PLATÃO CONTRA OS HERACLÍTICOS (maus discípulos de Heráclito)

HERÁCLITO E O CONHECIMENTO:

O conflito aparente entre os fragmentos e o testemunho de Platão

Ana Flaksman, PUC-Rio

A raiz da palavra logos, leg-, implica basicamente os sentidos de ‘colher’ e ‘selecionar’. … Esse grupo de significados seria ao menos tão primário quanto as acepções de ‘enunciado’ ou ‘discurso’. Outro desenvolvimento levaria aos sentidos de ‘fórmula’, ‘plano’, ou ‘lei’. (Confrontar o sumário de significados apresentado por G.S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments, p. 38.) E haveria ainda mais sentidos correntes do termo logos no tempo de Heráclito, tais como ‘valor’, ‘reputação’, ‘fama’, ‘causa’, ‘motivo’, ‘argumento’ e ‘a verdade sobre uma questão’. (Cfr. W.K.C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, I, pp. 420-24.)”

(*) “Nesta tese, utilizarei a numeração e a edição dos fragmentos de Heráclito estabelecidas por Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, bem como utilizarei a tradução dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Heráclito: Fragmentos Contextualizados (RJ, Difel, 2002).”


Deste logos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo este logos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações, tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados, como esquecem o que fazem dormindo.”

frag. 1


não é fácil definir se Heráclito teria afirmado que o logos é sempre ou que os homens são sempre ignorantes.” Na verdade é patente que o ‘sempre’ se refere ao logos.


É uma regra geral que uma composição escrita deva ser fácil de ler e portanto fácil de transmitir. Isso não pode ocorrer onde há muitas palavras ou expressões conectivas, ou onde a pontuação é difícil, como nos escritos de Heráclito.”

O falso universalista Aristóteles. A vida é difícil, meu caro lógico!


(*) “Vale sublinhar que a tradição literária da historie jônica costumava fazer referência ao próprio discurso na apresentação das obras. Cf. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus, pp. 66-7.”

Embora sendo o logos comum, a massa vive como se tivesse um pensamento (phronesin) particular.”


Não pensam (phroneousi) tais coisas aqueles que as encontram (enkyrseuousin), nem mesmo quando aprendidas (mathontes) as reconhecem (ginoskousin), mas a si mesmos lhes parece (dokeousi).”

frag. 17


O verbo ‘encontram’, como indicam muitos autores, sugere o contato físico e, portanto, a apreensão sensível resultante desse tipo de contato. Já o termo ‘aprendidas’, que também aparece nos fragmentos 55 e 40, sugere não apenas uma apreensão sensível, mas um entendimento dela derivado. Esse entendimento, no entanto, não significa necessariamente uma compreensão efetiva do logos. Portanto, por mais que os homens sintam e aprendam coisas, não conseguem reconhecê-las. Eles não pensam adequadamente as coisas que encontram, mas formam uma opinião sobre elas, produzindo um entendimento que não é consoante com a compreensão do logos.”

Em Homero, a psyche é a força vital dos homens, é aquilo que os anima, que os mantém vivos.” “[Mas] Homero … se refere antes à psyche dos mortos que à p. dos vivos.”

Bruno Snell, A Descoberta do Espírito, 1975 (1992).

O thymos seria responsável por suscitar os movimentos e as reações, e estaria referido às emoções, enquanto o noos seria responsável por receber impressões, guardar imagens e conhecer, estando referido não propriamente ao esforço com vista ao conhecimento, mas simplesmente a insights momentâneos, à percepção que inclui a ocorrência espontânea de um entendimento.”

Na lírica, os poetas surgem pela 1ª vez como personalidades, falam de si, de seus sentimentos pessoais, de conflitos entre emoções.”


Sicut aranae, ait, stans in medio talae sentit quam cito musca aliquem filum suum corrumpit itaque illuc celeriter currit quase de fili perfectione dolens, sic hominis anima aliqua parte corporis laesa, illuc festine meat, quasi impatiens laesionis corporis, cui firme et proportionaliter iuncta est.”4

Assim como a aranha no centro da teia logo sente quando uma mosca rompe qualquer fio de sua teia, e, deste modo, corre pressurosa para lá, como se temesse pela integridade do fio, também a alma do homem, lesada qualquer parte do corpo, dirige-se rapidamente para lá, como se não suportasse a lesão do corpo a que está unida firme e proporcionalmente.” 4

frag. 67a


Se as interpretações sobre a noção de psyche baseadas no fragmento 67a não são unânimes, visto que o fragmento é considerado dúbio ou inautêntico por alguns autores, a idéia de que Heráclito desenha uma analogia entre o papel do fogo no cosmo e o da psyche no homem é um ponto sobre o qual há consenso geral.”

se, de um lado, o fogo se transforma de algum modo, pois possui a dinâmica do apagar-se e acender-se, de outro, sua dinâmica se dá segundo medidas, explicitando assim o caráter ordenado da diversidade do cosmo.” Grifo meu.


Para as almas, tornar-se água é morte; para a água, tornar-se terra é morte; mas da terra nasce água, da água, alma.”

frag. 36


Quando a psyche for úmida, isso implicará sempre, para o homem, uma perda proporcional de vitalidade, de autocontrole e de inteligência.”

O homem, quando bêbado, é levado por uma criança impúbere, trôpego, não notando para onde anda, tendo úmida a alma.”

A embriaguez é um estado de reduzidos autocontrole, atenção e discernimento.” Há embriaguez e há embriaguez.


Não havia nenhuma necessidade de distinguir a percepção sensível de uma outra faculdade cognitiva, como p.ex. o julgamento, o pensamento ou a razão, e a experiência sensível era tomada como a espécie única e suficiente de cognição.(*)

(*) Wilcox argumenta que, se de um lado a Odisséia apresenta o tema do engano e do reconhecimento, e cria uma distinção entre ‘percepção em geral’ e ‘conhecimento’, de outro, tanto o engano quanto o conhecimento são concebidos como tipos de percepção, e a aquisição do conhecimento (ou a falta dele) é sempre condicionada externamente, por aquilo que alguém encontra e vê. P.ex., o disfarce de uma pessoa produz engano, enquanto a verdadeira aparência de uma pessoa produz reconhecimento. Cf. J. Wilcox, The Origins of Epistemology, p. 133.”


A intervenção e a inspiração divinas constituem a concessão, feita pelos deuses e pelas Musas, de informações ou poderes que fazem com que os homens – poetas, sacerdotes ou adivinhos – passem a conhecer o que está para além de sua experiência ordinária.” Perfeita objetividade do conhecimento poético.

a possibilidade do conhecimento é posta em dúvida assim que a distinção entre a aparência de uma coisa e sua verdadeira natureza é aplicada” O mesmo erro que séculos depois cometeria Hume, de forma muito grosseira. Aqui mal se pode chamar a situação de divórcio entre essência e aparência, ainda, de erro.

podemos dizer que Heráclito faz entrar em colapso a distinção entre a extrema limitação e a onisciência divina, distinção esta em que um certo ‘pessimismo’ e ‘ceticismo’ tradicionais se haviam baseado.”


(*) “O termo physis, que só aparece uma vez em Homero e nenhuma em Hesíodo, será encontrado em mais de 200 passagens dos fragmentos dos pré-socráticos. Cf. Henrique G. Murachco, ‘O Conceito de Physis em Homero, Heródoto e nos Pré-Socráticos’, Hypnos (SP, Educ/Palas Athena, ano 1, n. 2, 1996), pp. 11-22.”

Ciência natural: o estudo do vir a ser.

Em Heráclito, segundo Conche (Héraclite: Fragments), a interpretação de physis é quase que oposta: o estudo da essência das coisas do mundo: “Mas esse autor também lembra, com toda razão, que, embora a idéia de devir possa não estar em 1º plano em todos os frags. de Heráclito onde o termo physis é mencionado, há frags. – como o 123, ‘Natureza ama ocultar-se’ –, em que physis claramente acentua a noção de um dinamismo constituinte, e não a idéia de uma essência ou constituição fixa ou fixada.”


Harmonia inaparente mais forte que a aparente”

Frag. 54, já antecipando-se em muito ao decadente princípio da não-contradição aristotélico e seu esgotamento, ou seja, antecipando-se a nós próprios em nossa necessidade de ultrapassar o luto pela crise da razão em tempos sombrios e pós-modernos.


no Teeteto, não importava muito para Platão o fato de Heráclito poder ser seu aliado contra o relativismo de Protágoras, pois o que interessava realmente a Platão era que um aspecto da filosofia heraclítica, a saber, o seu mobilismo, servia para fundamentar o relativismo de Protágoras, podendo ser identificado como a fonte, ou uma das fontes, desse relativismo.”

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Descubra mais sobre Seclusão Anagógica

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue lendo