CÁRMIDES (OU ‘DA CRÍTICA DE CRÍTIAS’): Comparação de traduções

Tradução comentada de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”

Além da tradução ao português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei oportuno abordar pontos polêmicos ou obscuros. Quando a nota for de Azcárate (tradutor) ou de Ana Pérez Vega (editora), um (*) antecederá as aspas.

(*) “O Cármides é um diálogo de Platão em que Sócrates é introduzido ao jovem Cármides e continua a conversação com Crítias – o tema é o sentido de sophrosyne, palavra grega para <temperança>, <prudência>, <autocontrole>, <restrição>, havendo sido traduzida pelo escólio como sabedoria. Como é habitual nos diálogos platônicos de juventude, os contendores não chegam a uma definição satisfatória, mas ao menos promovem, através do método maiêutico, uma profunda reflexão.” – A.P.V.

Aproveito ainda a ocasião para fazer comparações entre duas traduções independentes, de fontes que divergem, pois traduzi novamente o texto – dessa vez outra tradução espanhola – em 2023 (note-se que este post é original de 2019, e o estou republicando com alterações). Obviamente minha própria experiência de vida fez-me recorrer à tradução de trechos diferentes e de formas diferentes, mas nos casos em que traduzi as mesmas passagens podemos avaliar, em parte, o êxito de minhas escolhas e, em parte, a própria felicidade dos tradutores espanhóis, que me induziram a localizar ao português de forma alternativa já pelo fato de haverem feito suas seleções vocabulares sobre o grego original! A “nova tradução” constará na cor azul claro, além de em fonte diferente, para não confundir o leitor.

O primeiro contraste, já bastante sobressaltante, é que CÁRMIDES também é chamado, por sua matéria de “CÁRMIDES OU DA SABEDORIA”, mas eu intitularia facilmente o diálogo como “CÁRMIDES OU DA IMPOSSIBILIDADE DO SABER”, pelo menos a partir desta opção por uma segunda tradução 4 anos depois, já “denunciando” o caráter de aporia do diálogo!

SÓCRATES – Efetivamente, pouco antes da minha partida teve lugar uma batalha em Potidéia,¹ da qual, justo agora, soube-se aqui.”

¹ Colônia de Corinto, integrante da liga espartana.

-…quem vem vindo é Cármides, filho de meu tio Glauco e portanto meu primo.

– Sim, por Zeus! Noutro tempo, ainda que muito jovem, já não parecia mal; hoje deve ser um bem-formado adulto!

– Já, já poderás julgar de seu talhe e disposição.

Enquanto pronunciava essas palavras, Cármides entrou.

– Não é a mim, querido amigo, a quem é preciso consultar para esta avaliação. Se devo ser sincero, sou a pior pedra-de-toque em matéria de beleza dos jovens; porque na idade em que está nem um só me parece menos que formoso.

Sem dúvida me pareceu admirável por suas proporções e figura, e adverti também que todos os demais jovens encontravam-se como que apaixonados por ele, como assinalavam sua turbação e emoção, que lhes notei no rosto assim que Cármides entrou. Entre os que o seguiam, contemplei mais de um erastes. Que o seguinte sucedera a homens como nós, mais velhos, nada de espantoso: mas observei que entre os jovens não havia um que nele não fixasse os olhos, e não falo só dos mais jovens dentre eles, mas de todos do local – Cármides era contemplado como um ídolo. Querefonte, interpelando-me, disse:

– E então, Sócrates, que nos dizes? Não tem uma bela fisionomia?

– Ó, sim.

– E no entanto, se se despojasse de suas vestes, não te fixarias no seu corpo, se te conheço.¹ Ah, tão belas suas formas!…

Todos subscreveram as palavras de Querefonte.

– Por Hércules! Falais-me de um homem irresistível se, evidente, em acréscimo a todos estes dotes possui um atributo bem pequeno.²

– E qual é?

– Que a natureza tenha-o tratado com a mesma generosidade quanto a sua alma; creio que assim será, posto que o jovem pertence a tua família.”³

SÓCRATES – Quem é? E é filho de quem?

CRÍTIAS – Provavelmente o conheces. Porém, quando te ausentaste da cidade ele ainda não estava em idade. É Cármides,4 filho de nosso tio5 Glauco, primo meu, portanto.

SÓCRATES – Claro que o conheço. Já então não fazia má impressão, e isso sendo só uma criança. Imagino agora então, que já é um rapaz!”

Comparados a mim, todos os adolescentes são belos.” “Tive a impressão, quando o vi entrar, de que todos os outros rapazes estavam dele enamorados, tão atônitos e confusos se mostraram. Outros muitos admiradores o seguiam. Estes sentimentos, entre homens maduros como nós, eram menos invulgares, e, não obstante, entre os jovens, dei-me conta, nenhum, por mais tenro em idade que fôra, deixava de olhar na direção de Cármides, como se fôra a imagem de um deus que se aproximava.”

QUEREFONTE6 – Então, que te parece, Sócrates? Não tem um belo rosto?

SÓCRATES – Extraordinário!

QUEREFONTE – Decerto que, se ele se pusera nu, a ti já nem pareceria belo de rosto, tão bela e perfeita sua figura.”¹

¹ A segunda tradução diverge, e provavelmente é a menos confiável.

² Não sei se há no original este matiz de ironia pícara que parece querer comentar sobre o tamanho do pênis de um homem, se essa matiz foi acrescida nas traduções ou se eu mesmo vi o texto sem a devida inocência – mas na segunda tradução não há qualquer conotação que possa ser levada para um lado ambíguo, pelo palavreado escolhido. Eu traduziria, hoje, da seguinte forma: “se, é evidente, em acréscimo a todos estes dotes me satisfizesse também num outro detalhe.”

³ Como o diálogo é diferente de muitos mais tardios, em que só Sócrates fala, como se contasse uma história passada a não sabemos quem, e interpõe os discursos da cena apenas com o travessão, há, em determinados trechos, confusão sobre com quem ele dialoga no banho, se com Querefonte ou Crítias.

4 Tanto Cármides quanto Crítias participaram do Governo dos Trinta Tiranos e morreram no mesmo ano, em batalhas contra os democratas atenienses.

5 Informação importante: Glauco parece ser tio-avô de Crítias, e no entanto Cármides é mais novo, i.e., Crítias é neto do irmão de Glauco e nasceu muito antes. Além do fato de que Glauco teve um filho já em idade avançada (o que não tem qualquer interesse fundamental para nós), só gostaria de chamar a atenção para o vínculo familiar entre ambos – mais tarde outra nota de rodapé tocará no assunto e legitimará uma adaptação feita na segunda tradução.

6 Presente no diálogo A Apologia de Sócrates, um de seus melhores amigos.

(*) “Como quando Lísias é apresentado no diálogo homônimo, Cármides é introduzido com os melhores epítetos que se pode dedicar a um homem: é kalos kai agathos. A fórmula, que expressa um ideal supremo de equilíbrio entre beleza física e superioridade psicológica se encontra num domínio mais amplo que o da mera tradução literal no contexto moderno.”

– E que motivos teríamos para não pôr primeiro em evidência sua alma, e não a contemplaremos antes que a seu corpo? Na idade em que se acha, está já em posição de sustentar dignamente uma conversa?¹

– Perfeitamente – respondeu Crítias. – Já nasceu filósofo.² E se podemos crer nele mesmo e naqueles que o cercam, é também um poeta.

– Talento que, vejo, é-lhe hereditário, meu querido Crítias. Deve-o sem dúvida a vosso parentesco com Sólon! Mas que tanto esperas para me introduzir a este jovem promissor? Ainda que fôra mais jovem do que é, nenhum inconveniente teria em conversar conosco diante de ti, seu primo e tutor.³

– Nada mais justo, Sócrates. Iremos chamá-lo.”

SÓCRATES – Que tal então se o pomos a nu, não por fora, mas por dentro, analisando sua alma em detrimento de sua aparência? Na idade em que se encontra com certeza amará o diálogo.”¹

¹ Na primeira versão é uma pergunta sincera, não-retórica. Na segunda versão é uma afirmação em forma de indagação – mas Sócrates demonstra ter certeza de que tal jovem gostará de conversar.

² Sentido vulgar de filósofo: sociável, e aparentando inteligência aos demais.

³ Esta frase coincide nas duas versões, e é o que me leva a crer que neste ponto Azcárate operou mal: Sócrates está tão convicto de que Cármides já passou e muito da idade em que já pode sustentar uma conversação profunda que chega a afirmar que mesmo se ele fosse alguns anos mais novo talvez ainda houvesse a mesma possibilidade, estando ali alguém da família, a guardar intimidade com o potencial púbere (é de se admitir que, na Grécia Antiga, a fase da revolta na puberdade se desse bem mais tardiamente do que em nossa cultura, e a fase inicial da puberdade viesse acompanhada, no homem grego livre – o não-escravo, i.e., criado de forma autenticamente ateniense –, de certo pudor e introspecção exagerados, perdidos depois naturalmente, o mesmo comportamento que passamos a exibir, talvez, dos 10 aos 12, já muito menos travessos que aos 6-8, e muito mais conformados com nossa situação do que o adolescente genuíno do século XX, de 14-18 anos).

– Cármides se queixa de que há algum tempo lhe pesa e lhe dói sua cabeça, sobretudo quando acaba de acordar. Que inconveniente há em indicá-lo, pois sei que conheces, um bom remédio para este mal?”

CRÍTIAS – Há não muito Cármides me disse que pelas manhãs, ao despertar, pesava-lhe a cabeça. Por que não te lhe apresento como médico, pois que deves conhecer um remédio para seu mal?”

Assim sucedeu, com efeito. Cármides veio a nós e deu ocasião a uma cena bastante divertida. Cada um de nós, todos sentados num mesmo banco, empurrou seu vizinho, espremendo-se a fim de dar lugar a nosso conviva, para que se sentasse de seu próprio lado. Como resultado, cada um empurrando seu próximo, os dois que estavam nas extremidades do assento – um deles teve de se levantar de golpe, e o outro caiu de bunda no chão. Não obstante, Cármides adiantou-se e sentou entre Crítias e eu mesmo. Mas então, ó amigo, me senti um tanto turbado e perdi repentinamente aquela serenidade que conservara antes, com a qual contava a fim de conversar sem esforço com o jovem. Depois, Crítias fez questão de cortar o embaraço relatando que eu era aquele que sabia de um bom remédio para suas dores de cabeça. Ele se voltou para mim com o olhar interrogativo e perscrutador, um gesto que me é impossível descrever o suficiente. Todos que estavam na academia se apressaram em sentar em círculo a nossa volta. Neste momento, meu querido, minha vista penetrou as dobras de sua túnica; meus sentidos se excitaram, e em meu transporte compreendi até que ponto Cídias¹ é inteligente nessas coisas do amor: uma vez, falando da beleza de um jovem, com um terceiro, disse: Ó, inocente gamo, vê se não te vais apresentar à boca do leão, se não desejas ser despedaçado!

¹ Poeta do qual provavelmente só restam fragmentos ou citações em outros autores.

Respondi que meu remédio consistia em certa erva, mas que era preciso acrescentar certas palavras mágicas; que pronunciando as palavras e tomando o remédio ao mesmo tempo recobraria inteiramente a saúde; mas que as ervas sem as palavras não surtiriam qualquer efeito. Cármides me respondeu:

– Vou, pois, escrever as palavras de teu encanto para não as esquecer.

– Dir-tas-ei a uma petição tua ou sem precisar de uma?

– Ao meu rogo, Sócrates – respondeu o jovem espirituoso, a rir.

– Que assim seja. Mas sabes meu nome?

– Seria vergonhoso se o ignorasse; no círculo de jovens és tu quase o principal tema de nossas conversas. Quanto a mim, recordo vivamente tê-lo visto, ainda muito criança, muitas vezes, em companhia de meu querido primo¹ Crítias.”

CÁRMIDES – De que remédio se trata?

SÓCRATES – O remédio é uma espécie de erva, à qual deve ser acrescentado um encantamento cem por cento eficaz para trazer de volta a saúde; a tal ponto que, consumindo-se somente a erva, sem o ritual que a acompanha, não há possibilidade da cura.”

¹ A diferença de idade é tamanha que achei melhor modificar a relação entre primo de meia-idade e primo mancebo para uma de tio-sobrinho a partir daqui na segunda tradução.

SÓCRATES – (…) O poder deste remédio é tal que não cura somente as dores de cabeça. Já deves ter ouvido falar de médicos hábeis. Se são consultados por alguém com doenças oculares, dizem que não podem empreender a cura dos olhos sem estender o tratamento à cabeça inteira. Analogamente, não se pode curar a cabeça desprezando o restante do corpo. Seria uma tolice. Seguindo este raciocínio, tratam o corpo inteiro e se esforçam por cuidar do paciente e sanar a parte juntamente com o todo. Não crês tu que é assim como falam e como realmente acontece?

CÁRMIDES – Não duvido.

SÓCRATES – E tu aprovas este método?

CÁRMIDES – Como não?”

Dizem os médicos que para curar os olhos deve-se curar também a cabeça, que os envolvem. E que para curar a cabeça deve-se cuidar do corpo inteiro. E de nada adianta cuidar do corpo, se não se presta atenção à própria alma.”

Zamolxis,(*)¹ nosso rei, e por conseguinte um deus, defende que não se deve tentar efetuar a cura dos olhos sem a cura da cabeça, nem a da cabeça sem a do corpo; e tampouco deve-se tratar o corpo sem tratar a alma; se muitas doenças resistem aos esforços dos médicos gregos, isto vem de que desconhecem este sistema. Pois indo mal o todo, seria impossível que fosse bem a parte.

(…)

Trata-se da alma valendo-se de algumas palavras mágicas. Estas palavras mágicas são os belos discursos. Graças a eles, a sabedoria se enraíza nas almas e, uma vez arraigada e viva, nada mais fácil que se procurar a saúde à cabeça e a todo o corpo.”

Ocorre, Cármides, que aprendi este encantamento no exército, de um dos médicos trácios de Zalmoxis,(*) ouvindo-o proferir que é capaz de ressuscitar os mortos.

(*) “Referem Zamolxis como escravo de Pitágoras que obteve sua liberdade, viveu três anos num subterrâneo [!!] e de lá saiu para fazer-se grande legislador, além de filósofo que ensinava sobre a imortalidade da alma. (Heródoto, 4:95)” – P.A.

(*) (outra nota, subsecutiva) “Talvez tenha sido discípulo e não escravo de Pitágoras. Seu nome possui diferentes grafias, conforme a fonte apurada. Zalmoxis, Salmoxis, Zamolxis, Samolxis. É hoje tido mais como figura lendária, reformador social e religioso, endeusado pelos trácios da Dácia e pelos getas (povos do baixo Danúbio). Ainda com referência a Heród. 4:95-ss., os getas tinham a crença de que ao morrerem se reuniam com Zamolxis.” – A.P.V.

¹ Para uma interpretação moderna do mito de Zamolxis ou Zalmoxis, vd. Mircea Eliade.

(*) “Zalmoxis é, segundo Heródoto, História IV, um deus reverenciado na Trácia. Era cultuado como a divindade da medicina e da imortalidade. No mesmo livro, Heródoto cita Zalmoxis como um escravo de Pitágoras, proveniente da própria Trácia; daí então admitirmos que falava da mesma pessoa em ambas as circunstâncias, e que o “deus” dos trácios era um deus pessoal, vivente. Diógenes Laércio descreve este último como um dos primeiros filósofos dentre os povos bárbaros, o que para eles deve ter tido o mesmo efeito de acompanhar um deus em vida.”

– Cármides me parece superior aos jovens de sua idade, não só pela beleza de suas formas, mas também por essa coisa mesma pela que tu aprendeste e que contém referências a essas <palavras mágicas>. Afinal, o que queres dizer é que discutamos sobre a sabedoria, não é verdade?

– Exatamente.”¹

A alma é tratada com encantamentos, e os encantamentos são os belos discursos. Dos belos discursos nasce a sensatez,¹ amiga da alma sadia. (…) O maior erro é tentar ser médico da alma e do corpo em separado. Se não acreditas no remédio, ele não te serve.”

¹ A palavra sabedoria demora muito mais a entrar em jogo na segunda tradução. Trata-se da sophrosyne, que pode ser traduzida com outros vocábulos dependendo do contexto.

Anacreonte, Sólon e os demais poetas foram infatigavelmente celebrados pela família de teu pai que se liga a Crítias, filho de Drópidas. Tua família é famosa por sobressair na beleza e na virtude de suas gerações, afora todas as demais vantagens que constituem a felicidade. (…) Jamais se conheceu no continente um homem mais belo nem mais excelente que teu tio Pirilampo,(*) embaixador de reis e príncipes diversos. (…) Pois bem: com tais antepassados, tu não podes menos que ser o melhor em tudo.”

(*) “Pirilampo, filho de Antifonte, casado em segundas núpcias com sua sobrinha Perictíona e, portanto, também padrasto de Platão.”

se és suficientemente sábio, nada tens que ver com as palavras mágicas de Zamolxis ou de Ábaris, o Hiperbóreo¹ (…) A ti, te toca unicamente dizer-me se concordas com a opinião de Crítias, se crês que tua sabedoria² é completa, ou ainda incompleta.”

¹ Outra figura “excêntrica” relatada pelo historiador Heródoto. Digamos que personagem folclórica, posto que ali se diz que voava pelos céus.

² Vide a – na minha opinião – monumental diferença de vocábulo, decorrente das diferentes acepções do grego sophrosyne.

Cármides ruborizou, e com isso pareceu ainda mais belo, porque a modéstia quadra bem com sua juventude. Depois, ao recobrar-se, disse, não sem certa dignidade, que não lhe era fácil responder de chofre <sim> ou <não> a semelhante pergunta.

– Porque se nego que sou sábio, acuso-me a mim mesmo, o que não é razoável; e assim fazendo emito um desmentido às palavras de Crítias e tantos outros, que tanto me exaltam, ao que parece. Mas, na mão contrária, se faço-me eu mesmo meu próprio elogio, não me ponho em situação menos inconveniente. Simplesmente não sei o que responder-te!”

CÁRMIDES – Estou aqui em situação bastante difícil. Por um lado, se digo que não sou sensato, estaria bastante fora de lugar que alguém diga tal coisa de si mesmo; ademais, farei com que Crítias, que é inclusive nossa testemunha, pareça diante dos outros um embusteiro, aliás, não só ele como muitos que afiançam que pareço sensato. Por outro lado, aquele que se diz sensato corre o risco de se tornar insuportavelmente arrogante. Então antes de que me examines, Sócrates, nada tenho a dizer.”

SÓCRATES – Para que saibamos se a sabedoria reside ou não em ti, diz-nos: que é a sabedoria em tua opinião?

CÁRMIDES – (…) Sócrates, a sabedoria parece consistir, para mim, em fazer todas as coisas com moderação e comedimento; andar, falar e agir em tudo dessa maneira; numa palavra, a sabedoria seria uma certa medida ou justeza.”

SÓCRATES – Diz-se por aí, querido Cármides, que os que procedem com medida são sábios. Mas há razão nessa sentença?”

Não seria a sensatez tudo que se faz de modo ágil?”

SÓCRATES – E que é mais belo para um mestre de escola, escrever agilmente ou com medida?

CÁRMIDES – Agilmente.

SÓCRATES – Ler rápido ou devagar?

CÁRMIDES – Rápido.

SÓCRATES – E tocar a lira com desenvoltura e lutar com agilidade não é mais belo que fazer todas essas coisas com mesura e lentidão?¹

CÁRMIDES – Sim.

SÓCRATES – E então? No pugilato e nos combates de todo gênero, não é sempre assim?

CÁRMIDES – Absolutamente.”

Por exemplo, ensinar algo a alguém, não é melhor fazer com rapidez e fluidez que com lentidão e pesadez?”

E a agudeza de raciocínio, não é algo assim como agilidade, e seu contrário a torpeza da mente?”

¹ Na tradução de Azcárate perde-se todo o gradiente, os matizes que a cada nova sentença Sócrates vai colocando nas expressões, para fazer seu interlocutor cair em contradição, ou melhor, já que Sócrates não é um sofista barato: para fazê-lo ver que, ao definir assim a sabedoria, qualquer homem cai em contradição.

SÓCRATES – É a sabedoria bela?

CÁRMIDES – Sim.

SÓCRATES – Logo, pelo menos no que concerne ao corpo, não é a mesura ou a medida, mas a velocidade que constitui a sabedoria, posto que a sabedoria é uma coisa bela.”

Então a sensatez não pode ser algo tranqüilo. Dir-se-ia que a sensatez é contrária ao repouso e à serenidade. (…) Mas se as ações calmas e prudentes não são em si mais valiosas, necessariamente, que as ações intrépidas e veementes, na verdade a sensatez seria algo indiferente ao tranqüilo e ao intranqüilo. Pois no andar e no falar não é prudente ser apressado sempre. Só o que sabemos é que a sensatez é muito bem-avaliada, destarte. E há coisas vagarosas que são bem-avaliadas!”

CÁRMIDES – Me parece, agora que tu o disseste, me corrigindo, que o próprio da sabedoria é produzir o rubor, fazer do homem mais modesto e timorato; a sabedoria seria, então, o pudor.

SÓCRATES – Que seja, então. Não confessaste antes que a sabedoria era uma coisa bela?

CÁRMIDES – Sim.

SÓCRATES – E os homens sábios são igualmente bons?”

CÁRMIDES – A sensatez também pode ser algo que torna o homem mais tímido e desperta-lhe o pudor.”

Mas o que dizes de Homero? Crês que ele está errado quando afirma

<Não é boa a companhia do pudor para o homem indigente>(*)?

(*) Odisséia XVII”

– Se o pudor pode ser tão bom quanto mau, não é sensatez, pois esta é sempre boa.

– De acordo.”

a sabedoria consiste em fazer o que nos é próprio.”¹

¹ Em que pese preferir, no todo, a versão de Azcárate, novamente encontro neste ponto específico maior felicidade na segunda tradução. Ver abaixo, quando reaparece, qual foi a escolha da 2ª tradução para “fazer o que nos é próprio”.

Que é o <ocupar-se>?”

SÓCRATES – Ó, pícaro! Foi Crítias ou algum outro filósofo que te sugeriu esta idéia?”

se descobrirmos o que isto significa, não me surpreenderei pouco; é um verdadeiro enigma!”

CÁRMIDES – Eu não sei de nada, por Zeus! Mas não seria impossível que quem falou desta forma se compreendesse a si próprio.

Ao dizer isso, Cármides me sorria e dirigia o olhar a Crítias, que se encontrava visivelmente vermelho já há algum tempo. (…) Percebi que jamais me enganara: Crítias era o autor da última resposta que me dera Cármides acerca da definição de sabedoria.”

não menos colérico contra o jovem que um poeta contra o ator que desempenha mal seu papel”

Via-se que Crítias, que, já fazia um tempo, sentia-se atacado e demonstrava vontade de sobressair em relação a Cármides e os presentes, incapaz de conter-se por muito mais, estava prestes a se manifestar. Tanto mais, então, me pareceu que meu palpite acertara em cheio: Cármides escutara justo de Críticas aquela definição de sensatez. Assim, Cármides, em apuro na defesa da definição, não querendo se associar ao que Crítias dissera, parecia querer que o tio percebesse como fôra por mim refutado. Foi depois da última fala do sobrinho que Crítias, sem poder se segurar, visivelmente chateado, exatamente como o autor que vê o artista representar mal suas obras, declarou finalmente:

CRÍTIAS – Quer dizer então, Cármides, que se tu mesmo não sabes o que tinha na cabeça quem definiu a sensatez como <ocupar-se daquilo que é seu> atribuis a este alguém automaticamente a qualidade que desconheces, isto é, asseveras que quem definiu assim a sensatez não sabia, tampouco, que é que lhe passava pela própria cabeça quando a definiu?”

Trabalhar com vistas ao belo e ao útil, eis aqui o que se chama ocupar-se; e os trabalhos deste gênero são para Hesíodo ocupações¹ e o autêntico agir.”

¹ Neste sentido, Hesíodo divide os trabalhos em dois: aquele indigno, que mal mereceria o nome de “trabalho”, e o trabalho digno em si, que ele também equivale a estar ocupado, à ação íntegra e excelente.

CRÍTIAS – Eu jamais disse que <ocupar-se de> é o mesmo que <fazer>. Segundo Hesíodo, nenhum trabalho é desonroso. E o artesão faz o que é dos outros, embora se ocupe só do seu.”

SÓCRATES – (…) Que assim seja. Dá às palavras o sentido que mais te agrade; basta-me que as definas simultaneamente a seu emprego. (…) Fazer o bem ou trabalhar por ele, ou como queiras chamá-lo, é isso que tu chamas sabedoria?”

CRÍTIAS – Não pestanejo, Sócrates.

SÓCRATES – Sábio é aquele que faz o bem, não o que faz o mal?

CRÍTIAS – Tu mesmo, querido amigo, não és deste parecer?

SÓCRATES – Não importa; o que agora temos de examinar não é o que eu penso, mas o que tu dizes.

CRÍTIAS – Pois bem; o que não faz o bem mas o mal, declaro que não é sábio; o que não faz o mal, mas o bem, este eu declaro sábio. (…)

SÓCRATES – Poderá suceder que tenhas razão. Não obstante, uma coisa me chama a atenção, e é que admites que um homem possa ser sábio e não saber que o é.

CRÍTIAS – Não há nada disso, Sócrates. Não o admito!

(…)

CRÍTIAS – Não, Sócrates, isto não é possível. Se crês que minhas palavras conduzem necessariamente a esta conseqüência, prefiro retirá-las. Prefiro antes confessar sem nenhum constrangimento que me expressei inexatamente, a conceder que se possa ser sábio sem conhecer-se a si mesmo. Não estou distante de definir a sabedoria como o conhecimento de si mesmo, e de fato sou da mesma opinião daquele que gravou no templo de Delfos uma inscrição deste gênero: Conhece-te a ti mesmo. Esta inscrição é, a meu ver, um cumprimento que o deus dirige aos que entram, em vez de ser uma fórmula ordinária, conforme muitos, tal qual <Sê feliz!>Creio que o deus julgou que uma mensagem mais direta como esta última não seria conveniente, e que aos homens deve-se desejar não a felicidade, mas a sabedoria. Eis aqui em que termos tão distintos dos nossos fala o deus aos que entram em seu templo, e eu compreendo bem o pensamento do autor da inscrição (…) linguagem um pouco enigmática, sim, como a do adivinho. ‘Conhece-te a ti mesmo’ e ‘sê sábio’ são a mesma coisa, no fundo, pelo menos é o meu parecer. Há outros homens que gravaram inscrições mais recentes nos templos, inscrições bem mais simplórias: Nada em demasia; dá-te em caução e não estarás longe da ruína, etc. Isso é coisa de gente que tomou a sentença conhece-te a ti mesmo por uma simples afirmação, digo, conselho, e não pelos cumprimentos do deus aos verdadeiramente sábios que ali entravam. (…) Ora, Sócrates, quiçá estejas certo ao final, quiçá eu o esteja. Em todo caso, nada de sólido firmamos aqui.”

SÓCRATES – Ah, Crítias! Assim que começaste a falar, entrevi por onde encaminharias teu discurso; ou seja, que chamarias as coisas próprias de alguém boas, e a criação (poiesis) de coisas boas de atividades (praxeis). Também de Pródico(*) ouvi ilimitadas distinções de palavras acerca disso. Fica à vontade para determinar o sentido que queres às palavras, contanto que bem justifiques tuas escolhas ao final. Agora, sugiro que comecemos então a definir as coisas com clareza desde um princípio que nos seja mútuo. É a <ocupação com> (praxeis) coisas boas que tu chamas de sensatez? E também a criação ou produção (poiesis), ou como mais queiras chamá-las, tu também chamas de sensatez, correto?

CRÍTIAS – Perfeito, Sócrates. Ambas as coisas são sensatas, ou antes ambos os verbos se referem àquilo que é sensato.

(*) Para mais sobre Pródico de Ceos, sofista, cientista político e gramático que atuou na Atenas socrática, cf. principalmente o Protágoras [https://seclusao.art.blog/2018/03/02/protagoras-outros/] e o Eutidemo [https://seclusao.art.blog/2018/08/31/eutidemo-ou-do-disputador-ou-da-mentira-sofistica-frente-a-verdade-dialetica/].”

CRÍTIAS – …de modo que defino quem se ocupa do seu como quem se ocupa de boas obras.”

SÓCRATES – Pode ser que um médico, tendo ou não curado o paciente (tendo ou não feito um bom trabalho), ignore se tratou de modo eficaz o paciente? Segundo tua definição, Crítias, tendo o médico curado o paciente, ignorando-o ou não se realmente o fez, ele obrou bem, isto é, sensatamente. Estou certo?

CRÍTIAS – Sim, Sócrates. Foi o que eu afirmei. (…) Inclusive equiparo o ser sensato ao Conhece-te a ti mesmo² da inscrição em Delfos. (…) De modo que o Conhece-te a ti mesmo não é em verdade um conselho do deus, como querem os homens que interpretam a inscrição demasiado à letra. A frase é antes uma saudação aos homens sensatos que qualquer outra coisa. Mas os homens mais se satisfazem com exortações diretas que com enigmas complicados.”

¹ “Sensato”, na 2ª tradução.

² Na tradição, frase provinda de Apolo. Na doxografia, muito associada a Sócrates, a frase é no entanto mais atribuída como original de Tales de Mileto, um dos Sete Sábios da Grécia Antiga, de geração anterior a sua.

CRÍTIAS – A sabedoria não é semelhante às outras ciências; estas não são semelhantes entre si, e tu supões em teu raciocínio que todas se parecem”

A sensatez é então um saber, ou um saber-de-algo?”

Não é a medicina um saber sobre a saúde?”

SÓCRATES – E a estática é a ciência do pesado e do leve; o pesado e o leve diferem da estática mesma. Não crês?

CRÍTICAS – Sim.

SÓCRATES – Pois bem; diz-me: qual é o objeto da ciência da sabedoria, que seja distinto da sabedoria ela mesma?”

O saber sobre si mesmo, que nome teria? E que obra gera de diferente de si mesma (a própria sensatez)? Pois que o matemático gera o saber sobre os números pares e ímpares e suas correlações, como o arquiteto gera o saber sobre edificações. A sensatez e o autoconhecimento mesmos devem gerar o saber sobre algo.”

CRÍTIAS – (…) Esta semelhança não existe. Enquanto todas as demais ciências¹ são ciências de um objeto particular e não do todo delas próprias, só a sabedoria é a ciência de outras ciências e de si mesma. (…) propões-te apenas a me combater e refutar, Sócrates, sem fixares-te na essência da questão!

SÓCRATES – Mas como, Crítias? Podes crer que se eu te pressiono com minhas perguntas seja por outro motivo além de que assim eu me obrigaria a dirigir-me a mim próprio a fim de examinar minhas palavras? Quero dizer, o temor de me enganar a respeito das coisas pensando saber e na verdade constatar que não sei não é aquilo que sempre me moveu e continua a me mover?”

CRÍTIAS – Sócrates, todos os outros saberes são saberes-sobre-algo, porém a sensatez se diferencia por ser um saber sobre todos os outros e também sobre si. Vejo que estás mais preocupado em refutar-me que em seguir o tema da discussão!(*)

(*) A partir desta definição de sensatez por Crítias entra-se na parte mais original do diálogo Cármides. Os trechos que seguem são justamente objeto de várias investigações recentes, como as de E. MARTENS; B. WITTE, Die Wissenschaft vom Guten und Bösen. Interpretationen zu Platons ‘Charmides’, Berlim, 1969; T.B. EBERT, Meinung und Wissen in der Philosophie Platons. Untersuchungen zum ‚Charmides‘, ‚Menon‘ und Staat, Berlim, 1974, pp. 55-82. Pioneiro no tema do Cármides foi o valioso estudo de CARL SCHIRLITZ, publicado no final do século XIX: «Der Begriff des Wissen vom Wissen in Platons ‚Charmides‘ und seine Bedeutung für das Ergebnis des Dialogs», em Neue Jahrbücher für Philologie und Paedagogik 155 (1897), 451-476 e 513-537.”

SÓCRATES – Mas como podes supor algo assim? Pensas que, ao refutar-te, faço-o por alguma causa distinta que a que me leva a me investigar a mim mesmo e aquilo que digo, talvez por temor de que me escape aquilo que penso que sei, sem sabê-lo? Digo-te, pois, Crítias, que é isto que trato de fazer agora: analisar nosso discurso, sobretudo por mim mesmo, mas também, acessoriamente, em prol de meus outros amigos. Não crês que tornar transparente a estrutura de cada um dos seres seja um bem comum para quase todos os homens?

CRÍTIAS – Creio, Sócrates, e muito!”

¹ A segunda tradução inteira se exime do emprego da palavra ciência. Como designadora das matemáticas, medicina, da arte do artesão, seria mais fácil empregá-la para nós, leitores modernos, mas realmente entendo a intenção de não usar o termo para a sabedoria (como a ciência da própria ciência), o que confundiria o leitor “empírico” moderno, tendente ao positivismo metodológico. Não é ciência no sentido baconiano aquela que aqui se discute. Tanto que aqui se trata mais do saber de um ofício, quando se fala das ciências particulares: o médico entende de medicar, o sapateiro de fazer sapatos. Seria espúrio para o cientista contemporâneo chamar o artesão de “seu colega” (cientista), para não falar também que na contemporaneidade a matemática não é mais considerada uma hard science.

Ânimo, amigo! Responde a minhas perguntas, segundo teu próprio juízo, sem inquietar-te se é Crítias ou Sócrates aquele que leva a melhor ao final. Aplica todo teu espírito no objeto que nos ocupa agora, e que seja uma só coisa tua preocupação: a conclusão a que nos conduzirão nossos próprios esforços.”

A ti não te importes se é de Sócrates ou de Crítias o discurso que está sendo refutado. Mas atua com diligência para que, quando parecer que estás em apuros, vejas uma saída plausível com o auxílio de teus argumentos.”

CRÍTIAS – Penso que, única entre todas as demais ciências, a sabedoria é a ciência de si mesma e de todas as demais ciências.

SÓCRATES – Logo, será também a ciência da ignorância, se o é da ciência?

CRÍTIAS – Sem dúvida.

SÓCRATES – Portanto, só o sábio se conhecerá a si mesmo, e estará em posição de julgar daquilo que sabe e daquilo que não sabe. De igual modo, só o sábio é capaz de reconhecer, quanto aos demais, o quê cada um sabe crendo sabê-lo, assim como o quê cada um crê saber, sem contudo saber. Nenhum outro pode fazer esse juízo. Numa palavra, ser sábio, a sabedoria, o conhecimento de si mesmo, tudo isso se reduz a saber o quê se sabe e o quê não se sabe. Não pensas tu idem?

CRÍTIAS – Em absoluto.”

A sensatez é também um saber do não-saber?”

Só o sensato, portanto, saberá aquilo que crê saber e na verdade não o sabe.”

SÓCRATES – (…) examinemos (…) primeiro se é possível ou não saber que uma pessoa sabe o quê sabe e não sabe o quê não sabe. Em segundo, supondo isto possível, que utilidade pode resultar deste saber?

É possível o saber que sabe o que sabe e que não sabe o que não se sabe?”

Concebes uma vista que não visse nenhuma das coisas que vêem as demais vistas, mas que seja a vista de si mesma e das demais vistas, e até do que não é visto? Concebes uma vista que não visse a cor, apesar de ser vista, mas que se visse ela mesma e as demais vistas? Crês que semelhante vista existe?

CRÍTIAS – Por Zeus, Sócrates, claro que não!

SÓCRATES – Concebes um ouvido que não ouvisse nenhuma voz, mas que se ouvisse a si mesmo e aos outros ouvidos, e até ao que não é ouvido?

CRÍTICAS – Tampouco.

SÓCRATES – Considerando todos os sentidos de uma só vez, parece-te possível que haja um que seja o sentido de si mesmo e dos outros sentidos, mas que não sinta nada do que os outros sentidos sentem?

Por conseguinte, uma coisa seria ao mesmo tempo maior que si mesma e menor que si mesma; mais pesada e mais leve; mais velha e mais nova, e assim com todo o demais. Não é indispensável que a coisa, que possui a propriedade de referir-se a si mesma, possua ademais a qualidade a que tem a propriedade de se referir?”

Estou em uma aporia. (…) Não parece que esse saber ora sabe mais, ora sabe menos do que ele sabe?”

Se é verdade que sou um dobro, não é verdade que sou também a metade? Que se o dobro de algo é 2x, o dobro é tanto o 2 quanto o x?”¹

¹ Sócrates não o diz recorrendo a símbolos aritméticos, que inclusive são criação muito posterior do espírito (da razão humana), mas achei que não faria mal em condensar assim seu pensamento.

Seria possível uma ciência da ciência? Eu sou incapaz de afirmá-lo; e ainda que haja, eu de minha parte não poderia admitir que esta ciência seja a sabedoria antes de haver examinado se, isto pressuposto, tal conhecimento nos seria útil ou não; porque me atrevo a declamar que a sabedoria é uma coisa boa e útil. Mas tu, filho de Calescro, que estabeleceste que a sabedoria é a ciência da ciência e igualmente da ignorância, prova-me, antes de qualquer coisa, que isto é possível”

Crítias, como aqueles que bocejam ao ver alguém bocejar, pareceu-me tão desconcertado quanto eu. Habituado ele a se ver coberto de elogios, constrangia-se à mera olhada dos circunstantes; teimava em não confessar ser incapaz de esclarecer as questões que eu formulei, falava, falava, e nada dizia – apenas disfarçava sua impotência aos menos perspicazes. Eu, que não queria abortar a discussão, me interpus novamente:”

E Crítias se via tão atônito e confinado à aporia quanto eu, agora; mas tinha vergonha de ceder diante dos demais. Nesse impasse, ele tampouco dizia nada que avançasse a discussão do problema.”

SÓCRATES – (…) Sem dúvida, se alguém possui aquilo que conhece a si mesmo, reconhecerá, logicamente, também a si mesmo. Mas o que interessa saber é se quem possui esta ciência deva necessariamente saber o quê sabe e também aquilo que não sabe!

CRÍTIAS – Sem dúvida, Sócrates, porque trata-se da mesma coisa.”

Como pode o saber do saber ser igual o saber da ignorância?”

Em medicina e política, é fácil saber que se sabe algo em medicina e política.”

Mas quanto ao saber do saber, como saberá que sabe? A sensatez não parece ensinar nada.”

O sensato não sabe o que o médico sabe ou não sabe, nem o que o político sabe ou deixa de saber.”

É através da medicina que conhecemos o que é são, não através da sabedoria; e através da música, o que é harmonioso (não através da sabedoria); através da arquitetura, o que é necessário para se construir (não da sabedoria). Concorda que é assim sucessivamente com todas as demais artes e ciências?”

Aquele que ignora essas coisas não sabe o quê ele sabe, só sabe que sabe.” Esta expressão é a formulação mais extensa e elaborada do aforismo mais célebre de Sócrates-Platão: o só sei que nada sei. Ao contrário do que vulgarmente se diz em torno desta frase, Sócrates não abdica do conhecimento, abraçando um ceticismo e um niilismo teórico absolutos. O sábio não sabe a medicina, o sábio não sabe a música, o sábio não é arquiteto, nem piloto de navio, nem estratego militar, nem a sibila. Mas, seu cognome o indica, ele possui uma sabedoria, a mais especial das sabedorias, a sabedoria em si. Sem referências às outras, é uma sabedoria inócua, vazia, despida de conteúdo. Somente com referência às outras sabedorias é a sabedoria do sábio (do filósofo) a ciência da ciência. Isto já é algo mais que o niilismo fundamental do conhecimento vulgar da expressão. Mas implica que o sábio pode ou deve ser útil? Não sem a devida humildade e a visão do todo que este conhecimento exige se não for apenas Retórica (ou seja, o diálogo se chama Cármides porque foi ele que deu a principal lição, no início, em sua fala discreta): “Só” sei que nada sei: o só representa mais do que uma partícula “secundária” da frase-síntese do método maiêutico: é o conhecimento positivo, mas que não se atreve a usurpar o lugar de cada um dos outros especialistas (nas demais sabedorias técnicas), de que sem o conhecimento natural cumulativo, da experiência, seu saber de nada vale ou adianta; ainda assim, é o primeiro passo necessário, a primeira certeza no sentido objetivo da filosofia moderna, até os dias da nossa Filosofia. Não sei “o quê” (conteúdo) posso saber ou não, mas sei qual é o critério da busca da verdade. Nasce aqui a epistemologia atemporal. Admite que não existe uma modalidade de sabedoria que esgote a própria sabedoria, a ponto de eliminar a ignorância, que é sempre a estrada do filósofo. E nenhuma filosofia se faz sem um chão firme sob os pés. Em suma, Sócrates entendeu a condição humana: o limite dinâmico da própria capacidade do saber. (A possibilidade d)O auto-conhecimento (do homem e das coisas pelo próprio homem que pode se entender e entender as coisas, como são, apenas a partir desse parêntese – de que o quê ele sabe sobre si mesmo condiciona e limita seu conhecimento atual do todo, sem que essa regra seja jamais passível de quebra, embora seu conhecimento atual varie com o tempo).

Logo, a sabedoria e o ser sábio consistem não em saber o quê se sabe e o quê não se sabe, mas unicamente em saber que se sabe e (outrossim) que não se sabe.” Reiteração do dito acima: o saber não pode ser sem a ignorância, e vice-versa.

Logo, a sabedoria não nos põe em posição de reconhecer no outro, que alega sempre saber alguma coisa, se este outro sabe o quê diz saber, ou se porventura não o sabe de verdade. Toda a virtude da verdadeira sabedoria (a ciência das ciências) se limita a nos ensinar que possuímos uma certa ciência. Qual é a matéria desta ciência, não é a ciência das ciências quem nos dirá.”

O médico não sabe nada sobre a medicina, pois a medicina é sabedoria do saudável e do doente, não de si mesma. O sábio reconhecerá que o médico possui uma sabedoria; mas que sabedoria é essa, só se o pode saber com referência aos objetos da medicina.”

Afora o médico, ninguém é competente para isso, nem o próprio sábio, aliás, muito menos ele. Não fosse assim, teríamos um médico-sábio, ou um sábio-médico, figura quimérica.”

E bem, querido Crítias, reduzida a sabedoria a estes termos, qual pode ser sua utilidade? Ah! Se, como supusemos de início, o sábio soubesse o quê sabe e o quê não sabe; se soubesse que sabe certas coisas e não sabe outras certas coisas… Se pudesse, além disso, julgar aos demais homens quanto ao que ele julga na própria pessoa, aí então, eu o declaro, ser-nos-ia INFINITAMENTE ÚTIL o sermos sábios! Passaríamos a vida, inclusive, isentos de falha enquanto possuíssemos a sabedoria, e o mesmo se aplicaria a quem agisse conforme nossas prescrições.” Há uma tão infinitesimal ironia nessa fala de Sócrates que nós não a captaríamos como ironia, sem o contexto do diálogo e sem expertise em filosofia não fosse por recursos modernos como o colocar em CAIXA ALTA, por exemplo. A verdade é que a sabedoria no sentido de Crítias não existe, daí então Sócrates considerá-la inútil, ainda que existisse. Pois que é a vida, senão sucessivos erros misturados com acertos? E que sabedoria, sendo sabedoria, negligenciaria esse dado tão importante (o de que é impossível ser sábio, onisciente, perfeito)?

O médico sabe sobre saúde, mas não sobre o saber, já que isso está só para os sensatos. Porém, resulta que o médico nada sabe de medicina, pois a medicina é o saber sobre a saúde. Ou não será assim?”

O sensato não é um médico, ou não tem de ser um médico.”

O sensato não pode distinguir o bom médico do mau médico, o charlatão. Só um médico poderia fazê-lo.”

Que proveito há, portanto, na sensatez, Crítias?”

Talvez que o objeto de nossa indagação seja absolutamente inútil! O que me faz ter esses pressentimentos acerca da sabedoria (a que definimos) são coisas que me vêm ao espírito. (…) Creio que excede meus poderes. Mas quê importa? Quando algo se nos coça cá no espírito não há remédio senão examinar tal coisa! Não deixeis que escape ao acaso, por pouco amor que tenhas por ti mesmo!”

ao vivermos em prol da sabedoria, viveremos por isso melhor e mais felizes?”

SÓCRATES – (…) me parece que só tomas por felizes aqueles que vivem segundo certas sabedorias. Talvez só concedas este privilégio ao que designei previamente, isto é, àquele que sabe tudo o que deve suceder: falo do adivinho.

CRÍTIAS – Não só a esse sábio, Sócrates.

SÓCRATES – Quais outros então? Poderias estar falando daquele que une o conhecimento do futuro, do passado e do presente? Supondo que um tal homem existe, claro. Creio que confessarás que nenhum outro senão este possa viver segundo a sabedoria.

CRÍTIAS – Confesso.

SÓCRATES – Mais uma pergunta: Qual destas ciências é a que faz deste homem feliz? Ou são todas de uma vez, cada uma em sua proporção?

CRÍTIAS – Nada disso.

SÓCRATES – Então, qual é a ciência que eleges? A dos acontecimentos passados, presentes e futuros? A do xadrez?¹

CRÍTIAS – Ah, a do jogo de xadrez!! Que absurdo!

SÓCRATES – A dos números?

CRÍTIAS – Essa também não.

SÓCRATES – A do que é saudável?

CRÍTIAS – Hm, talvez, mas não de todo.

SÓCRATES – Mas diz de uma vez, qual é a ciência que mais contribui para a felicidade do sábio?

CRÍTIAS – Ora, a ciência do bem e do mal.

SÓCRATES – Ah, pícaro! Depois de tanto caminharmos faz-me agora rodar em círculos!”

Mas o suposto saber do saber, que não ignora o que ignora, saberia saber mais do que sabe atualmente…”

CRÍTIAS – A sensatez é saber sobre o bem e o mal.”

SÓCRATES – …Porque nosso (mau) pressuposto diz que se sabem aquelas coisas que não se sabem, ainda que, em minha opinião, não houvesse nada que nos parecesse mais absurdo do que isso!”

¹ “Damas” na segunda tradução.

E esta ciência, me parece, não é a sabedoria, senão aquela cujo objeto é o ser útil;¹ porque não é a ciência da ciência e da ignorância, mas a do bem e do mal.”

¹ No fundo, a ética é a mais importante das sabedorias, mas é também a mais difícil, e a mais imprecisa e volátil de todas.

Supusemos, pois, que existe uma ciência da ciência, apesar de que a razão não permite nem autoriza semelhante concepção. Depois, admitimos que esta ciência conhece os objetos das outras ciências, e isso é contrário à razão! Desejaríamos que o sábio pudera saber que ele sabe o quê sabe e o quê não sabe. Na verdade fomos generosos em excesso fazendo esta última concessão, uma vez que consideramos, neste exercício, que é possível saber, de certa maneira, o que absolutamente não se sabe. Admitimos, por fim, que ele sabe e que ele não sabe, ao mesmo tempo – o que é o mais irracional que se possa imaginar. (…) qualquer que seja a definição da sabedoria que tenhamos inventado, de comum acordo, essa ou aquela definição sempre nos fez ver, com naturalidade, que nenhuma delas pode-nos ser útil.”

ao fim, amigo Cármides, me ressinto de haver aprendido com tanto afã as palavras mágicas daquele trácio, para depois de tudo concluir que nenhum valor possuem! Mas não, não posso crer que assim seja, e é mais adequado pensar que eu é que não sei buscar a verdade! A sabedoria é, sem dúvida, um grande bem; e se tu a possuis, és um mortal feliz. Mas examina atentamente se a possuis verdadeiramente, a fim de que não necessites de palavras mágicas”

Mas o que mais me irrita nisso tudo é o encantamento que havia aprendido do trácio e que, depois de tanto esforço, descubro agora ser algo quimérico e fútil.”

CÁRMIDES – Sócrates, sei lá eu se sou sensato ou não! Como nada me impede, não vejo também por que não haveria de me submeter ao seu encantamento, por quantos dias forem precisos! Até o dia em que tu me digas que tenho bastante sensatez, ao menos.”

CRÍTIAS – A maior prova que podes dar-me de tua sabedoria, meu querido Cármides, é entregar-te aos encantos¹ de Sócrates e não afastar-te dele nem um só minuto.¹

CÁRMIDES – Estarei sempre com ele, seguirei seus passos; porque eu me tornaria um réprobo ao não te obedecer, ó primo, tu que és meu tutor.”

¹ “Entregar-te aos encantos” é bastante ambíguo, e nos remete obviamente a uma cena romântica. Encantamentos já modificaria consideravelmente nossa compreensão da frase, e é isso que torna Platão tão rico e polissêmico. Entregar-se às “palavras mágicas” do discurso sábio de Sócrates é o sentido leal à epistemologia que aqui buscamos.

SÓCRATES – Ah, e que é que vós dois tramais agora?

CRÍTIAS – Absolutamente nada, Sócrates. Só isto: que tens-nos as tuas ordens.

SÓCRATES – Como?! Empregais então a força, sem deixar-me a liberdade da escolha?!”¹

Sócrates, serei teu discípulo. E meu tio Crítias está com isso de acordo.”¹

Vais obrigar-me assim, sem prazo nenhum para preparar-me?”¹

¹ Aqui o que transforma bastante o sentido da segunda tradução foi minha própria opção de tradutor, não o texto-fonte. Nos dois textos em espanhol o que se obtém de Sócrates, o que a dupla de parentes Crítias-Cármides dele consegue, é que ele recite o encantamento (o diálogo termina antes, porque ‘não existe’ este encantamento), mas este é o que menos importa e só serve de pretexto para todo o diálogo. Nesse tocante, queriam, portanto, que Sócrates admitisse Cármides como paciente. Mas Sócrates não é médico no sentido habitual; seria no máximo um médico da alma do homem; daí que na verdade inaugura-se aqui uma relação de professor-aluno ou mestre-discípulo. Como sabemos entretanto, Sócrates não procurava expressamente por discípulos, pois em verdade morrera sendo o discípulo número 1 da própria sabedoria, e não aceitava ser chamado de mestre, mesmo sendo visivelmente o homem mais sábio de seu tempo.

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