com primado do último termo, da teologia: um saber das causas finais aplicado aos mandamentos da religião, como se assim se pudesse extrair os desígnios morais últimos de qualquer credo, monoteísta ou politeísta.

² A antropo-teleologia é a ciência dos fins aplicada ao homem, considerando-o “emancipado” da natureza. Em Spinoza, dizer que a natureza tem seus fins últimos é o mesmo que dizer: o Deus que criou as religiões e o homem tem seus fins últimos; com efeito, ele é a própria natureza. Chega-se a uma espécie de determinismo ou finalismo ateu absoluto. Já em Hegel encontramos a contraposição a Spinoza, porém de uma forma simetricamente deficiente: em vez de considerar que não há finalidades últimas, nossos destinos estando em aberto, por termos “dominado a natureza”, respondemos, segundo o hegelianismo, à História, que é a forma de manifestação da Razão ou do Espírito, da Essência Absoluta. Ou seja, a História é o desenrolar das causas finais de acordo com os próprios parâmetros do Espírito em sua jornada temporal de auto-reconhecimento. Mas sabemos o quanto Hegel é desprezado por Sch. (vide 2., em instantes). Mais valeria dizer: o homem não tem um sentido a cumprir na História; se ele é joguete ou escravo de alguma coisa, se há algo a que sua liberdade empírica e ética responde, este algo se chama Vontade e faz parte de nós e de nossos corpos, por mais que dela não possamos conhecer em sua totalidade, ao contrário da ciência hegeliana que dá todos os instrumentos para concluir sobre as causas últimas do Espírito na Fenomenologia do Espírito, Ciência da Lógica e Enciclopédia Filosófica. Resumindo em 2 frases a tese (anti-)teleológica schopenhaueriana: Temos olhos para ver, ouvidos para escutar, dentes para triturar a comida… Não temos um projeto de humanidade realizável através de um Estado-nação nem pretendemos encontrar a (re)conciliação com o Deus cristão neste, o único mundo.

Toda observação do mundo com o fito de explicar qual é a tarefa do filósofo confirma e comprova que vontade de vida, longe de ser uma invenção arbitrária ou uma expressão vazia, é a única expressão genuína acerca da natureza mais íntima do mundo.”

2. O PRIMEIRO GRANDE FILÓSOFO NÃO-SOCIALISTA A DENUNCIAR E REFUTAR O IDEALISMO HEGELIANO: COMO DESCONTAMINAR-SE DE HEGEL, O CHARLATÃO

Com exceção de Feuerbach, Marx e Engels (falamos apenas de figuras proeminentes de livros-textos de filosofia), Arthur Schopenhauer foi o primeiro a compreender a fragilidade do sistema hegeliano, contrapô-lo como um todo e descrever de forma límpida e facilmente compreensível os erros e absurdos do Hegelianismo. É, portanto, o primeiro filósofo fora do movimento dos jovens hegelianos de esquerda e socialistas que romperiam posteriormente com seu mentor ideológico, chegando ou não a uma teoria completa pós-hegeliana (Feuerbach ficou no meio do caminho, paralisado criativamente após a crítica a Hegel; Marx & Engels fundaram o materialismo histórico). Schopenhauer é o primeiro filósofo independente de correntes sócio-políticas amplas a ser um Anti-Hegel de envergadura.

A filosofia [hegeliana] da identidade, nascida em nosso tempo e de todos conhecida, poderia não ser compreendida sob a citada oposição, [sujeito e objeto] na medida em que não torna o sujeito nem o objeto o ponto de partida propriamente dito, mas um terceiro, o absoluto cognoscível por intuição-racional, que não é sujeito nem objeto, mas o indiferenciado. Embora a ausência completa de qualquer intuição-racional me impeça de falar da mencionada indiferenciação e do absoluto, todavia, na medida em que tenho acesso a todos os protocolos dos contempladores-racionais, [o deboche!…] também abertos a nós profanos, tenho de observar que a dita filosofia não pode ser excluída da oposição anteriormente estabelecida entre os 2 erros, já que, apesar da identidade entre sujeito e objeto (não-pensável, e intuível apenas intelectualmente, ou experienciada por imersão nela), a referida filosofia une em si os 2 erros quando os decompõe em 2 disciplinas, a citar: o idealismo transcendental, que é a doutrina-do-eu de Fichte e, por conseqüência, em conformidade com o princípio de razão, faz o objeto ser produzido ou tecido fio a fio a partir do sujeito; e a filosofia da natureza, que, semelhantemente, faz o sujeito surgir aos poucos a partir do objeto mediante o uso de um método denominado construção, que me é pouco claro, mas o suficiente para bem notar que se trata de um progresso conforme o princípio de razão em várias figuras. Renuncio à profunda sabedoria contida nesta construção.HAHAHA!

pobreza espiritual, confusão, perversidade vão vestir-se a si mesmas com os termos mais rebuscados, as expressões mais obscuras, para assim, em frases difíceis e pomposas, mascararem pensamentos miúdos, triviais, insossos, cotidianos”

CRÍTICA DO IDEALISMO ALEMÃO, MAIS CONHECIDO COMO HISTORICISMO: “Semelhante FORMA HISTÓRICA DE FILOSOFAR fornece na maioria das vezes uma cosmogonia, a qual admite muitas variedades, ou então um sistema da emanação, doutrina da queda; ou ainda, por parte da dúvida desesperadora advinda dessas tentativas estéreis, é-se levado a um último caminho, oferecendo-se uma doutrina do constante vir-a-ser, brotar, nascer, vir a lume a partir da escuridão, do fundamento obscuro, do fundamento originário, do fundamento infundado e outros semelhantes disparates.” “toda uma eternidade (…) já transcorreu até o momento presente, pelo que tudo o que pode e deve vir-a-ser já teve de vir a ser. Todas essas filosofias históricas, não importa seus ares, fazem de conta que Kant nunca existiu e tomam O TEMPO por uma determinação da coisa-em-si

O autêntico modo de consideração filosófico do mundo, ou seja, aquele que nos ensina a conhecer a sua essência íntima e, dessa maneira, nos conduz para além do fenômeno, é exatamente aquele que não pergunta ‘de onde’, ‘para onde’, ‘por quê’, mas sempre em toda parte pergunta apenas pelo QUÊ do mundo” Antes não seria pelo ‘que’ (conjunção conectiva)?

OS LIMITES DA FILOSOFIA CONTINENTAL (Ponto de concordância com H.): “Repetir abstratamente toda natureza íntima do mundo de maneira distinta e universal, por conceitos, e assim depositá-la como imagem refletida nos conceitos permanentes, sempre disponíveis, da razão, isso, e nada mais, é filosofia.” Trecho mal-redigido ou traduzido?! Seria como escrever: “Repetir conceitual, distinta e universalmente toda natureza íntima do mundo, e assim depositá-la como imagem¹ da razão: apenas isso é filosofia.”

¹ Pois toda reflexão é abstrata, conceitual – ou seja: o autor repete 4x a mesma terminologia inútil. Além disso, o próprio “razão” já é quase uma quinta referência ao mesmo arcabouço de idéias (conceitos!), em menos de 3 linhas completas! Um pot-pourri de pleonasmos… Mas o pior é que acho que nenhum filósofo negaria sua afirmação, que foi feita para ser polêmica

A despeito de tudo que possa ser dito, nada é tão persistentemente e tão reiteradamente incompreendido como o Idealismo, porque ele é interpretado como significando que se nega a realidade empírica do mundo exterior.” Memento: o idealismo hegeliano é somente uma forma de idealismo.

Gradativamente essas amplas e desnecessárias concepções passam a ser usadas quase que como símbolos algébricos, e são manipuladas a torto e a direito como estes últimos na matemática; assim, a filosofia fica reduzida a um mero processo combinatório, um tipo de ajuste de contas que (como todo cálculo) nada emprega nem demanda senão as faculdades inferiores. Disso finalmente resulta um mero malabarismo de palavras, do qual o exemplo mais chocante nos é apresentado pelo acéfalo Hegelianismo, em que dito malabarismo é levado ao extremo do puro nonsense.”

O nobre escolástico Pico de Mirandula já havia percebido que a razão é a faculdade das idéias abstratas, e o entendimento a faculdade das idéias da percepção, como se vê pelo seu livro De Imaginatione, cap. 11 (…) Spinoza também caracteriza a razão de modo sumamente correto como a faculdade de elaborar concepções gerais (Ética, 2, proposição 40, escólio 2). Essas filigranas nem precisariam ser citadas se não fossem as artimanhas lançadas nos últimos 50 anos pela totalidade dos filosofastros da Alemanha para descrever o conceito de razão.”

Pode-se verificar o quanto a escolha das palavras em filosofia é importante diante do fato de que aquela expressão inepta – a Idéia –, e todos os mal-entendidos dela decorrentes, tornaram-se o solo e fundação de toda a pseudofilosofia hegeliana, que ocupou os alemães por 25 longos anos.”

ressalto, de passagem, que meu antípoda direto entre os filósofos é Anaxágoras [o queridinho de Hegel entre os pré-socráticos]. Ele assume arbitrariamente como aquilo que é primigênio e originário, aquilo de que tudo o mais procede, o nous, uma inteligência, um sujeito de representações, e é considerado o primeiro a promulgar tal visão racionalista.” “de acordo comigo, os pensamentos, pelo contrário, são a última aparição.” “Toda essa teologia física (ou física teológica) é uma insistência e persistência no erro, o exato oposto da verdade expressa no início deste capítulo. O erro que consiste em afirmar que a forma mais perfeita da origem das coisas é unicamente aquela pensada, racionalizada por um intelecto. § Desde o tempo de Sócrates até o tempo vigente nós vemos que a principal questão das disputas intermináveis dos filósofos foi e é o ens rationis, a alma.”

o velho dogmatismo construiu uma ontologia quando só tinha material para uma dianoiologia [ciência das faculdades intelectuais ou do pensamento – em outras palavras, seu cume é a filosofia hegeliana].”

Os hegelianos, fanáticos que vêem a filosofia da história como o fim último de toda filosofia, fariam melhor em ler Platão, que infatigavelmente repete que objeto da filosofia é aquilo que é inalterável e que sempre permanece, e não aquilo que agora é assim, depois assado.”

Todos os filósofos cometeram o mesmo erro: eles situam o elemento eterno, metafísico e indestrutível do homem invairavelmente no intelecto.”

A contradição é que do ponto de vista do conhecimento ou intelecto (ou ainda da representação, ou ainda: dos fenômenos) os filósofos sempre tentaram provar com persuasivas razões que a morte não é um mal; e não obstante o medo da morte permanece inevitável para todos, porque está enraizado não no conhecimento, mas na vontade.”

GROSSO MODO, ASSIM SCH. RESUME A PROBLEMÁTICA HISTÓRICO-FILOSÓFICA:

politeísmo (onde se subscreve a moral socrática) monoteísmo (infantilização/regressão) panteísmo (antítese completa do estágio anterior, e por isso, no extremo da amoralidade ou imoralidade, tão daninha quanto a hipermoralidade beata) recuperação com Spinoza (resgate parcial da discussão ética SECULAR do indivíduo) + menção honrosa para o ceticismo ou exposição ético-negativa de Hume e Voltaire. Filisteísmo (interpretação ainda mais espúria e materialista da ‘fraca’ Ética spinozista) Hegel (uma queda abrupta, posto que fetichizando a Santíssima Trindade, como seria fácil de imaginar) (Sabidamente, Schopenhauer diz que não só ele mesmo ainda não podia ser compreendido, como nem mesmo Kant o tinha sido em sua época.) Discípulos de Hegel (o fundo do poço, relativização de todos os valores e a neura do Estado-nação como ‘indivíduo’, como se se pudesse falar de ética nessa esfera da pura aparência). |Schopenhauer| (síntese final).

Quem quer que tenha compreendido minha filosofia da ascese não mais encarará como além de todas as medidas da extravagância que faquires se sentem e, contemplando a ponta de seus narizes, busquem banir todo pensamento e percepção; e que em muitas passagens dos Upanishads encontrem-se prescrições para o indivíduo mergulhar silenciosamente em si mesmo pronunciando o misterioso mantra Om, até acessar o imo do ser, onde sujeito e objeto e conhecimento desaparecem.” Parágrafo feito de encomenda para polemizar com Hegel. Ver também 3.2.

3. CRÍTICA DA RELIGIÃO: A ESCOLÁSTICA DUROU ATÉ KANT, MAS FOI CONTINUADA PELO HEGELIANISMO: A verdadeira filosofia deve compreender que nunca estará dissociada das religiões e se situar honestamente no campo

3.1 CRISTIANISMO, FIGURA AMBIVALENTE PARA SCHOPENHAUER

aquela doutrina considera cada indivíduo de um lado como idêntico a Adão, o representante da afirmação da vida e, nesse sentido, entregue ao pecado (original),¹ ao sofrimento e à morte; de outro, o conhecimento da Idéia mostra cada indivíduo como idêntico ao redentor,² ao representante da negação da Vontade de vida e, nesse sentido, partícipe de seu auto-sacrifício, redimido por seu mérito, salvo das amarras do pecado e da morte, i.e., do mundo. (Romanos 5:12-21³)”

¹ Não diria isso: aquele constringido pelo pecado original nega esta vida (efeito involuntário da fé cristã).

² Este, também, é claro, nega esta vida (cristão idôneo que verdadeiramente entendeu sua fé). No fim de contas, nenhum dos dois é capaz de afirmar a vida, a não ser no além, o que é o mesmo que negar absolutamente a vida (o fenômeno, mas também a Vontade subjacente).

³ A propósito, um dos trechos mais mal-escritos da Bíblia inteira!

o sublime fundador do cristianismo teve necessariamente de adaptar-se em parte consciente, em parte inconscientemente, ao judaísmo, de modo que o cristianismo é composto de 2 elementos bastante heterogêneos, dentre os quais prefiro o puramente ético, nomeando-o exclusivamente cristão, para distingui-lo do dogmatismo judeu com o qual é confundido. Se – como amiúde se temeu, em especial nos dias atuais – essa religião excelente e salutar entrar definitivamente no ocaso, eu procuraria a razão disso apenas no fato de ela consistir não de um elemento simples, mas de 2 elementos originariamente heterogêneos postos em combinação pelo curso mundano dos eventos. Ora, daí só poderia resultar a dissolução, devido à degeneração provocada por parentesco desigual e pela reação ao espírito avançado do tempo. (…) o lado puramente ético (…) é indestrutível.”

Recorri aqui aos dogmas da religião cristã (eles mesmos estranhos à filosofia) tão-somente para mostrar que a ética oriunda de toda a nossa consideração – a 1ª sendo no todo coerente e concordante com as partes da 2ª –, embora nova e surpreendente em sua expressão, de modo algum o é em sua essência; ao contrário, concorda totalmente com todos os dogmas propriamente cristãos, e no essencial já se achava nestes.” E é o terrível aspecto derivado disso que torna suas conclusões completamente equivocados, Schopenhauer! – diria Nietzsche!

ensinar que alguém que veio recentemente do nada, e conseqüentemente por toda uma eternidade foi um nada, e que esse alguém, no entanto, será imperecível é o mesmo que ensinar a alguém que, embora ele seja produto do trabalho de um pai e uma mãe, num devido tempo e local, assim mesmo ele terá de se responsabilizar por suas ações por toda a eternidade.”

o tempo em que eu não mais serei chegará objetivamente; mas subjetivamente nunca pode chegar. Deve ser perguntado, então, a que ponto cada qual, em seu coração, estende sua crença numa coisa que é absolutamente inconcebível” “Nisso o Antigo Testamento é perfeitamente consistente; porque nenhuma doutrina da imortalidade é cabível partindo-se duma criação do nada. O cristianismo do Novo Testamento possui tal doutrina por ser hindu em espírito, muito provavelmente também indiano de origem, muito embora apenas indiretamente, através do Egito. Mas com o talo judeu, sobre o qual essa sabedoria indiana teve de ser enxertada na Terra Sagrada, esta doutrina é tão pouco compatível como é o livre-arbítrio com seu determinismo”

Eu admiro as origens orientais do cristianismo, mas não sua própria roupagem.”

Embora o cristianismo, em todas as partes essenciais, tenha pregado somente o que a Ásia sempre soube muito antes, e de forma até melhor, reconheço que para a Europa ele foi uma coisa nova e uma grande revelação, elevando em muito a tendência espiritual das bárbaras nações européias.”

3.1.1 CRISTIANISMO PRIMITIVO, NOVO TESTAMENTO & DOGMAS

não é mais necessária liberdade alguma no operari, [agir] pois ela se encontra no esse, [essência] e justamente aqui reside também o pecado, enquanto pecado original. (…) rejeita-se o que é genuinamente cristão e retorna-se ao judaísmo. (…) todo dogma arruína a teologia, bem como qualquer ciência. De fato, se se estuda a teologia de Agostinho nos livros De civitate Dei (especialmente no 14º livro), experienciamos algo análogo ao caso em que tentamos manter em pé um corpo cujo centro gravitacional está fora dele: não importa como se o gire ou se o mude de lugar, sempre cairá novamente.” Schopenhauer ofereceu as armas para a própria tréplica “neo-pelaginiana”, pelo visto… Porém, comentando o trecho em vermelho, o dogma é o sine qua non da teologia ou crença, enquanto que ele define um campo científico, mas não seu teor, dentro de amplos limites (ex: o dogma da Física são algumas leis fundamentais, mas tudo o que se inscrever nelas e for debatível entre os físicos não será dogmático – o dia em que os dogmas da Física qua Física forem insustentáveis, acabará esta disciplina).

Onde é que já houve verdadeira liberdade no pensar? Já foi muito gabada e alardeada, mas sempre que essa liberdade quer se exceder um milímetro além das convenções dos mais precários dogmas da religião de um país, um sagrado estremecimento parece se apoderar dos tão tolerantes profetas, e eles acabam por dizer: <Nenhum passo adiante!>. Que progresso da metafísica seria possível sob tamanha opressão?” “em metafísica os antigos ainda são nossos professores.” “Considere-se a que pico de arrogância o sacerdócio de qualquer religião não chegaria se a crença em suas doutrinas fosse tão firme e cega quanto eles realmente desejam. Dê-se uma olhada também nas guerras do passado, nos distúrbios, rebeliões e revoluções da Europa do oitavo ao décimo oitavo século; quão poucas não encontraremos que não possuíam como sua essência ou pretexto alguma controvérsia sobre credos, i.e., um problema metafísico, que se tornara ocasião de suscitar nações contra nações. (…) Eu gostaria de ter uma lista autêntica de todos os crimes que a cristandade realmente evitara, e de todas as boas ações que ela realmente praticou, para assim poder colocar ambas como contrapeso, no outro lado da balança.” “A filosofia não passa essencialmente de sabedoria mundana: seu problema é o mundo. A ela concerne isso e somente isso, deixando os deuses em paz – mas ela espera, em troca, ser também deixada em paz pelos deuses.”

a conexão entre o Novo e o Velho Testamento é no fundo apenas externa, acidental e forçada. A única conexão visível entre o cristianismo e o judaísmo está na estória da Queda, que, de toda forma, encontra-se isolada dentro da estrutura do próprio Velho Testamento; diria até que esquecida pelos últimos profetas, pois desse mito fundador não se deriva nenhum dogma após os primeiros livros. De acordo com as próprias palavras das Escrituras, referendando meu entendimento, só os adeptos mais ortodoxos do Velho Testamento é que insistem na questão da crucificação de Cristo, porque consideram seus ensinamentos em conflito com os dos judeus.”

É interessante ver como Clemente mistura o Novo e o Velho Testamento, tentando estabelecer uma coesão entre ambos; mas, no afã de realizar seus esforços, só o que ele conseguiu, em grande parte, foi preterir o Novo Testamento em prol dos dogmas do Antigo. No começo do terceiro capítulo de sua obra ele objeta ao marcianismo que eles derivem para o paganismo de Platão e Pitágoras ao considerar a criação uma falha ou erro. Marcião, com efeito, ensina que a natureza é má, feita de um material imperfeito, ou seja, invariavelmente má desde a raiz. Para Marcião, não se deve povoar este mundo, mas se abster do casamento.” Schopenhauer, famoso anti-natalista, teve, obviamente, muitos precursores, cristãos ou não.

3.1.2 O PODER SECULAR DO CATOLICISMO

entre os povos monoteístas, ateísmo, ou a falta de Deus, tornou-se sinônimo de ausência de moralidade. Aos padres tais confusões conceituais são bem-vindas e apenas em conseqüência delas pôde originar-se aquele monstro assombroso, o fanatismo, imperando não só sobre indivíduos isolados, perversos e maus além de toda medida, mas também sobre povos inteiros, e, finalmente, o que para a honra da humanidade só aconteceu uma vez em sua história, corporificando-se neste Ocidente como Inquisição, a qual, segundo as mais novas informações finalmente autênticas, somente em Madri (no resto da Espanha havia muito mais desses queimadouros religiosos) em 300 anos matou de modo torturante na fogueira 300 mil pessoas por questões de fé. Convém lembrar tudo isso a todos os fanáticos, sempre que eles queiram levantar a sua voz.”

Por que uma religião necessitaria do sufrágio de uma filosofia? Ela já tem tudo a seu lado – a revelação, a tradição, os milagres, as profecias, o governo, a aristocracia, o consentimento e a reverência da massa, mil templos onde é pregada e praticada, um séquito de vocacionados sob a alcunha de padres e, o que é ainda mais importante que todo o resto, o privilégio nunca superestimado de contar com a liberdade de imprensa para suas doutrinas e o direito de inculcar-se seus dogmas aos novos rebentos por toda parte, o que os converte praticamente em idéias inatas.” “Teria sido mutuamente benéfico se a metafísica cristã ou teologia se tivesse mantido aparte da metafísica laica. Ambas se desenvolveriam a contento em suas próprias potencialidades. Ao invés disso vemos, durante toda a era cristã, o esforço de se engendrar uma fusão de ambas, porque os conceitos e dogmas de uma são aplicados à outra, de forma que as duas se deterioraram.”

Spinoza tinha seus motivos para nomear o que sobrara de Deus em seu sistema substância; assim, se não a coisa, a palavra estava preservada. As estacas de Giordano Bruno e de Vanini estavam ainda frescas na memória; ambos também foram sacrificados por esse Deus em nome de quem um número incomparavelmente maior de homens serviu de bode expiatório no altar consagrado, altar do qual jorrou mais sangue do que os de todos os deuses pagãos dos dois hemisférios somados. Se, considerando esse histórico, Spinoza, nas entrelinhas, chama o mundo de Deus, isso não passa de um subterfúgio para escapar de sua época, e é como se fosse Rousseau, no seu Contrat social, denominando a massa, o conjunto dos homens e cidadãos, de o soberano.”

quando vejo com que cuidado essa época incrédula finaliza as igrejas góticas deixadas inacabadas na crédula Idade Média, me parece que o que desejam é embalsamar uma cristandade morta.”

3.1.3 REFORMA PROTESTANTE

[Que nossas ações são predeterminadas] é uma doutrina cristã original dos evangelhos, defendida por Agostinho, em acordo com os mestres da Igreja, contra as rasteirices dos pelagianos¹ e cuja purificação dos erros e restabelecimento foi o objetivo principal dos esforços de LUTERO, como este o declara expressamente em seu livro De servo arbitrio: a tese de que a VONTADE NÃO É LIVRE² mas está originariamente propensa ao que é mau.”

¹ Cristãos contra a doutrina do pecado original e a favor do livre-arbítrio e de certa faculdade de auto-divinização no homem. Me pergunto como tal seita sobrevive no cristianismo a ponto de ter um verbete no Wikipédia – certamente os primeiros pelagianos foram todos queimados na fogueira; mas imaginar que ainda se organizem!… Parecem mais um braço do paganismo que agride a crença cristã a partir de seu interior! Atenção para a pérola: John Rawls era um crítico do pelagianismo, uma atitude que ele manteve mesmo depois de se converter em ateu. Suas idéias anti-pelagianas influenciaram seu livro A Theory of Justice [mantive no original por não saber qual a tradução oficial – Uma Teoria de Justiça é minha tradução literal], onde ele argumenta que diferenças na produtividade entre os seres humanos são um resultado de ‘arbítrios morais’ e que, em conseqüência, níveis de renda desiguais são imerecidos.” Será uma crítica ao pelagianismo algo central num livro de Direito/Economia?!? Disso eu jamais ouvira falar! Além disso, por mais que eu seja um “justiceiro social”, essa tese é prática e barata como uma mula manca adornada de ouro!

² Não entender este trecho no sentido da Vontade de potência livre/não-livre (diferença traçável entre Sch./Nietzsche num nível metafísico, cf. 6.), mas apenas como negação do livre-arbítrio na discussão te(le)ológica sobre o determinismo (liberdade X necessidade) nas ações e nos assuntos humanos (muito em voga, na religião, na época da reforma protestante e, nas ciências humanas, no século XIX, embora, claro, seja uma discussão infindável).

a contradição entre a bondade de Deus e a miséria do mundo, e entre a liberdade da vontade e a presciência divina, é o tema inesgotável de uma controvérsia quase secular entre cartesianos, Malebranche, Leibniz, Bayle, Klarke, Arnauld (…) todos eles giram incessantemente em círculos (…) i.e., tentam resolver uma soma aritmética que nunca chega a um bom resultado (…) Apenas Bayle mostra que percebeu este problema.” Ainda não tive a felicidade de ler nada “autoral” deste “enciclopedista” avant la lettre! (O Dicionário histórico e crítico é sua obra mais famosa, contendo sinopses das vidas dos maiores pensadores e personalidades – em breve no Seclusão.)

Não se compreende Hume sem antes ler sua História da Religião Natural nem seus Diálogos sobre a Religião Natural. Ali vê-se-o no seu máximo, e ambas as obras, perfiladas com o Ensaio n. 21, ‘Dos caráteres nacionais’, são os escritos que fazem deste homem – e não conheço nenhum outro livro ou ensaio que justifique tanto sua fama – tão odiado pelo clero anglicano até os dias atuais.”

O protestantismo, desde que eliminou o ascetismo e seu ponto central, a santidade do celibato, abandonou, portanto, o que restava do núcleo mais profundo da religião cristã, de modo que chegará o tempo em que reconhecerão que o protestantismo é uma nova religião, separada do cristianismo. Em nossos dias essa tendência se tornou aparente através da lenta transformação dos dogmas protestantes em racionalismo barato, um pelagianismo moderno, que por fim degenera na doutrina do Pai amoroso, quem teria criado o mundo a fim de que as coisas se dessem sempre em felicidade e harmonia (sinal evidente de que ele falhou no processo!), quem também, caso se interprete de forma diferente e se aceitem apenas algumas palavras da Bíblia, promete um mundo futuro ainda mais belo (é uma pena que a entrada para este mundo seja tão sofrida!). Essa pode ser uma boa religião para pastores letrados, casados e bem-estabelecidos economicamente; mas isso nada tem que ver com cristianismo. Cristianismo é a doutrina da profunda culpa da raça humana condenada a viver só, e da esperança de libertação deste estado de miséria, que, porém, só pode ser obtida via os maiores sacrifícios e a negação de si mesmo, ou seja, via uma completa inversão da natureza humana. Lutero pode estar repleto de razão do ponto de vista prático, i.e., quanto aos escândalos da Igreja de seu tempo, que ele queria purificar, mas, quanto à teoria, se engana cabalmente. Quão mais sublime uma doutrina é, mais está exposta a abusos nas mãos da natureza humana, que, como um todo, é de disposição mesquinha e má: natural que o catolicismo se tornasse muito mais vilipendiado que o protestantismo. Em suma, Lutero foi demasiado longe na sua interpretação da Palavra, longe o bastante para aniquilar a nobreza da crença em questão.”

3.2 PRECURSOR ORIENTALISTA: EXALTAÇÃO DO HINDUÍSMO E DO BUDISMO

A mais sábia de todas as mitologias, a indiana, exprime isso dando ao Deus que simboliza a destruição e a morte (como Brama, o deus mais pecaminoso e menos elevado do Trimurti, simboliza a geração e o nascimento, e Vishnu a conservação), Shiva, o atributo do colar de caveiras e, ao mesmo tempo, o linga, símbolo da geração, que aparece como contrapartida da morte.” “Eis por que os sábios ancestrais do povo da Índia expressaram diretamente esse conhecimento nos Vedas, permitido somente às 3 castas regeneradas, ou nas doutrinas sapienciais esotéricas, e isso até onde o conceito e a linguagem o podem apreender e até onde era possível a suas formas de exposição pictórica e rapsódica; na religião popular, todavia, ou doutrina exotérica, isso foi comunicado apenas de maneira mítica.” “Esta [mitologia hindu] é o fim de todas as doutrinas religiosas, na medida em que são roupagens míticas completas da verdade inacessível à tosca inteligência comum.”

Nunca as nossas religiões deitaram ou irão deitar raízes na Índia; a sabedoria ancestral da raça humana não será reprimida pelos acontecimentos na Galiléia. Ao contrário, a sabedoria indiana avança sobre a Europa e produzirá uma mudança fundamental em nosso saber e pensamento.”

Propriamente falando, aquela justiça exacerbada do hindu é mais que justiça, a saber, é já efetiva renúncia, negação da Vontade de vida, ascese (…) Por outro lado, viver sem fazer nada, servindo-se das forças de outrem em meio à riqueza herdada e sem realizar coisa alguma, já pode ser visto como algo moralmente injusto, embora, segundo as leis positivas, tenha de permanecer algo justo.”

Parece-me que, assim como as línguas mais antigas são as mais perfeitas, assim também com as mais antigas religiões. Se eu tomasse os resultados da minha filosofia como o padrão da verdade, seria obrigado a conceder a preeminência ao budismo contra todo o resto.” “Até 1818, quando primeiro apareceu meu trabalho, havia muito pouca informação, excessivamente incompleta e minguada, sobre o budismo na Europa, limitada inteiramente a uns quantos ensaios nos primeiros volumes das Asiatic Researches [Pesquisas Asiáticas, série enciclopédica de várias tendências e autores, segmentada em muitos livros-compilações – mas não superestimar sua relevância contemporânea, já que se trata de pré-antropologia bastante etnocêntrica], focados no budismo dos burmese. Só a partir de então mais dados sobre essa religião nos chegaram, principalmente através dos instrutivos e profundos ensaios do meritório membro da Academia de São Petersburgo J.J. Schmidt, nos relatórios e anuários daquela academia; de pouco em pouco também estudiosos britânicos e franceses enriqueceram o material, a ponto de que eu finalmente pude fornecer uma copiosa lista dos melhores trabalhos em religião, o que fiz em Sobre a Vontade na Natureza, na portada Sinologia. Desafortunadamente Csoma Körösi,¹ húngaro perseverante, que, para estudar a língua e os escritos sagrados do budismo, permaneceu tantos anos no Tibete, e quase sempre em monastérios budistas, morreu justo quando começava a pôr no papel os resultados de suas vastas pesquisas.”

¹ Livros do autor, apesar de sua morte precoce:

Essay towards a Dictionary, Tibetan and English. Prepared, with assistance of Bandé Sangs-rgyas Phuntshogs, Calcutta: Baptist Mission Press, 1834. (parcial ou totalmente disponibilizado pelo Google Books – ainda preciso checar): https://books.google.com/books?id=a78IAAAAQAAJ&printsec=frontcover&dq=csoma&redir_esc=y#v=onepage&q=csoma&f=false;

Analysis of the Dulva, part of the Kangyur, Asiatic Researches, Calcutta, 1836, vol. 20-1, pp. 41-93;

A Grammar of the Tibetan Language in English. Prepared under the patronage of the Government and the auspices of the Asiatic Society of Bengal, Calcutta: Baptist Mission Press, 1834;

Collected works of Alexander Csoma de Körös, Budapest: Akadémiai Kiadó, 1984.

Todos conhecem apenas um ser na imediatez – sua própria vontade autoconsciente. Tudo o mais sabe-se apenas indiretamente, e é julgado em analogia com a própria vontade. Este processo o homem leva adiante na proporção do grau de seus poderes reflexivos. Mesmo estes só emanam em última instância em virtude do fato de que na realidade há apenas um ser; a ilusão do múltiplo (Maja), que provém das formas da compreensão objetiva do exterior, não poderia penetrar a consciência interior, simples e una” Alta relação com 6.

Os ditos filósofos e glorificadores da história são meros realistas, e também otimistas e eudemonistas, conseqüentemente cabeças ocas e o tipo ideal do filisteu. Por fim, são a escória do cristianismo, já que o espírito autêntico, o cerne do cristianismo, como outrossim o do bramanismo e do budismo, é o conhecimento da vaidade da felicidade terrena, o completo desprezo por ela, e o virar o rosto para as aparências, preferindo uma existência de outro tipo, digo, de um tipo oposto. (…) mesmo o budismo ateísta está muito mais relacionado ao cristianismo que o judaísmo otimista ou sua cria, o islamismo.”

os deuses hindus são conhecidos por não piscar os olhos quando aparecem em forma humana.”

Encontramos a doutrina da metempsicose, florescendo nos tempos mais nobres e antanhos da raça humana, espalhada e com efeito sendo a crença sincera da maioria da humanidade; no fundo, até de todas as religiões, com exceção do credo judeu e dos 2 que dele descenderam. Na forma mais sutil de todas, entretanto, esta verdade está exposta na doutrina esotérica do budismo. Enquanto os cristãos se consolam com a idéia de se reencontrarem no outro mundo, no qual o indivíduo recuperaria todos os seus traços de personalidade e reconheceria qualquer face familiar da Terra instantaneamente, nas outras religiões o reencontro com os outros está se dando exatamente agora, só que sem o conhecimento das partes.” O Espiritismo é a terceira e última subreligião monoteísta da decadência. Claro, na outra mão, que se o budismo “tomasse conta da terra”, no sentido nietzschiano, qualquer progresso estaria comprometido, ou ao menos hibernado…

a resignação perfeita, que é o espírito mais íntimo tanto do cristianismo quanto da sabedoria indiana, a renúncia a todo querer, a viragem, a supressão da Vontade e, com esta, da essência inteira do mundo, portanto a redenção.”

No Veda (…) diz-se que quando um homem morre, sua faculdade de ver se torna una com o sol, seu olfato com a terra, seu paladar com a água, sua audição com o ar, sua fala com o fogo, e assim por diante (Upanixade, I, p. 249-ss.); e ainda pelo fato de que, em cerimônia especial, a pessoa moribunda transfere um por um seus sentidos e faculdades inteiras ao filho, como se fosse continuar a viver nele (ibid., II, p. 82-ss.).”

3.3 POLITEÍSMO, PANTEÍSMO, GNOSTICISMO, RELIGIÕES MENORES

Consideremos, por exemplo, o Alcorão. Esse livro deplorável foi o bastante para fundar uma religião ecumênica, de proporções globais, satisfazendo as necessidades metafísicas de inúmeros milhões de homens por 1200 anos, tornando-se o fundamento de sua moral, uma que, aliás, não nutre pouco desprezo pela morte, capaz de inspirar os fiéis a guerras sangrentas e a grandes campanhas militares. O islamismo é a forma mais triste e pobre de teísmo. Decerto que muito pode ter-se perdido nas traduções; mas nunca descobri um só pensamento de valor neste credo. Esse exemplo demonstra que capacidade metafísica não anda de mãos dadas com necessidade metafísica.”

esse estranho hermafrodita ou centauro, a assim chamada filosofia da religião, que, como uma espécie de gnose, tenta interpretar as religiões estabelecidas e explicar o que é o verdadeiro sensu allegorico [sentido alegórico – das Escrituras] mediante algo que seria um verdadeiro sensu proprio [sentido próprio, verdade absoluta – em suma a fil. da rel. tenta interpretar a mensagem espiritual contida nos símbolos, recorrendo à própria mensagem, um absurdo]. Mas para isso teríamos de possuir a verdade em seu sensu proprio desde o início; e neste caso uma interpretação seria supérflua.”

Os judeus decerto foram exitosos, com o fogo e a espada, em expulsar da Europa e de parte da Ásia aquela crença consoladora primitiva da humanidade; mas resta duvidoso por quanto tempo. Quão árdua foi essa tarefa é bem-exposto nas mais antigas histórias da igreja. Maior parte dos hereges era perseguida em virtude da crença na metempsicose neste mundo mesmo; p.ex. os simonistas, os basilidianos, os valentinianos, os marcionistas, os gnósticos e os maniqueus ou maniqueístas. Os judeus mesmo caíram, em parte, nessa heresia, como Tertuliano e Justino (em seus diálogos) nos informam. No Talmud é dito que a alma de Abel migrou para o corpo de Seth, e depois para o de Moisés.”

o que no Novo Testamento nos é, por assim dizer, visivelmente envolto em véu e névoa, aparece-nos desvelado nas obras dos místicos com total clareza e distinção.”

O místico se encontra em oposição ao filósofo por ser aquele que começa pela interioridade, enquanto o filósofo começa pelo mundo exterior.” “O filósofo deve, sendo assim, guardar-se do perigo de cair na senda mística e, p.ex., seguindo intuições intelectuais ou pretensas apreensões imediatas da razão, enveredar pela vã exposição de um conhecimento positivo sobre aquilo que está perpetuamente inacessível a toda modalidade do conhecimento, ou no máximo pode ser filosoficamente obtido pela via indireta do conhecimento negativo facultado ao filósofo.” “Eis que o que se acaba de dizer explica por que meu sistema, quando atinge o ponto culminante, assume um caráter de negação. Meu sistema só pode falar daquilo que é negado, daquilo de que desistimos: o que, com isso, se ganha, o que se torna patrimônio humano, é minha obrigação moral dizer: nada [corroborando as famosas últimas palavras de seu primeiro tomo]. Tudo que se pode acrescentar, ademais, é a consolação de que esse nada é meramente relativo, não um absoluto. Porque se algo é nada, este algo representando tudo aquilo que sabemos, essa conclusão serve para nós, falando em termos gerais. Isso é nada, para o homem. Não segue necessariamente dessa premissa que de qualquer ponto de vista imaginável e em todo sentido possível o que se ganha deva ser nada, mas somente que nós estamos limitados a um conhecimento completamente negativo do que excede o fenômeno, o que justifica a asserção óbvia de que a perspectiva humana é em si mesma imperfeita, errática, insuficiente. Aqui é onde o místico procede de forma positiva, então não recaio em contradição se digo que, a partir desse ponto, só resta a experiência mística. Para aqueles que desejam esse tipo de suplemento ao conhecimento negativo que é o ponto culminante da filosofia ocidental, recomendo escritos místicos os mais ricos e belos que conheço, o Oupnekhat [este nome é o da 1ª tradução européia dos Upanishads, livros sagrados do hinduísmo]. Para além disso, prescrevo as Enéadas (ννεάδες) de Plotino, [o motivo do nome é porque cada capítulo está dividido em 9 partes] os escritos de João Escoto Erígena, certas passagens de Jakob Böhm; e em especial o maravilhoso livro da Madame de Guion, Les Torrens, e o autor Angelus Silesius. Finalmente, não poderia deixar de fora os poemas dos sufistas, [místicos islâmicos] que podem ser encontrados em latim vertidos por Tholuk, além de já existir também em alemão. Os sufistas são o mesmo para o Islã que os gnósticos representam no Ocidente. O teísmo, calculado com referência à capacidade do múltiplo, coloca a fonte da existência fora de nós, como um objeto. Todo misticismo, logo também o sufismo, de acordo com os vários graus de sua iniciação, reposiciona essa fonte gradualmente de volta em nós, como sujeitos, de forma que o adepto reconhece com espanto e deleite que ele mesmo é essa fonte. Esse procedimento, comum a todo misticismo, achamos expresso não só pelo Mestre Eckhart, o pai do misticismo teutônico, na forma de um preceito para o ascetismo perfeito, <o homem não deve procurar Deus fora de si> (edição de Pfeiffer, volume 1), mas também de forma muito ingênua pela própria ‘filha espiritual’ de Eckhart, que procurava Deus no exterior até experimentar a conversão em seu imo. Contando desta etapa de sua vida, ela escreve: <Senhor, rejubila-te comigo, eu me tornei Deus>. O misticismo dos sufistas também se expressa através de uma concórdia análoga com esse espírito, apoiado principalmente na revelação que desperta na consciência de que cada um é o cerne do mundo e a fonte de toda a existência, a quem tudo retorna.” “Correspondendo a essa diferença de concepção, o misticismo maometano apresenta um caráter muito sereno; o misticismo cristão, um melancólico e sombrio; ao passo que o hindu, posando sobre todos os demais, é como que um meio-termo destes extremos.” “A seita quietista, o ascetismo e o misticismo estão inextricavelmente entrelaçados. Todo aquele que prega um deles, ao tomar conhecimento dos ensinamentos dos outros 2 deve necessariamente aceitá-los, mesmo contra seus próprios desígnios.” “Mas a palavra seita, usada em virtude da influência da Igreja no julgamento destas minorias, não deve ser encarada a sério. O membro de uma seita adere, defende e propaga um dogma favorito assim que a ela se converte. Os místicos indianos, cristãos e muçulmanos, os quietistas e os ascéticos são, contudo, diferentes dessa caracterização, salvo na significância interior e espiritual de seus ensinamentos.”

Quem quer que tenha lido tais escritos, comparando seu estilo ao do ascetismo e do quietismo, vendo como este mesmo estilo percorre todas as obras do bramanismo e do budismo, onde se fala, a cada página, das mesmas noções gerais, admitirá, ao cabo, que toda filosofia, que deve, para ser coerente e consistente, rejeitar todo esse modo de pensar, coisa que ela só pode fazer denominando os representantes místicos de impostores ou loucos, deve com toda probabilidade ser falsa. Todos os sistemas europeus, com exceção do meu, são abarcados por esta crítica.” “Nenhuma filosofia pode deixar o tema do quietismo e do ascetismo isento de resolução. Esse tema é, em seu conteúdo, idêntico ao de todas as metafísicas e éticas já elaboradas. Eu espero e desejo que toda filosofia otimista declare-se como tal. Se, no julgamento dos contemporâneos, a coincidência paradóxica e sem precedentes encontrada entre minha filosofia e o ascetismo e o quietismo, se parece com uma enorme rocha que obstrui o caminho, eu, ao contrário, vejo nessa circunstância a prova de sua corretude e de sua verdade, e também um fundamento explicativo de por que minha filosofia é ignorada e na verdade mantida o mais escondida possível pelas universidades protestantes. Porque não somente as religiões do Oriente, mas o próprio cristinismo autêntico estão permeados deste caráter ascético fundamental que minha filosofia explica como a negação da vontade de vida. Vejo que o protestantismo vigente quer a todo custo ocultar essa verdade.” “a cabeça desses homens, infelizmente, bem como a cabeça de milhares de outros na Alemanha do tempo presente, encontra-se distorcida e corrompida pelo hegelianismo miserável, essa escola de tédio, esse centro da incompreensão e ignorância, esse destruidor de mentes, sabedoria espúria, que, ao menos, e já demasiado tarde, começa a ser reconhecido por aquilo que é; logo a veneração de Hegel será relegada à Academia dinamarquesa, para quem até um grosseiro charlatão como ele é um summus philosophus [é o mestre de todos os outros filósofos]HAHAHAHAAHA! O destino de Hegel lembra um pouco o de Wagner: esculhambado por Schopenhauer/Nietzsche, vive até hoje entre nós, bastante arranhado, é verdade, mas ainda ‘recomendado’.

O maniqueísmo é de certo modo um meio-termo entre o otimismo e o pessimismo, uma ponte entre o judaísmo e o cristianismo, como o significado de seu próprio nome já aduz. No Zend-Avesta, Ormuzd, o bom deus, é antagonizado pelo pessimismo de Ahriman. E foi do maniqueísmo que o judaísmo proveio, como J.G. Rhode comprovou extensivamente em seu livro Die heilige Sage des Zendvolks [A palavra sagada dos povos Zend]. Ormuzd é o protótipo de Jeová, e Ahriman o de Satã, que, no entanto, passa a exercer um papel demasiado secundário no credo semita (…) destarte, o mito da queda é o único que permanece como elemento pessimista do Antigo Testamento, e isto ainda assim por mera derivação do maniqueísmo.”

Ocorre que Ormuzd é derivado do bramanismo, embora de uma vertente mais vulgar do bramanismo primitivo. Ele é o avatar de Indra, o deus subordinado do firmamento e da atmosfera, que é representado freqüentemente em rivalidade com os homens. Esta identidade foi muito claramente estabelecida por J.J. Schmidt em seu livro sobre a relação das doutrinas gnóstico-teosóficas com as religiões do Oriente. Indra-Ormuzd-Jeová viria a assumir a figura da divindade cristã, porque essa última religião nasceu na Judéia. No entanto, devido ao caráter cosmopolita do Cristianismo, seu nome foi esquecido e passou-se a denotá-lo pela palavra de cada língua para seres supra-humanos, i.e., TEOS, Deus, que vem do sânscrito Deva (a origem mútua de deus e demônio), ou ainda, entre os gótico-germânicos, God, Gott, que vém de Odin Wodan, Guodan, Godan. Da mesma forma foi que o Islã batizou seu deus de Allah, que também era um nome de divindade na antiga Arábia.” “Na China, a 1ª dificuldade dos missionários proveio do fato de que em Mandarim não há apelação do tipo, nem mesmo palavra que equivalha a ‘criação’; as 3 principais religiões chinesas desconhecem deuses, no plural ou no singular.”

A singular seita dos shakers dos Estados Unidos [desconheço o termo em português para se referir a eles], fundada por uma britânica, Anne Lee, em 1774, possui cerca de 6 mil praticantes, divididos em 15 comunidades. Eles povoam diversos vilarejos dos estados de Nova York e Kentucky, sobretudo no distrito de New Lebanon, perto da cidade de Nassau. A característica fundamental desta vertente cristã é o celibato absoluto e a completa abstenção de qualquer prazer sexual. É unanimemente admito, mesmo pelos ingleses e americanos que os visitam, que deles troçam em qualquer outro respeito, que essa regra é estrita e perfeitamente observada, apesar de que irmãos e irmãs [no sentido lato, i.e., homens e mulheres] ocupem comumemnte as mesmas casas, comam na mesma mesa, até dancem juntos nas cerimônias religiosas da igreja. Quem se abstém honestamente levando adiante o maior autosacrifício instintual pode e deve dançar diante do Senhor, é a idéia central da seita.” O problema de uma seita rara em que ninguém se reproduz (ninguém faz sexo!) é que ela está destinada do começo à mais lenta e morosa das extinções. Veja o Wikipedia dos shakers (link acima para artigo completo), com números um pouco diferentes dos apresentados por Sch. para o séc. XIX (mais comunidades, mas menos membros). “Em 2019, só um vilarejo shaker resta: Sabbathday Lake Shaker Village [a Cidade Shaker do Lago de Sábado], no Maine. Conseqüentemente, muitos dos acampamentos e vilas Shakers antigos, hoje despovoados, se transformaram em museus.” (tradução do Wikipedia English)

Não há famílias e, destarte, não há propriedade privada. Todos se vestem igual, à moda quaker, com grande asseio. São industriosos e diligentes: preguiça e indolência são repudiados. Outra regra da seita é proibir qualquer barulho desnecessário, como gritos, batidas de porta, estalar de chicotes [o terror de Schopenhauer, que já escreveu longamente a respeito dessa prática na Alemanha!], batidas fortes, etc. (…) Eles têm a política de jamais pregar em busca de novos adeptos, mas testam rigorosamente aqueles que se apresentam voluntariamente ao noviciado, durante vários anos. Além disso, todos são livres para deixar a comunidade; o índice de excomunhões por mau comportamento é baixíssimo. Crianças adotadas são educadas muito de perto, mas de modo leigo, sem os dogmas mais severos da crença, e quando se tornam maiores é que podem escolher se juntar à seita. Dizem que nas controvérsias entre os ministros shakers e o clero anglicano, o último costuma levar a pior, porque os shakers argumentam solidamente com base em passagens do Novo Testamento. Mais informações sobre a seita podem ser obtidas em Run through the United States de Maxwell (1841) e em History of all Religions de Benecit (1830)”

Os antigos, embora tão mais avançados quanto a tudo o mais, continuaram crianças com respeito ao principal, e foram superados nesse quesito até mesmo pelos druidas, que ao menos ensinavam a metempsicose. Que um ou dois filósofos, como Pitágoras e Platão, pensassem diferente do resto dos gregos não muda nada.” Enigma: quem é mais burro, aquele que só entende alegorias ou aquele que só entende a mensagem direta? Ao contrário do que Schopenhauer pensa, creio que tanto a religião quanto a filosofia sejam um híbrido destas duas (para ele a filosofia é uma vocação seleta por lidar com a mensagem direta, a bíblia, p.ex., apenas conta estórias morais, etc.). Nada mais ilusório. Nesse sentido, Platão seria um superfilósofo inacessível até para os prosaicos filósofos… E o que dizer da simplicidade com que a massa abraça um culto tão ‘esotérico’? Talvez porque ele não o seja (tanto).

3.4 ÉTICA: O DILEMA DE CILA OU CARIBDE: ACEITAÇÃO DO FENÔMENO OU ASCETISMO

remanesce sempre a forma do tempo, e o ser objeto e sujeito do conhecimento em geral. Nessa sabedoria inerente a coisa-em-si despiu, em grande medida, seu véu, mas não está ainda de todo nua. Em virtude da forma que o tempo possui, sempre aderido a esta coisa-em-si, todo mundo conhece sua vontade somente em seus atos sucessivos, e nunca como um todo, em e para si: por conseguinte, ninguém conhece seu caráter a priori, senão que aprende a conhecê-lo através da experiência, e sempre de modo incompleto.”

OLAVO DE CARVALHO IN A NUTSHELL: “Nada é mais exasperante, quando debatemos contra um homem sem razões e muito menos argumentos, de modo que nós tentamos de tudo para convencê-lo de nossa perspectiva, sob a impressão de que tudo que importa no problema é seu entendimento, nada é mais exasperante, eu dizia –– que descobrir de súbito que ele não quer entender, ou antes que ele quer não-entender; que nossa única maneira de vencer o debate seria apelando para sua vontade e disposição, que se encontra fechada contra a verdade. E quando esta disposição fechada se torna pública, essa circunstância só estimula seu dono a invectivar contra os outros ainda mais, utilizando-se de barafundas deliberadas, chicanas e sofismas, a fim de se entrincheirar detrás de seu falto entendimento e de sua falta de insight, crendo-se, através desse método agressivo, refugiar em lugar seguro. Logo, enquanto assim for, esse homem não será enleado e manterá suas convicções, porque bons argumentos e provas aplicadas contra a vontade (o temperamento) são como os golpes de um fantasma desferidos contra um corpo sólido.”

Não posso estabelecer, como é sempre estabelecida, a diferença fundamental entre todas as religiões sobre a questão de se são monoteístas, politeístas, panteístas ou ateístas, mas unicamente sobre a questão de se elas são otimistas ou pessimistas, quer seja, se apresentam a existência do mundo como justificada em si mesma, e destarte a louvam e valorizam, ou se entendem a existência como mera conseqüência de nossa culpa, e destarte concluem que não deveríamos ser, pois reconhecem que a dor e a morte nada têm que ver com a ordem eterna, original e imutável de todas as coisas, como o mundo devera ser. O poder que permitiu ao cristianismo superar o judaísmo, e depois todo o paganismo greco-romano, subjaz tão-só em seu pessimismo, na confissão de que nossa condição é igualmente pecaminosa e amaldiçoada, ao passo que o judaísmo e o helenismo eram otimistas.”

maldade extraordinária (…) exemplos desse tipo são: Ricardo III, Iago em Otelo, Shylok em O mercador de Veneza, Franz Moor [Schiller], Fedra de Eurípides, Creonte em Antígona“Shakespeare nos apresenta na figura do Cardeal de Beaufort (Henrique VI Parte II) o terrível fim de um facínora que morre cheio de desespero, pois nem sofrimento nem morte podem quebrar sua vontade veemente, que ia até o extremo da crueldade.”

seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos quanto que nossas estéticas produzissem poetas, artistas plásticos e músicos.”

neste livro de ética não se devem esperar prescrições nem doutrinas do dever, muito menos o estabelecimento de um princípio moral absoluto parecido a uma receita universal para a produção de todas as virtudes. Também não falaremos de ‘DEVER INCONDICIONADO’, porque este (…) contém uma contradição, nem tampouco falaremos de uma ‘lei para a liberdade’Clara oposição a Kant.

A filosofia de Bruno não possui uma ética propriamente dita, e a ética da filosofia de Spinoza não procede absolutamente da essência de sua doutrina, mas, apesar de bela e louvável, é adicionada a ela simplesmente por meio de fracos e palpáveis sofismas.”

Meu único fim, pois, só pode ser expor a afirmação e a negação, [da vontade de vida] trazendo-as ao conhecimento distinto da faculdade racional, sem prescrever nem recomendar uma ou outra”

toda pessoa tosca, seguindo seu sentimento, defende ardorosamente a plena liberdade das ações individuais, embora os grandes pensadores de todas as épocas, inclusive os doutrinadores religiosos mais profundos, a tenham negado.”

Ponderemos pelo que decidiremos no momento da aparição das circunstâncias, que nos permitiriam atividade e decisão livres. Na maioria das vezes a ponderação racional, que vê longe, fala antes em favor de uma decisão; já a inclinação imediata, por sua vez, fala em favor de outra. Enquanto, compelidos, permanecemos passivos, o lado da razão aparentemente tende a ganhar a preponderância; entretanto, já antevemos fortemente o quanto o outro lado irá nos atrair quando a oportunidade para agir se fizer presente. Porém, até lá nos esforçaremos zelosamente, por fria meditação dos pro et contra, em alumiar o mais claramente os motivos dos 2 lados, a fim de que cada um possa com toda a sua força fazer efeitos sobre a vontade quando o momento preciso se apresentar, e, com isso, nenhum erro da parte do intelecto desvie a vontade para decidir-se de modo diferente do que faria se tudo fizesse efeito equanimemente. Semelhante desdobrar distinto dos motivos em dois lados é, no entanto, tudo o que o intelecto pode fazer em relação à escolha. A decisão propriamente dita é por ele esperada de modo tão passivo e com a mesma curiosidade tensa como se fosse a de uma vontade alheia. De seu ponto de vista, entretanto, as duas decisões têm de parecer igualmente possíveis: isso justamente é o engano da liberdade empírica da vontade. (…) O intelecto nada pode fazer senão clarear a natureza dos motivos em todos os seus aspectos, porém sem ter condições de ele mesmo determinar a vontade, pois esta lhe é completamente inacessível, sim, até mesmo, como vimos, insondável.”

como Kant ensina, e toda a minha exposição torna necessário, se a coisa-em-si reside fora do tempo e de toda forma do princípio de razão, segue-se que não apenas o indivíduo tem de agir de maneira igual em situação igual e que cada ação má tem de ser a garantia segura de inumeráveis outras que ele TEM DE levar a cabo, e não PODE deixar de fazê-lo, mas também que, como Kant ainda diz, caso apenas fossem dados, de maneira completa, o caráter empírico e os motivos, a conduta futura do homem poderia ser calculada como um eclipse do sol ou da lua. (…) A Vontade, cujo fenômeno é toda a existência e vida do homem, não pode mentir no caso particular. O que o homem quer em geral sempre quererá no particular.

A defesa de uma liberdade empírica da vontade, vale dizer, do liberi arbitrii indifferentiae, está intimamente ligada ao fato de se ter colocado a essência íntima do homem numa ALMA, a qual seria originariamente uma entidade QUE CONHECE, sim, propriamente dizendo, uma entidade abstrata QUE PENSA, e só em conseqüência disto algo QUE QUER. Considerou-se, assim, a Vontade como de natureza secundária, quando em realidade o conhecimento o é. A Vontade foi até mesmo considerada como um ato de pensamento e identificada com o juízo, especialmente por Descartes e Spinoza. De acordo com isso, todo homem teria se tornado o que é somente em conseqüência de seu CONHECIMENTO. Chegaria ao mundo como um zero moral

Seu caráter é originário, pois querer é a base de seu ser. Pelo conhecimento adicionado ele aprende no decorrer da experiência o QUÊ ele é, ou seja, chega a conhecer seu caráter. [e não mudar]

o homem é sua própria obra antes de todo conhecimento, e este é meramente adicionado para iluminá-la. Daí não poder decidir ser isto ou aquilo, nem tornar-se outrem, mas É de uma vez por todas, e sucessivamente conhece o QUÊ é. Pela citada tradição, ele QUER o que conhece; em mim ele CONHECE o que quer.” Em última instância, como será aprofundado em 6., conhecer-se a si mesmo (Sócrates) e tornar-se aquilo que se é (Nietzsche) são uma e a mesma coisa.

o dogma da predestinação (…) Romanos 9:11-24, o qual é manifestamente derivado da intelecção do homem como imutável, de tal maneira que sua vida e conduta, o seu caráter empírico, são apenas o desdobramento do caráter inteligível, são apenas o desenvolvimento de decididas e imutáveis disposições já reconhecíveis na criança.”

a conduta de um homem pode variar notavelmente sem que com isso se deva concluir sobre a mudança em seu caráter. O que o homem realmente e em geral quer, a tendência de seu ser mais íntimo e o fim que persegue em conformidade a ela, nunca pode mudar por ação exterior sobre ele, via instrução, do contrário, poderíamos recriá-lo.”

a uma juventude arrebatada, selvagem, pode seguir-se uma idade madura, ordenada e judiciosa.”

no começo somos todos inocentes, e isto apenas significa que nem nós, nem os outros, conhecemos o mal de nossa própria natureza (…) Ao fim, nos conhecemos de maneira completamente diferente do que a priori nos considerávamos, e então amiúde nos espantamos conosco mesmos.

ARREPENDIMENTO nunca se origina da Vontade ter mudado (algo impossível), mas de o conhecimento ter mudado.”

para enganar a si mesmas, as pessoas fingem precipitações aparentes, que em realidade são ações secretamente ponderadas. Porém mediante tais truques sutis não enganamos nem adulamos ninguém, senão a nós mesmos.”

O peso de consciência em relação a atos já cometidos não é arrependimento, mas dor sobre o conhecimento de nosso si mesmo

pensamentos abstratos. São estes que amiúde nos são insuportáveis, criam tormentos, em comparação com os quais o sofrimento do mundo animal é bastante pequeno.”

seria esforço vão trabalhar numa melhora do próprio caráter (…) sendo preferível submeter-se ao fatídico, entregando-se a toda inclinação, mesmo as más.”

Ao lado do caráter inteligível e do empírico, deve-se ainda mencionar um terceiro, diferente dos dois anteriores, a saber, o CARÁTER ADQUIRIDO, o qual se obtém na vida pelo comércio com o mundo e ao qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou se a censura por não o ter.” Schopenhauer só se complica tentando aperfeiçoar seu sistema e acrescentar cada vez mais coisas. Se ele tivesse feito uma obra bem menor, seria um clássico imortal da filosofia, coisa que quase já é, sem reparos a acrescentar! Não existem 2 caráteres, muito menos 3!

Ora, se a pessoa segue apenas as aspirações que são conformes ao seu caráter, sente, em certos momentos e disposições particulares, estímulo para aspirações exatamente contrárias e incompatíveis entre si: nesse sentido, se quiser seguir aquelas primeiras sem incômodo, estas últimas têm de ser completamente refreadas.” “assim como, de acordo com a doutrina do direito de Hobbes, cada um de nós tem originariamente o direito a todas as coisas, mas não o exclusivo a cada uma delas, e no entanto se pode obter o direito exclusivo a coisas individuais renunciando-se ao direito a todas as demais, enquanto os outros fazem o mesmo em relação ao que escolheram; exatamente assim também se passa na vida, quando só podemos seguir com seriedade e sucesso alguma aspiração determinada, seja por prazer, honra, riqueza, ciência, arte ou virtude, após descartarmos todas as aspirações que lhe são estranhas, renunciando a tudo o mais.”

embora (…) siga o próprio caminho guiado por seu demônio interior (…) a muitos invejará em virtude de posição e condição que, no entanto, convêm exclusivamente ao caráter deles, não ao seu, e nas quais se sentiria antes infeliz, até mesmo sem as conseguir suportar. Pois assim como o peixe só se sente bem na água, o pássaro no ar, a toupeira debaixo da terra, todo homem só se sente bem na sua atmosfera apropriada.”

muitos fazem os mais diversos e fracassados tipos de tentativa, violam o próprio caráter no particular e ainda têm de se render novamente a ele no todo: aquilo que conseguem tão penosamente contra a própria natureza não lhes dá prazer algum. O que assim aprendem permanece morto. Até mesmo do ponto de vista ético, um ato demasiado nobre para o seu caráter e nascido não de um impulso puro, imediato, mas de um concerto, de um dogma, perderá todo o mérito até mesmo aos seus olhos num posterior arrependimento egoístico.”

Assim como só pela experiência nos tornamos cônscios da inflexibilidade do caráter alheio e até então acreditávamos de modo pueril poder através de representações abstratas, pedidos e súplicas, exemplos e nobreza de caráter fazê-lo abandonar seu caminho, mudar seu modo de agir, despedir-se de seu modo de pensar, ou até mesmo ampliar suas capacidades; assim também se passa conosco.” “Conhecemos, portanto, o gênero e a medida de nossos poderes e fraquezas, economizando assim muita dor.” Guardaremo-nos de tentar aquilo que não nos permitirá ser bem-sucedidos.” “Amiúde alguém assim partilhará a alegria em sentir seus poderes e raramente experimentará a dor em ser lembrado de suas fraquezas, o que se chama humilhação” “Eis por que nada é mais salutar para nossa tranqüilidade de ânimo que a consideração do já-acontecido a partir do ponto de vista da necessidade, de onde todos os acasos aparecem como instrumentos de um destino soberano.”

A ESTAGNAÇÃO SCHOPENHAUER-CAMUS: “O desenvolvimento mais claro de tudo isso, o tema capital deste último livro, foi-nos preparado e facilitado pelas considerações entrementes expostas sobre liberdade, necessidade e caráter. Porém, tais considerações se tornarão ainda mais claras após as termos colocado novamente e dirigirmos nosso olhar para a vida mesma, cujo querer ou não-querer é a grande questão” A vida só quer.

De modo algum o tédio é um mal a ser desprezado; por fim ele pinta verdadeiro desespero no rosto.” “Também em toda parte, por meio da prudência estatal, são implementadas medidas públicas contra o tédio, como contra outras calamidades universais; porque esse mal, tanto quanto seu extremo oposto, a fome, pode impulsionar o homem aos maiores excessos: o povo precisa panem et circenses. O rígido sistema penitenciário da Filadélfia torna, pela solidão e inatividade, o mero tédio um instrumento de punição (…) Na vida civil, o tédio é representado pelo domingo, e a necessidade pelos 6 dias da semana.” “Quando desejo e satisfação se alternam em intervalos não muito curtos nem muito longos, o sofrimento ocasionado por eles é diminuído ao mais baixo grau, fazendo o decurso de vida o mais feliz possível.”

os obtusos: (…) para a maioria dos homens, as fruições intelectuais são inacessíveis. Eles são quase incapazes de alegria no puro conhecimento: estão completamente entregues ao querer.”

os jogos de carta, que, no sentido mais próprio do termo, são a expressão do lado deplorável da humanidade.” Entender como nossos jogos de azar.

Os esforços infindáveis para acabar com o sofrimento só conseguem a simples mudança da sua figura, que é originariamente carência, necessidade, preocupação com a conservação da vida. Se, o que é muito difícil, obtém-se sucesso ao reprimir a dor nesta figura, logo ela ressurge em cena, em milhares de outras formas (variando de acordo com a idade e as circunstâncias), como impulso sexual, amor apaixonado, ciúme, inveja, ódio, angústia, ambição, avareza, doença, etc. Finalmente, caso não ache a entrada em nenhuma outra figura, assume a roupagem triste, cinza do fastio e do tédio, contra os quais todos os meios são tentados. Mesmo se em última instância se consegue afugentar a estes, dificilmente isso ocorrerá sem que a dor assuma uma das figuras anteriores, e assim a dança recomeça do início, pois entre dor e tédio, daqui para acolá, é atirada a vida do homem.”

uma convicção viva produzirá um grau significativo de equanimidade estóica, e reduzirá consideravelmente a preocupação angustiada acerca do próprio bem-estar. Contudo, em realidade um tal controle tão poderoso da razão sobre o sofrimento imediatamente sentido raramente ou nunca é encontrado.”

a paradoxal mas não absurda hipótese de que em cada indivíduo a medida da dor que lhe é essencial se encontraria para sempre determinada através de sua natureza

grandes sofrimentos tornam todos os pequenos totalmente insensíveis e, ao inverso, na ausência de grandes sofrimentos até mesmo as menores contrariedades nos irritam e atormentam (…) quando uma grande infelicidade, cujo mero pensamento antes nos estremecia, de fato ocorre, nossa disposição permanece no todo inalterável após a imediata superação da primeira dor; por outro lado, logo após o aparecimento de uma felicidade longamente ansiada, não nos sentimos no todo e duradouramente muito melhores ou mais contentes do que antes.”

CONCORDE COM GRODDECK, O PAI DA PSICOSSOMÁTICA: “o motivo externo de tristeza não passa daquilo que para o corpo é um vesicatório,¹ o qual atrai para si todos os humores ruins que, do contrário, espalhar-se-iam pelo organismo. A dor encontrada em nosso ser nesse período de tempo, e portanto inevitável, seria, sem as causas exteriores determinadas do sofrimento, repartida em centenas de pontos, aparecendo na figura de centenas de outras contrariedades ou caprichos sobre coisas que agora ignoramos inteiramente”

¹ “Que faz nascer bolhas na pele” (para combater um mal maior).

tanto o júbilo quanto a dor excessivos se fundam sempre sobre um erro ou um engano: conseqüentemente, essas duas tensões excessivas da mente podem ser evitadas por intelecção.” “A ética estóica empenhava-se sobretudo por livrar a mente de todo esse engano e suas conseqüências”

E assim se passam as coisas, ao infinito, ou, o que é mais raro e pressupõe uma certa força de caráter, até que encontremos um desejo que não pode ser satisfeito nem suprimido: então, por assim dizer, temos aquilo que procurávamos, a saber, algo que a todo momento poderíamos acusar, em vez do nosso próprio ser, como a fonte dos sofrimentos, que nos divorcia de nossa sorte, porém nos reconcilia com a nossa existência, na medida em que novamente temos conhecimento de que, a ela mesma, o sofrimento é essencial e a satisfação verdadeira é impossível. A conseqüência dessa última forma de desenvolvimento é uma certa disposição melancólica, o sustento contínuo de uma única, grande dor, que faz desdenhar todos os sofrimentos ou alegrias pequenos; por conseguinte um fenômeno muito mais digno que a frenética correria por sempre novas formas de ilusão, coisa muito mais usual.”

É sempre uma exceção se um semelhante decurso de vida sofre uma interferência e, devido a um conhecer independente do serviço da vontade e direcionado à essência do mundo em geral, conduz à demanda pela contemplação estética ou à demanda pela renúncia ética.” Schopenahuer confunde: onde advém a contemplação, não é certo que deva haver renúncia ética (à ação). Nem onde há participação coletiva há necessariamente sua presença. Além disso, aquilo que é independente da Vontade, e portanto se escora exclusivamente no fenômeno, certamente se interessa pelas coisas do mundo, de forma ativa, não-contemplativa. Um estóico que descobrisse a Vontade antes de Sch. estaria além do envolvimento ou contemplação (gozo) estético, e, aí sim, sem dúvida, seria o perfeito indiferente ético. Porém essa figura é utópica.

A justiça eterna furta-se ao olhar turvado pelo conhecimento que segue o princípio de razão, o principium individuationis. (…) Vê o homem mau, após perfídias e crueldades de todo tipo, viver em alegria e deixar o mundo sem ser incomodado. Vê o oprimido arrastar-se numa vida cheia de sofrimento, até o seu fim, sem que apareça um vingador ou retaliador. Mas só conceberá e aprenderá a justiça eterna quem se elevar por sobre o conhecimento que segue o fio condutor do princípio de razão, atado às coisas particulares; assim fazendo, conhece as Idéias [a Vontade; vide 4.], vê através do principium individuationis e percebe que as formas do fenômeno não concernem à coisa-em-si. É só uma pessoa assim que, em virtude desse mesmo conhecimento, pode compreender a essência verdadeira da virtude

EXPLICITAÇÃO DA FÓRMULA DO NIILISMO NEGATIVO: “podemos, metafórica e figurativamente, chamar a total auto-supressão e negação da Vontade, sua verdadeira ausência, unicamente o que acalma e cessa o ímpeto da Vontade para todo o sempre” “podemos chamar essa total auto-supressão e negação da Vontade de bem absoluto, summum bonum, e vê-la como o único e radical meio de cura da doença [a existência mesma] contra a qual todos os outros meios são anódinos, meros paliativos.”

mediante a moral e o conhecimento abstrato em geral, nenhuma virtude autêntica pode fazer efeito, mas esta tem de brotar do conhecimento intuitivo, [temperamento, caráter] o qual reconhece no outro indivíduo a mesma essência que a própria.” “pode-se tão pouco formar um virtuoso por meio de discursos morais e sermões quanto formar um único poeta com todas as estéticas desde Aristóteles.”

Seria em realidade muito funesto se a principal coisa da vida humana, o seu valor ético, válido pela eternidade, dependesse de algo cuja obtenção está submetida tão ao acaso quanto os dogmas, as crenças religiosas, os filosofemas.”¹ “Decerto os dogmas podem ter uma forte influência sobre a CONDUTA, sobre os atos exteriores, assim como o têm o hábito e o exemplo (neste último caso porque o homem ordinário não confia em seu juízo, de cuja fraqueza está consciente, seguindo apenas a experiência própria ou de outrem); mas com isso a disposição de caráter não mudou. (…) Todo conhecimento comunicável só pode fazer efeito sobre a vontade exclusivamente como motivo. (…) o que o homem verdadeiramente e em geral quer sempre permanece o mesmo. Se adquirir outros pensamentos, foi meramente sobre as vias para alcançar esse fim; motivos imaginários podem guiá-lo como se fossem reais.”

¹ Aqui vale lembrar: Gustave Le Bon tampouco foi um pioneiro.

Eis por que quase nunca podemos julgar com acerto moral os atos de outrem e raras vezes os nossos. – Os atos e as maneiras de agir de um indivíduo e de um povo podem ser bastante modificados por dogmas, pelo exemplo e pelo hábito. Porém, em si, todos os atos (opera operata) são meras imagens vazias; só a disposição de caráter que conduz a eles fornece-lhes sentido moral. Este, por sua vez, pode em realidade ser o mesmo, apesar da diversidade exterior dos fenômenos. Com grau igual de maldade um homem pode morrer na guilhotina e outro pacificamente no regaço de seus parentes. Pode ser o mesmo grau de maldade o que se expressa em UM povo nos traços crus do assassino e do canibalismo, e em OUTRO fina e delicadamente in miniature nas intrigas da côrte.”

O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório, reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo”

O direito do homem à vida e à força dos animais baseia-se no fato de que, com o aumento da clareza de consciência, cresce em igual medida o sofrimento, e a dor, que o animal sofre através da morte e do trabalho, não é tão grande quanto aquela que o homem sofreria com a privação de carne ou de força do animal. O homem, pois, na afirmação de sua existência, pode ir até a negação da existência do animal, e a Vontade de vida no todo suporta aí menos sofrimento que no caso inverso. Isso ao mesmo tempo determina o grau de uso que se pode fazer das forças animais sem cometer injustiça, o que, entretanto, é freqüentemente desrespeitado, particularmente em relação aos animais de carga e aos cães de caça; contra o quê, portanto, a sociedade protetora dos animais em especial orienta sua atividade. Aquele direito do homem, na minha opinião, não se estende à vivissecção, sobretudo em animais superiores. Já o inseto não sofre tanto através da sua morte quanto o homem sofre com a sua picada. – Isto os hindus não o perceberam.” “Parece até mesmo que a difícil passagem da Bíblia, Romanos 8:21-24, pode ser interpretada nesse sentido.”

o estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade (…) [E seu oposto:] As promessas da esperança, as adulações do tempo presente, a doçura dos gozos, o bem-estar que fazem a nossa pessoa partícipe da penúria de um mundo sofrente sob o império do acaso e do erro atraem-nos novamente ao mundo e reforçam os nossos laços de ligação com ele.”

Sua Vontade se vira; ela não mais afirma a própria essência espelhada no fenômeno, mas a nega. (…) a transição da virtude à ASCESE.”

Quem atingiu o 2º patamar ainda sempre sente – como corpo animado pela vida, fenômeno concreto da Vontade – uma tendência natural à volição de todo tipo, porém a refreia intencionalmente, ao compelir a si mesmo a nada fazer do que em realidade gostaria de fazer: ao contrário, faz tudo o que não gostaria de fazer, mesmo se isto não tiver nenhum outro fim senão justamente o de servir à mortificação da Vontade.” Nesse ‘estágio’ “o lado doce da vida” fica eternamente trancado – porém reavivado com persistência – dentro dos sonhos.

ISSO ESTÁ PARA ALÉM DO ESTÓICO (UTÓPICO ALÉM DO UTÓPICO): “todo sofrimento exterior trazido por acaso ou maldade, cada injúria, cada ignomínia, cada dano são-lhe bem-vindos. Recebe-os alegremente como ocasião para dar a si mesmo a certeza de que não mais afirma a Vontade, mas alegremente toma partido de cada inimigo fenomênico da Vontade, inimigo esse que é a sua própria pessoa.” Talvez, portanto, quando diz “dar a outra face”, o Evangelho seja mais impraticável que o próprio estoicismo, tido tantas vezes como um Sermão da Montanha exagerado…

SUPERVALORIZAÇÃO? “sua obra-prima imortal Fausto, exposição essa ao meu ver inigualável poeticamente, na história do sofrimento de Gretchen. Esta é um perfeito modelo do segundo caminho que conduz à negação da Vontade, não, como o primeiro, pelo mero conhecimento adquirido livremente do sofrer de um mundo inteiro, mas através da dor excessiva sentida na própria pessoa.” Schopenhauer às vezes parece um garoto que tudo vê pelas lentes de sua idéia fixa. Mas todos os filósofos devem ser crianças, em grau menor ou maior!

Um caráter deveras nobre é sempre pensado por nós com um certo traço de tristeza silenciosa, que de modo algum se deve ao constante desgosto ligado às contrariedades cotidianas (este seria antes um traço ignóbil e faria temer uma disposição má de caráter mau).”

a negação da Vontade de vida, ou – é o mesmo – a resignação completa

Ora, como em conseqüência de tal efeito da graça toda a essência do homem é radicalmente mudada e revertida, de tal forma que ele nada quer do que até então veementemente queria, logo, em conseqüência do efeito da graça, RENASCIMENTO. Pois o que ela chama de HOMEM NATURAL, a quem nega toda capacidade para o bem, é justamente a Vontade de vida – que tem de ser negada, caso a redenção de uma existência como a nossa deva ser alcançada. Em realidade, por trás da nossa existência encrava-se algo outro, só acessível caso nos livremos do mundo.” Um papel lamentável de carrasco, senhor Último Homem! Essencialmente, um Platão insatisfeito… Em seguida seu “trunfo” é citar Romanos 8:3, como se ainda estivéssemos na idade média e não no século XIX!

CIRCUNSTÂNCIA X CONSTÂNCIA, CARÁTER X APARÊNCIA, ESSÊNCIA X SUPERFÍCIE, DOR E PRAZER CONTRA O INCONSCIENTE OU GÊNIO PESSOAL: “Se, por exemplo, sozinhos conosco mesmos, pensamos sobre nossas circunstâncias mais pessoais e, eventualmente, representamos vivamente e no nosso presente imediato a ameaça de um perigo verossímil e a possibilidade de um desfecho trágico após sua ocorrência, logo a ansiedade se produz, comprimindo nosso coração, diminuindo a circulação do sangue nas veias. Mas se, logo em seguida, nosso intelecto passa de uma possibilidade indesejada para seu oposto, dando asas à imaginação e livre curso a esperanças e alegrias longamente cultivadas, nosso pulso se acelera novamente, o sangue corre impetuoso e o coração se sente leve como uma pluma, pelo menos até o intelecto acordar de seu devaneio. Suponha então que uma ocasião suscite à memória insultos e agravos sofridos muito tempo atrás: de supetão, a raiva e o amargor encherão nosso peito, que há um segundo estava imerso em tranqüilidade. Imagine também que venha à tona, por acidente, a imagem de um antigo amor, agora perdido, carregando consigo toda a cadeia de pensamentos a ele atrelada: todas as nuances do romance uma vez vivido, seus momentos mais mágicos em relevo; essa raiva que havia brotado de súbito dará lugar instantaneamente a um profundo pesar e à melancolia. E, finalmente, se nos ocorre algum incidente humilhante e vexatório, afundamos e desmilingüimos de pronto. Gostaríamos de desaparecer da vista de todos, e da nossa mesma. Ruborizamos, acanhados. Nossa reação mais natural é tentar distrair o espírito emitindo alguma exclamação, como se fosse para espantar um espírito mau. Vê-se que o intelecto joga, brinca, manipula: a Vontade apenas dança conforme a música. Sim, o intelecto é o maestro dessa composição,¹ e faz a Vontade representar o papel duma criança jogada de um lado para outro em cenários de dor e prazer, de exuberância e de pavor alternados, conforme uma babá que conta uma estória bem variada, multifacetada e envolvente. Isso só é possível porque a Vontade existe por si mesma sem conhecimento, e nossa faculdade do entendimento, [o a priori kantiano] uma vez aplicada a ela, não dispõe, por si mesma, de uma <Vontade>. Assim, parece que a primeira é uma eterna marionete, a última um titereiro, único canal para a manifestação dos motivos dos movimentos do boneco.

[¹ Talvez apenas no homem fraco, vencido?]

Em que pese esse esquema desalentador, a primazia última da Vontade se torna uma certeza absoluta no juízo do analista perspicaz e insistente, isto é, do homem que conquista um certo autodomínio e procede à reversão desta Vontade: [autodomínio: subjugação do intelecto, pois ele é naturalmente incontrolável, e a Vontade é que deve sobrepujá-lo por completo, deixar de ser só a carroça!] de joguete do intelecto, a Vontade passa em última instância a exercer importantes proibições ao intelecto (à imaginação). [Mas esta disciplina schopenhaueriana parece ainda muito fraca diante do que tenho em mente quando falo da verdadeira supremacia da Vontade sobre a cognição!] Associações inteiras de idéias são em última instância bloqueadas. É um aprendizado derivado do próprio intelecto, [e por isso tão limitado] utilizável pela Vontade. O sujeito, após repetidas teatralizações e recorrências do mesmo vendaval de sentimentos, chega à conclusão de que, deixado desimpedido, o intelecto despertaria emoções nem sempre interessantes à Vontade, como as circunstâncias debilitantes descritas mais acima. Neste ponto – e só neste ponto –, ocorre uma inflexão, análoga ao do cavaleiro sobre a cavalgadura. É bem esse o vocabulário: a Vontade toma as rédeas, e dirige o intelecto a fim de evitar, doravante, certas estradas e paisagens já conhecidas e indesejadas. A princípio essa reviravolta de marionete em cavaleiro parece fantástica, mas todo aquele que já sentiu o vigor do impulso inicial da Vontade decidida em empreender essa torção sabe que a continuidade do processo ocorre mais por inércia do que por esforço continuado: o essencial é a decisão original da Vontade em virar o jogo e inverter os papéis.² A resistência nesse novo jogo de jóquei não provém do intelecto, como se poderia pensar, pois a imaginação do sujeito se conserva eternamente indiferente às emoções – a resistência vem da própria Vontade, quando não decidida o suficiente. A Vontade é sempre instável e oscilante, [não seria o intelecto? e o intelecto que deixa a Vontade assim?] e terá, ora mais ora menos, certa inclinação ou propensão a uma determinada variante de representações coerentes entre si. Jamais as inclinações da Vontade deixarão de ser ambíguas num certo grau, porque a Vontade em si mesma, impossível de ser ‘flagrada’ diretamente, se apresentará ao sujeito (a Si mesmo, à Vontade mesma, por intermédio do intelecto, que a interpreta) ora sob um aspecto em que exalta e endeusa uma idéia, ora sob um outro aspecto em que abomina e odeia esta mesma idéia – como que por capricho. O que move a Vontade é um interesse não-valorativo, i.e., tal coisa instiga, excita a Vontade – não interessa o prazer ou o desprazer desta excitação em si mesma. O conhecimento abstrato – o intelecto – do sujeito é que revelará, com o passar do tempo, que determinada representação ou idéia seguirá ‘atormentando’ o sujeito, sem meta clara nem qualquer lógica.³ Então por que um teatro tão exaustivo? Em conformidade com o aprendizado do conhecimento abstrato, a Vontade dirigirá sua propensão a evitar ao máximo a sensação do tormento, [mas deveria apenas ignorá-lo!] de modo a dirigir com mais sentido sua ‘busca’ ou ‘atuação’. É assim, mediante as próprias descobertas, que o intelecto abstrato acaba sendo compelido a colaborar mais e mais com a Vontade, que antes submetia por completo. Na linguagem das ruas, a aquisição desta sabedoria e desta capacidade de torná-la prática e configuradora do caráter individual é o que se chamaria <tornar-se o senhor de si mesmo>. [ou tornar-se o que se é] Não há dúvida de que o senhor desta frase é a Vontade, e o servo (o si mesmo) é o intelecto. É sempre a Vontade que prevalece[ria] no homem que se desenvolve até a última instância, [o homem redimido, transvalorado] sendo seu verdadeiro núcleo, o íntimo do Ser mesmo.”

² Isso é o mesmo que o salto da fé de Kierkegaard.

³ Cf. o protagonista de O Eterno marido, de Dostoievski.

Eu não acredito que Baltasar Gracián estava correto quando disse (Discreto, p. 406), <Não há simplório que não seja malicioso>, embora ele tenha o provérbio espanhol em seu favor: <Nunca a necedade caminhou sem malícia>. Porém, pode acontecer de muitas pessoas estúpidas se tornarem maliciosas pela mesma razão de muitos corcundas, por amargor diante da negligência sofrida em face da natureza, e porque elas pensam poder, eventualmente, compensar aquilo de que prescindem (entendimento) através da esperteza e astúcia, procurando assim ligeiros triunfos. Sob essa luz, a propósito, torna-se compreensível porque quase todo mundo se torna malicioso na presença de uma natureza muito superior.” “Grande superioridade intelectual isola mais do que qualquer outra coisa, e faz do homem em questão, nem que apenas veladamente, odiado. É o contrário disso que faz pessoas estúpidas tão queridas no geral; especialmente quando muitos só conseguem ver nelas aquilo que tanto procuram (distanciar-se de grandes espíritos).”

Se um homem é tolo, perdoamo-lo alegando que ele não tem culpa; mas, na hora de desculpar um homem maligno, recorrer à falta de culpa seria o mesmo que se tornar objeto do riso geral. E ainda assim tanto uma coisa quanto a outra, a tolice e a maldade, são inatas. Mas isso serve para provar mais uma vez que a Vontade é o homem propriamente falando, e que o intelecto é uma mera ferramenta.”

Se, olhando para fora de nós, refletimos que há vita brevis, ars longa, [vida breve, arte¹ longa] e consideramos como as mais belas e maiores mentes, o mais das vezes antes mesmo ou logo após atingirem seu platô, e os maiores mestres, não muito tempo após chegarem ao domínio pleno de sua ciência, são logo varridos da existência, recebemos essa confirmação: que o sentido e o propósito da vida não é intelectual, mas moral.”

¹ Trabalho ou desempenho de alguma atividade, i.e., em latim esta palavra assume uma conotação bem mais ampla. No final, a frase quer dizer: pouco tempo para muito o que fazer e aprimorar.

o intelecto sofre mudanças muito consideráveis com o tempo, enquanto que a vontade e o caráter remanescem intocados por ele.”

O avanço da idade, que gradualmente consome os poderes do intelecto, deixa as qualidades morais intocadas. (…) malícia, despeito, avareza, dureza de coração, infidelidade, egoísmo e vilezas de todo tipo se mantêm, e justamente pelo novo contraste se tornam muito mais aparentes.”

Um enigma é resolvido, um enigma tão velho quanto o próprio mundo, simplesmente porque esse tempo todo ele estava sendo analisado de cabeça para baixo. A liberdade persistentemente buscada no Operari, [ação, por extensão fenômeno] a necessidade no Esse. [ser] (…) [no meu sistema,] a liberdade é transferida para o Esse, e a necessidade limitada ao Operari.” “Para salvar a liberdade do destino e da sorte, ela teve de ser transferida da ação para a existência.” Nasce aqui formalmente o existencialismo, pois todas as condições já estão postas para Nietzsche, Husserl, Heidegger e Sartre o desenvolverem posteriormente.

Inclinação é toda forte suscetibilidade da vontade a motivos de certo jaez. Paixão é uma inclinação tão poderosa que os motivos que a excitam exercem um poder sobre a vontade, que é mais forte que o poder de qualquer motivo possível que poderia se opor ao primeiro; destarte, seu domínio sobre a vontade se torna absoluto, [confuuuuuuuuso – isto é a própria vontade! e pior: a vontade desintelectualizada, ou seja, nua e crua] e conseqüentemente, com referência à paixão, a vontade é passiva ou sofrimento.¹ Deve ser ressalvado, entretanto, que é raro que as paixões atinjam tal grau em que se as possa chamar conforme meu conceito. O mais das vezes afetos ganham o nome de paixões meramente por aproximação nuançada: nesse estágio mais assíduo das paixões, há ainda contra-motivos atuantes para, ao menos, restringir o efeito passional, que às vezes não pode mesmo ser distinguido pela consciência (paixão fraca).”

¹ Eis que Schopenhauer involuntariamente descobriu a fuga final, desta vez uma que funciona: viver apaixonado!

O TUDO É PERMITIDO (DOSTOIEVSKI) AVANT LA LETTRE E SUA SUPERAÇÃO: “Depois de ser desmerecidamente negligenciado por mais de um século, Spinoza foi, em geral, superestimado neste século pela reação causada pelo efeito do vaivém do pêndulo da opinião. Todo panteísmo deve necessariamente ser descartado em prol das demandas inevitáveis da ética, e depois pelo mal e sofrimento do mundo. Se o mundo é uma teofania, então tudo que o homem, ou mesmo o animal, faz é igualmente divino e excelente; nada pode ser censurável, e nada pode ser mais enaltecido que o restante: destarte, inexiste ética.

Um homem que assimilasse firmemente em seu modo de pensar as verdades até agora referidas e, ao mesmo tempo, não tivesse chegado a conhecer por experiência própria ou por uma intelecção mais ampla que o sofrimento contínuo é essencial a toda a vida; e na vida encontrasse satisfação e de bom grado nela se deleitasse, e, ainda, por calma ponderação, desejasse que o decurso de sua vida, tal qual até então foi experimentado, devesse ser de duração infinda ou de retorno sempre novo; cujo ânimo vital fosse tão grande que, no retorno dos gozos da vida, de boa vontade e com prazer assumisse as suas deficiências e tormentos aos quais está submetido; um tal homem, ia dizer, se situaria ‘com firmes, resistentes ossos sobre o arredondado e duradouro solo da terra’ e nada teria a temer. Armado com o conhecimento que lhe conferimos, veria com indiferença a morte voando em sua direção nas asas do tempo, considerando-a como uma falsa aparência, um fantasma impotente, amedrontador para os fracos, mas sem poder algum sobre si, que sabe: ele mesmo é a Vontade, da qual o mundo inteiro é objetivação ou cópia; ele, assim, tem não só uma vida certa mas também o presente por todo o tempo, presente que é propriamente a forma única do fenômeno da Vontade; portanto, nenhum passado ou futuro infinitos, no qual não existiria, pode lhe amedrontar, pois considera a estes como uma miragem vazia e um Véu de Maia. Por conseguinte, teria tão pouco temor da morte quanto o sol tem da noite. – No Bhagavad-Gita Krishna coloca seu noviço Arjuna nesse ponto de vista, quando este, cheio de desgosto (parecido a Xerxes) pela visão dos exércitos prontos para o combate, perde a coragem e quer evitar a luta, a fim de evitar o sucumbir de tantos milhares. É quando Krishna o conduz a esse ponto de vista, e, assim, a morte daqueles milhares não o pode mais deter: dá então o sinal para a batalha.”

3.4.1 A VIDA DO HOMEM SANTO

Portanto, aqui talvez tenhamos pela 1ª vez expresso abstratamente e purificado de todo elemento mítico a essência íntima da santidade, da auto-abnegação, da mortificação da vontade própria, da ascese como NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA que entra em cena após o conhecimento acabado de sua essência ter-se tornado o quietivo de todo querer.”

Desenvolvem escrúpulos de consciência em cada prazer inocente ou em cada pequena agitação da própria vaidade, a qual também morre por último, e, entre todas as inclinações do homem, é a mais difícil de destruir, a mais ativa e a mais tola. – Sob o termo, por mim já amiúde empregado, de ASCESE, entendo no seu sentido estrito essa quebra PROPOSITAL da Vontade pela recusa do agradável e a procura do desagradável, mediante o modo de vida penitente voluntariamente escolhido e a autocastidade, tendo em vista a mortificação contínua da Vontade.”

O grau supremo dessa justiça de disposição – sempre associada à autêntica bondade, sendo que o caráter desta não é mais meramente negativo – vai tão longe que a pessoa pode até questionar o próprio direito à propriedade herdada e assim desejar manter o seu corpo apenas com as próprias forças, espirituais ou físicas, sentindo todo serviço prestado por outros, todo luxo, como uma repreenda, inclusive podendo entregar-se por fim à pobreza voluntária. Desse modo, vemos PASCAL, após assumir orientação ascética, não mais querer serviços de ninguém, apesar dos seus vários serviçais; e, em que pesasse sua doença crônica, fazia a própria cama e buscava a refeição na cozinha, etc. (Vie de Pascal par sa soeur, p. 19).” Uau, que independente esse Pascal!

Um santo pode estar convencido das mais absurdas superstições, ou, ao contrário, ser um filósofo; é indiferente. Apenas a sua conduta o evidencia como santo.”

A literatura indiana, a julgar pelo pouco que podemos conhecer do até agora traduzido, é bastante rica em descrições da vida dos santos e penitentes, chamados samanas, saniasis, etc.” “Também entre os cristãos não faltam casos em favor das elucidações aqui intentadas. Leiam-se as, na maioria das vezes, pessimamente escritas biografias daquelas pessoas denominadas almas santas ou pietistas, quietistas, entusiastas pios, etc. Coleções dessas biografias foram feitas em várias épocas, como a Vida das almas santas de Tersteegen, a História dos renascidos de Reiz. Em nossos dias confira-se a coleção de Kanne que, misturada ao muito de ruim, contém várias coisas boas, entre as quais a Vida da Beata Sturmin. A essa categoria pertence por inteiro a vida de São Francisco de Assis, verdadeira personificação da ascese e modelo de todos os monges mendicantes. (…) Vita S. Francisci a S. Bonaventura concinnata (Soest, 1847). (…) Histoire de S. François d’Assise, par Chavin de Mallan (1845). (…) Spence Hardy: Eastern monachism, an account of the order of mendicants, founded by Gotama Budha (1850) (…) recomendo a autobiografia de Madame de Guion, esta bela e grandiosa alma, cuja lembrança sempre me enche de reverência, que deve ser gratificante a todo espírito nobre conhecer, e fazer justiça à excelência de sua disposição de caráter, vendo com indulgência as superstições de sua razão, apesar de saber que, às pessoas de espírito comum, i.e., a maioria, aquele livro sempre terá um péssimo crédito, pois em geral e em toda parte cada um só pode apreciar aquilo que lhe é de algum modo análogo (…) a conhecida biografia de Spinoza, se usarmos como chave para ela a sua excelente introdução ao deficiente ensaio De emendatione intellectus; pois se trata do intróito mais eficiente que conheço como calmante para a tempestade das paixões (…) inclusive Goethe, por mais grego que fosse, não considerou indigno de sua pena mostrar-nos esse lado mais belo da humanidade, em límpido espelho da poesia, quando expôs de forma idealizada a vida da senhorita Klettenberg, em Confissões de uma bela alma.”

as descrições da vida dos homens santos e auto-abnegados são para o filósofo – apesar de na maioria das vezes serem muito mal-escritas e narradas com uma mescla de superstição e absurdo –, devido ao significado de seu estofo, incomparavelmente mais instrutivas e importantes até mesmo que Plutarco e Lívio.”

Mateus 16:24-25; Marcos 8:34-35; Lucas 9:23-24, 14:26-27 e 14:33. Essa tendência foi gradativamente desenvolvida e deu origem aos penitentes, aos anacoretas, aos monges”

Teologia alemã, da qual Lutero diz, no prefácio a ela aditado, que de nenhum livro, excetuando-se a Bíblia e Agostinho, mais aprendeu o que seja Deus, Cristo e o homem.” Prequel da Ideologia alemã? Hahaha.

Entretanto, esta consideração é a única que nos pode consolar duradouramente, quando, de um lado, reconhecemos que sofrimento incurável e tormento sem fim são essenciais ao fenômeno da Vontade, ao mundo e, de outro, vemos, pela Vontade suprimida, o mundo desaparecer e pairar diante de nós apenas o nada.” C0nstrução linguística infeliz, porque insuficiente, porque demonstrativa do não-resultado ou do resultado aquém do esperado que a filosofia da representação e da Vontade de Schopenhauer manejou conquistar: quietivo tímido da vontade, mesmo para indivíduos santos, nada de supressão, a não ser de maneira hiper-figurada. Qual é a utilidade da filosofia schopenhaueriana, pois? Não epistemológica, sem dúvida; apenas ética, como espécie de prolegômenos para a vida prática (nem se pode chamar de ‘guia’ o que não contem senão uma base precária em direção a uma). Uma ética de não levar a existência demasiado a sério e, portanto, bastante limitada, em que pese realista. Com efeito, limitada porque realista. Esta citação também é a frase final do livro.

O próprio tradutor achou necessário acrescentar em nota de rodapé ao último parágrafo: “a linguagem fracassa nesse momento final de sua filosofia”. Por que outro motivo haveria de fazê-lo senão porque o empreendimento schopenhaueriano deixou a desejar?

Ressalva: nada destas minhas críticas incisivas e mordazes diminui a importância do autor no panorama filosófico ocidental, pois ele foi continuado por outros pensadores e sua noção de Vontade segue tendo uma repercussão tremenda.

4. O FILÓSOFO QUE COMPREENDEU PLATÃO A MEIAS: POR QUE A IDÉIA DE PLATÃO DEVE SER LIDA COMO A ANTI-IDÉIA POR EXCELÊNCIA, I.E., COMO VONTADE, ASSIM ENUNCIADA DESDE A ANTIGUIDADE

os GRAUS DE OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, ia dizer, não são outra coisa senão as IDÉIAS DE PLATÃO.” “Se para nós a Vontade é a COISA-EM-SI e as IDÉIAS a sua objetidade imediata num grau determinado, encontramos, todavia, a coisa-em-si de Kant e a Idéia de Platão – único que verdadeiramente é –, estes dois grandes e obscuros paradoxos dos dois maiores filósofos do Ocidente, de fato não como idênticas, mas como intimamente aparentadas e diferentes apenas em uma única determinação.”

Platão diz o seguinte:

(…) Sim, cada um veria inclusive a si mesmo e aos outros apenas como sombras na parede à frente. Sua sabedoria, então, consistiria em predizer aquela sucessão de sombras apreendida na experiência. Ao contrário, apenas as imagens arquetípicas reais daquelas sombras, as Idéias eternas, formas arquetípicas de todas as coisas, é que podem ser ditas verdadeiras, pois elas SEMPRE SÃO, MAS NUNCA VÊM-A-SER. [Aqui parou Kant] A elas não convém PLURALIDADE, pois cada uma, conforme sua essência, é una, já que é a imagem arquetípica mesma, cujas cópias ou sombras são as coisas efêmeras isoladas da mesma espécie e de igual nome.”

Platão não chegou a essa expressão superior e só indiretamente pôde isentar as Idéias dessas formas, na medida em que nega às Idéias o que só é possível por elas, a saber, pluralidade do igual, nascer e perecer.”

só a Idéia é a mais ADEQUADA OBJETIDADE possível da Vontade ou coisa-em-si; é a própria coisa-em-si, apenas sob a forma da representação” Interpretação platônica desautorizada!

O tempo é meramente a visão esparsa e fragmentada que um ser individual tem das Idéias, as quais estão fora do tempo, [Como representação? Por isso o grifo verde acima em ‘sob a forma’!] portanto são ETERNAS.” Acaba de contradizer o precedente. Se ao menos aqui fosse IDÉIA, e à p. 242 (página da citação anterior) IDÉIAS, no plural, poderíamos ceder a palmatória a Sch…. O problema é que o autor inverteu os termos. A representação nunca é Una. E o que está fora do tempo é sempre, no autor, o Um, “a” Vontade.

Antes, muitos dos exemplos platônicos de Idéia e as elucidações de Platão sobre as mesmas são aplicáveis apenas aos conceitos.”

PLATÃO, O INFINITO: “Não podemos admitir que uma obra artística seja intencional e deliberadamente a expressão de um conceito, como é o caso da ALEGORIA. Uma alegoria é uma obra de arte que significa algo outro que o exposto nela.” “Com a POESIA, a alegoria tem uma relação completamente diferente do que com a arte plástica. Se nesta é repreensível, naquela é admissível (…) aqui o que é dado imediatamente em palavras é o conceito, e o próximo passo é sempre ir deste ao intuitivo, cuja exposição tem de ser executada pela fantasia do ouvinte.”

Visto que, como já dito, toda esta obra é apenas o desdobramento de um pensamento único (…) é requerida a lembrança do leitor não apenas de coisas há pouco ditas, como também das precedentes, para assim poder conectá-las com o lido a todo momento, por mais que já tenha sido dito de outro modo. Exigência esta também feita por Platão aos seus leitores nas digressões complexas e tortuosas de seus diálogos, os quais só depois de longos episódios retomam o pensamento principal; contudo, exatamente por isso, o pensamento se torna mais claro.” “Daqui a necessidade de um estudo repetido do livro, unicamente por meio do qual a conexão de todas as suas partes se torna distinta” Ok, Sch., não precisa dizer de novo!

Nunca houve, nem nunca haverá, um mito tão intimamente ligado à verdade filosófica, no entanto acessível a tão poucos, quanto esta doutrina ancestral [a transmigração das almas] do povo mais nobre e antigo (…) no entanto, já Pitágoras e Platão apreenderam com admiração aquele non plus ultra da exposição mítica, adquirida da Índia, ou do Egito, e a respeitaram, aplicaram-na e, embora não saibamos em que extensão, até mesmo nela acreditaram. – Nós, por outro lado, agora a enviamos aos brames, [?] clergymen ingleses e tecelões da confraria morávia, [??] a fim de por compaixão doutriná-los melhor, fazendo-lhes entender [na seqüência, i.e., em separado à doutrina da transmigração tentar catequizar os outros, supondo que o cristianismo é melhor ou superior] que foram criados do nada e devem agradecer e alegrar-se com isso.” HAHAHA!

[?] O mesmo que brâmane no português de Portugal. Porém, neste caso, seria um reenvio, já que a doutrina veio de lá (da Índia, da Ásia)!

[??] A Morávia é atualmente uma região da República Tcheca. No geral, essas aspas são complicadas de entender, provavelmente devido à tradução ruim.

Platão encetou pela geometria. [Ele começou a vida com outros estudos prévios à filosofia, e entendeu que seus discípulos, ou os filósofos d’A República, também o deveriam, para não cometer o tipo de erro metafísico dos jovens…] Da mesma maneira, somos incitados a tomar a geometria, em Platão, como um exercício preliminar através do qual a mente do pupilo se acostumará a lidar com objetos incorpóreos, tendo até ali, em sua vida prática, travado relações somente com coisas corpóreas.” Porém, círculos imaginados ou desenhos no papel tem muito mais a ver com rodas e távolas perfeitamente redondas que com a Idéia do círculo.

A Idéia de Platão é o pináculo: pura representação, zero vontade. (…) Sendo assim, em Platão, o gênio poderia ser definido como o mais alto grau de objetividade do conhecimento.” Terrível salada! A Idéia de Platão já encerra a consideração do subjacente no mundo das aparências, portanto é um conceito-mestre entre os conceitos que já espelha a resolução nietzschiana da metafísica ocidental, em seu portentoso início antigo. Apenas no século XX, mas lentamente, num processo ascendente ainda não-finalizado, os filósofos começaram a compreender Platão em toda a sua magnitude ontológica. Além disso, na frase em negrito Sch. contraria tudo que dissera até então sobre a Idéia de Platão. As Idéias são tudo, menos representação! Quanto à tipificação do gênio como aquele que dominou a objetividade, a razão em detrimento da vontade, temos os maiores motivos para inverter a equação: o gênio é aquele que coloca as rédeas da razão nas mãos da Vontade, como na metáfora já utilizada mais acima. Mas são acima de tudo um debate e uma dicotomia tolas: se o gênio se funde com o universo no momento da criação da obra-prima, ele só está sendo ele mesmo – e ele é o universo – ou o universo está sendo ele? Irrelevante jogo de palavras. Mas observador imparcial ele não é, e se Sch. usa o termo objetividade nesse sentido mais bem-compreendido por nós na filosofia e no mundo técnico-acadêmico, digamos que é um uso bastante infeliz do termo, onde subjetividade caberia mil vezes melhor. De todo modo, o artista e o filósofo – há, não por acidente, uma completa identidade neste aspecto – não são aqueles capazes de verem a Verdade, mas de sê-la ou produzi-la. A visão está ligada à contemplação passiva, ao objeto; o ser e produzir à atividade, ao sujeito.

5. O ANTI-ARISTÓTELES: CONSEQÜÊNCIA DA HIPER-VALORIZAÇÃO ARISTOTÉLICA PROMOVIDA PELO(A) HEGELIANISMO/ESCOLÁSTICA: O Aristotelismo deve ser superado

a forma substantialis de Aristóteles designa exatamente Aquilo que aqui nomeio o grau de objetivação da Vontade em uma coisa.” Ou seja: substância em Aristóteles e Idéia em Platão são – PARA SCHOPENHAUER – um e o mesmo.

o horror íntimo do malvado em relação aos seus próprios atos, o qual ele tenta ocultar de si, contém ao mesmo tempo, junto ao pressentimento da nulidade e mera aparência do principium individuationis [esta terminologia é aristotélica: é um ataque direto a sua filosofia] e da diferença por este posta entre si e outrem, também o conhecimento da veemência da própria vontade, da violência com a qual se entregou e apegou à vida, precisamente esta vida observada diante de si em seu lado terrível no tormento provocado em alguém por ele oprimido, e com quem, entretanto, é tão firmemente enlaçado que, exatamente dessa forma, o que há de mais horrível sai de si mesmo como um meio para a afirmação completa da sua vontade.” “Eis por que coisas que aconteceram há muito tempo ainda continuam a pesar na consciência.” “o mau (…) [v]ê a extensão em que pertence ao mundo e quão firmemente está ligado a ele.” “Fica em aberto se isto alguma vez irá quebrar e suplantar a veemência de sua vontade.” “quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o injusto e o justo, mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha, quem, conseqüentemente, de acordo com a nossa explanação, jamais, na afirmação da própria vontade, vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo – é JUSTO.” “vê através do Véu de Maia [além do princípio de individuação] e iguala a si o ser que lhe é exterior, sem injuriá-lo.”

Quase insiro estas passagens no capítulo sobre ética, mas me contive.

O que há de mais proveitoso em Aristóteles são as opiniões dos filósofos mais arcaicos, que ele cita. (…) Aristóteles (…) fiel a seu método costumeiro, desliza pela superfície das coisas, confina-se a características isoladas e concepções fixadas por expressões correntes [a-filosóficas, vulgares] e afirma que sem sensação não pode haver desejo, e que plantas não possuem sensação. Ele se põe, entretanto, em considerável embaraço, como demonstra sua linguagem confusa, quando ele mesmo afirma: <ali onde falha a compreensão, uma palavra toma o lugar como deputada de tudo que ela quer dizer>, isto é, vira uma nutriz do saber. Plantas o possuiriam, segundo o autor, então fariam jus ao que se chama de alma. (…) [Esse termo, saber,] é, portanto, um mau substituto para toda a investigação realmente profunda de seus antecessores, que ele não perde tempo em criticar de forma rasteira (Empédocles, Anaxágoras, Platão).”

DA BOTÂNICA AOS ASTROS: “Vemos ainda, no segundo capítulo [do livro Das Plantas], que Empédocles chegou mesmo a reconhecer a [bis]sexualidade das plantas; o que Aristóteles também rejeita, e oculta sua falta de conhecimento específico atrás de proposições gerais, como essa: as plantas não poderiam ter ambos os sexos combinados, pois isso significaria que elas são mais completas que os animais. Por um procedimento praticamente análogo ele rejeita o correto sistema astronômico de Pitágoras, e graças a seus absurdos princípios fundamentais, que Aristóteles expõe detalhadamente nos seus livros intitulados Do céu, valida no seu lugar o sistema de Ptolomeu, procedimento que fez a humanidade retroagir em 2 mil anos. [!]Pitágoras havia de fato formulado um sistema heliocêntrico? A resposta, conforme a Wikipédia, abaixo, é: mais que heliocêntrico – de alguma forma, Filolau, pitagórico (a fonte é Estobeu), intuiu que o sistema solar não representava o centro do universo! Segue minha tradução dos trechos relevantes da enciclopédia pública em sua página inglesa: “Um sistema astronômico posicionando a Terra, a Lua, o Sol e outros planetas revolvendo ao redor de um <Fogo Central> invisível foi desenvolvido já no quinto século antes de Cristo e fôra atribuído ao filósofo pitagórico Filolau. O sistema foi chamado de <o primeiro coerente em que corpos celestiais se movem em círculos>, antecipando Copérnico em 2 mil anos ao deslocar <a Terra do centro do cosmo, (e) fazendo dela um planeta como os outros>. Embora seus conceitos de um Fogo Central distinto do Sol e de uma <Anti-Terra>¹ fossem errôneos, o sistema continha o insight de que <o movimento aparente dos corpos celestes> se dava (em grande medida) devido ao <próprio observador encontrar-se em movimento>.”

¹ Conhecida invenção teórica dos pitagóricos para que o sistema solar conhecido, contando com a Terra, a lua e o sol, apresentasse 10 e não 9 corpos celestes, sendo o 10 um número <divino> no pitagorismo.

Quanto a Aristóteles de forma geral, gostaria de chamar a atenção ao fato de que seus ensinamentos, enquanto referentes à natureza não-organizada, são muito deficitários e hoje inutilizáveis, tanto mais que, nas concepções mecânicas e físicas fundamentais ele admite os erros mais grosseiros, o que é tanto menos perdoável quanto, antes dele, os pitagóricos e Empédocles já haviam ensinado, na matéria, o caminho das pedras, chegando a conhecimentos superiores.¹ Empédocles, como lemos no próprio Aristóteles, Do céu, 2º livro, capítulo I, p. 284, já havia exprimido a concepção de uma força tangencial decorrente da rotação da Terra, servindo de contraparte à gravidade, o que Aristóteles cita, porém rejeita. Quanto à investigação aristotélica da natureza organizada, entretanto, podemos dizer que esse é seu campo por excelência. Aqui, a riqueza de seu conhecimento, a agudeza de suas observações, a profundidade de seus insights, nos assombram.” Aristóteles, o Biólogo Vocacionado.

¹ Isto representa uma grande rocha demolidora de toda a exegese hegeliana na História da Filosofia, muito calcada no aristotelismo, inclusive na Física aristotélica. E não devemos nos esquecer, ainda que Schopenhauer não o cite, de Epicuro, que interpretou os pré-socráticos (principalmente os atomistas) no sentido correto, evitando os enganos de Aristóteles neste setor de sua filosofia.

6. POR QUE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE ESTÃO, ESSENCIALMENTE, EM PÓLOS OPOSTOS NA FILOSOFIA – E NÃO O CONTRÁRIO – MESMO QUE AQUELE SEJA O PRINCIPAL PRECURSOR DESTE

A Vontade é, pois, livre de toda PLURALIDADE, apesar de seus fenômenos no espaço e no tempo serem inumeráveis.” A vontade de potência, em Nietzsche, é múltipla e autocontraditória, jamais unitária. Um homem que cavou tão fundo só não viu que um jogo não é jogado com apenas peças brancas, ou com apenas peças pretas, sem adversário e nada mais. O jogo do universo exige vários jogadores, vontades colidindo, competindo para ver qual vai mais longe e perdura mais na humanidade.

O QUANTIFICADOR DO NADA: “Se a coisa-em-si, como acredito ter demonstrado de modo claro e suficiente, é a VONTADE, então esta, considerada nela mesma e apartada de seu fenômeno, permanece exterior ao tempo e ao espaço; por conseguinte não conhece pluralidade alguma, portanto é UNA [só porque está-se tratando da Vontade enquanto coisa-em-si, o que ela não é]. Mas, como já disse, uma não no sentido de que um indivíduo ou um conceito é uno, mas como algo alheio àquilo que possibilita a pluralidade, o principium individuationis.” Se acrescentasse que é autocontraditória, não obstante, até poderíamos aceitá-la como a versão definitiva da vontade. “Por conseqüência, a pluralidade das coisas no espaço e no tempo, que em conjunto são uma OBJETIDADE, não lhe concerne, e ela, apesar dessa pluralidade, permanece indivisa.” Desnecessário dizer que, em Nietzsche, a Vontade é a verdadeira encarnação de “objetividade”, inapurável diretamente pelo ser humano (como as Idéias de Platão).

Assim, em toda parte na natureza vemos conflito, luta e alternância da vitória, e aí reconhecemos com distinção a discórdia essencial da Vontade consigo mesma. [autocontraditória – CHECK – Will leveled up!] Cada grau de objetivação da Vontade combate com outros por matéria, espaço e tempo. Constantemente o que subsiste tem de mudar de forma, na medida em que, pelo fio condutor da causalidade, fenômenos mecânicos, químicos, orgânicos anseiam avidamente por entrar em cena e assim arrebatam uns aos outros a matéria, pois cada um quer manifestar a própria Idéia.¹ Esse conflito pode ser observado em toda a natureza.”

¹ Na medida em que Sch. emprega o verbo “manifestar”, ou seja “evidenciar”, ou seja representar, para sua concepção de Idéia (que por colocar em letra maiúscula deve equiparar à platônica, o que como já bem-mostrado é exatamente seu oposto, uma ANTI-IDÉIA), além de depois comentar que o “conflito pode ser observado” na natureza, ele fala aqui da Vontade aplicada ao reino dos sentidos, da sua Representação (PARTES 1&3 do TOMO 1). Ou ele interpreta mal a Idéia de Platão, no que não acredito neste contexto, ou o sentido da frase seria: manifestar o imanifestável (o que se esconde por trás do fenômeno). Obviamente, uma vez que a Idéia seja aplicada ao reino das aparências, não são mais as Idéias platônicas aquilo de que se fala. Essa nota de rodapé se justifica devido à péssima escolha de título para a tradução inglesa dos TOMOS 2&3, “WILL & IDEA”, que, obviamente, eu retifiquei em todos os momentos para “WILL & REPRESENTATION”, que é o que quis dizer o tradutor atrapalhado. “Manifestar a própria representação” seria contraditório no trecho acima, e não partiria da boca de Schopenhauer (felizmente é um trecho em português). O que pode confundir o leitor é que a noção de manifestar algo oculto foi conjugada com a observação direta dos fenômenos naturais, logo à frase seguinte! Mas quando assim aparecesse na versão inglesa (to manifest the representation itself) significaria que Sch. sem dúvida quisera denominar o fenômeno, e não a Vontade. Se o tradutor quisesse manter algum tipo de fidelidade simétrica e ao mesmo tempo o trambolho-palavra IDEA, deveria ter pensado em “World as IDEA & REPRESENTATION”. Representação fenomênica não poderia em caso algum ter ficado de fora do título desta obra que é, essencialmente, bipartida (torna-se quadripartida por uma espécie de chacota schopenhaueriana misturada com homenagem a Kant). Para fechar o raciocínio: supondo que Sch. se expressa corretamente no original e que o tradutor inglês quisesse efetuar ‘o melhor trabalho’, como Jair o fez pelo menos nesse trecho, podemos admitir ainda que “quer manifestar” não é o mesmo que “manifestar”, e aí sim usar “(platonic) Idea”, algo que os múltiplos fenômenos gostariam de manifestar embora não possam (would wish/aim/long/yearn/crave/urge to manifest its own Will/Idea).

No fundo, tudo isso se assenta no fato de a Vontade ter de devorar a si mesma, já que nada existe de exterior a ela, e ela é uma Vontade faminta. Daí a caça, a angústia, o sofrimento.” “Cada vontade é vontade de alguma coisa. Tem um objeto, um fim de seu querer.”

Por diversos momentos Schopenhauer parece poder desembocar numa filosofia que seria perfeitamente precursora do nietzschianismo, da transvaloração de todos os valores, do enunciado de um Übermensch, da morte de Deus ou de um eterno retorno, porém, na prática, Schopenhauer sempre retroage dessa ousadia teórica e recai no que podemos chamar, da ótica de Nietzsche, de um niilismo passivo, conforme fica claro no título sobre a relação de Schopenhauer com o cristianismo e o próprio budismo. Nietzsche soube utilizar os elementos vanguardistas de Sch. e seperar o joio do trigo em sua filosofia, i.e., evitar o caráter reacionário da falta de vontade de viver, problema do agravamento do niilismo cultural que Sch. tão engenhosamente nos revelou, mas ao qual não deu uma resposta positiva e fenomênica. Podemos dizer que o conceito schopenhaueriano de vontade é estático; em Nie. ele é dinâmico.

a translação dos planetas, a obliqüidade da elíptica, a rotação da terra, a separação entre terra firme e oceanos, a atmosfera, a luz, o calor e todos os fenômenos semelhantes, que na natureza são aquilo que o baixo fundamental é na harmonia, acomodam-se plenos de pressentimento à geração futura de seres vivos, dos quais serão o sustentáculo mantenedor. Do mesmo modo, o solo se adapta à alimentação das plantas, estas à alimentação dos animais, estes à alimentação dos predadores, e todos estes àquele primeiro.” Inconciliável: Vontade UNA / Idéias MÚLTIPLAS. Inconciliável dum ponto de vista lógico, anyway… Chutando para o espaço sideral o princípio de não-contradição, tudo isto é lícito, legítimo, coerente, irretocável.

O autoconhecimento da Vontade e, daí, a sua decidida afirmação ou negação é o único evento em si.” Parágrafo 35 in a nutshell: #EternoRetorno ; e depois retrocesso a #Camus. Nem infinito, nem retorno, nem negação: só afirmação-nova-no-tempo.

Resta apenas o mundo como representação; o mundo como Vontade desapareceu.” Resumo do objetivo de Sch. no livro 3.

Vontade livre” O alvo de ataque do Nietzsche maduro – porém, não se pode chamar a Vontade não-livre deste de “ressurreição” do imperativo categórico. Até porque não é universal nem voluntária: faz parte do caráter de poucos escolhidos, que não podem ser auto-escolhidos. Uma casta-diretriz dos valores da humanidade, os avaliadores de valores. Dizer que a vontade é livre para devorar a si mesma é negar que ela tenha outra escolha ou que a parte devorada da vontade (no final, sempre a vontade como um todo) seja parte desse mesmo destino de uma vontade una.

Que a Vontade enquanto tal seja LIVRE segue-se naturalmente de nossa visão, que a considera como a coisa-em-si, o conteúdo de qualquer fenômeno.” Novamente, é correto, do ponto de vista schopenhaueriano, pois para ele a Vontade = COISA-EM-SI (1.1).

A necessidade do agir individual foi suficientemente demonstrada por Priestley em sua Doctrine of philosophical necessity. Foi Kant, todavia, cujo mérito a este respeito é em especial magnânimo, o primeiro a demonstrar a coexistência dessa necessidade com a liberdade da Vontade-em-si (…) estabelecendo a diferença entre caráter inteligível e empírico, a qual conservo por inteiro,¹ conquanto o primeiro é a Vontade como coisa-em-si a manifestar-se em fenômenos num determinado indivíduo e num determinado grau, [neste caso o nome ‘caráter inteligível’ está pessimamente auferido – melhor seria dizer caráter metafísico ou, respeitando a própria nomenclatura do autor, caráter-em-si] já o segundo é este fenômeno mesmo tal qual ele se expõe no modo de ação segundo o tempo,¹ e já na corporização segundo o espaço. A fim de tornar mais clara a relação entre ambos, a melhor expressão a ser empregada é aquela presente no meu ensaio introdutório sobre o princípio de razão, ou seja, que o caráter inteligível de cada homem deve ser considerado como um ato extratemporal, [?] indivisível e imutável da Vontade,² cujo fenômeno, desenvolvido e espraiado em tempo, espaço e em todas as formas do princípio de razão, é o caráter empírico como este se expõe conforme a experiência, vale dizer, no modo de ação e no decurso de vida do homem.”

¹ Eis a procurada refutação de que as Vontades de Nie. e Sch. sejam sinonímias, in loco.

² Esse remendo só é necessário ao sistema schopenhaueriano porque ele não abria mão de uma Vontade una, ao invés de múltiplas Vontades em eterno conflito. Não existe unidade na natureza, apenas a aparência conceitual de tal (i.e., a palavra fenômeno quando aplicada a todo fenômeno ao mesmo tempo).

O mito aqui aludido é o da transmigração das almas. Ele ensina que todos os sofrimentos infligidos em vida pelo homem a outros seres têm de ser expiados numa vida posterior neste mundo e precisamente pelos mesmos sofrimentos. [ou em outros mundos renascidos após a destruição do atual, como prega o budismo] Tal ensinamento vai tão longe que quem apenas mata um animal nascerá no tempo infinito exatamente como este animal, sofrendo a mesma morte.” Esse quadro é muito mais horripilante que o eterno retorno da sua própria vida, Sch. – como conciliar tal contradição?

BOM (…) BELO e VERDADEIRO (…) Dentre as pessoas familiarizadas com os escritos de nossos tempos, quem não se enfastiou com aquelas 3 palavras, por mais que elas apontem coisas originariamente admiráveis? Quem não se enfastiou após ver milhares de vezes como os mais incapazes de pensamento acreditam, com boca escancarada e ares de bronco inspirado, poder apenas com a pronúncia das mencionadas palavras transmitir grande sabedoria?” “tudo o que é favorável à Vontade em alguma de suas exteriorizações e satisfaz seus fins é pensado pelo conceito BOM, por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectos. (…) tudo o que é exatamente como queremos que seja.” “felicidade (…) como sendo idêntica ou conseqüência da virtude, e isso sempre de maneira sofística (…) Ao contrário, em (…) nossa consideração, a essência íntima da virtude resultará de um esforço em direção totalmente oposta à da felicidade, ou seja, oposta à direção do bem-estar e da vida.” Estes trechos estão nesta seção porque cremos que, quando Schopenhauer se põe como adversário do cristianismo (o que ele não faz senão de modo hesitante), pode muito bem ser considerado o verdadeiro precursor de livros póstumos como O Anticristo e Muito Além do Bem e do Mal. Aliás, às vezes penso que, em contundência, e até por ter vindo primeiro, Sch. paradoxalmente aparece como o maior dentre os detratores do cristianismo. Hoje mesmo, 4/7/22, lia o personagem canastrão Fomá Fomitch, de A aldeia de Stepantchikovo de Dostoievski, declarar, em capítulos sucessivos, 1º que a virtude é o mesmo que a felicidade, para logo no seguinte, bufão que é, em 2º, dizer que a virtude é o contrário da felicidade, e que por isso se comprazeria em sofrer virtuosamente. Ao contrário de um asceta ou do próprio Sch., entretanto, este personagem dostoievskiano é incapaz de viver sem os luxos da vida nobre um dia sequer.

O BOM (sic) ABSOLUTO é uma contradição.” Reitera-se: o núcleo nietzschiano já estava bem-preparado. 1. Não há absoluto; 2. A existência do bem exige que ele seja relativo a um mal. Ambos os conceitos são relativos, posto que criados, convencionados.

o homem bom de modo algum deve ser considerado como um fenômeno da Vontade originariamente mais fraco em comparação ao homem mau.” Comentário nitidamente antitético com tomos anteriores. Porque aqui Sch. parece duvidar de si mesmo, enquanto que Nietzsche diria isso de peito aberto e muito mais convicção. Em Nietzsche, o mau, o pior, o terrível – no sentido não-depreciativo – é aquilo que tem força para transformar a si mesmo em parâmetro ou valor dos valores do que é bom e excelente. Daí a controvérsia sobre o sentido de sua vontade de poder, que é entendida por leitores incautos como alguma espécie de apologia à supremacia do mais forte, como alguma defesa do caos da natureza puro e simples ou do emprego da força bruta, em forma física ou na forma ampliada e estatal (política), o que não passa de mau uso da palavra “forte” em Nie., alguém claramente anti-darwinista e anti-Estado, antifascista avant la lettre.

O ANTI-HEGEL, O PRÉ-NIETZSCHE: “essa doutrina tão repetida de que o homem caminha progressivamente para um nível de perfeição cada vez maior, ou qualquer fé que deposita no devir o processo de desenvolvimento mundial, está em completa oposição ao conhecimento a priori de que em qualquer ponto do tempo um tempo infinito já correu, e, em conseqüência, de que tudo aquilo que deveria advir com o tempo já deve necessariamente ter existido; dessa forma abre-se uma lista interminável das contradições de assunções dogmáticas sobre a realidade dada das coisas. Por outro lado, devo veementemente recusar que qualquer doutrina de minha filosofia poderia ser adicionada a essa mesma lista, porque cada uma de minhas premissas foi pensada em presença da realidade perceptível, e nenhum pensamento importante meu tem sua raiz puramente em abstrações conceituais. Há, ainda, na minha filosofia, um pensamento fundamental aplicado a todos os fenômenos do mundo como chave; [fala da descoberta da invisível Vontade] mas esse raciocínio se prova o alfabeto correto mediante o qual todos os mundos e sentenças adquirem sentido e significado. [!] (…) Sendo assim, até agora minha filosofia é como uma soma que produz o resultado absolutamente esperado, porém não no sentido de que ela soluciona todos os problemas ou responde todas as perguntas. Afirmar qualquer coisa do gênero seria uma negação presunçosa dos limites do conhecimento humano em geral. Qualquer que seja a tocha que conduzamos à frente, e qualquer que seja o terreno iluminado por ela, nosso horizonte sempre remanescerá envolto em profunda noite. A solução definitiva do enigma do mundo está necessariamente ligada às coisas-em-si-mesmas, jamais aos fenômenos.”

O conhecimento condicionado deve repousar na fundação de toda obra de arte genuína. A mudança objetiva requerida para isso não pode proceder da vontade, justamente por tal mudança consistir na eliminação de todas as volições; a arte não pode ser ato da vontade, i.e., não pode repousar em nossa escolha.” Mas é justamente a liberdade (do intelecto) que pressuporia a negação da Vontade; o artista é o oposto da figura que Sch. descreve: um hiper-concentrador de Vontade! Significa que Schopenhauer erra duplamente no aforismo: 1) não é o intelecto o mecanismo que explica o dom (irracional); 2) ainda que o fosse, ele implicaria que o artista poderia escolher seus meios, sua forma de expressão da obra de arte, e Sch. termina a passagem contradizendo-se! Em suma, é verdade que nada disso depende de nossa escolha, mas isso depõe a favor da Vontade como protagonista do processo artístico. Como Nietzsche é muito insistente nesse ponto (o que eu defendi, contra Sch.), incluí estas aspas aqui, mas há comentários mais extensos na seção 12.5.

Não há contraste maior do que aquele entre o incessante devir do tempo, que leva todos os conteúdos consigo, e a rígida imobilidade do que é atual e presente, o que em todos os tempos é um e o mesmo. Se desse ponto de vista observamos os eventos da vida, i.e., de um ponto de vista puramente objetivo, o Nunc stans [eternidade] se torna claro e visível para nós no centro da roda do tempo. Aos olhos de um ser de vida incomparavelmente mais longa, que de um só vistaço compreendesse a raça humana em todo seu percurso, incluindo a alternação constante de nascimento e morte, nossa existência assemelhar-se-ia a uma vibração contínua. Não ocorreria a este ser interpretar nossa condição como o emergir de algo novo ou o retorno ao nada em momento algum. Assim como para nós a faísca revolvendo em círculo em alta velocidade parece um círculo contínuo, para os olhos desta criatura privilegiada em relação a nós a morte e a vida como um todo não apareceriam como mais do que vibrações daquilo que tem um Ser e permanência indiscutíveis.”

Aquele que refletir que até o agora, quando se existe, um tempo infinito já decorreu, e com ele uma infinidade de mudanças, reconhecerá sua existência como uma necessidade. Toda a extensão dos estados possíveis já se exauriu sem que com isso a existência tivesse logrado a autodestruição. Se fosse possível que o indivíduo não fosse, ele já não seria agora. A infinitude do tempo já decorrido, com a exaustão das possibilidades de eventos dela decorrente, garante que o que existe deve existir.” Veraz a acusação de Wagner de que Nietzsche apenas reproduzia Schopenhauer em seus livros mais polêmicos? [1/3] – Gaia é mais forte que bombas de hidrogênio: uma espécie de paradoxo do avô se instala no presente: no futuro ninguém apertará o botão vermelho.

Mas o grande equívoco reside de fato na palavra eu“Mas o ‘eu’ é um ponto escuro na consciência, como na retina o ponto exato em que o nervo da visão entra é cego, como o próprio cérebro, que concede ao corpo a faculdade da sensação, é inteiramente desprovido de sensação, como o corpo do sol é negro, e como o olho tudo vê, exceto a si mesmo.” [2/3] Tudo isso também foi repetido e ruminado por Nietzsche.

Porém, o seguinte aspecto deve ainda ser levado em consideração: a individualidade da imensa maioria dos homens é tão miserável e destituída de valor que com sua perda o sujeito em questão na verdade nada perde. Só naqueles em que ainda pode residir algum valor está o elemento humano universal” Imensa maioria dos homens: substrato do último homem, eterno como qualquer Um. Aqueles em que ainda pode residir algum valor: substrato do além-homem nietzschiano. [3/3!]

a mais excitante das questões metafísicas. Começo, fim e continuação são concepções que derivam simples e tão-somente do tempo, e são válidas, portanto, exclusivamente com ele em vista. Mas o tempo não tem uma existência absoluta; não é o modo de dizer da coisa-em-si, mas meramente o modo de nosso conhecimento de nossa existência e natureza, conhecimento que é aliás um tanto imperfeito e limitado aos fenômenos. Uma resposta às perguntas nascidas das nossas concepções do tempo é impossível,¹ e toda asserção nesse sentido, num ou noutro sentido, está sempre aberta a objeções convincentes.” “Tudo isso apenas quer dizer: o problema é transcendente. A morte permanece um mistério.”

¹ O que invalida qualquer possibilidade de conclusão do projeto heideggeriano de Ser e Tempo: livro que, não à toa, Heidegger jamais veio a terminar. Provavelmente porque soubesse que qualquer continuação dos dois primeiros volumes estaria aquém do projeto inicialmente traçado, que era ter essa visão ‘extra-humana’ do tempo para assim compreender o sentido do ser.

O sujeito atua na vida como executando um serviço compulsório que lhe cabe. Mas quem contraiu a dívida? – Seu progenitor, na fruição dos prazeres sensuais. Logo, porque um aproveitou, o outro deve viver, sofrer e morrer. (…) Mas minha filosofia é a única que confere à ética seus direitos totais; porque só se a verdadeira natureza do homem é sua própria vontade, e conseqüentemente ele é, no sentido mais estrito, sua própria obra, suas dívidas ou faltas pertencem de fato e inteiramente a ele próprio e devem ser pagas por ele mesmo e não por outrem. Sempre que o homem tem uma outra origem, que é obra de seres diferentes dele mesmo, [nas outras filosofias e religiões] sua culpa volta à origem.” É importante assinalar esse parágrafo nesta seção porque a tomada de responsabilidade do indivíduo pela própria vida e existência é o imperativo ético essencial implicado no eterno retorno. E o único imperativo ético que pode dar certo é anticristão, pois não temos culpa de nada; Adão não tem culpa de nada; a existência não tem culpa de nada.

Dessa forma, o problema discutido na época socrática é agora, pela 1ª vez, finalmente resolvido, e a demanda por pensar a razão enquanto moral é satisfeita.” “Minha doutrina atinge esse limite na vontade de vida, que em sua própria manifestação afirma ou nega a si mesma. (…) Devemos interromper nossa reflexão aqui” Nietzsche seguiu todos os passos de Schopenhauer, mas não parou ou se interrompeu ‘aqui’.

Um homem, ao fim de sua vida, se fosse igualmente sincero e clarividente, talvez jamais a desejasse de novo, porém, antes, preferiria a total não-existência. O conteúdo essencial do célebre monólogo em Hamlet, quando resumido, é este: nossa condição é tão miserável que o decididamente preferível seria a completa não-existência.¹ Se o suicídio efetivamente nos oferecesse esta última, de tal modo que a alternativa ‘ser ou não ser’ fosse posta no sentido pleno da palavra, então aquele seria incondicionalmente escolhido como um desenlace altamente desejável (a consumation devoutly to be wish’d). No entanto, algo em nós diz que não é bem assim”

¹ Formulação do odium fati. Mas não é essa a questão: o passado não é aniquilado. O cadáver de Hamlet não quer ter vergonhas nem arrependimentos…

7. DESPROPÓSITO DA VIDA HUMANA CONSCIENTE: A EXISTÊNCIA É SÓ UM SONHO

Eis por que de bom grado nunca ficam sozinhos com a natureza; precisam de sociedade, ao menos de um livro. Seu conhecer permanece servil à Vontade. Procuram, por conseguinte, só por aqueles objetos que têm alguma relação com o seu querer e, de tudo que não possua uma tal relação, ecoa em seu interior, semelhante a um baixo fundamental, um repetitivo e inconsolável ‘de nada serve’. Assim, na solidão, até mesmo a mais bela cercania assume para eles um aspecto desolado, cinza, estranho, hostil.”

a supressão do caráter da espécie mediante o caráter do indivíduo é caricatura, e a supressão do caráter individual mediante o caráter da espécie é ausência de significação.”

Esses indivíduos que aparecem sucessivamente estão por inteiro sozinhos, visto que a massa e a multidão da posteridade sempre será e permanecerá tão perversa e obtusa quanto a massa e a multidão de todos os tempos. – Que se leiam os lamentos dos grandes espíritos em todos os séculos sobre os seus contemporâneos: soam sem exceção como hoje, porque o gênero humano sempre foi o mesmo.”

Dom Quixote (…) alegorizava a vida de um homem que, diferentemente dos demais, não tem em vista apenas cuidar do próprio bem-estar mas persegue um fim objetivo, ideal, que se apossou de seu pensamento e querer, com o que se sente, obviamente, isolado neste mundo.”

Hamlet, a quem Horácio gostaria de seguir voluntariamente; porém, aquele pede que permaneça e respire por mais algum tempo neste ingrato mundo de dores, a fim de esclarecer o destino de Hamlet e zelar por sua memória.” “A palavra final no Maomé de Voltaire expressa isso literalmente, quando a agonizante Palmira diz a Maomé: ‘O mundo é para tiranos, vive!’

as críticas obtusas (…) que o Dr. Samuel Johnson dirige a peças isoladas de Shakespeare, censurando a sua licenciosidade: qual fato levou as Ofélias, as Desdêmonas, as Cordélias a serem culpáveis? – Só a visão de mundo rasa, otimista, racional-protestante, ou, melhor dizendo, judaica, fará a exigência de justiça poética para, com a satisfação desta, encontrar a sua própria. O sentido verdadeiro da tragédia reside na profunda intelecção de que os heróis não expiam os seus pecados individuais, mas o pecado original, i.e., a culpa da existência mesma

ADEUS, QUERIDO COCÔ (ESCREVI-O COM (C)ALMA)! “Ora, assim como estamos a todo momento contentes em conservar a forma, sem lamentar a matéria perdida, também temos de nos comportar do mesmo modo quando na morte ocorre o mesmo, porém numa potência mais elevada” “Do mesmo modo que somos indiferentes num caso, não devemos tremer no outro.” “parece tão tolo embalsamar cadáveres como o seria conservar nossos excrementos.”

Naturalmente, se pensarmos retrospectivamente nos milênios transcorridos, nos milhões de pessoas que neles viveram, perguntaremos: que foram elas? Que se fez delas? Por outro lado, precisamos só evocar o passado de nossas vidas e vìvidamente renovar suas cenas na fantasia para de novo perguntar: que foi tudo isso? Que foi feito deles? Como no caso de nossa vida, assim também no caso da vida daqueles muitos milhões. Ou deveríamos supor que o passado alcançou uma nova existência ao receber o selo da morte? Nosso próprio passado, inclusive o dia mais recente e o anterior, é tão-somente um sonho nulo da fantasia; o mesmo é o passado de todos aqueles milhões. Que foi? Que é? A Vontade, cujo espelho é a vida, e o conhecer destituído de volição, que mira claramente a Vontade nesse espelho. Quem ainda não reconheceu isso ou não o quer reconhecer pode acrescentar à questão anterior, sobre o destino das gerações passadas, ainda esta: Por que precisamente ele, o questionador, é tão feliz em possuir este tempo presente precioso e fugidio, único real, enquanto aquelas centenas de gerações de homens, sim, os heróis e os sábios daqueles tempos, naufragaram na noite do passado e assim se tornaram nada, enquanto ele, seu insignificante eu, existe realmente? Ou, de maneira mais sucinta, embora estranha: Por que este agora, seu agora, é precisamente agora, e não FOI há muito tempo?”

quem está satisfeito com a vida como ela é, quem a afirma em todas as suas maneiras, pode confiantemente considerá-la como sem fim e banir o medo da morte como uma ilusão a infundir-lhe o tolo temor de que poderia ser despojado do presente, ludibriando-o sobre um tempo destituído de presente, parecido com aquela ilusão relativa ao espaço, em virtude da qual alguém fantasia a exata posição ocupada por si no globo terrestre como a de cima, e as restantes como a de baixo.” “temer a morte porque ela nos arrebata o presente não é mais sábio do que temer deslizar para baixo no globo terrestre redondo, a partir do topo, onde felizmente nos encontramos agora.” “meio-dia sempiterno”¹ “se um homem teme a morte como seu aniquilamento, é simplesmente como se pudesse pensar que o sol se lamentaria diante da noite(*) (…) Contrariamente, quem está oprimido pelo peso da vida e ainda assim a deseja e afirma (…) não pode esperar da morte a libertação, nem pode salvar a si mesmo pelo suicídio. Apenas com aparências falsas lhe seduz o frio e tenebroso Orco, como se fôra o porto da paz.

[¹ Nietzsche puro!]

(*) Eckermann, Conversas com Goethe: (…) Goethe diz: ‘Nosso espírito é um ser de natureza totalmente indestrutível: ele faz efeito continuamente de eternidade a eternidade. É comparável ao sol, que parece se pôr apenas aos nossos olhos terrenos, mas que em realidade nunca se põe, brilhando incessantemente.’ – Goethe tomou a comparação de mim, não eu dele. [!] Sem dúvida ele a utilizou nessa conversa de 1824, em virtude de uma reminiscência, talvez inconsciente, da passagem acima escrita, pois esta aparece, com os mesmos termos aqui empregados, na 1ª ed. de minha obra, p. 401, e também ocorre novamente na p. 528, bem como na conclusão do §65. Aquela 1ª ed. lhe foi enviada em dezembro de 1818, e em março de 1819 ele mandou, por minha irmã, uma carta de congratulação para Nápoles, onde então me encontrava. À carta adicionava uma papeleta, onde assinalava os números de algumas páginas que especialmente lhe agradaram. Logo, ele lera o meu livro.”

Os males imediatamente necessários e absolutamente universais, p.ex., a necessidade no avanço da idade e a morte, bem como os muitos incômodos cotidianos, normalmente não nos entristecem.”

É realmente inacreditável o quanto a vida da maioria dos homens, quando vista do exterior, decorre insignificante, vazia de sentido e, quando percebida no seu interior, decorre de maneira tosca e irrefletida. Trata-se de um anseio e tormento obscuro, um vaguear sonolento pelas 4 idades da vida em direção à morte, acompanhado por uma série de pensamentos triviais. Assemelham-se a relógios aos quais se deu corda e funcionam sem saber por quê. Todas as vezes que um homem é gerado e nasce, o relógio da vida humana novamente tece a corda, para mais uma vez repetir o seu estribilho inúmeras vezes tocado: frase por frase, medida por medida, com insignificantes variações. – Todo indivíduo, todo rosto humano e seu decurso de vida é apenas um sonho curto a mais do espírito infinito da natureza, da permanente Vontade de vida; é apenas um esboço fugidio a mais traçado por ela em sua folha de desenho infinito, ou seja, espaço e tempo, esboço que existe ali por um mero instante se for comparado a ela, e depois é apagado, cedendo lugar a outros. Contudo, e aqui reside o lado sério da vida, cada um desses esboços fugidios, desses contornos vazios, tem de ser pago com toda a Vontade de vida em sua plena veemência, mediante muitas e profundas dores e, ao fim, com uma amarga morte, longamente temida e que finalmente entra em cena. Eis por que a visão de um cadáver nos torna de súbito graves.

A vida do indivíduo, quando vista no seu todo e em geral, quando apenas seus traços mais significativos são enfatizados, é realmente uma tragédia; porém, percorrida em detalhes, possui o caráter de comédia, pois as labutas e vicissitudes do dia, os incômodos incessantes dos momentos, os desejos e temores da semana, os acidentes de cada hora, sempre produzidos por diatribes do acaso brincalhão, são puras cenas de comédia.”

Se se conduzisse o mais obstinado otimista através dos hospitais, enfermarias, mesas cirúrgicas, prisões, câmaras de tortura e senzalas, pelos campos de batalha e praças de execução, e depois lhe abríssemos todas as moradas sombrias onde a miséria se esconde do olhar frio do curioso; se, ao fim, lhe fosse permitida uma mirada na torre da fome de Ungolino, ele certamente também veria de que tipo é este meilleur des mondes possibles.”

Cada um mira a própria morte como o fim do mundo; já a morte dos seus conhecidos é de fato ouvida com indiferença” “O lado terrível disso se encontra na vida dos grandes tiranos e facínoras, nas guerras que devastam o mundo, enquanto o seu lado hilariante é objeto da comédia, e aparece sobretudo na presunção e na vaidade, o que Rochefoucauld, melhor que qualquer outro escritor, conseguiu apreender e expor in abstracto.”

Éris (…) expulsa do conflito dos indivíduos por meio da instituição estatal, retorna de fora como guerra entre os povos e então exige, no seu total e numa só parcela, como débito acumulado, sacrifícios sangrentos, os quais se lhe haviam evitado ao recorrer-se à astuta precaução. Sim, supondo-se que tudo isso fosse, ao cabo, ultrapassado e posto de lado por uma prudência acumulada pela experiência de milênios, o resultado seria a efetiva superpopulação de todo o planeta, cujo horrível mal só uma imaginação audaciosa poderia agora tornar presente.”

Os dias passam cada vez mais rápido, os eventos perdem sua significância, tudo se torna lívido. O homem avançado em idade tateia ao redor mancando ou permanece num canto como uma sombra, um fantasma de seu antigo eu. O que restaria acaso para a morte destruir?”

Que uma mosca que zumbe agora em meus ouvidos vá dormir esta noite, e zumba de novo amanhã, ou morra nessa mesma noite, e então na primavera seguinte outra mosca que nasceu dos ovos daquela antiga zumba novamente: tudo isso em si mesmo é a mesma coisa

Repare em seu cachorro. Quão despreocupado e pacificamente ele vive! Muitos milhares de cães tiveram de perecer até que chegasse a vez desse exemplar viver. Mas a morte dessa infinidade de antepassados não afetou em nada a Representação do cachorro. O cão de hoje existe tão fresco e dotado com força vital quanto os indivíduos mais primitivos da espécie. Todo dia ele vive como se fosse seu primeiro dia e como se nunca um dia pudesse ser seu último. Nos seus olhos brilha o princípio indestrutível dessa vida cíclica e inexaurível, o archaeus [arquétipo].”

FILOSOFIA VAMPÍRICA AVANT LA LETTRE: “Desejar que a individualidade fôra imortal não significa nada mais que desejar a perpetuação de um erro infinitamente. Pois no fundo toda individualidade é apenas um erro singular, um passo em falso, algo que era melhor jamais ter sido”

Eis o ponto em que a filosofia transcendental se conecta à ética. (…) o medo de que, com a morte, tudo terminará se iguala ao caso daquele que imagina, num sonho, que há apenas sonhos sem um sonhador.”

Os terrores da morte dependem em maioria da falsa impressão de que se o ego desaparece agora, o mundo continua. Mas na verdade é o oposto” O rio Lethe da Vontade é a morte de um indivíduo. Com o esquecimento, a Vontade está livre e inexausta novamente para poder desejar, noutro invólucro.

8. SOBRE O SUICÍDIO

o suicídio já se nos apresenta aqui como um ato inútil e, por conseguinte, tolo. Quando tivermos avançado ainda mais em nossa consideração, ele aparecerá numa luz menos favorável ainda.” Nem para o moribundo incurável que já sentiu o doce mel da vida entre os lábios?

Eis por que nas maiores dores espirituais a pessoa arranca os cabelos, golpeia-se no peito, arranha o rosto, atira-se ao chão: tudo sendo propriamente apenas meios violentos de distração em face de um pensamento de fato insuportável. E justamente porque a dor espiritual, como a mais aguda de todas, torna alguém insensível à dor física, o suicídio é bastante fácil para quem se encontra desesperado ou imerso em desânimo crônico, embora antes, em estado confortável, tremesse com tal pensamento. De maneira semelhante, preocupações e paixões, portanto o jogo do pensamento, abalam o corpo muito mais freqüente e intensamente que deficiências físicas.”

o suicídio não fornece salvação alguma: o que cada um QUER em seu íntimo, isto ele deve SER; e o que cada um É, precisamente isto ele QUER.”

terrível e lenta autopunição para a completa mortificação da Vontade: o que ao fim pode conduzir à morte voluntária mediante jejum, atirar-se aos crocodilos ou precipitar-se do pico sagrado do alto do Himalaia ou ser sepultado vivo, e também mediante o lançar-se sob as rodas do carro colossal que passeia as imagens de deuses entre o canto, o júbilo e a dança das bailadeiras (apsaras). [hinduísmo]” “Tanta concordância em épocas e povos tão diferentes é uma prova factual de que aqui se expressa não uma excentricidade ou distúrbio mental, como a visão otimista rasteira de bom grado o afirma, mas um lado essencial da natureza humana, e que, se raramente aparece, é tão-só em virtude de sua qualidade superior.”

O suicídio, em realidade, é a obra-prima de Maia na forma do mais gritante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma.”

o suicida se assemelha a um doente que, após ter começado uma dolorosa operação de cura radical, não permite o seu término, preferindo permanecer doente. (…) Eis por que todas as éticas, tanto filosóficas quanto religiosas, condenam o suicídio, embora elas mesmas nada possam fornecer senão estranhos argumentos sofísticos.” “quietivo final”

Reconhecidamente, de tempos em tempos repetem-se casos nos quais o suicídio é estendido às crianças. O pai mata os filhos que tanto ama e em seguida a si próprio. Se tivermos em mente que a consciência moral, a religião e todos os conceitos tradicionais fazem reconhecer no assassinato o pior crime; e que, porém, o pai o comete na hora da própria morte e em verdade sem ter nessa ocasião motivo egoístico algum, então o ato só pode ser explanado como se segue. A vontade do indivíduo se reconhece imediatamente nas crianças, enredada na ilusão que envolve o fenômeno como se fosse a essência-em-si e, ademais, profundamento abalado pelo conhecimento da miséria de toda vida, acredita que, ao suprimir o fenômeno, também suprime a essência mesma; portanto, deseja resgatar a si e aos filhos da existência e de suas penúrias.”

Entre esta morte voluntária resultante do extremo da ascese e aquela comum resultante do desespero, deve haver muitos graus intermediários e combinações, sem dúvida difíceis de explanar. Contudo, a mente humana tem profundezas, obscuridades e complicações cuja elucidação e detalhamento são de extrema dificuldade.”

A tendência ao suicídio é especialmente hereditária.”

9. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS

o fim e ideal de qualquer ciência da natureza é, no fundo, um materialismo desenvolvido até as suas últimas consequências.”

o fim da ciência não é a certeza máxima, pois esta pode ser igualmente encontrada até mesmo no conhecimento singular, mais desconexo, mas a facilitação do saber mediante a sua forma (…) dizer (…) que a cientificidade do conhecimento reside na sua maior certeza é uma opinião equivocada, como também é falsa a afirmação daí proveniente de que só a matemática e a lógica seriam ciências no sentido estrito do termo, visto que somente nestas, devido a sua completa aprioridade, tem-se certeza irrefutável do conhecimento.” “o velho erro de que somente aquilo que é demonstrado é completamente verdadeiro (…) Antes, ao contrário, cada demonstração precisa de uma verdade indemonstrável que em última instância sustenta a ela ou a sua demonstração.” Heidegger plagiará essas aspas em Ser e Tempo, sem dar o crédito.

Ora, como todas as demonstrações são silogísticas, não é preciso primeiro procurar demonstração para uma nova verdade, mas uma evidência imediata. Só pelo tempo em que esta se encontra ausente é que a demonstração pode ser provisoriamente fornecida. Nenhuma ciência pode ser absolutamente demonstrável, tampouco quanto um edifício pode sustentar-se no ar. Todas as suas demonstrações têm de ser remetidas a algo intuitivo, por conseguinte não mais demonstrável. (…) Toda evidência última, i.e., originária, é INTUITIVA, o que a palavra já o indica.”

DEBATEDORES E REFUTADORES DE REDES SOCIAIS: “Demonstrações são destinadas não tanto aos que estudam mas antes aos que querem disputar. Estes negam obstinadamente a intelecção imediatamente fundamentada.”

nenhum ramo das ciências naturais, p.ex., a física, a astronomia, a fisiologia, pode ser descoberto de uma só vez, como foi possível com a matemática e a lógica, mas precisaram e precisam de experiências completas e comparadas de muitos séculos.”

Ciências “quantitativas” para o autor: história natural, fisiologia, mineralogia, geologia, mecânica, físico-química…

Chamaríamos, no lugar do “quantitativo” de Sch., de ciências meramente descritivas. Poderia incluir a própria psicologia se fosse uma disciplina formada em sua época.

9.1 A MATEMÁTICA E A LÓGICA: ARISTÓTELES E NIILISMO

De nossa parte exigimos a remissão de cada fundamentação lógica a uma intuitiva. A matemática euclidiana, ao contrário, empenha-se com grande afinco, em todo lugar, em descartar deliberadamente a evidência intuitiva sempre ao alcance da mão, substituindo-a por uma evidência lógica.” “Euclides (…) em vez (…) de nos dar uma intelecção fundamental da essência do triângulo, simplesmente formula algumas proposições desconectadas e escolhidas arbitrariamente acerca dessa figura, fornecendo dela um fundamento de conhecimento lógico por meio de uma demonstração laboriosa conduzida segundo o princípio de contradição. (…) Quase se tem a sensação desconfortável parecida àquela produzida por um truque.” “Outras vezes, como no teorema de Pitágoras, linhas são traçadas sem se saber ao certo por quê; depois se nota que eram laços estendidos para capturar desprevenida a concordância do leitor, o qual, atônito, tem de admitir o que, em seu foro íntimo, permanece completamente inconcebível, tanto mais que pode estudar a matemática euclidiana inteira sem ganhar uma intelecção propriamente dita das leis das relações espaciais, mas apenas aprende de memória alguns de seus resultados.” “Entretanto, a maneira como tudo isso foi conduzido por Euclides mereceu toda a admiração que os séculos lhe dedicaram, indo tão longe a ponto de seu método de tratamento da matemática ter sido declarado modelo de todas as exposições científicas, segundo o qual se procurou modelar as demais ciências.”

É em geral o método analítico o que desejo para a exposição da matemática, em vez do sintético, usado por Euclides.” “Na Alemanha começa esporadicamente a mudar a exposição da matemática, e o caminho analítico é trilhado mais vezes.”

o princípio de contradição mesmo, que é uma verdade metalógica e fundamento universal de toda demonstração lógica. Quem nega a necessidade intuitivamente exposta das relações de uma proposição expressa espacialmente pode com igual direito negar os axiomas, a conclusão enquanto conseqüência das premissas, sim, pode até mesmo negar o princípio de contradição: pois tudo isso são coisas igualmente indemonstráveis, imediatamente evidentes e conhecidas a priori.”

É esse Hobbes o mesmo que, em seu livro De principiis Geometrarum, caracteriza estranhamente seu modo de pensamento, no todo empírico, negando por completo a matemática propriamente pura, ao afirmar, obstinadamente que o ponto possui extensão e a linha possui largura, e, como nunca podemos exibir-lhe um ponto sem extensão e uma linha sem largura, tampouco podemos fazer-lhe compreender a aprioridade da matemática ou a aprioridade do direito, visto que ele se fecha a qualquer conhecimento não-empírico.”

A dependência do fator tempo em toda contagem é-nos revelada pelo fato de que em todas as línguas ‘multiplicação’ é expressa exatamente por tempo, i.e., por um conceito-de-tempo: sexies, six fois, sex mal [seis vezes].” Vez no dicionário: período igual de tempo, do latim para ‘sucessão’.

o conceito de NADA é essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado, que ele nega. Essa qualidade foi atribuída (especialmente por Kant) apenas ao nihil privativum que, sinalizado com (-) em oposição a (+), podia, de um ponto de vista invertido, tornar-se (+). Ora, em oposição ao nihil privativum foi estabelecido o nihil negativum, o qual em toda relação sempre seria nada, utilizando-se como exemplo a contradição lógica,¹ que se suprime a si mesma.” Belo trecho dessa vez, significativamente elucidativo! A propósito, o matemático curioso com relação à filosofia, porém essencialmente leigo, que, lendo passagens como essa, lançasse a hipótese de que a filosofia continental (até Sch., pelo menos) nada mais é que “discussões excessivamente abstratas de matemáticos entre si” estaria de certa forma correto

¹ Princípio aristotélico (princípio da não-contradição), talvez o mais importante da Primeira Filosofia (ironia das ironias, ele não é um conceito meta-Lógico, i.e., não deveria servir para elaborar metafísica, e sim apenas para discussões práticas): Se A é não-B, e se B é não-A, logo: A não pode ser não-A (auto-evidente); não-A é B; B não pode ser não-B; não-B é A. O que seria o ‘nada negativo’ que Schopenhauer enumera? Aquilo que não existe formalmente: um A = não-A ou B = não-B; ou ainda: um superveniente C que se identificasse com A e B ao mesmo tempo (o que seria chamado, desde Aristóteles, também de absurdo ou impossibilidade). O nada não tem lugar no mundo dos fenômenos. Para transcender esse ‘sistema’, teríamos de imaginar um mundo ou uma filosofia contraditórios, i.e., transgredir esse princípio básico da não-contradição, aceitar e abraçar o absurdo e o paradoxal. Este trecho também nos ajuda a compreender por que Schopenhauer “santifica” seu bem ascético, i.e., dá um status de bem absoluto à negação da Vontade, em que pese dizer que o “bem absoluto” é uma contradição e que só existe o bem relativo. Dentro deste quadro de superação-de- ou de aplicação-literal-e-extrema-de-Aristóteles, o filósofo consegue ser coerente consigo mesmo (ele representa o C que se identifica ao mesmo tempo com o A e o B) – levando a lógica às últimas conseqüências do lado de cá (do mundo das aparências e, paradoxalmente, do mundo cristão, que justamente nega por inteiro este mundo das aparências!).

qualquer nada (…) subsumido em um conceito mais amplo é sempre apenas um nihil privativum. (…) exemplo do não-pensável, necessariamente requerido na lógica para demonstrar as leis do pensamento.” “O universalmente tomado como positivo, o qual denominamos SER, e cuja negação é expressa pelo conceito NADA na sua significação mais geral, é exatamente o mundo como representação

Negação, supressão, viragem da Vontade é também supressão e desaparecimento do mundo, seu espelho. Se não miramos mais a Vontade neste espelho, então perguntamos debalde para que direção ela se virou, e em seguida, já que não há mais onde e quando, lamentamos que ela se perdeu no nada.” Mais fácil falar e especular do que escapar efetivamente do problema do nada negativo ou absoluto, do qual não se escapa. Enquanto houver fenômeno, há Vontade. Sempre.

9.2 A ASTRONOMIA

CÉU, O LABORATÓRIO PERFEITO: “Eis o material inteiro da astronomia que, tanto pela sua simplicidade quanto pela sua segurança, conduz a resultados definitivos e muito interessantes, fazendo jus à grandeza e importância de seus temas. P.ex., se conheço a massa de um planeta e a distância de seu satélite, posso concluir com certeza o período de translação do último conforme a segunda lei de Kepler. O fundamento dessa lei é que, a essa distância, apenas essa velocidade determinada é capaz de manter o satélite orbitando em torno do seu planeta, impedindo que caia nele.”

o movimento aparente dos planetas é conhecido empiricamente. Depois de muitas hipóteses falsas sobre a relação espacial desse movimento (órbita planetária), a hipótese verdadeira foi finalmente encontrada, bem como as leis que o movimento segue (as leis de Kepler). Por fim, também a causa destes (gravitação universal) e a concordância empiricamente conhecida de todos os casos observados com o conjunto inteiro das hipóteses e suas conseqüências (…) forneceram a certeza completa.”

não se deve procurar nenhum primeiro empuxo para a força centrífuga, mas ela, nos planetas, conforme a hipótese de Kant e Laplace, é o resíduo da rotação originária do corpo central, de onde os planetas se separaram e esse corpo se contraiu, e ao qual o movimento é essencial: ele ainda possui rotação e vaga ao mesmo tempo no espaço sem fim, ou translada talvez em torno de um corpo central maior, invisível para nós. Essa visão concorda inteiramente com a conjetura dos astrônomos acerca de um sol central e também com o distanciamento observado de todo o nosso sistema solar, e talvez de toda a galáxia à qual pertence o nosso sol” Toda periferia tem um centro, e o centro mesmo é uma periferia de outro centro maior e no entanto mais ignoto.

9.3 A FÍSICA

Ah, se não se fosse tão estúpido a ponto de se ver quase que paralisado por conta dos grandes fenômenos! Assim como, erradamente, criaram uma alma para o cérebro, deveriam, seguindo o exemplo, ter explicado a digestão por uma alma no estômago, a vegetação por uma alma na planta, a afinidade química por uma alma nos reagentes, aliás, até a queda de uma pedra pela alma da pedra.”

sempre restarão forças originárias; sempre restará, como resíduo insolúvel, um conteúdo do fenômeno que não pode ser remetido a sua forma; sempre restará, portanto, algo não mais explanável por outra coisa senão, e em conformidade com, o princípio de razão.

A altura a que as ciências naturais se alçaram em nosso tempo ridiculariza todos os séculos passados, e este é um píncaro que a humanidade atinge pela primeira vez. Mas não importa quão majestosos sejam os avanços que a física (entendida no amplo sentido dos antigos) nos possa proporcionar, nem o menor dos passos foi dado no caminho de uma metafísica, assim como um avião jamais obterá proporcionalmente mais espaço cúbico (volume) por ser maior longitudinalmente. E não é só: mesmo que o homem viajasse por todos os planetas e estrelas fixas, ainda nem por isso ter-se-ia aproximado um passo dessa metafísica. É justamente o caso contrário: o de que quão maiores forem os avanços na física mais sentiremos a necessidade de uma metafísica.

Somente se nos privarmos à força dessa primária e simples informação [de que tudo tem uma causa] podemos por um breve período nos maravilharmos com o processo de nossas próprias ações corpóreas como um milagre, quer seja, o de que entre o ato da vontade e a ação do corpo não há, realmente, conexão causal, posto que são diretamente idênticos, sua aparente diferença residindo na simples circunstância de que, aqui, o que é um e o mesmo é apreendido por nós como 2 modos diferentes de conhecimento, o externo e o interno [movimento material x intenção].”

Na Alemanha, os ensinamentos de Kant preveniram a continuidade irrestrita das absurdidades da física atomística e puramente mecânica; muito embora no presente mais imediato essas concepções prevaleçam por aqui, isto é conseqüência da frivolidade, opacidade, crueza e tontice reintroduzidas por Hegel em nosso meio.”

O materialismo inevitavelmente se converte em atomismo; como já aconteceu em sua infância nas mãos de Leucipo e Demócrito, e vem acontecendo novamente na sua segunda infância, causada pela idade; com os franceses porque eles nunca chegaram à filosofia kantiana, e com os alemães porque eles a esqueceram. E esse movimento é levado muito além nessa segunda infância. Não só corpos sólidos são ditos como consistindo de átomos, mas até os líquidos, a água, e depois o ar, os gases, não, mesmo a luz, que, dizem as teorias materialistas, consiste em ondulações de um éter completamente hipotético, impassível de prova mesmo pelo dogmatismo empiricista. Segundo eles a luz consistiria de átomos, explicando-se as diferentes cores pela rapidez variável dessas ondulações. Essa é uma hipótese científica que, como com a velha teoria das 7 cores de Newton, começa a partir de uma analogia com a música, inteiramente arbitrária e violentamente levada adiante.”

CRÍTICA AOS NEOMATERIALISTAS OU MATERIALISTAS MECANICISTAS E DETERMINISTAS (Schopenhauer nunca chegou a conhecer o Marxismo): “Diferentes movimentos perpétuos são então atribuídos a todos os átomos, rotações, vibrações, &c., de acordo com a função de cada qual; da mesma forma todo átomo tem sua atmosfera ou éter, ou então algo mais, e tudo que for necessário para dar plausibilidade à teoria é posteriormente acrescentado. As inventividades da filosofia da natureza de Schelling e seus discípulos eram, pelo menos, engenhosas, altivas, ou no mínimo sagazes; mas estes, [refere-se aos materialistas ruins de sua época] pelo contrário, são desajeitados, insípidos, reles e estranhos; há agora a legítima produção de mentes que são, acima de tudo, incapazes de conceber qualquer outra realidade que não a de uma matéria fabulosa, sem-qualidade. Essa matéria é um objeto absoluto, a saber, um objeto sem sujeito. Em segundo lugar, esses neo-materialistas não pensam em nenhuma outra atividade que não seja movimento e impacto: esses dois, e somente esses dois, são-lhes compreensíveis. Que tudo possa ser reduzido a movimento e impacto é sua afirmação a priori; é a coisa-em-si deles.” “Para eles o curso do mundo é como o de um relógio depois que o relojoeiro montou todas as peças e lhe deu corda, isto é, aqueceu-o, estimulou-o, tornou-o frenético. Daí que, deste ponto de vista artificial e incontestável, vemos o universo convertido em mera máquina ou engrenagem, cujo propósito nos é insondável. Mas ainda que, mesmo sem justificativas palpáveis para isso, aliás, no fundo, a despeito de toda o caráter concebível da coisa e de se a imaginar regida perfeitamente por leis físicas, ainda que alguém assumisse a seu bel prazer um primeiro começo, nada seria por isso essencialmente modificado. Pois a primeira condição das coisas, arbitrariamente estabelecida, por óbvio, determinaria de antemão e automaticamente, fixando-os irrevogavelmente – dos mínimos detalhes ao todo do sistema –, todos os estados sucedâneos.” Não deixaria de ser um postulado totalmente correto – tirante que não se aplica, evidentemente, à natureza humana que é a da responsabilidade pela própria existência! Ou seja: se a estética pudesse viver sem a ética e vice-versa, até que estes toscos materialistas poderiam ser sábios; no mundo como ele é, entretanto, são apenas uns parvos.

Se um insight direto dos trabalhos da natureza nos fosse possível, forçosamente reconheceríamos que o espanto e admiração provocados pela teleologia são análogos aos sentimentos experimentados pelo selvagem descrito por Kant em sua explicação do cômico e do riso na Crítica da faculdade do juízo. O selvagem em questão, quando viu espuma jorrar de uma garrafa de cerveja recém-aberta, disse assim: Não é que eu esteja espantado pelo jeito como esta espuma saiu da garrafa; estou espantado que qualquer um consiga colocá-la aí dentro!Não podemos responder como o que existe, existe; apenas confessar que existem e conformarmo-nos.

9.4 A BIOLOGIA

Tampouco a explanação fisiológica da vida vegetativa (functiones naturales, vitales), por mais longe que se vá, pode suprimir a verdade de que toda vida animal a se desenvolver nesses moldes é ela mesma fenômeno da Vontade. De modo geral, como foi elucidado antes, cada explanação etiológica só pode fornecer a posição necessariamente determinada no espaço e no tempo de um fenômeno particular, seu aparecimento necessário conforme uma regra fixa. Mas por essa via a essência íntima do fenômeno permanece sempre infundada, sendo pressuposta por qualquer explanação etiológica, e apenas indicada pelo nome força, lei natural ou, caso se trate de ações, caráter, vontade.”

O cão está para o homem como a taça de vidro está para a taça de metal, e é por isso que o cão é-nos tão querido: dá-nos imenso prazer perceber nele todas essas inclinações e emoções que nós mesmos, em nosso cotidiano, escondemos e disfarçamos tão bem de nossos iguais; e exibidas, o que é mais, de modo tão simples e franco por cada exemplar diante de seu dono.”

a opinião, tão afetada e forçada em nossos dias, de que há vida no que não é organizado, aliás no globo em si mesmo, e de que, também, o sistema planetário inteiro seria um organismo, é inteiramente inadmissível.” Curioso, porém: atende-se ao pré-requisito estabelecido por Schopenhauer para seres organizados da manutenção da forma (circular, cíclica), com mudança constante de material, isto é, sol, cometas, asteróides e planetas não estão quimicamente congelados no tempo e mantêm entre si uma certa homeostase ‘individual’ e ‘sistemática’. Poder-se-ia objetar que o núcleo da terra ou do sol não poderiam se manter com uma simples troca atômica (mudança de material), mas poderá ser que as constantes mudanças na superfície da terra e da lua – para citarmos só dois corpos celestes – não afetam sua existência? Na verdade essa questão não faz sentido justamente por não se tratar de vida – forma-conteúdo são unos na transformação climática que está acontecendo, p.ex..

Para muitos filósofos de baixa qualidade, toda teleologia é ao mesmo tempo uma teologia, e a cada instância de finalidade reconhecida na natureza, em vez de pensar e aprender a compreendê-la, eles prorrompem no seu grito infantilizado, ‘Propósito! Propósito!’, começam a usar os refrões da velha e sempre subsistente filosofia de comadronas (o ápice do pensamento domesticado) e se tornam surdos a qualquer argumento da razão, como, p.ex., o grande Hume já lhes tinha lançado antes mesmo de eles nascerem.” Traduzindo este parágrafo para uma linguagem mais direta e acessível: se é para fazer metafísica de baixa qualidade, o melhor mesmo é seguir em investigações empíricas sobre a natureza, sem tecer nenhuma hipótese maior que as próprias pernas.

Por que o indivíduo existe seria respondido de forma clara; mas por que existe a espécie mesma? Essa é uma pergunta que a natureza, quando considerada de forma meramente objetiva, não pode responder.”

Devo aqui expressar a minha opinião de que não há pele de cor branca natural no homem. Originalmente ele só pode ter tido pele negra ou parda, como nossos ancestrais os hindus. Um homem branco nunca nasceu do útero da Mãe-Natureza; não há o que chamam de ‘raça branca’. Todo homem branco de hoje é resultado do desbotamento gradual da cor, de um clareamento artificial de gerações. (…) Os ciganos, uma raça indiana que migrou à Europa há não mais do que 400 anos, demonstram o estado de transição entre a compleição dos hindus e a nossa. Nos impulsos de procriação, a natureza que fala no homem deseja o retorno dos cabelos negros e dos olhos marrons, que são o fenótipo primitivo.”

10. A MEDICINA

Não está ao nosso alcance ensinar e aprender in abstracto uma Fisionômica, porque as nuances são aqui tão sutis que conceito algum tem flexibilidade para lhes corresponder. Conseqüentemente, o saber abstrato está para elas como uma imagem de mosaico está para um quadro de VAN DER WERF ou DENNER.” Gall e Lavater como imbecis altamente intuitivos que creram poder ensinar algo inócuo e amorfo – sobre formas! – em calhamaços… Sua sensação de que “ninguém houve de semelhante antes de mim” induziu-os ao erro de se crerem gênios, mas tão-só lidavam com algo que não era passível de ser ensinado, e ninguém intuitivo como eles quis ser tão temerário.

Por isso sou da opinião de que a [ciência] fisionômica não pode avançar com segurança a não ser até o estabelecimento de algumas regras muito gerais, como p.ex. estas: na testa e nos olhos pode-se ler o que há de intelectual numa pessoa, já na boca e na metade inferior da face o que há de ético, as manifestações da vontade. Testa e olhos se explicitam reciprocamente: tomados isoladamente são compreensíveis apenas pela metade. O gênio nunca é sem uma testa alta, larga, belamente arqueada, mas a recíproca amiúde não é verdadeira. O espírito pode ser inferido de um semblante espirituoso tanto mais seguramente quanto mais feia for a face, e, de um semblante estúpido pode-se inferir tanto mais seguramente a estupidez quanto mais bela for a face; porque a beleza, enquanto correspondência com o tipo da espécie, já porta em e por si a expressão da clareza espiritual, o contrário ocorrendo com a fealdade, etc.” Varg Vikernes possui uma face estúpida quando jovem; depois, uma expressão austera, que no entanto nos ludibria (feiúra encobridora), posto que ele não é um sábio (confirmação da regra).

A sensibilidade em si mesma é totalmente incapaz de contrair um músculo sequer. Isso só pode ser realizado pelo próprio músculo, e sua capacidade para realizá-lo é chamada irritabilidade, i.e., suscetibilidade ao estímulo.” “a Vontade é o substrato metafísico da irritabilidade do músculo”

Ultimamente, a perspectiva fisiológica tem, finalmente, prevalecido na Patologia. Segundo esta, doenças são em si um processo curativo da natureza, que esta última introduz a fim de remover, superando suas causas, uma desordem que de alguma forma inoculou-se no organismo. Na batalha decisiva, a crise, esse processo regenerador é ou vitorioso, reconquistando a saúde para o organismo, ou derrotado.” “Por outro lado, que a vontade¹ seja ela própria a enfermidade, como afirmou Brandis repetidas vezes em sua obra Über die Anwendung der Kälte, [Sobre o emprego do frio (para a cura das doenças)] que citei na 1ª parte do meu ensaio Sobre a Vontade na Natureza, isso não passa de um grande mal-entendido.”

¹ Entendo que se esteja empregando o termo aqui no sentido mais fisiológico da coisa, i.e., temperamento ou disposição do paciente, daí a tradução pela letra minúscula.

As reflexões de Bichat e as minhas apóiam-se reciprocamente: sua obra é o comentário fisiológico da minha; e a minha é o comentário filosófico da dele. Seria melhor para o leitor isolado de qualquer um de nós que lesse o outro, para melhor entender cada qual.” “Como anatomista e fisiologista ele principia pelo objetivo, i.e., a consciência de outras coisas; eu, como filósofo, principio pelo subjetivo, a auto-consciência.”

um corpo desajeitado e atrapalhado indica pensamentos desajeitados e atrapalhados, e será visto como sinal de estupidez tanto em indivíduos quanto no caráter geral das nações, tanto como a ausência de autocontrole e a vacuidade do olhar. Outro sintoma do estado fisiológico em questão (a falta de inteligência) é o fato corrente de que muitas pessoas, ao dialogarem em movimento, se vêem obrigadas a parar no meio do passeio sempre que a conversação com um outro, que siga caminhando normalmente, comece a estabelecer múltiplas conexões e entrelaçamentos temáticos; o cérebro destes primeiros, tão limitado, assim que se vê premido a juntar pensamentos abstratos de ordem não tão mesquinha, vê-se sem reservas energéticas e tem de usar também o poder de concentração que lhe era necessário a fim de manter os membros em livre movimentação, isto é, a motricidade nervosa do tolo tem de se dedicar à conversa, uma vez que no mundo das pessoas que vivem mergulhadas nas aparências o que há de mais profundo para elas ainda está muito perto da superfície mais elementar, é tudo uma coisa só. [!!]As pessoas que não conhecem o – ou nunca fixaram o olhar no – abismo.

10.1 CONTRIBUIÇÕES À PSIQUIATRIA (FISIOLOGIA DO GÊNIO)

Que veementes sofrimentos espirituais ou terríveis e inesperados eventos com freqüência ocasionam a loucura, explano-o da seguinte maneira. Todo sofrimento desse tipo está sempre limitado, enquanto acontecimento real, ao presente. Nesse sentido, é sempre transitório e, assim, nunca excessivamente grave.” “quando um tal desgosto, um tal saber doloroso, ou pensamento, é tão atormentador que se torna absolutamente insuportável e o indivíduo poderia sucumbir a ele, a natureza assim angustiada recorre à LOUCURA como último meio de salvação da vida.” “Como exemplo considere-se o furioso Ajax, o rei Lear e Ofélia.”

um pulso enérgico e até mesmo, de acordo com Bichat, um pescoço enxuto, são pré-requisito para atividades de ordem superior no cérebro. (…) Mas o oposto do acima também ocorre: desejos veementes, caráter afetado e violento, tudo isso aliado a um baixo intelecto, i.e., cérebro pequeno de má conformação num crânio não obstante largo. Este é um fenômeno tão comum quanto repulsivo: podemos compará-lo à aparência da beterraba.”

A ESTUPIDIFICAÇÃO DO SEU PRINCIPAL SUCESSOR (HEBETUDE RETARDADA): “mediante o esforço repetitivo nosso intelecto se afadiga até a completa estupefação, se torna exausto, como uma pilha voltaica depois de sucessivos choques. Sendo assim, todo labor mental contínuo demanda pausas e descanso; de outra forma a estupidez e a incapacidade seguem, a princípio, é claro, apenas temporariamente; mas se esse descanso é persistentemente negligenciado ao intelecto, ele tornar-se-á excessiva e ininterruptamente cansado, e a conseqüência é uma deterioração permanente, que num homem já velho passa por completa incapacidade, infantilidade, imbecilidade, e finalmente loucura. Esta não deve ser atribuída à idade, em e por si mesma, mas a esforços cerebrais demasiados, tiranicamente longos e incessantes, no caso de sobrevir no fim da vida. Essa é a razão de Swift ter terminado louco, de Kant se ter tornado infantil, de Walter Scott, mas também Wordsworth, Southey e muita minorum gentium [gente pequena, anônimos] acabarem como tolos ineptos. Goethe permaneceu até o fim lúcido, vigoroso e de mente muito ativa, porque ele, que nunca deixou de ser um homem do mundo e um cortesão, nunca transformou suas ocupações em compulsão. O mesmo pode-se dizer positivamente de Wieland e Kuebel, este último vivo até os 91, e também de Voltaire. Tudo que acabei de dizer prova quão subordinado e material, e que mera ferramenta, o intelecto é. É por isso que seu cultivo requer, pela terça parte da vida, sua suspensão no estado do sono, i.e., o repouso do cérebro, do qual o intelecto é mera função, tanto que não existe intelecto sem cérebro apesar de poder existir o contrário, além do estômago necessariamente preceder a digestão, ou o corpo preceder suas impulsões, de modo que em idade avançada não só o corpo como os instintos se debilitam e decaem. A Vontade, por outro lado, como a coisa-em-si, nunca é lerda, é absolutamente incansável, sua atividade é sua essência, nunca deixa de desejar, e quando, durante o sono profundo, abandona o intelecto, e assim não pode agir exteriormente por motivos compreensíveis, é ativa como a força vital, preocupa-se sem cessar com a economia interna do organismo e, enquanto vis naturae medicatrix (vontade natural regeneradora), trata de pôr em ordem as irregularidades que nele vicejavam.”

Supostamente chegamos ao ápice das condições físicas e mentais ao redor do trigésimo aniversário, por conta da dependência que temos da pressão do sangue e do efeito da pulsação sobre o cérebro, época em que também passa a haver a predominância do sistema arterial sobre o venoso, produzindo a maior elasticidade das fibras cerebrais, sendo que ainda por cima nesta etapa não declinamos em relação ao sistema genital despertado na adolescência. Já por volta do 35º ano, uma leve diminuição da energia física do cérebro se torna perceptível, e o sistema venoso voltando a se tornar preponderante, bem como ocorrendo um relativo endurecimento da consistência do tecido cerebral, tudo isso – que é ainda mais notável no sujeito sedentário que não exercita o corpo, no sujeito que não utiliza as faculdades mentais com constância, no sujeito que não aprende com experiências ou não atravessa muitas experiências, no sujeito que não acumula conhecimento, no sujeito que não cultiva uma habilidade de caráter holístico, coisas que como que contrabalançam todas essas perdas – pode ainda decair de modo gradual e pouco acentuado até uma idade muito avançada. Em suma, é o cérebro similar a um instrumento que vai se desgastando aos poucos, e a velocidade do desgaste depende daquele que o utiliza.”

Montaigne diz de si mesmo que sempre foi um dorminhoco. Que passou uma larga parte de sua vida dormindo, e que na velhice ainda dormia de 8 a 9 horas por noite (III, capítulo 13). Descartes, segundo consta, também era um grande dorminhoco (Baillet, Vie de Descartes, 1693, p. 288). Kant se permitia 7 horas de sono somente, mas era tão difícil para ele despertar que acabou ordenando a seu mordomo que o forçasse, contra sua vontade, sem ouvir qualquer objeção sua de manhã; só assim para conseguir ficar de pé (Jachmann, Immanuel Kant, p. 162). Isso se explica pela razão de que quanto mais um homem é desperto, quer seja, quão mais clara e ativa é sua consciência, maior é sua necessidade de sono, tanto em qualidade quanto em quantidade. Naturezas pensantes ou árduos exercitadores de trabalhos cerebrais devem reservar para seu organismo mais tempo para regenerar as energias. Que um exercício muscular continuado também nos deixa sonolentos pode ser explicado pelo fato de que o cérebro, através da medula oblongata, a medula espinhal e os nervos motores, distribui o estímulo aos músculos, gerando sua irritabilidade, e dessa forma, prolongando-se o esforço, exaure sua força. A fadiga observada nos braços e pernas tem, portanto, origem no cérebro; a dor que essas partes ‘sentem’ é em realidade experimentada pelo cérebro, conectado aos nervos motores tanto quanto aos nervos dos sentidos.”

No sonambulismo magnético a consciência é duplicada: 2 correntes de pensamento, cada uma auto-suficiente, mas um tanto diferentes uma da outra, surgem; a consciência desperta nada sabe da sonambúlica. Mas o temperamento e o caráter são idênticos em ambas, eles são invariáveis no indivíduo; ambas as personalidades exprimem as mesmas inclinações e aversões. A função pode até estar duplicada, mas não a natureza essencial.” À luz do que os otimistas da protopsiquiatria e da primeira psiquiatria dinâmica do séc. XIX afirmavam, Sch. se mostra, novamente, pelo menos meio século à frente de seu tempo neste assunto (magnetismo animal). Janet o corrobora por inteiro em seu Automatismo psicológico.

A Vontade em si está presente em todo o organismo, já que este é meramente sua forma visível; o sistema nervoso existe em todas as partes meramente para o propósito de possibilitar o direcionamento da ação adjudicando-se o controle, como se o corpo servisse à Vontade como um espelho, para que esta veja aquilo que executa, assim como nós usamos um espelho para nos barbearmos.”

OS TESTARUDOS: “O cérebro desses seres deve ter uma conformação muito original em relação aos outros. Seu desenvolvimento é, na comparação, descomunal, em magnitude física tanto quanto em características espirituais. O cérebro do gênio é particularmente largo e alto. Na outra mão, sua profundidade será inferior, e o cerebrum preponderará de forma anormal em proporção ao cerebellum(…) Mas nosso conhecimento não é ainda suficiente para determinar as relações das partes com o todo no cérebro com exatidão, embora reconheçamos facilmente aquela forma craniana que indica inteligência elevada e nobreza.² (…) decerto que a proporção quantitativa da matéria branca para a matéria cinzenta tem influência decisiva, o que, lamentavelmente, não podemos especificar mais no momento.³ O estudo post-mortem do corpo de Byron (apud Medwin) demonstrou que em seu caso a matéria branca estava em uma proporção desusadamente superior comparada com a matéria cinza; constatou-se, também, que o cérebro pesava 2,72kg.” O que é matéria cinzenta num mundo de ruído branco? O que é matéria branca num mundo poluído e cinzento?

¹ Essencialmente Schopenhauer postula uma preponderância muito maior dos setores cerebrais ligados à inteligência e emoção que do setor ligado ao trabalho muscular e regulação da postura. Se a anatomia cerebral continua tão simplista quanto em sua época (sem endeusar qualquer neurologia, mas creio que não vem a ser inteiramente o caso), podemos ter certeza de que nenhum gênio no futebol é um gênio no sentido filosófico aqui tratado, e todos possuem cerebelos bem avantajados!

² E essa ignorância das relações entre as partes do nosso sistema nervoso permanecem, 150 anos depois. Ninguém pode afirmar nada nessa área sem correr um grande risco de desmentido.

³ O engraçado é que a matéria cinzenta é popular e pelo visto cientificamente mais associada hoje ao que Sch. atribuía à matéria branca, cf. Wikipédia: “Enquanto a substância cinzenta (composta de neurônios) é primeiramente relacionada com processamento e cognição, a substância branca (composta de axônios mielíticos) modula a distribuição de ações potenciais, agindo como um reléa e coordenando a comunicação entre diferentes regiões cerebrais.” Mais um motivo, ironicamente, para o gênio ter realmente mais matéria branca, como se disse de Byron, e para Sch. estar errado quanto a sua tese da preponderância do intelecto, e não da vontade, no gênio (ver 12.5 para mais detalhes).

a “relé, s.m. Aparelho que retransmite o sinal que recebe, amplificando-o consideravelmente; Aparelho capaz de fazer com que uma energia menor [o cerebellum, invertendo o que Sch. disse, anormalmente maior no gênio] controle outra maior [o cerebrum].”

Mesmo a delicadeza da conformação nervosa no indivíduo não é suficiente para suscitar o fenômeno do gênio se a herança do pai não é adicionada,¹ um temperamento vívido e apaixonado, que se exibe somaticamente como energia transbordante – anormal – provinda do coração, e conseqüentemente da circulação do sangue, especialmente no que toca à irrigação da cabeça.”

¹ Schopenhauer tem a idéia fixa de que o gênio está estritamente associado ao caráter do masculino. Isso interfere com sua misoginia exacerbada, mais explorada num tópico à parte, o nº 13.

A condição descrita acima, i.e., a herança do temperamento paterno, porém num cérebro mal-organizado, dá vivacidade sem presença de espírito, acaloramento sem luz, gera pessoas irritáveis, homens de uma insuportável motricidade e petulância. Que em dois irmãos só um tenha gênio, e esse geralmente o mais velho, o caso de Kant, p.ex., é em primeiro lugar explicado pelo fato de que o pai estava na idade do vigor e da paixão somente à concepção do gênio.” Idiossincrasias schopenhauerianas sem qualquer fundamento.

11. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS

Quando concebemos uma hipótese, temos olhos de lince para qualquer dado que a confirme, e olhos de míope para qualquer coisa que a contradiga.”

Podemos considerar o ponto em que o entendimento faz a transição da mera sensação sobre a retina à causa dessa sensação como as fronteiras entre o mundo como vontade e o mundo como representação.”

11.1 A HISTÓRIA

As ciências propriamente classificatórias: zoologia, botânica, também a física e a química (na medida em que reduzem todo fazer-efeito inorgânico a poucas forças fundamentais), possuem o maior número de subordinações. A história, ao contrário, propriamente dizendo, não possui subordinação alguma, pois o universal nela consiste apenas na visão panorâmica dos principais períodos, dos quais, porém, não se podem deduzir eventos particulares – os quais estão subordinados só ao tempo e coordenados segundo o conceito. Conseqüentemente, a história, tomada em sentido estrito, é sem dúvida um saber, mas não uma ciência.”

A verdadeira sabedoria não é adquirida medindo-se o mundo ilimitado ou, o que seria mais pertinente, sobrevoando pessoalmente o espaço infinito, mas antes investigando qualquer coisa em particular, procurando conhecer e compreender perfeitamente a sua essência verdadeira e própria.” Quem não entende a ausência-de-fim do momento presente não pode ser historiador.

Também a experiência e a história ensinam a conhecer o homem; contudo, mais freqüentemente OS homens e não O homem”

Agora vemos como também os historiadores antigos seguiam o preceito de Winckelmann de que o retrato deve ser o ideal do indivíduo (…) Já os novos historiadores, diferentemente, salvo raras exceções, apresentam na maioria das vezes apenas ‘um barril de entulhos e inutilidades, e quando muito uma ação principal de Estado’.”

É errado afirmar que as autobiografias são cheias de engodo e dissimulação. A mentira é em toda parte possível, mas talvez em nenhum outro lugar é mais difícil do que justamente na autobiografia.”

Verificamos que as 3 raças de homem que, tanto em traços fisiológicos como lingüísticos, são indubitavelmente independentes em suas origens, quer seja, os caucasianos, os mongóis e o etíopes, encontram-se em casa apenas no Velho Mundo. A América é povoada pela raça mongol misturada e climaticamente modificada, que com toda a probabilidade veio da Ásia.”

A história será mais interessante quão mais especializada for sua narração, mas assim perde em credibilidade, pois adquire ares de romance.”

Ao passo em que a história nos ensina que a cada ocasião algo mais ocorreu, a filosofia tenta convencer o sujeito da constatação única de que todos os tempos e lugares foram, são e serão exatamente os mesmos.”

Histórias construtivas, guiadas por um otimismo e idéia de raça ou povo como fins em si, sempre se consumam num Estado gordo, rico e confortável, com uma constituição bem-regulada, boa justiça e polícia, artes úteis, indústrias integradas ao social e, sobretudo, numa atmosfera de perfeição intelectual. Esse quadro não é ruim para uma ficção: o bom ficcionista ou teleologista sabe que a moral permanece essencialmente inalterável.”

Aquele que leu Heródoto já estudou história o bastante, do ponto de vista filosófico. Tudo que forjará a história dos próximos séculos já está lá: os esforços, ações, sofrimentos, e o destino da raça humana.”

A história deve ser vista como a razão, ou a consciência reflexiva, da raça humana, e ocupa o lugar de uma autoconsciência imediata comum a todos, de modo que só através dela a raça humana vem a ser um todo, vem a ser humanidade.”

Da mesma forma, o que a linguagem é para a razão dos indivíduos, como condição indispensável de seu uso, a escrita é para a razão da coletividade humana; porque só depois da escrita é que sua existência real começa, como a existência de cada um principia com a aquisição da linguagem. Escrever serve para restaurar a unidade da consciência coletiva, que é constantemente interrompida pela morte, e portanto é fragmentária. Assim, o pensamento do antepassado é pensado pelo seu descendente remoto. A escrita é o remédio para a cisão da humanidade e da consciência dessa humanidade em um número infinito de individualidades efêmeras, e é também, portanto, um clamor contra o próprio tempo, que sempre favorece o esquecimento. E não só a escrita: para completar essa memória, devemos prestar atenção nos monumentos de pedra, que em grande parte são mais antigos que aquela. Quem acreditaria, não fossem os grandes monumentos, que houve um tempo em que, a um custo incalculável, alguns poucos indivíduos mobilizaram com seu poder uma multidão de milhares por tantos anos a fim de construir as pirâmides do Egito, monolitos, tumbas rochosas, obeliscos, templos e outras construções que sobreviveram milênios? Comparadas a essa magnitude temporal, quão mesquinha não é a vida do indivíduo, insuficiente em si mesma para ver o início e o fim de uma obra desse vulto? Por gerações sem conta os faraós mantiveram de pé o fim ostensivo que tinham em mente, usando a ignorância da maioria como meio. E que fim era esse? Falar a seus descendentes remotos, conectar-se a eles, estabelecer, a sua maneira, a unidade da consciência da humanidade. Os edifícios dos hindus, dos egípcios, mesmo dos gregos e romanos, foram calculados para durar milhares de anos, porque do alto de sua cultura elevada eles enxergavam um horizonte mais amplo. Já as edificações da Idade Média e dos tempos modernos só tem sua função imediata em vista, e não foram erguidas para durar mais que alguns séculos, no máximo. Em parte, confessemos, isso se deve já ao fato de o homem depois da Antiguidade depositar mais confiança na difusão da escrita para cumprir o papel desse elo histórico de gerações. Desde o nascimento da arte da imprensa, isso ganha uma proeminência extraordinária. Não é dizer que morreu o desejo de, através da arquitetura contemporânea, preservar um legado, falar com a posteridade. É sempre uma desgraça quando um grande monumento é destruído ou desfigurado para servir a fins utilitários vis. Monumentos da escrita têm menos a temer dos elementos, em comparação com os bárbaros.¹ Os egípcios bem quiseram combinar ambas as formas (arquitetura + escritura), pois supriram suas construções com hieróglifos, ou melhor, adicionaram mesmo pinturas em caso de que os hieróglifos não pudessem mais ser decriptados.”

¹ Antecipa brilhantemente o nazismo, a época neo-inquisitorial em que se queimaram pilhas de livros. Ou seja: temos menos a temer de tsunamis e terremotos que do próprio lobo do homem.

A história está para a poesia como a pintura de retratos está para a pintura histórica, pois a história dá o verdadeiro no particular, a poesia no universal.”

11.2 O DIREITO

O conceito de injustiça – sua negação da justiça, conceito originariamente MORAL – torna-se JURÍDICO pela mudança do ponto de partida do lado ativo para o passivo, ou seja, por inversão. Isso, ao lado da doutrina do direito de Kant, a qual, do imperativo categórico, deduz falsamente a fundação do Estado como um dever moral, deu origem aqui e ali, nos novos tempos, ao erro bastante esquisito e grosseiro de que o Estado seria uma instituição para o fomento da moralidade [e não seu contrário!] e que teria se originado graças aos contínuos esforços em promover essa moralidade, sendo, portanto, orientado contra o egoísmo. [quando obviamente estabelece um poder político concentrado onde antes havia de facto uma política e uma governança em alguma medida altruístas]“Mais disparatado ainda é o teorema de que o Estado seria condição da liberdade em sentido moral e, com isso, da própria existência da moralidade.”

Kant faz a afirmação fundamentalmente falsa de que, exteriormente ao Estado, não há direito algum de propriedade. Só que, em conformidade com a nossa dedução recém-feita, há sim propriedade no Estado de natureza, lastreada em direito perfeitamente natural, i.e., moral, o qual não pode ser violado sem injustiça, podendo pois ser defendido sem injustiça. Por outro lado, e isto também é certo, fora do Estado não há DIREITO PENAL. Todo direito de punir é estabelecido exclusivamente pela lei positiva, que, ANTES do delito mesmo, determinou uma punição para ele e cuja ameaça, como contra-motivo, deve sobrepor-se a todo possível motivo que conduz ao delito. Essa lei positiva deve ser vista como reconhecida e sancionada por todos os cidadãos do Estado. Ela, portanto, funda-se sobre um contrato comum, a cujo cumprimento os membros do Estado estão obrigados em todas as circunstâncias. Destarte, deve-se, de um lado, infligir a punição ou, de outro, recebê-la. Destarte, a aceitação de uma punição é algo que pode ser imposto pelo direito. De toda essa cadeia se segue que o imediato OBJETIVO DA PUNIÇÃO num caso particular é CUMPRIR A LEI COMO UM CONTRATO. Por sua vez, o único objetivo da LEI é IMPEDIR o menosprezo dos direitos alheios, pois, para que cada um seja protegido do sofrimento da injustiça, unem-se todos em Estado, renunciando à prática da injustiça e assumindo o fardo da manutenção dele.”

Retaliação do mal, com o mal sem ulterior finalidade, não é moralmente, nem de qualquer outra maneira, justificável, porque inexiste um fundamento da razão para tal, e a jus talionis estabelecida como um princípio independente e último do direito penal carece de sentido. Por conseguinte, a teoria kantiana da punição, concebida como retaliação pela vontade de retaliação, é uma visão totalmente infundada, perversa. No entanto, seus vestígios sempre se fazem presentes nos escritos dos jurisconsultos, na forma de perífrases imponentes, verborragia oca, como aquela de que, pela punição, o delito é expiado ou neutralizado ou suprimido e coisas semelhantes.”

11.3 SOBRE A EVOLUÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS LÍNGUAS: SUMA DEPRECIAÇÃO DO HOMEM ALEMÃO

A necessidade mais imediata de se aprender os idiomas antigos se liga aos arcaicos termini technici, e eles estão cada vez sob maior perigo de negligência mediante o uso de línguas contemporâneas nas investigações eruditas. Se efetivamente esse aprendizado [do latim e do grego] vier a caducar, se o espírito dos antigos, indissociável de suas línguas, desaparecer da educação liberal, toda essa rudeza, insipidez e vulgaridade tomarão posse completa da literatura. As obras dos antigos são a estrela-guia de todo esforço literário ou artístico; se estas obras desaparecem, a literatura e a arte vão junto. Hoje mesmo somos testemunha da miséria e puerilidade de estilo da grande maioria dos escritores – e parte disso se justifica pelo fato de essa geração nunca ter escrito em latim. Uma das maiores utilidades do estudo dos antigos é nos resguardar da verbosidade; os antigos não medem esforços para escrever de modo conciso e calculado. O erro básico dos modernos é a prolixidade, o que os escritores da atualidade começam a tentar disfarçar cortando cada vez mais letras e sílabas e inventando abreviaturas que se tornam lugares-comuns. Sendo assim, é um imperativo empreender o estudo dos antigos por toda a nossa vida, muito embora depois de um tempo as horas dedicados a esses autores possam diminuir bastante. Os antigos sabiam dessa verdade: não se deve escrever como se fala. Os modernos, por outro lado, não têm sequer vergonha de imprimir aulas e congressos que ministram! O estudo dos autores clássicos é muito convenientemente chamado de estudos nas Humanidades, porque através deles o aluno, antes de tudo, torna-se novamente homem, pois ingressa naquele mundo que era ainda livre das absurdidades da idade média e do romantismo, que vieram a penetrar tão fundo na população européia que mesmo na atualidade [meados do século XIX] qualquer recém-nascido já nasce soterrado por esses escombros (preconceitos). Nossa primeira obrigação é nos livrar de todo esse lixo para voltarmos a sermos homens. Jamais pensemos que nossa sabedoria moderna poderá um dia fazer as vezes dessa peculiar iniciação na condição humana; não nascemos, como os gregos e romanos, livres, desacorrentados, filhos diretos da natureza. O que primeiro somos? Filhos e herdeiros da cavernícola era medieval e sua loucura, suas pregações infames, e também da cavalaria, essa coisa meio-brutal, meio-infantil. E apesar de vermos o romantismo e o medievalismo caminhando lentamente para seu esgotamento, é mister notar que o homem moderno não se ergue sobre os próprios pés. Sem a escola dos antigos nossa literatura degenerará em fofoca vulgar e filisteísmo inócuo. Tudo isso me leva ao bem-intencionado conselho de pôr termo de vez a essa mania germanófila tão condenável.”

no lugar de Untersuchung agora se escreve Untersuch; [investigação] pior ainda, no lugar de allmälig, mälig; [gradualmente – as grafias em voga são allmähllich ou mähllich, até mais longas!] em vez de beständig, ständig. [incessante, remanescente, constante, perpétuo]¹ No lugar de beinahe [quase], nahe [perto]. Ora, se um francês começasse a escrever près no lugar de presque, [perto no lugar de quase], ou se um inglês escrevesse most [mais] em vez de almost [quase], seriam objeto de ridículo; mas na Alemanha quem quer que faça esse tipo de supressão passa por original. Nossos químicos já escrevem löslich [solúvel] e unlöslich [insolúvel] no lugar de unauflöslich, [indissolúvel ou irreconciliável/inconciliável] e se os gramáticos não quebrarem suas juntas e articulações eles roubarão da língua uma valiosa palavra. Nós, cadarços, e também conglomerados dos quais o cimento é amolecido, bem como qualquer coisa análoga, são löslich [desatados, afrouxados, quando esta palavra era exclusiva para esta conotação]; mas aquilo que é auflöslich, [dissolúvel]² ao contrário, é tudo que desaparece num líquido, como o sal na água. Auflösen [dissolver, derreter, desintegrar] é o terminus ad hoc, [termo técnico, importado da ciência cosmopolita européia] que diz isso e nada mais, precisando um conceito. Nossos agudos improvisadores da língua, porém (…) por coerência e contigüidade, seriam obrigados a fazer de lösen sinônimo ou substituto de ablösen [aliviar, abrandar, até substituir ou revezar, e guardar], auslösen, [liberar, causar, lançar] einlösen, [resgatar, honrar, redimir]³ etc. Neste andar da carruagem, a língua se tornará de uma uniformidade boçal e estéril. Lembremos, contudo, que empobrecer o idioma em uma só palavra significa, ao mesmo tempo, tornar o pensamento da nação mais pobre em um conceito inteiro. Essa é, apesar de tudo, a tendência dos esforços conjuntos de quase qualquer autor dos últimos 10 ou 20 anos. O que demonstrei com a ajuda de um caso poderia ser corroborado por cem mais, e essa abjeta economia de sílabas se dissemina como uma doença. Os malditos desgraçados contam mesmo as letras, e não hesitam em mutilar uma palavra, ou usar outra num falso sentido, sempre que assim puderem ganhar 2 caracteres. Aquele incapaz de novos pensamentos irá trazer ao menos algumas novas palavras ao mercado, e todo desperdiçador de tinta ainda ousa considerar sua vocação melhorar a língua! Os jornalistas são os mais desavergonhados; os jornais, devido à natureza trivial de seus conteúdos, possuem, logicamente, os maiores públicos; de fato um público que na maioria das vezes lê jornais e apenas jornais. E através dos jornais cria-se a mais nefanda ameaça à língua. Eu recomendaria, portanto, que se submetesse essa classe profissional a uma CENSURA ORTOGRÁFICA, ou que pelo menos pagassem uma multa por cada palavra estrambótica ou mutilada. Afinal, o que é que pode ser mais descabido do que essas mudanças na língua procederem das camadas mais baixas da literatura? A língua, em especial uma língua, relativamente falando, original como a alemã, é a herança mais valiosa de uma nação, sendo ao mesmo tempo uma obra de arte excessivamente complicada, facilmente danificável, e impossível de ser restaurada – um caso clássico de noli me tangere. [não-me-toque, i.e., o princípio daquilo que não deve ser mexido se isso puder ser evitado, sob pena de acabar estragando a coisa] Outras nações já passaram pelo mesmo, demonstrando grande compaixão por seus idiomas, ainda que fossem idiomas ou dialetos muito menos singulares que o alemão. A língua de Dante e de Petrarca difere em ninharias do italiano vigente; Montaigne é bastante legível ainda hoje, assim como Shakespeare, até em suas edições mais remotas. Para o cidadão alemão é melhor ter palavras mais longas em sua boca, uma vez que ele pensa devagar, e as palavras compridas dão-lhe tempo para refletir. Esse estado dominante da economia lingüística dos alemães se exibe em fenômenos ainda mais característicos. Por exemplo: em completa oposição à lógica e à gramática, o alemão usa o imperfeito no lugar do perfeito e do mais-que-perfeito; o verbo auxiliar não sai de seus bolsos; prefere o ablativo ao genitivo; unicamente para omitir uma ou duas partículas lógicas elaboram-se sentenças tão intrincadas que é necessário reler 3 vezes para se entender; é só o papel, e não o tempo do leitor, que os escrevinhadores se importam em poupar. Em nomes próprios, como é a maneira dos hotentotes, [comentário com matiz racista de Schopenhauer, se referindo a um povo africano] não se dignam a indicar o caso pela inflexão do próprio substantivo ou pela desinência do artigo: que o leitor o adivinhe! Mas, ah!, o alemão tem ainda uma predileção toda especial por contrair a vogal dupla e suprimir o h, que é sempre pronunciado, essas letras sagradas para a prosódia [entonação]

¹ A bem da verdade, as formas com prefixos ou afixos, as mais longas, ainda são dicionarizadas. O estrago não foi tão considerável quanto Schopenhauer previa. No português, uma mudança ortográfica vulgarizadora análoga poderia ser: de (fazer uma) investigação, termo “erudito”, para (dar uma) investigada (coloquial).

² Hoje, com efeito, unlöslich possui apenas o significado químico (in)solúvel, mas lösen possui tanto o químico quanto o de desatar um nó (embora haja variados sinônimos, como binden e zubinden), ao passo que auflöslich caiu em completo desuso. Para comparar com uma mudança em português correlata que suprima afixos e morfemas mas mantenha a palavra na mesma ordem simbólica, poderíamos citar indissolúvel e dissolúvel, onde o -dis- é facultativo, e eu já havia sublinhado no texto principal. Curiosamente, na nossa língua a semântica de (dis)solver também guarda relação com o ato de (des)atar, que associamos imediatamente a cadarço ou nó; mas, no caso, usamos o primeiro apenas para operações abstratas (resolver, solucionar um problema; quando muito, podemos desatar um nó górdio, figura de linguagem).

³ Hoje redimir pode ser expresso em alemão tanto com ablösen quanto com einlösen. Digamos que o einlösen é mais pertinente a contextos como honrar ou redimir uma dívida ou – no uso arcaico que se preservou – uma mulher, uma virgem, honrá-la, etc., casando-se com ela, p.ex..

Redigir Literatur no lugar do correto Litteratur é também muito benquisto, pois salva uma letra. Em defesa desse procedimento, o particípio do verbo linere é citado como raiz da palavra. [esse termo saiu de uso] Ocorre que linere significa difamar; por uma estranha coincidência, a nova grafia pode muito bem ser acertada para dar conta da maior parte da impressão de livros dos alemães; assim distingue-se mais facilmente uma rara Litteratur de uma muito prolífica e interminável Literatur.” [!!!] Hoje, Litteratur desapareceu do léxico…

A fim de escrever com concisão, um homem deve melhorar seu estilo e drenar todo falatório e tagarelice, o que dispensará cortes de sílabas e letras em virtude do custo do papel. Mas escrever tantas páginas inúteis, tantos artigos inúteis, tantos livros inúteis, e depois querer compensar o desperdício de matéria e de tempo às custas de sílabas e letras inocentes – isso é que é o superlativo do que na língua inglesa chamam de <being penny wise and pound foolish>: avaro com centavos e ninharias, extremamente perdulário no que realmente importa e é o olho da cara.”

É de se lamentar a ausência de uma Academia Germânica para cuidar da língua contra o pedestrismo literário, especialmente numa era em que mesmo os ignaros das línguas antigas se aventuram a empregar as prensas.”

Toda vez que iniciamos o aprendizado de uma língua nova, temos de repetir todo o processo do zero. Mas se aprendemos uma língua para o uso passivo e não o ativo – isto é, unicamente para ler, mas não para falar, como, p.ex., muitos de nós aprendem o grego – a conexão é unidimensional, pois as concepções ocorrem em nós juntas com as palavras; na outra mão, a palavra nem sempre nos ocorre junto com a concepção. Isso acontece em miniatura quando aprendemos novos vocábulos numa língua que já dominamos, particularmente com nomes de lugares e pessoas.”

12. SCHOPENHAUER E A ESTÉTICA: APERFEIÇOADOR DE KANT

Aquele conhecimento profundo, puro e verdadeiro da essência do mundo se torna um fim em si para o artista, que se detém nele. Eis porque um tal conhecimento não se torna para ele um quietivo da Vontade¹

¹ Seria o desejável. Mas é assim de fato com a classe artística? Ou não seria antes o caso da exceção?

O quanto não sofreu Schopenhauer, que não foi santo nem poeta (músico, pintor…), apenas filósofo sem coroa! Sua norma, a Vontade, também não foi acolhida pelas futuras constituições dos homens…

O que é nobre e sábio raramente consegue fazer sua aparição ou encontra eficácia e eco; mas o absurdo e o perverso no domínio do pensamento, o rasteiro e de mau gosto na esfera da arte, o mau e fraudulento na esfera dos atos, realmente afirmam sua supremacia, obstados apenas por pequenas interrupções. Ao contrário, o insigne de todo tipo não passa, sempre, de uma exceção, um caso entre milhões: por conseguinte, se porventura tiver se anunciado numa obra duradoura, ela permanece subseqüentemente isolada após ter sobrevivido ao rancor de seus contemporâneos, sendo conservada como uma espécie de meteorito vindo de uma outra ordem de coisas, diferente da aqui imperante.”

A boa vontade é, em moralidade, tudo; mas na arte não é nada.”

A filosofia está para a arte como o vinho para as uvas.” A filosofia descobre o cerne da aparência. O contrário também poderia ser afirmado sem que a veritas cedesse em 1 milímetro para o erro. Cristo era mais artista que filósofo. Carpinteiro. O dá-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo da Estética: Dá-me uvas boas o bastante e meus pés saberão amassá-las numa boa bebida que fermentarei.

Na série de artes expostas por mim, a arquitetura e a música são os dois extremos da escala.”

12.1 ARQUITETURA

a luta entre gravidade e rigidez é propriamente o único tema estético da bela arquitetura.” “A nossa alegria numa semelhante obra seria de súbito bastante diminuída se nos fosse revelado que o material de construção é pedra-pomes, pois assim ela apareceria como uma espécie de construção ilusória. O mesmo efeito seria produzido pela informação de que se trata apenas de um edifício de madeira, quando até então pensávamos ser de pedra, precisamente porque isso doravante muda, altera a relação entre rigidez e gravidade e, com isso, a significação e a necessidade de todas as partes”

Todo o exposto demonstra precisamente que a arquitetura faz efeito não apenas matemática mas também dinamicamente, e que aquilo a falar-nos por ela não é meramente a forma e a simetria, mas antes as forças fundamentais da natureza, as Idéias primeiras, graus mais baixos de objetividade da Vontade.”

Se alguém pudesse trazer um grego antigo para diante de nossas mais celebradas catedrais góticas, o que ele lhe diria? — βάρβαρος!” Aqui a língua portuguesa (senão muitas outras!) dá espaço para um belo trocadilho: barbaroi!, i.e., bárbaros! Que um edifício ou qualquer outra coisa seja bárbaro poder-se-ia entender como elogio. Que livro maravilhoso, a caracterização do herói ficou bárbara! A despeito disso, o grego em questão só quis mesmo depreciar nosso estilo arquitetônico forasteiro e irracional diante do cânone clássico. Isto lá é arte?!

12.2 ESCULTURA

Ele imprime no mármore duro a beleza da forma que a natureza malogrou em milhares de tentativas, coloca-a diante dela e lhe brada: ‘Eis o que querias dizer!’. Para em seguida ouvir a concordância do conhecedor: ‘Era isso mesmo!’. Só assim pôde o gênio grego descobrir o tipo arquetípico da figura humana e estabelecê-lo como cânone da escultura.”

Que Laocoonte, no famoso grupo de esculturas, não grite, é algo manifesto. A estranheza geral e sempre repetida em face disso deve ser atribuída a que, na sua situação, todos nós gritaríamos: e assim também o exige a natureza. Pois, no caso da dor física mais intensa e do súbito aparecimento da maior das angústias corporais, toda reflexão que poderia conduzir a uma resignação silenciosa é subitamente reprimida da consciência e a natureza se alivia pelo grito, exprimindo assim a dor e a angústia, ao mesmo tempo em que invoca alguém salvador e espanta o agressor. Já Winckelmann sentia falta da expressão do grito. No entanto, na medida em que procurava uma justificativa para o artista, transformou, propriamente dizendo, Laocoonte num estóico, o qual considerava inadequado à sua dignidade gritar secundum naturam, e assim acrescentar à própria dor a coerção inútil de evitar a sua manifestação. Em conseqüência, W. vê em Lao. ‘o espírito de um grande homem posto à prova, um mártir procurando suprimir e reter em si mesmo a expressão do sentimento: ele não irrompe em sonoros gritos, como o faz em Virgílio, mas somente emite gemidos lamentosos’ (…) Esta opinião é por sua vez criticada por Lessing (…) no lugar do fundamento psicológico, ele coloca o fundamento puramente estético, ou seja, que a beleza, princípio da arte antiga, não admite a expressão do grito. Outro argumento por ele aduzido, de que um estado completamente passageiro e incapaz de qualquer duração não pode ser exposto numa obra de arte imóvel, tem contra si centenas de exemplos de figuras maravilhosas, captadas em movimentos inteiramente fugidios, dançando, lutando, correndo etc. Goethe mesmo, em seu estudo sobre Lao., que abre os Propileus (p. 8), considera a escolha de um semelhante momento passageiro absolutamente necessária.” “Sobre o palco Laocoonte obrigatoriamente tinha de gritar. Também Sófocles faz Filoctetes gritar: de fato, nos palcos antigos ele efetivamente devia gritar. (…) um grito pintado ou destituído de voz seria ainda mais risível do que música pintada” O grito pode ser desenhado como onda; além disso já existe música pintada, acreditem!

na escultura o drapejado é em certa medida o que na pintura é o escorço: ambos são alusões, mas não simbólicas, e sim tais que, se bem-executadas, compelem imediatamente o entendimento a intuir o aludido, como se ele realmente tivesse sido dado.”

A escultura grega apela à intuição, pelo que é ESTÉTICA. Já a escultura indiana apela ao conceito, pelo que é SIMBÓLICA.”

A escultura moderna, o que quer que realize, ainda é análoga à poesia moderna em latim, e, como esta, é uma filha da imitação, nascida de reminiscências. Se tenta ser original, cai no nonsense, especialmente quando toma o mau caminho de se conformar à natureza [crítica às esculturas realista e naturalista] em vez de às proporções clássicas dos gregos.”

12.3 PINTURA

DA GULA AO PORNÔ: “Frutas pintadas ainda são aceitáveis, visto que, como um desenvolvimento tardio de flores, e pela sua forma e cor, oferecem-se como um belo produto natural, sem que se seja obrigado a pensar na sua comestibilidade. Mas, infelizmente, encontramos com freqüência, pintadas com naturalidade ilusória, iguarias preparadas e servidas, ostras, arenques, lagostas, pães amanteigados, cerveja, vinho, etc.; tudo isso é bastante repreensível. – Na pintura de gênero e na escultura o excitante consiste nas suas figuras nuas, cujo posicionamento, semipanejamento e todo o modo de execução são calculados para despertar a lubricidade do espectador, pelo que a pura consideração estética é de imediato suprimida e a obra se posta contra a finalidade da arte.”

Alguma vez a natureza produziu um homem perfeitamente belo em todas as suas partes? – Opinou-se que o artista tem de estudar conjuntamente as muitas partes belas isoladas distribuídas por muitos homens e delas compor um todo belo. Eis uma opinião disparatada. (…) de onde deve o artista reconhecer que precisamente estas formas isoladas são belas e não as outras? – Também vemos até onde foram (…) os antigos pintores alemães. Considerem-se suas figuras nuas. – Conhecimento algum do belo é possível de maneira puramente a posteriori.”

A PINTURA NÃO NECESSITA SER HISTÓRICO-CRISTÃ: “Indivíduo algum ou ação alguma podem ser sem-significado [o quanto isso não contrasta com o teor do livro 4!] (…) Eis por que nenhum evento da vida humana deve ser excluído da pintura. Em conseqüência, é-se muito injusto com os maravilhosos pintores da escola neerlandesa ao apreciar somente suas habilidades técnicas, desprezando-os no resto, alegando-se que, na maioria das vezes, só expõem objetos da vida cotidiana, enquanto se consideram como significativos, ao contrário, somente os eventos da história universal ou bíblica.” “Até mesmo a fugacidade dos momentos que a arte fixou em tais obras (hoje em dia denominadas pinturas de gênero) desperta uma leve e específica comoção: pois, fixar o mundo fugaz (em constante transformação) em imagens duradouras de eventos particulares a fazerem as vezes do todo é uma realização da arte da pintura pela qual esta parece trazer o tempo mesmo ao repouso, na medida em que eleva o indivíduo à Idéia de sua espécie.” “é em geral uma grande infelicidade que o povo cuja cultura deveria servir de base para a nossa não seja o indiano nem o grego, ou mesmo o romano, mas justamente esse povo judeu; o que foi nefasto em especial para os pintores geniais da Itália, nos séc. XV e XVI, arbitrariamente restritos a uma esfera limitada de temas, na maioria das vezes mesquinharias de todo tipo. Pois o Novo Testamento, em sua parte histórica, é para a pintura tão desfavorável quanto o Antigo, e a história subseqüente dos mártires e Padres da Igreja é um tema mais infeliz ainda.”

TISCHBEIN, pintor filosófico ou o filósofo que pinta. A metade superior de um seu desenho representa mulheres cujos filhos estão sendo raptados, mulheres que, em diferentes grupos e posições, expressam variada e profundamente a dor materna, angústia, desespero; a parte inferior mostra, em agrupamento e ordenação inteiramente iguais, ovelhas, das quais as crias também são retiradas: de forma que a cada cabeça e a cada posição humana da metade superior do desenho corresponde, na metade inferior, um análogo animal, com o que se vê distintamente em que moldes a dor possível na abafada consciência animal se relaciona com o devastador tormento unicamente possível pela distinção do conhecimento, pela claridade de consciência.”

Diante de um quadro, como diante de um príncipe, todos devem aguardar, de pé, o que ele dirá, se é que dirá alguma coisa.”

A escultura parece quadrar melhor como a afirmação, a pintura como a negação da vontade de vida. Esse ponto de vista seria autodemonstrável a partir do fato de a escultura ser a arte dos antigos por excelência, enquanto a pintura tem sido até aqui a arte da era cristã.” Agora nem mesmo a vontade de morrer se manifesta – em suspenso num ecrã nem frio nem quente,diria Marshall McLuhan…

12.4 POESIA E TEATRO

Assim como o químico combina 2 fluidos perfeitamente claros e transparentes e dessa combinação resulta um precipitado sólido, também o poeta, a partir da universalidade transparente e abstrata dos conceitos, sabe combiná-los e obter um precipitado concreto, individual, a representação intuitiva.”

a crítica e a sátira, sem nenhuma condescendência, deveriam açoitar os poetas medíocres (…) Pois, se até mesmo a torpeza de um imbecil deixou irado o brando Deus das musas, a ponto de dilacerar Mársias, não vejo onde a poesia medíocre possa basear sua pretensão à tolerância.”

O puro e simples historiador, que trabalha exclusivamente conforme os dados, assemelha-se a alguém que, sem conhecimento algum da matemática, investiga e mede por traços a proporção das figuras encontradas casualmente; com isso o estabelecimento dessas medidas encontradas empiricamente está todo ele sujeito aos erros das figuras assinaladas. O poeta, ao contrário, assemelha-se ao matemático que constrói aquelas relações a priori, na pura intuição, expressando-as não como a figura efetivamente assinalada as possui, mas como as mesmas são na Idéia e que o desenho deve tornar sensível.”

Embora nas artes apenas o gênio autêntico possa realizar algo de bom, parece que unicamente a poesia lírica constitui uma exceção, pois até homens no todo não tão eminentes podem, às vezes, mediante forte estímulo proveniente do exterior e um entusiasmo momentâneo, elevar suas faculdades espirituais acima de sua medida comum, e assim produzir uma bela canção.” “Reproduzem-se na poesia lírica do genuíno poeta o íntimo da humanidade inteira e tudo o que milhões de homens passados, presentes e futuros sentiram e sentirão nas mesmas situações”

Justamente por isso o jovem se prende tanto ao lado intuitivo e exterior das coisas; justamente por isso se inclina à poesia lírica e, só quando se torna adulto, à dramática. Podemos pensar o ancião no máximo como poeta épico, semelhante a Ossian e Homero, pois narrar pertence ao caráter de quem é idoso.”

O jovem que foi iniciado na poesia antes que na própria realidade passa a desejar desta última o que só a primeira pode dar; essa é a principal fonte do desconforto que oprime o peito dos jovens talentosos.”

ninguém pode prescrever ao poeta o dever de ser nobre e sublime, moralista, pio, cristão, isso ou aquilo, muito menos censurá-lo por ter este e não outro caráter. O poeta é o espelho da humanidade, e traz à consciência dela o que ela sente e pratica.”

Os poetas conduzem seus heróis por milhares de dificuldades e perigos até o fim almejado; porém, assim que este é alcançado, de imediato deixam a cortina cair, pois a única coisa ainda a ser mostrada seria que o fim glorioso no qual o herói esperava encontrar a felicidade foi em realidade um ludibrio, de modo que após atingi-lo não se encontra num estado melhor que o anterior.”

a genialidade propriamente dita só serve para conquistas teóricas, é só para isso que liga o gênio, que, por isso mesmo, não se impacienta na hora de aguardar o tempo certo para lançar suas idéias e para obter o reconhecimento (muitas vezes, póstumo). Quanto à ocasião para meditar e avançar em seu trabalho, o gênio oportunamente escolhe os momentos de repouso, em que nenhuma comoção o atinge, nenhuma onda afeta a superfície lisa do lago que é sua mente, um espelho que reflete perfeitamente a possibilidade da compreensão do mundo.¹ (…) O Torquato Tasso de Goethe é inteiramente redigido deste ponto de vista. (…) em confirmação deste pressuposto, vemos como em todas as eras grandes generais e ministros, os tipos eficientes e práticos, aparecem, sempre que meras condições externas se mostram favoráveis. Grandes poetas e filósofos, por outro lado, só surgem realmente de séculos em séculos.”

¹ Hoje isso seria impraticável no Brasil.

Quão mais corretamente, quão mais estritamente de acordo com as leis da natureza seus personagens são apresentados, maior é sua fama; daí que Shakespeare se encontre no topo.”

repetida, mas variada e distintamente, a pergunta atravessa o pensar como um relâmpago, O que é tudo isso?, ou então, Como tudo isso está configurado? A 1ª questão, se se mantém continuamente presente na cabeça, desenvolve o filósofo; a outra, reiteração após reiteração, nas mesmas condições, forja o artista ou poeta.”

Minha própria experiência de muitos anos me ditou a opinião de que a loucura ocorre proporcionalmente, com mais freqüência, entre os atores. Quão mal eles não empregam sua memória! Diariamente eles têm de aprender um novo texto ou recordar um antigo; mas esses textos não possuem conexão nenhuma entre si, são aliás contraditórios e contrastantes um com o outro, e toda noite o ator se esforça por esquecer dele mesmo por inteiro e por ser uma pessoa bastante diferente. Esse tipo de coisa pavimenta o caminho da loucura.”

as artes plásticas e pictóricas não são indispensáveis: nações inteiras – p.ex. os povos muçulmanos – não as têm, mas nenhum povo é sem música e poesia.

O melhor reconhece a si mesmo como melhor uma vez que ele contempla quão superficial é a visão dos outros, quanto a sua se encontra além daquela, muito além do que os outros são capazes de reproduzir, porque quem não produz, muito menos poderia reproduzir. Se hipoteticamente o poeta superior enxergasse os poetas superficiais tão mal quanto ele mesmo é enxergado por eles, era mister que o poeta superior desesperasse; sendo necessário um homem extraordinário para fazer-lhe justiça, é de lei que os poetas de baixa extração poderão estimá-lo tão pouco quanto ele poderá estimar poetastros. É preciso que ele viva longamente baseado apenas em auto-aprovação antes que o mundo o enxergue e o aprove. Enquanto esse dia não chega, na praça pública ele é despido mesmo do selo de auto-aprovação, porque a sociedade requer modéstia. Mas é tão impossível que aquele que tem mérito – e que sabe quanto ele custa – seja cego ao mérito quanto que um homem de 1,80m não se dê conta de que é mais alto que a multidão.” “Horácio, Lucrécio, Ovídio e praticamente todos os antigos falaram de si com altivez, assim como Dante, Shakespeare, Bacon de Verulam e tantos outros. Que um homem possa ser grandioso sem nisso reparar é uma absurdidade de que só uma mente irremediavelmente incapaz poderia se convencer” “mérito e modéstia nada têm em comum, salvo a primeira letra.”

Se tivéssemos acesso à oficina dos poetas, verificaríamos que o pensamento é posto à frente da rima dez vezes para cada vez que a rima tem a prevalência”

Assim que uma última sílaba recebeu um som equivalente em verso posterior, seu efeito está exaurido; a terceira recorrência da mesma nota seria meramente uma segunda rima que atinge acidentalmente o mesmo som, mas sem sublinhar o efeito; o terceiro verso se conecta aos dois preexistentes, mas não ajuda a elevar ou criar impressão. Isso porque a primeira nota não soa antes de ser repetida, mas quando é de novo repetida não volta a soar: seria um pleonasmo estético que isso acontecesse. Sonetos, terza rima [terceira rima] e oitavas [ottava rima] são muitas vezes penosas e torturantes de se ler graças à redundância do efeito. Não valem o que se sacrifica para obter as rimas. Que o grande gênio poético supere ocasionalmente até a limitação dessas formas, continuando a se mover com sutileza e graça, só prova que um gênio é gênio, mas não é uma carta de recomendação dessas formas em si, porque elas continuam a ser, a despeito dos grandes poetas, difíceis e ineficazes.” “Sendo assim, vejo como prova de bom gosto, e não como evidência de ignorância, que Shakespeare em seus sonetos tenha atribuído rimas diferentes a cada quadra. De qualquer forma, seu efeito acústico não diminui por isso, e o pensamento, em troca, obtém assim muito mais ressonância do que poderia com a preservação e reprise das palavras à la española.”

Quando a poesia romântica transfere suas cenas para a Grécia ou a Roma antigas ela perde a concretude e o detalhe, se torna insuficiente e fragmentária, abstrata, generalista, sem individuação. (…) Só Shakespeare, em suas peças de época, é que está livre desta crítica. Sem hesitar, ele apresentou, sob nomes greco-romanos, ingleses de seu próprio tempo.”

AS TRÊS PRATELEIRAS DOS ANIMADORES DE PERSONAGENS: “Os poetas de maior calibre são como ventríloquos, em que ora o herói, ora a donzela, ora o antagonista são apresentados sucessivamente com as mais variadas cores, todos de forma convincente. Isso se vê em Shakespeare e Goethe. Os poetas de segunda safra transformam o protagonista num alter ego próprio. Esse é o proceder de Byron. Nele e nos seus semelhantes os personagens secundários são insípidos, borrões. Já no poeta medíocre, nenhum personagem escapa dessa sina.”

Somos capazes de detectar a qualidade do todo de uma obra literária lendo não mais do que algumas páginas. (…) Com apenas uma amostra sentimos o ritmo, a flexibilidade e a leveza do autor de gênio, pressentimos com pouco material a que elevação sua mente pode chegar em seu máximo. Mas, na outra mão, também captamos instantaneamente o enfado, a rigidez, a tolice e o pesadume de uma pena. Assim como a língua é a expressão do intelecto de uma nação, o estilo vem [a] ser a expressão mais imediata do intelecto de um autor, mais até que sua fisiognomonia. Deixamos um livro de lado quando percebemos que através de suas páginas tudo que atingimos é uma região mais obscura que a nossa mesma, a menos que nosso objetivo seja unicamente nos instruir de fatos ali relatados; jamais de pensamentos.”

12.5 METAFÍSICA DO GÊNIO

nossa consciência tem dois lados; uma metade é a consciência de nós próprios, que é a Vontade; a outra metade é a consciência das outras coisas, ou seja, primariamente conhecimento, mediante a percepção, do mundo externo, a apreensão dos objetos.” Isso já havia sido dito com outras palavras no livro – o que ocorre é que, neste contexto, que é a Estética e o processo de criação, o artista e sua obra se tornam indistinguíveis (Consciência máxima! Objetividade, se já existiu alguma). Só se voltam a separar no momento da crítica: autor de um lado, obra do outro. A crítica imparcial bem-sucedida é o exercício da subjetividade do logos. Neste ínterim, portanto, não há que se falar em autoconsciência como sinônimo da Vontade.

Só apreendemos o mundo de forma puramente objetiva quando não mais sabemos que a ele pertencemos; e todas as coisas parecem mais e mais belas à medida que delas e somente delas somos conscientes, e quanto menos somos conscientes de nós próprios.” Está correto se se refere puramente ao processo da crítica da arte, com alguns ajustes – Sinal trocado: de forma puramente SUBJETIVA quanto mais somos conscientes de nós próprios (o crítico apreende a obra como algo estranho, sujeito x objeto, esqueceu que a criação do artista, sua objetividade, está em ser o objeto enquanto o objeto é consciência, na fusão dos pólos). Propriamente falando, o artista não julga o que é ou não é o belo, pois se torna provisoriamente o próprio belo. Como pode a beleza argumentar intelectualmente sobre a beleza? Ela apenas é. Narciso não se reconhece ao espelho, está menos consciente de si, pode julgar seu reflexo (o outro) como belo. Narciso é o crítico – quem está desinteressado de si está interessado no outro (a obra). Nele, sujeito e objeto estão divorciados, Narciso não é a imagem de Narciso. O artista é todo consciência-de-si, ele e a obra são cegos à outridade, entendem apenas os reflexos (o espelho que reflete a si próprios), estão fechados em si numa subjetividade infinita – mas como não há outro, apenas mesmidade, identidade, trata-se da OBJETIVIDADE PERFEITA E AUTO-SUFICIENTE DO QUE É IGUAL A SI MESMO. Narciso, o crítico, se afoga porque carece, busca o complemento, a beleza (Narciso não é a beleza, ele é inconsciente de si, seu corpo não está em consideração a não ser como outro, infinitamente separado por um abismo). O reflexo (a obra) não quer nada. Sujeito e objeto aqui são um, o mundo. O exterior e o interior simultâneo. O Ser. Não há logos, só recursividade tautológica. Vênus é. O amor é cego e no entanto não deseja enxergar (interagir com o exterior). O amor é o processo de criação. O amor está na boca do mundo, é discursado pelos loucos da subjetividade irrestrita. Só neste sentido, o amor é a Poesia (subjetividade) e a crítica é a Verdade (objetiva). Homero descreve o mundo; a verdade desmistifica-o. A verdade é a verdade dos homens, discurso, sempre carente da serena objetividade muda e inacessível da beleza.

Goethe compreendeu esta antítese, e por isso sua autobiografia se chama Poesia & Verdade. Poesia é a sua obra, verdade o indivíduo biografado. Por ser uma obra, versando sobre a obra e a crítica, é Poesia, como foram antes seus poemas que não falavam de poemas, mas uma poesia sem objeto, inacabada. Por ser uma crítica, prosando sobre a crítica e a obra, é Verdade, verdade clínica e impessoal de sua vida. Beleza deficitária, crítica consumada. Tentativa de uma síntese impossível a não ser dentro da obra de arte que é o artista enquanto indivíduo. O jeito do belo ver, elogiar, participar – a possibilidade da crítica ser bela e definitiva.

Sch. se contradiz – e muito – em estética! Se o objetivo é o instinto da espécie, é óbvio que o artista terá mais instinto que o plebeu – mas Sch. vê a recepção da obra como algo objetivo, e não o inverso, ao mesmo tempo em que nele o plebeu tem mais instinto, e menos autoconsciência. Sua teoria está de ponta-cabeça.

só o gênio é capaz de um esquecimento completo da própria pessoa e de suas relações; segue-se que a GENIALIDADE nada é senão a OBJETIVIDADE mais perfeita, ou seja, orientação objetiva do espírito, em oposição à subjetiva que vai de par com a própria pessoa, i.e., com a [própria] vontade.” “como diz Goethe, fixar em pensamentos duradouros o que aparece oscilante no fenômeno.” “claro olho cósmico” No entanto, continua confuso e ambivalente. Quando quer, joga a Vontade para o fenômeno, com mediação da IDÉIA. Schopenhauer troca objetividade e subjetividade o tempo todo nas suas definições da genialidade.

excedente de conhecimento livre”

purificado de Vontade, [Mas o abandono da razão é o contrário!] espelho claro da essência do mundoDaí se explica a vivacidade que beira a inquietude,¹ em indivíduos geniais, na medida em que o presente quase nunca lhes basta, já que não preenche a sua consciência. Daí resulta aquela tendência ao desassossego, aquela procura incansável por novos objetos dignos de consideração, o anseio quase nunca satisfeito por seres que lhes sejam semelhantes e que os ombreiem e com os quais possa se comunicar. Já o filho comum da terra, ao contrário, plenamente satisfeito com o presente comum, absorve-se nele e em toda parte encontra o seu igual, possuindo aquele conforto especial na vida cotidiana que é negado ao gênio.”

¹ Aquele que cessa de desejar – que corta o fluxo do tempo, na obra de arte, tornando-se OBJETIVO – torna-se vivaz? Como explicar esse tipo de contradição schopenhaueriana?!

ETNÓGRAFOS DOS MORTOS: “Portanto, a fantasia põe o gênio na condição de, a partir do pouco que chegou a sua apercepção efetiva, construir todo o resto e assim deixar desfilar diante de si quase todas as imagens possíveis da vida. (…) o gênio precisa da fantasia para ver nas coisas não o que a natureza efetivamente formou, mas o que se esforçava para formar, mas que, devido à luta de suas formas entre si, não pôde levar a bom termo.” Uma teoria do gênio correta encaixada no molde errado (sua “Vontade” kantiana).

há grandes espaços intermédios no qual (sic) o indivíduo de gênio, tanto no que diz respeito aos méritos quanto às carências, em muito se aproxima do indivíduo comum.” “o fazer-efeito de um ser supra-humano diferente do próprio indivíduo e que apenas periodicamente se apossa dele. A aversão do gênio em direcionar sua atenção ao conteúdo do princípio de razão mostra-se primeiro em referência ao fundamento de ser, enquanto aversão à matemática, cuja consideração segue as formas mais gerais do fenômeno, espaço e tempo”

a impressão do presente é bastante poderosa sobre o gênio, arrasta-o para o irrefletido, o afeto, a paixão.” “ele julga e narra de maneira extremamente objetiva [subjetiva, sincera] aquilo que diz respeito aos seus próprios interesses, sem ocultar o que seria prudente ocultar (…) inclinam-se a monólogos e podem em geral mostrar muitas fraquezas que de fato os aproximam da loucura.” “todo aquele que conheceu as Idéias eternas nas coisas efêmeras aparece como louco.”

ele vê em toda parte o extremo, e, justamente por isso, o seu agir atinge extremos. Ele não consegue encontrar a justa medida, falta-lhe a fleuma (…) O gênio conhece as Idéias perfeitamente, mas não os indivíduos. Eis por que, como já se observou, um poeta pode conhecer profunda e essencialmente O ser humano, porém de maneira muito ruim OS homens. O gênio, pois, é facilmente enganado e se torna um joguete nas mãos de astutos.”

DE-KANT-AÇÃO: “Que a Idéia se nos apresente mais facilmente a partir da obra de arte do que imediatamente a partir da natureza ou da efetividade, isso se deve ao fato de o artista, que conheceu só a Idéia e não mais a efetividade, também ter reproduzido puramente em sua obra a Idéia, separada da realidade efetiva com todas as suas contingências perturbadoras. O artista nos permite olhar para o mundo mediante os seus olhos. Que ele possua tais olhos a desvelar-lhe o essencial das coisas, independentemente de suas relações, eis aí precisamente o dom do gênio, o que lhe é inato. E, ademais, que ele esteja em condições de também nos emprestar esse dom, como se pusesse em nós os seus olhos, eis aí o adquirido, a técnica da arte.”

(N.T.) “para diferenciar Sch. de Kant, que opera uma ‘transição’ (Übergang) definitiva entre o belo e o sublime no capítulo 23 da Crítica da faculdade de juízo. (…) Como dito linhas antes pelo autor, o sentimento do sublime em sua determinação fundamental (Idéia intuída) é ‘uno’ com o do belo, distinguindo-se deste apenas pelo ‘acréscimo’ do elevar-se do contemplador para além da relação conhecida como desfavorável do objeto com a Vontade. Tanto é que Sch. falará mais adiante do ‘sublime no belo’ (Erhabenen am Schönen). Com isso, o termo gradação funcionou melhor porque indica os graus seqüenciais em que suavemente o belo e o sublime se confundem de acordo com o estado estético em que se está, sem porém distinguirem-se em natureza.”

ANTI-GORE: “se reconheceu desde sempre que o excitante negativo (repugnante) é inadmissível na arte, na qual até mesmo o feio é suportável, desde que não repugnante, e seja posto em lugar adequado

O fato de todos reconhecermos a beleza, caso a vejamos, sendo que no caso do artista autêntico isso ocorre com uma tal clareza que ele a mostra como nunca se vira e, por conseguinte, supera a natureza com sua exposição, tudo isso é apenas possível devido ao fato de que a Vontade – cuja objetivação adequada em seu grau mais elevado deve aqui ser descoberta e julgada – SOMOS NÓS MESMOS.”

A possibilidade de uma tal antecipação a priori do belo no artista, bem como o seu reconhecimento a posteriori no espectador, reside no fato de ambos serem o mesmo em-si da natureza, a Vontade que se objetiva. Pois, como disse Empédocles, apenas pelo igual é o igual reconhecido; apenas a natureza pode entender a si mesma; apenas a natureza pode aprofundar-se em si. E também apenas pelo espírito é o espírito compreendido.”

O CONCEITO é (…) alcançável e apreensível (…) comunicável por palavras sem ulterior determinação, esgotável por inteiro em sua definição.¹ A IDÉIA (…) é absolutamente intuitiva (…) nunca sendo conhecida pelo simples indivíduo enquanto tal (…) [mas pelo] puro sujeito do conhecimento (…) alcançável apenas pelo gênio, em seguida por aquele que (…) está numa disposição genial. (…) a medida do seu próprio valor intelectual.”

¹ Subordinado ao espaço-tempo.

O conceito é a medida do homem;

A Idéia a medida de deus. Deus em Platão como a perfeição humana.

A verdadeira e única fonte de qualquer obra de arte é a Idéia” “Justamente porque a Idéia é e permanece intuitiva, o artista não está consciente in abstracto da intenção e do fim de sua obra” “não pode relatar sua atividade” “Por sua vez, imitadores, maneiristas, imitatores, servum pecus procedem na arte a partir do conceito.” “Na medida em que sugam o seu alimento de obras alheias, assemelham-se a plantas parasitas; também se assemelham aos pólipos, que assumem as cores daquilo de que se apropriam.” “Só o gênio, contrariamente, é comparável a um corpo orgânico que assimila, transforma e produz.” “a elevada formação do gênio jamais prejudica a sua originalidade. (…) tais obras maneiristas encontram com freqüência, e rapidamente, a aprovação sonora dos contemporâneos (…) Contudo, após alguns anos, tais obras já são inapreciáveis, visto que (…) mudaram.”

tenho de naturalmente rejeitar essa e outras semelhantes colocações de Winckelmann sobre a metafísica do belo propriamente dita, embora de resto o respeite muito. Por aí se nota como se pode ter a maior receptividade para o belo da arte, e ter o juízo mais correto sobre as obras artísticas sem no entanto estar em condição de oferecer uma descrição abstrata, propriamente filosófica, de sua essência.”

numa carta (…) ao contrário da conversação, perde-se a medida da impressão que se provocaria sobre outrem. O destinatário de uma carta a perscruta de modo sereno e numa disposição alheia à do remetente, a lê repetidas vezes, em diferentes ocasiões, podendo facilmente desmascarar a intenção secreta. Conhece-se melhor e mais fácil um autor, também como homem, a partir de seu livro, pois todas aquelas condições fazem efeito na escritura de um livro de modo ainda mais vigoroso e constante.”

PODERIA SER AO MESMO TEMPO A CRÍTICA DEFINITIVA E UMA TOLERÂNCIA QUANTO À EXISTÊNCIA DA PSICANÁLISE, ESSA PSICOLOGIA DO MEDÍOCRE COTIDIANO: “As ciências empíricas perseguidas como fim em si e sem qualquer tendência filosófica são como um rosto sem olhos. Elas são, entretanto, uma ocupação válida para homens de boa capacidade que contudo não são homens excelentes. Para as mentes superiores, esse tipo de investigação minuciosa e irrelevante seria mesmo uma perturbação e um incômodo.”

Uma elevada capacidade mental sempre foi olhada como um dom da natureza ou dos deuses; por essa razão essa capacidade foi chamada Gaben [talento em alemão], Begabung [idem], ingenii dotes [mais uma vez o mesmo significado, no latim], dádiva (um homem ‘gifted’ de ‘gift’, presente, prêmio, doação, em inglês [em português diríamos dadivoso, superdotado]), de modo que se via e se vê o portador de tal capacidade como alguém diferente do homem mesmo, alguém que apenas cumpre um destino, graças a um favor emanando de fora ou de cima.” “todas as religiões prometem um prêmio [mas não no sentido de presente, e sim de recompensa, i.e., algo que não vem gratuitamente] após a morte, i.e., na vida eterna, pela sublimidade no campo da vontade durante a vida (a Vontade está associada ao coração), mas nenhuma gratifica, em si, o ser bom da cabeça ou sábio. A virtude, mundanamente entendida, espera sua recompensa nesse mundo mesmo; a prudência outrossim; já o gênio, a genialidade, em lugar algum (nem neste mundo, nem no próximo); o gênio é sua própria recompensa. A vontade é considerada a metade eterna do ser humano, o intelecto a metade perecível e temporal.”

Qualidades brilhantes do espírito conquistam admiração, porém nunca afeição; esta se encontra reservada para a moral, as qualidades do caráter.”

O FUNESTO DESTINO DE LISA SIMPSON: “Nossos anos escolares podem ser comparados àqueles da vida futura, na maioria dos casos, como os dumb shows entre-atos de algumas das tragédias de Shakespeare se comparam à peça mesma: esses espetáculos desempenhados por bobos da côrte apenas com mímica antecipam, para quem prestar atenção, muitos dos diálogos e acontecimentos da peça principal, que nada mais é que nossa vida futura. § Porém, isso não quer dizer que seja possível, por quaisquer meios, prognosticar, da mesma forma, o futuro das capacidades intelectuais do homem pela sua inteligência quando garoto; ao contrário, via de regra os ingenia praecocia [gênios precoces], meninos-prodígios, acabam como uns cabeças-ocas. Já o gênio costuma ser, na infância, lento em suas concepções, e compreende com dificuldade, justamente porque compreende profundamente.”

devido ao fato de que toda ansiedade provém da vontade, e o conhecimento, ao revés, é indolor e sereno para si mesmo, o gênio adquire sobrancelhas desdenhosas e altaneiras, conjugadas com um olhar límpido, perscrutador, parte do rosto que não está subjugada à vontade e seus caprichos, aquela aparência de magnanimidade, de uma serenidade quase sobrenatural que de tempos em tempos deixa-se observar na sua plenitude, e que contrasta poderosamente com a melancolia de todas as demais feições do gênioespecialmente com sua boca, totalmente subordinada à vontade.”

¹ DA SERIEDADE DO SUPERIOR: Chamada pelo normalman de “seriedade”. Mas o que acontece é que o gênio é ansioso em total desproporção com sua vida pessoal comezinha. Sua ansiedade transborda das criações artísticas para a vida pessoal. O estúpido e bobo leva uma vida incontáveis vezes mais serena; é claro que ele se aparvalha diante das menores tontices, que duram pouco, mas talvez não reconheça um perigo real, hegemônico e duradouro. A nova onda fascista veio nos provar isso. Nossa serenidade não é extra-mundana, mas muito, muito profana e imanente. Quando até o que assenta e está na base do próprio cotidiano das massas demonstra fissuras e rachaduras, vivemos do despertar ao adormecer intranqüilos, farejando alguma coisa. Para o normalman, tudo vai bem, ou o que vai mal não deve gerar mais inquietação do que o necessário (geralmente, a autopreservação no seu sentido mais tosco e materialista, a vantagem nos ‘pequenos negócios’). A polarização entre as forças democráticas e reativas e o fascismo opressor, que é vista com bons olhos e sinal de pujança pelo gênio (afinal o fascismo está sendo contrabalançado), desagrada essas pessoinhas sem bússola do real. No fim, não é como Sch. diz, que o gênio tem mais intelecto e menos volição que o normal ou medíocre, mas ele possui mais a ambos; ainda que proporcionalmente possam estar mais injetados do dito intelecto: têm MAIS vontade e muito mais intelecto. A condição do gênio é impassível de intuição ou pressentimento, empatia, pelo normie – os medianos tateiam, deduzem, podem acertar em cheio como podem bater na lua querendo aterrissar em Marte, a margem de erro nessas análises é a mais ampla e dilatada possível, seu método para detectarem os verdadeiros gênios é completamente caótico…

Mas mesmo o homem de grande entendimento e razão, que se pode chamar sem erro de sábio, é ainda muito diferente do gênio, e nesse tocante: que seu intelecto retém uma tendência prática, se preocupa com a escolha dos melhores meios e fins, destarte conserva-se a serviço da vontade, e conseguintemente está ocupado de um modo que é coerente de alto a baixo com sua natureza. A seriedade firme e prática da vida que os romanos denominam gravitas [gravidade, reverência] pressupõe que o intelecto jamais abandone o serviço da vontade a fim de vadiar em recantos distantes que não concernem à vontade. Desta feita, o sábio não admite essa separação entre vontade e intelecto que é a condição do gênio.” Nenhum povo defendeu jamais os gênios. Que os romanos fossem de uma moral pró-genialidade seria paradoxal – mas sim, eles eram bastante graves! Acerca dos erros grifados em verde, creio não precisar me estender muito: Schopenhauer sempre inverte a compreensão da vontade como seria necessário “flagrá-la”: o gênio é aquele que exatamente se funde com a vontade, de modo que nem conduz nem é conduzido, é outra coisa, despersonaliza-se. Não sabe, a rigor, o que é razão e intelecto enquanto é genial. E, o mais importante, o sábio, por uma limitação congênita, sempre separa o que deveria estar unido: o que ele não admite verdadeiramente é a união entre vontade e intelecção. O sábio sem gênio “está ocupado de um modo que é coerente de alto a baixo com sua natureza”: mas sua natureza é a de desrespeitar a sua vontade, sobrevalorizando a razão, espezinhando o sentimento. Não se trata aqui de negar o pathos tipicamente romano; mas este pathos se chama gravitas, não genialidade. Os recantos distantes da vida prática são o habitat insuspeito da Vontade que dirige e é dirigida pelo gênio.

Para o gênio, suas pinturas, poemas ou pensamentos são um fim; para os outros (imitadores ou observadores), um meio. Os últimos só vêem pela frente seus próprios negócios, por isso sabem muito bem como avançá-los, bajulando seus contemporâneos, servindo suas necessidades e atendendo seus humores. Sendo assim, esses outros, os normais e vulgares, vivem em sua maioria nas circunstâncias mais felizes; o primeiro, o gênio, o mais das vezes em condições miseráveis. Ele sacrifica seu bem-estar pessoal a fim de atender seu fim objetivo; e ele não pode agir ao contrário, porque toda sua seriedade e gravidade aí repousam. Os normais, seus opostos extremos, agem ao avesso; portanto, estes últimos são pequenos, mas o gênio é grande. O trabalho do gênio é atemporal, mas seu reconhecimento costuma advir apenas na posteridade: ele vive e morre como comum, em seu próprio tempo. De forma geral, só é um grande homem aquele que, em seu trabalho, prático ou teórico, não procura tirar vantagens para si mesmo, mas persegue tão-somente seu final objetivo (desinteressado).”

Portanto, esse predicado altivo pertence somente ao herói genuíno e ao gênio: contrariamente à natureza humana, estes espécimes nunca buscaram o próprio sucesso, nunca viveram para si mesmos, mas para todos, para a humanidade. E tanto como a matemática das populações obriga que a maioria seja constantemente pequena, jamais podendo aspirar à grandeza, a natureza proíbe a ocorrência contrária: a de alguém que pudesse ser constantemente grande, grande a cada momento, o que é impossível—

Porque todo homem é feito de barro,

E o costume é sempre sua nutriz.”

<Quem quer que tenha nascido com um talento, para um talento, sempre encontra nele a mais bela das existências>, diz Goethe. Quando olhamos para as vidas de grandes homens dos tempos passados, não pensamos <Ó, quão feliz deve ele estar agora, por ser ainda admirado entre nós após tanto tempo!>, mas sim: <Quão feliz deve ele ter sido no imediato fruir de sua mente, cujos traços continuam a ressuscitar ao longo dos séculos!>. Não na fama em si, mas naquilo que ele sabe que atingiu (e que originou sua fama), recai o valor que ele próprio – e portanto a humanidade póstuma – se atribuiu. Este é o íntimo prazer que compensa o sofrimento material desta raça de crianças imortais que existem em todos os tempos.”

A afinidade entre gênio e loucura, tão amiúde observada, depende primariamente daquela separação do intelecto da vontade que é essencial ao gênio, porém contrária à natureza.¹ Mas tal separação em si não indica que o gênio esteja acompanhado de uma menor intensidade de vontade. Ora, o gênio é instantaneamente reconhecido por um caráter apaixonado e veemente; mas a pessoa de excelência prática, o homem de ação, apresenta meramente o tanto de intelecto exigido por uma vontade enérgica, enquanto que a maioria massacrante dos homens carece mesmo disso; já o gênio consiste numa superabundância completamente anormal de intelecto, pelo menos em relação ao que é preciso para o uso da vontade. Baseado nessa discrepância, o homem de obras genuínas é mil vezes mais raro que o homem de ação.² É essa superfluidade anômala de intelecto que torna o gênio preponderante em suas faculdades intelectuais e liberto da vontade.³ Desenraizado daquilo que é sua origem, [a origem do homem nos instintos volitivos] ele pode exercer sua atividade com todo seu vigor e elasticidade; daí nascem todas as criações do gênio.”

¹ A impressão de loucura deriva de ver alguém que age com grandeza sem que o intelecto seja sua força-motriz. Nada mais louco que a Vontade se realizando plenamente em algo tão frágil e passageiro como o mero indivíduo. O intelecto se mantém no caminho da constância. O gênio, o artista, se despersonalizam, sobretudo da ótica do exageradamente sábio. Na próxima frase Schopenhauer parece se dar conta de seu erro primário e remedeia a afirmação.

² Aqui podemos afirmar com segurança: Napoleão foi um homem de ação, não um gênio. O gênio “não se dá bem com o seu presente”, e não se trata de mera circunstância ou azar: quão maior sua genialidade, mais essa desavença é exigida como autêntica medida do seu grau supino de genialidade.

³ Eu encaro como o homem prático aquele que se divorcia da Vontade e cujo comportamento se tornou uma quimera fictícia (tratando o fenomênico como se fosse o real fundamental – só aqui é que haveríamos de falar em loucura). O gênio, o superabundante em intelecto se compararmos com seu estoque de vontade, é aquele, no entanto, que nunca separa os galhos e a copa das suas raízes instintuais: ele é exatamente o que a natureza projeta para a raça superior de homens. É uma pena que, enxergando tão longe, sendo tão sutil durante grande parte de seu percurso, Schopenhauer não perceba algo comparativamente tão simples e seja tão grosseiro em suas conclusões cabais: o gênio só pode estar enraizado o mais profundamente na Vontade e ser a completa afirmação apaixonada do mundo mesmo! O desinteresse e o ascetismo nada têm que ver com o gênio, são duas faces da mesma moeda: do homem prático, que ignora o rizoma da existência, e do homem que ‘desistiu do mundo’, entregue à abstração vazia e ao miscitismo! Ninguém que se opõe a sua natureza e que corta seus vínculos com suas próprias origens (fica sem raiz, sem vínculo, sem origem) pode chegar longe num mundo em que realizar-se é justamente estar no mundo com o máximo ímpeto e densidade!

Árvores muito altas e bonitas não dão frutos; as árvores que dão fruto são pequenas, feias, mutiladas. A rosa do jardim cultivado não dá rosas; a rosa pequena, selvagem, quase sem cheiro, é que dá muitos botões e perpetua. Os edifícios mais bonitos não são os mais úteis; um templo não é uma moradia. Um homem de raros e elevados dons compelido a consumir-se em negócios comezinhos e cotidianos, para os quais os homens mais ordinários seriam muito mais aptos, é como um vaso caríssimo decorado de belíssimas pinturas usado como um recipiente comum de cozinha”

NOSSO TUDO OU NADA EXASPERANTE DE CADA DIA (QUE NUNCA É O ÚLTIMO, A DESPEITO DAS APARÊNCIAS): “O gênio é, acima de tudo, o servo de dois mestres (…) freqüentemente ele conturba a vontade, o que significa que o indivíduo com dom se torna mais ou menos inútil para a vida, isto é, em sua conduta se assemelha a um louco, de acordo com o homem vulgar. Devido a seu conhecimento muito elevado, tenderá a enxergar mais o universal que o particular; mas acontece que a Vontade exige o conhecimento aplicado ao particular. [ERRO CRASO: a Vontade já é esse particular, ela busca o universal, a vontade-para-o-poder, engrandecer-se.] Ocasionalmente, no entanto, assim que uma brecha se oferece, todo esse conhecimento anomalamente excessivo se dirige com todo o ímpeto [veja que o conhecimento não tem ímpeto – isso significa que é a Vontade que se expressa mediante a faculdade da sabedoria] às circunstâncias, [o particular] às misérias da vontade e da vida, [a Vontade se volta para si mesma como num espelho] com a aptidão para apreendê-las assaz vìvidamente, bem até demais, para observar tudo em cores muito nítidas, em cores tão claras que ofuscam, e de uma forma temerariamente exagerada, de onde se constata que o indivíduo genial recai ora num extremo, ora noutro.” A pulga que vira um elefante ou a síndrome de Alice ou de Mario Bros. (encolhe e engrandece várias vezes num só dia).

A SOCIEDADE DOS MEUS MELHORES AMIGOS MORTOS: “A todo o dito resta acrescer que o gênio vive essencialmente só. É demasiado raro encontrar o tipo, ainda mais na companhia dos outros homens, que o acham, e por ele mesmo são considerados, muito diferente(s) e aparte. (…) O gênio não está adaptado a conversações: os vulgares terão tão pouco prazer nele e em sua superioridade opressiva quanto este invulgar terá com os homens. (…) Para que o gênio entabule relações com um igual, via de regra, tem de agir indiretamente, consumindo as obras que os gênios do passado legaram.”

O homem talentoso é aquele que acerta com facilidade o centro do alvo que o franco-atirador normalmente não consegue atingir; o homem de gênio é aquele que acerta centros de alvos que os franco-atiradores não conseguem sequer enxergar. O gênio só é conhecido por vias indiretas, e tarde demais; ainda assim, só crê no gênio quem dá fé e confia nos relatos dos homens, pois que vendo a coisa por si mesmo o homem vulgar nada teria de mais a falar, nada perceberia de extraordinário.”

em muitos estudantes¹ uma tendência puramente intelectual e uma excentricidade sugestiva do gênio é inconfundível. Mas a natureza retoma a sua marcha; [os instintos reacionários voltam a contrabalançar a natureza excessivamente intelectual que ameaça aflorar no indivíduo] eles assumem a forma de crisálida [o desenvolvimento intelectual sofre uma pausa – período de latência] e a antiga inclinação reaparece na idade adulta, transformando-os em filisteus encarnados,² o que nos choca quando os reencontramos mais tarde na vida.”

¹ Significa que por mais que muitos alunos pareçam promissores e realmente exibam o temperamento do gênio, o número efetivo de gênios na idade adulta é mínimo.

² O emprego da expressão “incarnate Philistines” no texto que traduzi soa estranho aqui, pois não combina com o teor da frase. Philistine tem necessariamente uma conotação jocosa, e no entanto Schopenhauer quer se referir aos eruditos sob uma luz de decência! Ou Sch. quer dizer que esse “retorno do intelecto” é muito defasado na maioria dos homens? I.e., surpreendemo-nos de um completo asinino (filisteu) aos 30 ter se tornado finalmente alguém ponderado aos 50? Porém isso não faz nenhum sentido, não é realista! Sendo este o caso, entretanto, deveríamos ler assim o final da frase: …transformando-os, quando não passavam de filisteus encarnados, o que nos choca….

O entendimento, a habilidade técnica e a rotina devem preencher as frestas que a concepção e inspiração do gênio deixou para trás, e deve misturar com estas todo tipo de obra suplementar necessária como cimento das únicas partes real e genuinamente brilhantes. Isso explica por que em todas as obras, excetuando-se apenas as obras-primas perfeitas dos maiores mestres de todos os tempos (como, p.ex., o Hamlet, o Fausto, a ópera de Don Juan), notamos a mescla com qualquer coisa de insípido e enfadonho, que em alguma medida prejudica a fruição do todo. Provas vivas são o Messias [obra musical], Gerusamme liberata [outra composição sonora], mesmo O Paraíso Perdido e a Eneida; e Horácio já havia feito a observação contundente: Quandoque dormitat bonus Homerus [Às vezes até o bom Homero dormita].¹ Mas que assim seja é conseqüência das limitações das capacidades humanas em geral.”

¹ Em inglês o trecho dá azo a um excelente trocadilho: even good Homer sleeps/slips. Dorme (no ponto); desliza, vacila.

12.6 MÚSICA, O PALIATIVO FINAL

uma bela arte permaneceu excluída de nossa consideração e tinha de permanecê-lo, visto que, no encadeamento sistemático de nossa exposição, não havia lugar apropriado para ela. Trata-se da música.” “linguagem universal, cuja distinção ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo” “a alegoria interior com a qual o íntimo mais fundo de nosso ser é trazido à linguagem.”

o ponto de comparação da música com o mundo, a maneira pela qual a primeira está para este como cópia ou repetição, encontra-se profundamente oculto. A música foi praticada em todos os tempos sem se poder dar uma resposta a tal indagação. Ficou-se satisfeito em compreendê-la imediatamente, renunciando-se a uma concepção abstrata dessa compreensão imediata.”

ABSURDIDADE: “a música, visto que ultrapassa as Idéias e também é completamente independente do mundo fenomênico, ignorando-o por inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não houvesse mundo [!!!!] – algo que não pode ser dito acerca das demais artes. De fato, a música é uma tão IMEDIATA objetivação e cópia de toda a VONTADE, como o mundo mesmo o é, sim, como as Idéias o são, cuja aparição multifacetada constitui o mundo das coisas particulares.¹ A música, portanto, de modo algum é semelhante às outras artes, ou seja, cópia de Idéias, mas CÓPIA DA VONTADE MESMA, [acaba de se contradizer de novo!] cuja objetidade também são as Idéias. Justamente por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência.”

¹ Se suas Idéias são para significar Vontade, perdem o sentido. Na realidade ressuscitar, malversando, Platão (nestes casos específicos do texto schopenhaueriano) só prejudica a compreensão moderna da Filosofia clássica e desvaloriza o próprio filosofar contemporâneo. Se há diferença, ela é não-concorde ao próprio sistema schopenhaueriano e, mesmo se não fosse, nunca é explicada pelo autor.

O desvio da correção aritmética dos intervalos mediante um temperamento qualquer, ou produzida pelo tipo escolhido de tom, é análogo ao desvio do indivíduo do tipo da espécie. Sim, as dissonâncias impuras que não formam nenhum intervalo determinado são comparáveis aos abortos monstruosos situados entre duas espécies animais, ou entre homem e animal.” Isso seria verdade para a música clássica, mas não para a música do século XX (o sobressair da dissonância).

O ÚLTIMO METAFÍSICO DO TOM: “Somente a MELODIA tem conexão intencional e plenamente significativa do começo ao fim. Ela narra a história da Vontade iluminada pela clareza de consciência, cuja impressão na efetividade é a série de seus atos. Porém, a melodia diz mais: narra a história mais secreta da Vontade, pinta cada agitação, cada esforço, cada movimento seu, tudo o que a razão resume sob o vasto e negativo conceito de sentimento”

A invenção da melodia, a revelação nela de todos os mistérios mais profundos do querer e sentir humanos, é a obra do gênio, cuja atuação aqui, mais do que em qualquer outra atividade, se dá longe de qualquer reflexão e intencionalidade consciente, e poderia chamar-se uma inspiração. Aqui o conceito é infrutífero, como na arte em geral. O compositor manifesta a essência mais íntima do mundo, expressa a sabedoria mais profunda, numa linguagem não-compreensível por sua razão: como um sonâmbulo magnético fornece informações sobre coisas das quais, desperto, não tem conceito algum. No compositor, mais do que em qualquer outro criador, o homem é completamente separado e distinto do artista. Mesmo na explanação dessa arte maravilhosa o conceito mostra a sua indigência e limites.”

Quanto ao número inesgotável de possíveis melodias, corresponde ao inesgotável da natureza na diversidade de seus indivíduos, fisionomias e decursos de vida. A passagem de uma tonalidade para outra completamente diferente, quando a conexão com a anterior é no todo interrompida, compara-se à morte, na medida em que nesta o indivíduo finda. No entanto, a Vontade que nele apareceu existe tanto quanto antes, aparecendo num outro indivíduo, cuja consciência, todavia, não possui ligação alguma com a de seu antecessor.”

A música exprime não esta ou aquela alegria singular e determinada, esta ou aquela aflição, ou dor, ou espanto, ou júbilo, ou regozijo, ou tranqüilidade de ânimo, mas eles MESMOS, i.e., a Alegria, a Aflição, a Dor, o Espanto, o Júbilo, o Regozijo, a Tranqüilidade de Ânimo, em certa medida in abstracto, o essencial deles, sem acessórios, portanto também sem os seus motivos.” “Essa é a origem do canto com palavras e, por fim, da ópera – que justamente por isso nunca devem abandonar a sua posição subordinada para se tornarem a coisa principal, fazendo da música mero meio de sua expressão, o que se constitui num grande equívoco e numa absurdez perversa.” Prelúdio d’O Caso Wagner.

Tão seguramente como a música, longe de ser mero acessório da poesia, é uma arte independente, não só independente mas a mais poderosa de todas as artes, e por conseguinte alcança seus fins inteiramente com seus próprios recursos, tão seguramente quanto isto, é possível dizer que a música não necessita das palavras das letras ou da ação de uma ópera, que são acréscimos opcionais.”

Com respeito à superioridade da música em relação a seus elementos subordinados na forma da atuação dos atores-músicos na ópera e letra da canção, e porque a música está para o libretto e a ação como o universal para o particular, como a regra para o exemplo, seria aconselhável que o libretto fosse escrito para a música e não a música composta para o libretto. No entanto, o método costumeiro (o segundo) existe porque as palavras e ações contidas no libretto conduzem o compositor, de qualquer maneira, às afetações da vontade que estão em seu imo, e despertam nele os sentimentos a ser exprimidos pela composição; agem, portanto, como meios excitantes da imaginação musical.” Atualidade total, na era das trilhas sonoras encomendadas.

Que seja possível a relação entre uma composição e uma exposição intuitiva reside no fato de as duas serem apenas expressões diversas da mesma essência íntima do mundo. Quando uma tal relação de fato está presente [é que] o compositor soube expressar na linguagem universal da música os estímulos da Vontade constitutivos do núcleo de um evento: então a melodia da canção, a música da ópera são plenamente expressivos. A analogia encontrada pelo compositor entre aquelas duas (…) tem de provir do conhecimento imediato da essência do mundo, inconsciente para a sua razão, e não pode (…) ser imitação intermediada por conceitos. Do contrário a música não expressa a essência íntima, a Vontade mesma, mas apenas imita de maneira inadequada o seu fenômeno. Isto o faz toda música imitativa propriamente dita: p.ex., As estações, de Haydn, também muitas passagens de sua Criação, em que fenômenos do mundo intuitivo são imediatamente imitados. Também é o caso de todas as peças de batalha. Tudo isso deve ser por completo rejeitado.”

a seriedade que lhe é essencial, a excluir por completo o risível do seu domínio próprio e imediato, explica-se pelo fato de seu objeto não ser a representação, exclusivamente em relação à qual o engano e o risível são possíveis” “Quão plena de sentido e de significação é a linguagem musical, testemunham-no até mesmo os sinais de repetição, junto com o da capo [do início em italiano], que seriam insuportáveis nas obras escritas com palavras. Na música, entretanto, são bastante apropriados e benéficos, pois, para apreendê-la completamente, tem-se de ouvi-la duas vezes.” Ou 200 ou 2000…

Observe que na música de ópera o pathos transmitido é sempre o mesmo, não importa se o tema teatral é a desavença entre Agamemnon e Aquiles ou numa simples família burguesa. O material suplementar é irrelevante. Como Deus vê apenas o coração dos homens, a música vê e é apenas a vontade e as paixões ocultas por detrás das aparências. Desse modo, até diante das bufonarias da ópera cômica a música verdadeira preserva sua beleza, pureza e sublimidade essenciais. Na música não existe absurdo. A significância séria e profunda de nossa existência paira sobre toda a farsa e a interminável miséria da vida humana.”

Se considerarmos a música puramente instrumental, uma sinfonia de Beethoven nos apresenta a maior das confusões, mas que não deixa de estar baseada na mais perfeita ordem, o mais veemente conflito, que é transformado no instante seguinte na mais bela concórdia. É rerum concordia discors, um quadro perfeito e verdadeiro da natureza do mundo, que flui num labirinto ilimitado de incontáveis formas, que mediante constante destruição executa uma constante reparação.” “como um mundo espiritual sem matéria”¹ “É claro que enquanto ouvimos temos a tendência se representar a música em carne e ossos e prestar-lhe uma roupagem concreta, ver através dos ouvidos cenas da vida e da natureza. Geralmente, porém, isso não é sequer requisitado para a compreensão e fruição da música, consistindo apenas em adição estranha e arbitrária inevitável dada a natureza dos sentidos.”

¹ O verdadeiro sentido de sublimação. Esqueça a psicanálise!

a música nunca nos causa tristeza verdadeira. Mesmo em suas tensões mais melancólicas, ainda é prazerosa, e com muito deleite ouvimos em sua linguagem a história secreta de nossa vontade, com todas as suas emoções e esforços, seus variegados prolongamentos, obstáculos e misérias. Em contraste, quando, na realidade e seus terrores, é a nossa vontade mesma que é afetada e atormentada, não em sua história, mas no momento atual, quando não se trata mais de tons e relações numéricas, nós mesmos somos as cordas tensas e vibrantes que são esticadas, o que é sem dúvida doloroso.”

Em regiões setentrionais, cuja vida está sujeita a condições árduas, especialmente entre os russos, a menor da escala musical prevalece, mesmo na música de igreja. Allegro in minor é característica da música francesa; é como se alguém dançasse com sapato apertado.”

13. A FAMOSA MISOGINIA SCHOPENHAUERIANA

ABSURDO FINALISMO… “A causa eficiente que se demonstra nas configurações animais também é válida para a barba no homem; a finalidade dela é, eu suponho, ocultar os signos patognômicos¹ rapidamente alternantes na expressão humana, que traem qualquer movimento da mente. Esses signos são principalmente visíveis no entorno da boca; desta feita, a natureza, i.e., o organismo humano mesmo – de forma a minimizar suas perdas, escondendo do olho penetrante do adversário essas alterações sutis, cuja percepção seria muito perigosa nos atos de barganha ou em situações-limite – trata de fazer crescer pêlos na região, o que se traduz pelo completo desenvolvimento da barba no homem adulto (outro índice de que homo homini lupus, o homem é o lobo do homem). As mulheres, ao contrário, podem dispensar essa ‘vantagem natural’; pois sua dissimulação e autodominío das feições são inatos.” Menos nas lusitanas…

¹ Normalmente a palavra faria referência a sintomas mórbidos reconhecíveis por um especialista; neste caso, Schopenhauer emprega o prefixo pathos, que é o mesmo de patologia, para designar expressamente os afetos e as emoções, a variabilidade do caráter humano e as expressões faciais que as acompanham, e que acabam por involuntariamente nos trair. Perguntem aos jogadores de pôquer!

Falta de inteligência não prejudica uma mulher aos olhos de um homem. De fato, uma fêmea extraordinariamente bem-dotada mentalmente, ou mesmo uma gênia, provavelmente gerarão repulsa no homem, por serem anomalias.”

CONTRA O SAPIOSSEXUALISMO, HAHAHA! “É uma pretensão vã e absurda quando as mulheres afirmam que estão apaixonadas pelo cérebro de um homem, ou isso é sincero mas não passa de uma mania de uma natureza degenerada.”

Os homens não têm seus instintos sexuais e amorosos determinados pelo caráter da mulher; daí haver tantos Sócrates com esposas iguais Xantipas. Alguns exemplos são Shakespeare, Albrecht Dürer, Byron.

14. RESÍDUOS: AFORISMOS, PASSAGENS DIFÍCEIS DE CLASSIFICAR, CONSOLAÇÕES OU INVECTIVAS CONTRA FILÓSOFOS OU PERSONALIDADES MENORES

é tão reduzido o verdadeiro público de um autêntico filósofo que mesmo os discípulos que o compreendem só aparecem de séculos em séculos.”

todo evento ou obra, sufocados em gérmen, ainda têm a infinitude inteiramente aberta para o seu retorno.”

Apenas a significação interior vale na arte, a exterior vale na história. Ambas são completamente independentes uma da outra, podem aparecer juntas, mas também sozinhas.”

Que é afinal a modéstia senão a fingida humildade por meio da qual, num mundo povoado de inveja, pede-se perdão pelas excelências e méritos próprios àqueles que não os possuem?”

VIOLÊNCIA ou ASTÚCIA, os quais, em termos morais, são em essência a mesma coisa.”

Quem se recusa a mostrar ao andarilho o caminho correto não pratica injustiça; mas quem lhe aponta o caminho errado, pratica-a.”

O gozo da prática da injustiça num indivíduo é sempre menor que a dor ao sofrer a injustiça de outrem” Isso é tão sintético que poderia ter salvado Kant de escrever sua tortuosa Crítica da Razão Prática!

assim como de maneira bastante engenhosa se denominou o historiador um profeta às avessas, o legislador é um moralista às avessas.”

Todo amor puro e verdadeiro é compaixão. Todo amor que não é compaixão é amor-próprio.” “Até mesmo a amizade autêntica é sempre uma mescla de amor-próprio e compaixão” “O CHORO é COMPAIXÃO CONSIGO MESMO ou, a compaixão que retorna ao seu ponto de partida.” “sente-se que quem ainda pode chorar também tem de ser necessariamente capaz de amar”

Embora a idade e a doença tivessem transformado a vida dele num tormento e, através do desamparo, um fardo pesado para o filho, ainda assim a morte [do pai] é chorada intensamente.”

A verdadeira filosofia deve ser sempre idealista; de fato, deve sê-lo se quiser ser tão-só uma filosofia honesta, ainda que falsa.”

Jacobi, em sua doutrina de que a realidade do mundo exterior é assumida com base na fé, é exatamente <o realista transcendental que se faz passar por idealista empírico> tão censurado por Kant em sua Crítica da Razão Pura

Fichte não deve ser mencionado em minha obra: ele não merece um lugar entre os verdadeiros filósofos; entre aqueles eleitos da humanidade que, com honestidade profunda, buscam não coisas pessoais, mas a verdade; aqueles, portanto, que não devem ser confundidos com outros, os que, sob essa pretensão, só se importam com miudezas egocêntricas e a própria carreira. (…) Mas quem quer que nomeie esse tal Fichte ao lado de Kant – e falando sério! – demonstra que não tem a menor noção de quem é Kant e o que ele representa.” Essa espetada é sem disfarces direcionada a Hegel, este nivelador universal!

Materialismo é a filosofia do sujeito que se esquece de levar em consideração a si mesmo.”

Chega a ser comovente como, desprovidos tanto da profundidade dos alemães como da honestidade dos ingleses, os filósofos franceses distorcem e reviram o pobre material da sensação daqui e dali, buscando incrementar sua importância, a fim de elaborar os fenômenos profundamente significativos do mundo da percepção e do pensamento.”

Poderemos nos chamar de civilização somente quando nossos ouvidos puderem viver desprotegidos sem danos, quando não for mais <direito adquirido> de cada um perturbar a paz de consciência e a tranqüilidade de quem caminha na rua através de uma infinidade de sons como assovios, berros, relinchos, marteladas, o estalar de chicotes, latidos, etc., etc. (…) Algo mais sobre este assunto é dito no 13º capítulo do segundo volume do ParergaSim, amigo, eu me lembro muito bem! Quem estiver interessado (são passagens bem divertidas!), basta clicar em https://seclusao.art.blog/2017/05/30/o-pessimismo-de-arthur-schopenhauer/ e digitar Lichtenberg na busca (ctrl + F).

SÓ SEI QUE NADA (ESPERO DE) SEI(TAS): “se pudéssemos com firmeza persuadir 3 homens de que o sol não é a causa da luz do dia, seria de se esperar que logo essa nova convicção se tornaria generalizada.”

Inferir é fácil, julgar é complicado. Falsas inferências são raras, falsos julgamentos se dão o tempo todo.”

Quanto mais um homem é capaz de uma seriedade integral, mais, também, ele pode rir de coração.”

A ironia é objetiva, isto é, direcionada sempre ao outro; mas o humor (o cômico) é subjetivo, i.e., existe primariamente apenas para si mesmo. É por essa razão que as obras-primas da ironia estão entre os antigos, mas as obras-primos do humor se acham entre os modernos.

Falar diretamente dos corpos parece aos filósofos contemporâneos excessivamente vulgar; daí que eles digam <ser>, que juram soar melhor”

GERENTE-GERAL DA FIRMA: “o filósofo deve pesquisar em todos os campos do conhecimento, e inclusive, até certos limites, estar familiarizado em cada um. Segue daí que aquele conhecimento completo que só pode mesmo ser adquirido pelo estudo do detalhe está-lhe necessariamente interdito. (…) o filósofo pode ser comparado ao maestro: deve saber a natureza e o uso de todos os instrumentos da orquestra, sem embargo não seria proveitoso saber tocar todos, nem mesmo um deles como um perito ou virtuoso. O especialista é como Penélope semi-viúva à espera, que cose só para descoser. Tanto faz seus dias, o que importa é Odisseu. Ele irá ligar os pontos e dar utilidade ao trabalho da carne, ao alfinete e ao vestido.

em si mesmas, as matemáticas deixam a mente exatamente onde elas a encontraram (…) mesmo Descartes, muito melhor matemático do que filósofo, considerava a matemática de segunda ordem, ideal para cultivar a atenção e controlar a superexcitação dos nervos”

Se tivermos lido um livro de anedotas, digamos, 50 anedotas, e depois deixamos o livro de lado, imediatamente depois da leitura pode ser que sejamos incapazes de lembrar de cor uma única anedota. (…) O mesmo com qualquer tipo de leitura. Nossa conexão com o que aprendemos lendo depende de nossas linhas de pensamento, no contexto adequado. Aprender a fundo uma língua significa fortalecer essas conexões.”

O PROBLEMA DE DAR AULAS OU FALAR EM UMA CONFERÊNCIA, AINDA MAIS QUANDO NÃO SE É UM ESPECIALISTA: “Ocasiões suscitam pensamentos; pensamentos suscitam ocasiões apenas às vezes. Se nos propomos a fazer algo num momento determinado, isso só pode se dar perfeitamente se 1) ou não pensamos em nada até a chegada deste momento, 2) ou se nesse momento determinado nós somos lembrados do pensamento por algum símbolo, com que está associado, seja uma impressão externa plantada previamente [que tal uma simples anotação?] ou um pensamento que é de novo suscitado de forma natural. [um aluno que através de uma questão recupera nossa memória]

Toda manhã quando despertamos nossa consciência é uma tabula rasa, que, no entanto, logo se enche de novo. (…) até o ponto em que tudo que nos ocupava na véspera (ontem) lá de novo está.”

algumas vezes não podemos mais nos lembrar, de manhãzinha, de uma melodia que na noite passada grudou em nossa cabeça a ponto de nausear-nos.” Mas às vezes é o oposto: acordamos ouvindo distintamente um estribilho que, estamos seguros, não nos havia ocorrido meses a fio!

A consciência é meramente a superfície de nossa mente, da qual, igual a Terra, não conhecemos as profundezas, só mesmo a crosta.”

Nossa auto-consciência tem, não o espaço, mas somente o tempo como forma. Não pensamos em três dimensões, como percebemos o mundo, mas só em uma, isto é, numa linha, sem largura ou profundidade. Essa é a fonte da maior das imperfeições essenciais do nosso intelecto.” Alguém que não dormisse seria alguém cuja linha reta do raciocínio e da consciência se tornou uma forca (uma corda que se torce sobre si mesma e asfixia nossa própria consciência).

após longa e ininterrupta reflexão sobre um mesmo tema nosso raciocínio se torna gradualmente confuso e estúpido, e termina em completo estupor. Desta feita, após um certo intervalo, que, é claro, varia de indivíduo a indivíduo, devemos nos interromper e abandonar nossa meditação ou deliberação antes de resolvê-la, e nos dar certa paz e relaxamento. Mesmo que se trate de um problema crucial e muito pessoal; ou se elimina essa perturbação da mente ainda que temporariamente, por mais opressiva que seja a ansiedade em torno dela, e nos engajamos nalguma distração indiferente e banal, ou…” “Porque quando retomarmos o fio do problema, refletiremos sobre a coisa de uma outra maneira, como se fosse todo um assunto novo. Entraremos no cerne da problemática muito mais rápido e de um outro ponto de vista, desconectado das primeiras impressões de excitação e repulsa que os pensamentos já haviam percorrido, mais distanciados dos fatos. Nossa vontade aprecia tudo de outro ângulo.” “a mesma coisa, por sinal, nos parece diferente pela manhã, à tarde, à noite, ao meio-dia, noutro dia… às vezes muito diferente”

Em geral, ocupações teóricas tornam nossa mente inábil para negócios privados, e vice-versa.”

quando o grau de cultura é mais ou menos o mesmo, a conversação entre um homem de grande intelecto e um homem ordinário é como a jornada de dois homens caminhando lado a lado, um deles cavalgando um cavalo muito fogoso, o outro indo a pé. Logo se torna incômodo para ambos continuar a travar conhecimento. Após certa duração de tempo, impossível mesmo. Porque por um breve intervalo o cavaleiro pode apear de sua montaria e acompanhar o outro na caminhada, se bem que até mesmo a impaciência de seu animal lhe dará muito que fazer!”

Não há meio-termo entre o desejo e a renúncia.”

Entre os modernos, aquele que vive DA filosofia é, via de regra, salvo raríssimas exceções, o extremo oposto daquele que vive PARA a filosofia, a ponto deste ser o antípoda secreto e irreconciliável daquele. (…) E assim com os discípulos dos grandes filósofos: aquele que em vida passou despercebido, em penúria e sem jamais colher os frutos de sua grandeza, após a morte vê-se reabilitado perante a sociedade, o que é o exato oposto dos tais <renomados professores> [seria Hegel a grande exceção?]. Porém, uma vez que o filósofo deixa um legado, as novas gerações se tornam verdadeiros parasitas: herdeiros sem mérito, rebaixam sua filosofia a seu próprio patamar mesquinho e perpetuam o ciclo da gentalha, vivendo DO seu mestre, e não PARA ele. Que Kant tenha podido viver DA e PARA a filosofia dependeu da mais rara eventualidade de que, pela primeira vez desde os imperadores Antonino e Juliano, um filósofo subira ao trono. Só mesmo sob a proteção de um tal monarca a Crítica da Razão Pura poderia ter visto a luz do dia. Mal morreu o Kaiser e Kant, ainda no meio de sua carreira, foi tomado de apreensão. Como um ex-súdito de um governante sucedido por inimigos poderosos, Kant viu-se na posição de modificar, expurgar e espoliar sua obra-prima na 2ª edição, e ainda assim quase perdera o direito de lecionar e de publicar; o que o salvou foi que Campe de Brunswick¹ se tornou seu mecenas, e Kant ganhou o posto de tutor de sua família.”

¹ Nada sei a respeito dessa figura. Até seu nome parece estar transliterado errado.

Sobre si mesmo todos sabem diretamente, sobre todos os demaisindiretamente. Nisso consistindo o problema.” Ou nem mesmo a si diretamente…

O intelecto é de fato um confidente da Vontade, mas um confidente a quem não se conta tudo.” “O intelecto fica cansado; a Vontade, nunca.”

De 10 coisas que nos importunam, 9 seriam incapazes de fazê-lo se as entendêssemos integralmente em suas causas e, destarte, conhecêssemos sua necessidade e verdadeira natureza; mas o faríamos muito mais amiúde se as tomássemos como objeto de reflexão antes de fazermos delas objeto de ira e indignação.”

Aquele sem frieza e presença de espírito só sabe o que deveria ter feito ou dito quando a oportunidade já passou.”

é muito mais fortuito nascer poeta que filósofo.”

Às vezes, por causa de uma interrupção, é inteiramente impossível retomar o fio de meu pensamento de instantes atrás, ou tentar rememorar, p.ex., de que notícia acabei de me inteirar. Acontece que, se o problema em questão tinha de qualquer ângulo o menor e mais distante interesse pessoal, a sensação que nos é deixada é conservada pela Vontade. Mesmo que não lembre o conteúdo, estou perfeitamente consciente do quanto aquilo em que meditava ou de que obtive conhecimento me afetava, agradável ou desagradavelmente, e quase posso dar com a maneira com a qual isso interagia comigo, i.e., se me envergonhava, gerava puramente ansiedade, me irritava ou me deprimia, ou então produzia o oposto dessas afeições. Quer dizer que a mera relação da coisa com minha Vontade é retida na memória mesmo após a coisa em si [sem hífen aqui: a coisa ela mesma, qualquer coisa, conteúdo banal ou de somenos importância metafisicamente falando, i.e., não é o noumeno de Kant!] ter se dissipado, e esse fato se torna a principal pista que nos conduz de volta àquela coisa.”

assim que a mente escapa do disparate da infância, cai nas ciladas de inumeráveis erros, preconceitos e quimeras, algumas vezes até mais absurdos e toscos que os da infância, sendo que agora a mente possui a qualidade de perseverar muito mais nestes erros, até que finalmente a experiência acumulada começa a remover um por um desses preconceitos, sendo que muitos deles desaparecem sem que nos demos conta. Isso demora muitos anos para se suceder, de modo que em muitas legislações adquire-se a chamada maioridade no vigésimo aniversário – mas a maturidade consumada, os anos da discrição, só muito raramente dá as caras antes do quadragésimo aniversário.”

todo esse mundo objetivo, tão vasto e ilimitado em espaço, tão infinito em tempo, tão insondável em sua perfeição, é, na verdade, só determinado movimento ou afeição provinda de uma comparativamente muito escassa matéria cinzenta confinada a um crânio.”

Podemos chamar o instinto de um caráter ou personalidade que é para além de todas as medidas unidimensional e achatado. Vide os insetos: eles são quase que o perfeito exemplo de sonâmbulos naturais (despidos de toda e qualquer individualidade).”

Só na aparência os homens são puxados pelo que vai adiante; na realidade eles são empurrados pelo que vai atrás; não é a vida¹ que os tenta a continuar, mas a necessidade que os impele para a frente.”

¹ Entender como esperança.

nenhum homem de mente sóbria pode sonhar em ser um gênio.”

Decerto que o que um homem adquire em experiência e conhecimento até a idade da puberdade é, tomado como um todo, mais do que tudo que ele futuramente aprenderá, por mais que ele chegue a uma grande erudição; porque aquele conhecimento inicial é o fundamento de todo o conhecimento posterior.”

No geral eu recomendo a todos que queiram se familiarizar com minha filosofia ler cada linha que já escrevi. Eu não sou um escritor volumoso,¹ fabricador de compêndios, não lucro com minha filosofia, meus escritos não almejam à aprovação de um ministro de Estado; em suma, não sou alguém sob a influência de fins materiais.”

¹ Mentira! Estou há anos tentando ler sua obra completa, camarada!!

Juventude sem beleza tem sempre ainda um charme; beleza sem juventude nenhum.”

o sono é um dos irmãos da morte; já o desmaio é seu irmão gêmeo.”

TUDO VAI FICAR BEM: “Mesmo à morte violenta é impossível ser dolorosa, já que até ferimentos graves não são sentidos senão algum tempo depois, amiúde não antes de que a própria vítima observe seus sinais exteriores. Se esses ferimentos levam rapidamente à morte, a consciência se esvai antes da descoberta; se os ferimentos conduzem lentamente à morte, trata-se de desfecho idêntico ao de outras doenças. Todos aqueles que perderam a consciência debaixo d’água, ou asfixiados pela fumaça, ou numa tentativa mal-sucedida de enforcamento, são conhecidos por haverem relatado não sentir a mínima dor.”

Só o homem carrega consigo em conceitos abstratos a certeza de sua morte, embora a mesma só o angustie muito raramente, em momentos particulares, quando uma ocasião a presentifica à fantasia. Contra a voz poderosa da natureza a reflexão pouco pode.” “Ninguém tem uma convicção realmente vívida da certeza da própria morte, pois, do contrário, não poderia haver diferença tão grande entre sua disposição e a do criminoso condenado.” “a consciência interna (…) evita (…) o envenenamento da vida do ser racional pelo pensamento sobre a morte, já que tal consciência é a base daquele ânimo vital que conserva cada vivente e o capacita a continuar vivendo serenamente, como se não existisse morte” “Todavia, nada impede que, quando a morte entre em cena para o indivíduo no particular e na efetividade, ou apenas na fantasia, ele tenha então de encará-la nos olhos, sendo assim assaltado pelo medo” “às vezes enfrentamos a dor mais terrível só para escapar da morte por mais alguns instantes