HERBERT SPENCER #SérieOsÚltimosPolímatas

polímata

(po·lí·ma·ta)

adjetivo de dois gêneros e substantivo de dois gêneros

Que ou quem estudou e sabe muitas coisas ou muitas ciências (ex.: Santa Hildegarda era uma freira polímata; os polímatas são peritos em muitas áreas do conhecimento). = POLÍMATE, POLÍMATO

<polímata>, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/pol%C3%ADmata.”


RESUMÉ

Herbert Spencer (27 de abril de 1820 – 8 de dezembro de 1903) foi um polímata britânico com alguma proeminência nos seguintes campos: filosofia, psicologia, biologia evolucionista, sociologia e antropologia. É de Spencer a expressão, extremamente popularizada, “sobrevivência do mais forte”, contida em Princípios da Biologia (2 vols., 1864). É sempre necessário observar que Spencer extrapola o trabalho de Charles Darwin, autocontido na esfera da história natural, para aplicá-lo, segundo seus próprios critérios, a sociedades humanas (o que gera implicações antropológicas, políticas, sociológicas, históricas e sobretudo éticas, com as quais NÃO ESTOU DE ACORDO – por isso mesmo, devemos estudar nosso inimigo teórico, a fim de ultrapassá-lo em seus erros). Em suma, trata-se de um polímata polêmico, que deve ser sempre lembrado pelo que fez artificialmente mesclando seleção natural com eugenia (seleção organizada, crime contra a humanidade na atualidade). Spencer era o mais célebre intelectual anglófono no fim do século XIX.

BIOGRAFIA GERAL

Spencer é filho de William George Spencer, matemático. George foi um educador entusiasta das reformas pedagógicas de Johann Heinrich Pestalozzi e conheceu e trabalhou com Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, contemporâneo de Herbert ou Spencer filho. Sua educação se deu diretamente pelo pai e por um tio, com escassa instrução formal. Esse dado terá importância quando discutirmos as obras spencerianas.

Iniciou sua carreira como engenheiro civil durante o boom das estradas de ferro de 1830 na Grã-Bretanha, mas tinha dificuldade de se fixar em alguma atividade ou disciplina do conhecimento definidas. Desde muito jovem contribuía para jornais ditos “liberais”: intervencionistas na política e profunda e militantemente ateístas. Nisso não foi vanguardista, mas essencialmente um homem de seu tempo.

Em Social Statics, seu primeiro livro, 1851, previu que os indivíduos adaptar-se-iam “por osmose” à civilização e a sociedade caminharia para a abolição do Estado numa transição pacífica. Chocante se pensarmos que um grande adversário ideológico seu, Marx, proporia a mesma teleologia para a humanidade, mas por uma via completamente distinta. Passou a participar dos círculos dos homens mais “radicais” do período (o que hoje nos soa risível): Mill, Martineau, Henry Lewes, Huxley e George Eliot (esta última um interesse amoroso efêmero de Spencer), dentre outros. Defendendo Stuart Mill e combatendo o comtismo, elaborou sua principal obra, que o habilita hoje para determinadas fontes como cientista social, embora isso seja formalmente incorreto e anti-sociológico mesmo.

Seu segundo livro (1855) foi no campo da psicologia, em que advogava uma disciplina da alma humana (seu significado, afinal) baseada na fisiologia. Foi assim que, aproximando-se mais e mais da biologia, Spencer começou a pensar no indivíduo como mera peça da engrenagem de uma raça ou espécie (o que é contraditório com o liberalismo econômico e poderia até ser alinhado às principais crenças do positivismo de sua nêmese Auguste Comte, porém demonstra como a história da epistemologia não é coerente, e nem precisa ser; aliás, antes, se precisa ser algo, deve ser necessariamente contraditória a cada momento). Sua falta de fixação em fundamentos de um conhecimento genuíno levou-o a ser um dos homens mais “tendenciosos”, seguindo as modas intelectuais da época: aliando a frenologia (pseudociência, então em voga como ciência) à crença no progresso constante da humanidade, elaboraria vários silogismos centrais para sua visão de mundo. Como Darwin veio a publicar seus renomados trabalhos somente mais tarde, nessa época o “parcialmente biólogo” Spencer usou muito dos postulados do lamarckismo, a principal escola “rival” do darwinismo. Spencer tinha a ingênua ambição de ser “o Isaac Newton das ciências humanas”, pelo menos durante algum período de sua “eclética” vida.

Como definir rapidamente seu “sistema de filosofia sintética”? É simplesmente a aplicação da teoria biológica da evolução do século XIX a todos os campos humanos de maneira irrestrita, atrás de uma fórmula ou equação que simplificasse e esgotasse todo o conhecimento sobre a mente e o comportamento humanos (Spencer não apresenta literalmente uma equação ou lei, mas é o que ele mais gostaria de haver realizado): a psicologia, a sociologia e a moral seriam em breve apenas “ciências acessórias” da única ciência, esta filosofia sintética. Esse Sistema possui 10 volumes e levou 40 anos para ser escrito!

Apesar de tardio (suas primeiras obras venderam mal), seu reconhecimento se estabeleceu na década de 70. Até para o japonês e o mandarim traduziram seus livros da fase “intermediária”. Herbert Spencer basicamente resume o “homem diletante de ciência da era vitoriana”.

No fim de sua vida, sentiu que não criou uma trajetória intelectual em bases sólidas, entretanto, e queixou-se de uma extrema solidão. Nunca se casou nem deixou descendência e tinha um quadro hipocondríaco que a medicina não conseguia tratar. Era um homem que não aceitava, tampouco, ser contradito. Mesmo um jogo de baralho em que as coisas saíssem mal era-lhe suficiente para acabar com o resto do dia, talvez da noite, provocando-lhe insônia, como confidenciou-nos Huxley.

Na década de 1890 sua popularidade começou a fenecer no público, e maioria de seus melhores amigos já havia morto. A Europa imperialista caminhava cada vez mais para o reacionarismo e o “indivíduo livre”, sonho dos apologistas do mercado, teve sua esfera severamente encolhida. Em seu primeiro livro, Spencer advogava o sufrágio universal para as mulheres e a inclusão de votantes até mais abrangente que nossos sistema democráticos hordiernos: as crianças e os adolescentes deveriam participar desse dever cívico. (!) No fim de sua vida, tornou-se basicamente um oligarca irreconhecível. E é infelizmente desse último período que vem seu livro mais lido ou célebre, O Homem contra o Estado.

POLIMATIA

Spencer foi um dos últimos sistematizadores na filosofia/epistemologia, no auge das tendências atéias, da fé no progresso ilimitado e gradual e no poder explicativo exaustivo da ciência. Seu sistema é quase um dogma ou religião cientificista, o que novamente o aproxima, malgrado seu, de Auguste Comte!

Desconheço se Spencer realmente chegou a entender as implicações da segunda lei da termodinâmica. Se sim, ele deve ter ficado bem decepcionado. Decorre desta lei que tudo tende à uniformidade no nível inorgânico, diminuindo (e não aumentando) a heterogeneidade do sistema, que para ele ganharia em valor ao se complexificar cada vez mais..”

Bertrand Russell

DARWINISMO SOCIAL

Era questão arbitrária onde encaixar o subtítulo “darwinismo social” (se em sociologia, ciência política, economia ou ética) ou se simplesmente ele comporia um título independente deste artigo, como foi minha escolha. Mas as maiores implicações da eugenia proposta por Spencer se deram, como verificamos, na II Guerra, na Alemanha nazista, de modo que podemos isolar sua idéia-chave como a mais importante (e nefasta) que ele nos legou.

SOCIOLOGIA

Mais por acidente e por pertencer ao tempo e lugar a que pertenceu é que podemos falar de Spencer como “sociólogo”. Foi imediatamente precedido por Comte e muito influenciado pelo autor francês, de forma, como já se viu, um tanto ambígua. O que Spencer rejeita em Comte, p.ex., é seu postulado dos “três estágios” da evolução social. Segundo algumas referências, Spencer teria sido o primeiro a cunhar o binômio hiper-utilizado e hoje até saturado “estrutura social”. No seu lugar, Spencer cunhou uma antinomia chamada de estágio da sociedade militante (antiga) e estágio da sociedade industrial (moderna). Devemos nos perguntar, no entanto, no que isso enriquece qualquer debate sociológico para além de sua época. Não que tenham faltado críticas a seu olhar epistemológico mesmo durante sua vida e em seu próprio “círculo científico de colaboradores” (não precisamos citar, p.ex., Nietzsche, que foi um grande detrator seu, sendo-lhe contemporâneo – porém ambos nunca interagiram): Dilthey (embora alemão; e embora também muito espezinhado por Nietzsche) foi veemente na necessidade da separação entre ciências naturais e sociais, mirando atingir os escritos de Spencer proponentes de uma unificação do saber. Frank Ward, expoente da sociologia norte-americana, atacou Spencer virulentamente pelo flanco esquerdo (não falo de posicionamento político, mas da América em relação à Inglaterra no mapa). Mesmo o liberalismo montesquieusiano e a teoria da possibilidade de uma “decodificação e absolutização da ética” patrocinados por Spencer foram ambos tratados com desdém pelos cientistas sociais do último terço do séc. XIX. Para encerrar o assunto, Durkheim, em 1890, praticamente definiu a disciplina científica da sociologia, sem que o nome voltasse a ser impunemente usado por autores distintos empregando métodos basicamente idiossincráticos, como até então. O que restou das opiniões de Spencer resvalou para os campos da economia e da ciência política (ler mais abaixo).

ÉTICA” LIBERAL

Absurdamente, uma das conseqüências do “libertarianismo precoce” de Spencer, acoplado a sua crença teleológica no surgimento gradual do homem perfeito na sociedade perfeita e no fim dos conflitos sociais, era que as sociedades do presente deveriam experimentar punições por más condutas, a fim de que aprendessem por iniciativa própria “o poder soberano da natureza”. Segundo Spencer, portanto, o Estado não deveria se imiscuir na vida da pessoa, ainda que fosse para protegê-la ou melhorá-la: não obrigar vacinas, não promover assistência social (pensamento meritocrático ainda em voga pelas piores correntes ideológicas!) ou mesmo, ilustrativamente, proibir-se ou abandonar o ensino gratuito!

INVENÇÃO DO CLIPE DE PAPEL

Uma curiosidade menor é que os clips que usamos hoje para prender e agrupar papéis foram inventados, ou pelo menos seu precursor imediato, por Spencer. Sua autobiografia possui os desenhos do protótipo que depois foi patenteado e comercializado.

LEGADO

Curiosamente, Spencer foi muito mais difundido em vida do que morto (ao contrário da maioria dos grandes pensadores, por exemplo, Shakespeare ou Nietzsche) – sua decadência e ostracismo foram ligeiros. Herbert Spencer parece ter sido até hoje o único “filósofo” na História que conseguiu vender mais de 1 milhão de exemplares de livros ainda no decorrer de sua vida. Isso fez dele uma espécie de Carl Sagan do Liberalismo Econômico, um difusor de idéias próximo do que seria uma vedete hollywoodiana misturada com um comunicador jornalístico de 100 anos depois. Conteúdo mais viral de filósofos menores da História da filosofia nós só podemos conceber hoje, p.ex., na era do YouTube (com figuras deploráveis como Jordan Peterson, etc.). Porém, já em 1937, o sociólogo estruturalista Talcott Parsons podia perguntar zombeteiramente: “Quem ainda lê Spencer?”. William James, Bergson e Durkheim já haviam se ocupado de Spencer nesse ínterim entre sua ascensão e queda meteóricas (a fim de criticá-lo). Talvez boa parte de se sua debandada de leitores, além da percepção generalizada de que suas idéias não eram originais ou de tanta qualidade como de início se propugnava, tenha vindo em virtude de seu “liberalismo à la Europa do séc. XIX” ter resultado na catástrofe nazifascista que assolou o Velho Continente no mesmo período em que foi formulado esse juízo de Parsons (os anos 1930), ainda antes do conflito bélico principiar, mas com Adolf Hitler e Benito Mussolini já no poder. Uma ironia que complementa a anterior (um advogado da liberdade plena do indivíduo contribuir indiretamente para o Holocausto, dentre outros crimes) é que sua lápide está frente a frente com a de Karl Marx num cemitério londrino.

Seu legado ainda vivo – e preocupante – é o do campo anarco-capitalista e da medonha Escola Austríaca de economia. O mais engraçado é que na época de Spencer suas crenças anti-estatistas significavam uma completa rejeição do sentimento patriota, hoje usado por todos os grupos extremistas como tática de chegada ao e manutenção no poder. Além disso, Spencer, para sermos justos, era integralmente um pacifista, dizendo que se um soldado vai à guerra deve se conformar com o pior dos destinos e a sociedade de seu próprio país não tem o direito de lamentar sua perda, pois assim funcionam as conseqüências de quem opta pelo caminho da guerra.

Não há outra alternativa”, frase favorita de Margaret Thatcher, parece decorrer de um dos livros de Spencer. Em sua própria época, Spencer, apesar de ter todas as características de um tory, ou ser impossível imaginá-lo como um whig, pelo menos após o desenvolvimento de suas idéias em seguida ao primeiro livro (em que até defendia as cooperativas proletárias!), um tanto “juvenil e utópico”, reprovou as gestões Gladstone e Disraeli, atacando os conservadores britânicos, que ele chamava de “reformistas sociais”! Ao mesmo tempo, Spencer era refratário à independência da Irlanda, que efetuou já então sua reforma agrária, e nunca perdoou a gratuidade da escola, ou como o Estado obrigava seus cidadãos a ingressarem no ensino formal (Spencer é outro que se sentiria muito contente em defender iniciativas como o homeschooling no mundo atual).

Também era contra o sustento de bibliotecas com dinheiro dos impostos e leis contra o álcool, o tabaco e outras drogas. Para ele, o sujeito tinha o direito de se intoxicar, mas não de se instruir. Por outro lado, fascinante como pode ser uma figura autocontraditória como Herbert Spencer, ele era anticolonialista e anti-imperialista em seu próprio tempo (as colônias estariam sendo atrasadas pela “sociedade industrial”, de modo a ficarem em estado de dependência perpétua ou prolongada, o que ele chamava de sociedade militante, eufemismo para primitiva; ao mesmo tempo, Spencer cria genuinamente que o imperialismo anterior a sua própria geração tinha cumprido sua missão ao eliminando sociedades atrasadas e pavimentar o caminho da civilização branca e européia…)!

No fim, portanto, concedo: estamos falando mais de um pseudo-polímata do que um verdadeiro polímata, que está no limite do que esta série de artigos poderia comportar (ninguém inferior a ele será aqui “biografado”). Dada sua fama pregressa, achei inevitável tratar deste personagem, contudo.

Em qualquer contexto a migração é ruinosa, seja ela pequena ou vasta, para o país que recebe o imigrante. O caos social decorrerá necessariamente desta tolerância para com pessoas de outras nacionalidades. O mesmo se dará caso se permita a mistura e o casamento de europeus e americanos [norte-americanos, britânicos de ‘raça pura’] com japoneses.”

Trecho racista e xenófobo de Spencer

QUERO SABER MAIS! (MESMO NOSSOS ADVERSÁRIOS PRECISAM SER ESTUDADOS)

O autor já se encontra livre de copyrights:

https://www.gutenberg.org/ebooks/author/1887

Recomendo, além de sua apreciação crítica direta, as objeções de Plekhanov ao spencerismo contidas em Anarchism and Socialism, 1909.

NOTAS SOBRE MARK TWAIN – Alexandre Barbosa de Souza

Quando publicou As aventuras de Tom Sawyer (1876), Mark Twain tinha 41 anos, e quando da publicação de As aventuras de Huckleberry Finn (1885), 50. Porém, ambos se passavam ‘30 ou 40 anos atrás’ — quando o autor era um menino pobre como seus personagens —, assim como as 2 sequências, As viagens de Tom Sawyer (1894) e Tom Sawyer, detetive (1896). A Guerra Civil Americana, entre os estados escravagistas do Sul — como o Missouri natal do autor, onde se passa o primeiro livro — e os estados abolicionistas do Norte — como Illinois, para onde os protagonistas do 2º livro tentam fugir pelo rio Mississippi —, duraria de 1861 a 1865, encerrada com a abolição da escravatura em todos os Estados Unidos.

Autodidata, tipógrafo, piloto de vapor, mineiro, jornalista, Twain se mudou para São Francisco depois da guerra, foi às Ilhas Sandwich (atual Havaí) e passou a escrever cartas para jornais, fazer palestras e viajar pelo mundo (Europa, Oriente Médio, Índia). Casado, mudou-se para Buffalo, em Nova York, e depois para Hartford, em Connecticut, onde escreveria seus principais livros (1874-1891). Quatro anos antes de morrer, em sua Autobiografia de Mark Twain (1906), o próprio autor explicaria sua perspectiva infantil da escravidão:

Nos meus tempos de menino, eu não tinha aversão à escravidão. Eu não me dava conta de que havia algo de errado naquilo. Ninguém a denunciava aos meus ouvidos; os jornais locais não falavam nada contra ela; no púlpito da igreja local nos ensinavam que Deus a aprovava, que era uma coisa sagrada e que quem duvidasse bastava procurar na Bíblia, se quisesse tranquilizar sua consciência — e depois as escrituras eram lidas em voz alta para termos certeza; se os próprios escravos tinham aversão à escravidão, eram prudentes e não diziam nada.”

Termos como nigger, injun e half-breed, usados no original, são pejorativos que designam geralmente personagens ‘não-brancos’ ou mestiços pobres nos estados do Sul. No Brasil, último país da América a abolir a escravidão, o substantivo ‘negro’ não reproduz o grau de desprezo social da expressão especificamente norte-americana quando utilizada por falantes brancos; já o substantivo ‘preto’, embora fosse comum no século XIX como pejorativo da elite escravocrata para se referir aos escravos e negros em geral, foi retomado no século XX pelo movimento negro brasileiro como forma preferível de autorreferência. Optou-se, portanto, na maioria dos casos, pela tradução ‘escravo’ para ‘nigger’, exceto nas falas do personagem mais racista de todos: o ignorante pai de Huckleberry no segundo livro (ver nota do tradutor sobre os dialetos em As aventuras de Huckleberry Finn) e no terceiro e quarto, quando Jim já não é mais escravo.”

BRASILEIRO, O POVO MAIS RACISTA DO MUNDO

Muito se fala de uma identidade ou de uma ninguendade do povo brasileiro. Hoje não discutirei se a nação brasileira tem um identidade positiva unânime. Se as que vigoram têm ou não validade, ou seriam antes um resíduo, retalhos de diversas origens, um conceito negativo, derivado por contraste. Muitos antropólogos, sociólogos e historiadores sérios cunharam termos que continuam em voga ou já se tornaram obsoletos, neste terreno. Um dos estereótipos identitários mais difundidos por décadas foi o de Sérgio Buarque de Hollanda, o do POVO CORDIAL. Atenção, esta expressão contém uma ironia por parte de seu autor. Hoje o fascista e mau caráter já não necessita, sequer, da fachada patriarcal clássica da cordialidade, portanto esta noção envelheceu mal. Há também a noção do malandro, ou do povo alegre por natureza (quão rousseauniano por derivação!)… Apesar de ciclos de hiper-inflação… Alguém que “sabe viver e amar a vida”… A frase de que Deus é brasileiro sintetizaria toda essa verve mais otimista ou dos integrados. Mas, com menos Eco e Xenófanes e mais cor, vou direto a minha premissa deste artigo – um rascunho de identidade provisória, a característica mais marcante que vejo na somatória da nossa população.

Tenho vergonha de ser brasileiro. Sou brasileiro? Pelo menos formalmente sou forçado a sê-lo. Se fosse para eleger um estereótipo de identidade nacional, sabendo que não se aplica de maneira homogênea à população, nem a todas as posturas de um mesmo cidadão ao longo de sua vida e até mesmo durante o seu dia (que pode encerrar inúmeras contradições e amálgamas incríveis), mas os caracteriza surpreendentemente bem, somente um estereótipo, eu fico com o do racismo. O brasileiro é o povo mais racista do planeta.

Não gastarei muitas linhas com a descrição do muito conhecido racismo estrutural que nos assola internamente e é questão de ordem, questão diária, onipresente, diuturna, indignante, repugnante. Vou por ora apenas citar nossa imensa hipocrisia em tachar outros povos de racistas, sem espelho em casa (os índios entregaram todos aos portugueses). Projetamos nossa própria corrupção interior nas demais nações e aliamos racismo e xenofobia no grau máximo para nos cegarmos e limparmos superficialmente nossa consciência como forma de tocarmos a vida da maneira mais anestesiada possível: somos as vítimas preferidas de racismo no estrangeiro, e os estrangeiros são, todos eles, igualmente imprestáveis, é o que se diz e o que se pensa por aqui.

Creio que quem queira fazer fama apontando o dedo deveria primeiro tratar de não se parecer com os acusados. Não podemos acusar qualquer outra cultura de racista quando somos os campeões no quesito. Em primeiro lugar, a rixa com os vizinhos históricos: os argentinos são racistas, se referem aos brasileiros como macacos, tem uma população de cor baixíssima. Ou será que nós somos xenófobos e temos uma visão deturpada da população argentina?

Não, impossível! Nosso caráter imensamente esclarecido seria incapaz de traçar uma imagem ignominiosa e mentirosa de alguém que divide fronteiras conosco – se o retrato é ruim, a culpa é do retratado! Não são nossos olhos o problema… Somos tão esclarecidos, nossos juízos são tão claros, ponderados, honestos e penetrantes, que não é baixo o percentual de brasileiros que ainda negam existir racismo no Brasil! Anualmente morrem mais negros nas periferias em ações policiais do que em muitas guerras civis e religiosas mundo afora. Nosso empresariado é absolutamente monocromático. Europeizado. Não há espaço para discussão sobre racismo numa sala cheia de velhotes brancos e caquéticos. Isso nada é, porém, diante do racismo da gente preta não-esclarecida, os eternos capatazes do homem branco de matizes coloniais (o porteiro, o guarda-costas, o humilde que tripudia o ainda mais humilde quando pode). O esquema já foi montado, há muito que esta máquina está ligada e parece funcionar em moto perpétuo.

Nas últimas eleições democráticas (vencidas por métodos antidemocráticos) elegemos um Hitler abobado. E o problema são os vizinhos “que se acham ingleses meridionais”? A verdade, porém, é que nenhuma nacionalidade nos cai bem. Para que falar de uruguaios, paraguaios, colombianos, peruanos, venezuelanos, se podemos incluir co-habitantes do mundo muito mais remotos? Se existissem raças (podemos falar em etnias, o que complexificaria a discussão), poderíamos generalizar (aliás, generalizamos sem poder, afinal, somos brasileiros!): todos os “amarelos” (asiáticos) não conta(ria)m com nosso menor beneplácito. Quem são os tão pejorativamente alcunhados de amarelos pela demografia eurocêntrica de séculos passados? Uma multidão de povos de antiguidade milenar, muito mais sábios do que nós.

Ninguém escapa de nossa antipatia pantagruélica. Deploramos outros latinos, somos sempre superiores a eles, latinos americanos ou latinos do outro lado do Atlântico, isso nos é indiferente. Somos xenófobos quase com a mesma naturalidade com que a Alemanha do fim do século XIX abraçou o anti-semitismo. Talvez sejamos mais francófobos ou anglófobos hoje do que os alemães daquela geração: seu rancor pelos vizinhos imediatos se devia mais a frustrações imperialistas, ressentimento pós-guerra ou simples estratégia de marketing para fisgar a ralé do lumpemproletariado e legitimar uma política externa agressiva e um chauvinismo intrafronteiriço sem precedentes. Quem é o lumpemproletariado? É o miserável-capataz que já citei – no Brasil o negro racista é sua melhor (e mais revoltante) demonstração.

Por falar em lumpemproletariado, quando o fascismo o conquista, ele tem facções do populacho retiradas da influência que nele poderia ser exercida pelos partidos comunistas. Começa a fase 2 do programa histórico de apagamento da história: a hipóstase de uma comunistofobia. Odiamos os russos, os cubanos, odiamos os chineses duas vezes agora (já que sempre odiamos os “amarelos”, e há algumas décadas temos uma desculpa suplementar para odiá-los sem rédeas: a cor vermelha). Mas não se engane: mesmo quando nos identificamos como cães de caça a serviço dos ianques e aceitamos seus dólares amarrotados, os Estados Unidos do Brasil ainda tiram sarro dos gringos, dos americanos, mal estes viram as costas: eles são paspalhos, eles são tolos, caipiras cheios de idiossincrasias culinárias e mania de grandeza: nós os seguimos em tudo isto e muito mais – mas o fato é que somos melhores que eles, não é necessário explicar com lógica, temos a nítida sensação de que assim o é! – Assim reza a cartilha do brasileiro.

Deploramos até os portugueses. Errados ou certos, é um belo sintoma edípico de filho que não amadureceu. E por que não falei até agora da África? Porque nada sabemos da história africana, mal sabemos a quantidade de países, a diversidade de religiões ou regimes políticos que predominam na região. Diante de tanta ignorância, até o mais canalha xenófobo torna-se um pouco precavido: melhor não falar mal deste mistério ignoto. Há, não obstante, sempre o idiota esquentado que julga que os males que o continente africano enfrenta são de responsabilidade de alguma característica inerente a eles, manifestada no presente. Indolência, visão de curto prazo ou inferioridade inata, quiçá. Alguém está familiarizado com esses qualificativos? Falta uma análise do problema para além da estupidez unidimensional, ignora-se o espólio cultural contínuo que os africanos subsaarianos sofreram. Mas se ignoramos até os nossos!

Tudo isso para dizer que nós, os racistas e xenófobos por excelência, somos ou pelo menos estamos gravemente doentes, representamos um tumor maligno gigante na superfície da Terra. Nada temos de nos queixar do temperamento ou da conduta dos outros…

ESCRAVA ISAURA – Guimarães, B.

18/05/16 a 25/06/16


Ela é branca!

Parnasiano autor: “O colo donoso do mais puro lavor sustenta com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos”

És formosa, e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano.”

A senzala nem por isso deixa de ser o que é.”

As velhas damas dão para rezar, outras para ralhar desde a manhã até à noite; outras para lavar cachorrinhos ou para criar pintos; esta deu para criar mulatinhas princesas.”

já bastante velho, enfermo e cansado, queria passar tranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações, para o que bastavam-lhe com sobejidão as rendas que para si reservara.”

Sua esposa, porém, preferiu ficar em companhia do filho, o que foi muito do gosto e aprovação do marido.”

não tenho ânimo de soltar esse passarinho que o céu me deu para me consolar e tornar mais suportáveis as pesadas e compridas horas da velhice. § E também libertá-la para quê? Ela aqui é livre, mais livre do que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e se ela transviar-se por aí, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?…”

Henrique, o cunhado de Leôncio. Era ele um elegante e bonito rapaz de 20 anos, frívolo, estouvado e vaidoso, como são quase sempre todos os jovens, mormente quando lhes coube a ventura de terem nascido de um pai rico.”

Casara-se por especulação, e como sua mulher era moça e bonita, sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos prazeres sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão.”

Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava-lhe o emprego da violência. Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador.”

Se minha mãe teve o capricho de criá-la com todo o mimo e de dar-lhe uma primorosa educação, não foi decerto para abandoná-la ao mundo, não achas?…”

para a idade que tens, já estás um moralista de polpa!…”

Isaura é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão.”

Estás hoje muito alegre, minha querida –, retorquiu-lhe sorrindo o marido; – viste algum passarinho verde de bico dourado?…”

Faça-se de esquerdo!… pensa que não sei tudo?…”

Se não queres o meu amor, evita ao menos de incorrer no meu ódio.”

Vinha trazer-lhe estas froles, se bem que a senhora mesma é uma frol…” “soverana cá deste coração, e eu, menina, dou-me por feliz se puder beijar-te os pés.” “Quando vou molhar as minhas froles, estou a lembrar-me de ti com uma soidade!… ora viu-se que amor!…”

Oh! meu coração, pois querias que durasse eternamente a lua-de-mel?… isso seria horrivelmente monótono e prosaico.”

Miguel era filho de uma nobre e honrada família de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus pais, vítimas de perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar ao filho, que deixaram na cidade de 18 a 20 anos.”

Teu pai já não existe; sucumbiu anteontem subitamente, vítima de uma congestão cerebral…”

Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe tremiam nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos [inchados] e ofegantes seios que como dois trêfegos [inquietos] cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente camisa, tomá-la-íeis por um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era esta criança, que tinha o bonito nome de Rosa.”

Vocês bem sabem, que sinhô velho não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado – atrás de mim virá quem bom me fará. – Este sinhô moço Leôncio… hum!… Deus queira que me engane… quer-me parecer que vai-nos fazer ficar com saudade do tempo do sinhô velho…” “e o piraí [chicote] do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro.” “ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo, Deus te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leôncio a coisa vai tomando o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor desta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita…” “Que mal te fez a pobre Isaura, aquela pomba sem fel, que com ser o que é, bonita e civilizada como qualquer moça branca, não é capaz de fazer pouco caso de ninguém?…”

Anda lá; olha que isto não é piano, não; é acabar depressa com a tarefa pra pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar…”

Rosa havia sido de há muito amásia [concubina] de Leôncio, para quem fôra fácil conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que, porém, inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida.”

Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! – Estas e outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios. Abominado mais que o senhor cruel, que o muniu do azorrague desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença, para revoltar-se contra o algoz, que a executa.

dói-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco.” “Então a senhora quer só ouvir as finezas das moças bonitas lá na sala!… pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado”

Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação de senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só momento! Como não devia viver aflito e atribulado aquele coração! Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: três amantes, Leôncio, Belchior, e André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa. Fácil lhe fôra repelir as insinuações e insolências dos escravos e criados; mas que seria dela, quando viesse o senhor?!…”

isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem proveito algum, em contínuas palestras. Não faltam por aí tecidos de algodão para se comprar.”

Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.”

contra as cóleras e caprichos femininos não há arma mais poderosa que muito sangue-frio e pouco-caso”

Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos como a tua condição; para te satisfazer far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo de meus negros.” “Já chegaste a tão subido grau de exaltação e romantismo… isto em uma escrava não deixa de ser curioso. Eis o proveito que se tira de dar educação a tais criaturas! Bem mostras que és uma escrava, que vives de tocar piano e ler romances. Ainda bem que me prevenistes; eu saberei gelar a ebulição desse cérebro escaldado.” “Talvez ainda um dia me serás grata por ter-te impedido de matar-te a ti mesma.”

não há naquele ente nem sombra de coquetterie

Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair-se às pesquisas da polícia?”

sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários [hipocondríacos, suscetíveis], que desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra.” “Estou ardendo de impaciência por lhe ser apresentado; desejo admirá-la mais de espaço.”

Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais suportável.” “não parece uma mosca, mas sim um besouro”

Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista. §  Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos. Como porém Álvaro tinha um espírito nìmiamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador.” “Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker.” “não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado

Juno e Palas não ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da formosura.”

onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo.”

Elvira [Isaura transposta em senhora], que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade, achava-se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e cortesania, e em cada olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.”

a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras.”

desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus pés, e me sumisse em seu seio.”

a indiscrição, filha do entusiasmo”

“– Ai! triste de mim! – suspirou dentro da alma D. Elvira: – aqueles mesmos que mais me amam, tornam-se, sem o saber, os meus algozes!…”

cantar naquela ocasião era para ela o mais penoso dos sacrifícios.”

o pavão da fábula, queixando-se a Juno que, o tendo formado a mais bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e desagradável.”

seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne que se apresta a desprender os divinais gorjeios.”

Das próprias inquietações e angústias da alma soube ela tirar alento e inspiração para vencer as dificuldades da árdua situação em que se achava empenhada.”

mais de uma lágrima viu-se rolar pelas faces dos freqüentadores daquele templo dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!”

A fada de Álvaro é também uma sereia; – dizia o Dr. Geraldo a um dos cavalheiros” “É uma consumada artista… no teatro faria esquecer a Malibran, e conquistaria reputação européia.” “o terrível abatimento, que ao deixar o piano de novo se apoderara de seu espírito.”

Acham-se aí uma meia dúzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estróinas [dissipadores] e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de charuto ou um copo de champanha pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do ceticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie, alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e frivolidade da vida.”

Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que, na opinião de Lavater, é indício de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez.”


– A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?…

– Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão-do-mato?


Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância do ouro, que faz-te andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile.” “este rapaz além de ser um vil traficante, sempre foi um maníaco de primeira força.”

Isto é impagável! e vale mais que quantos bailes há no mundo. – Se todos eles tivessem um episódio assim, eu não perdia nem um. – Assim clamavam os moços entre estrondosas gargalhadas.

– Vocês zombam? – olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.”


– …esta obra imortal, que vale mais que a Ilíada de Camões…

– E que os Lusíadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa-te de preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.


– Com efeito! acrescentou outro – uma escrava assim vale a pena apreendê-la, mais pelo que vale em si, do que pelos 5 contos. Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregá-la ao seu senhor.”

Tão vil criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para expeli-lo da Academia. Cinco contos daria eu para ser escravo daquela rara formosura.”

Funesta ou propícia, a senhora será sempre a minha estrela nos caminhos da vida.”

um hino do céu ouvido entre as torturas do inferno.”

E o sangue todo lhe refluía ao coração que lhe tremia como o da pomba que sente estendida sobre o colo a garra desapiedada do gavião.”

esses excessos e abusos devem ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar doméstico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão?”

O patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e por ela abandonou Sara, sua mulher.”

A justiça é uma deusa muito volúvel e fértil em patranhas. Hoje desmanchará o que fez ontem.”

enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.”

O leitor provavelmente não terá ficado menos atônito do que ficou Álvaro, com o imprevisto aparecimento de Leôncio no Recife, e indo bater certo na casa em que se achava refugiada a sua escrava.” “A notícia de que Isaura se achava em poder de um belo e rico mancebo, que a amava loucamente, era para ele um suplício insuportável, um cancro, que lhe corroía as entranhas, e o fazia estrebuchar em ânsias de desespero, avivando-lhe cada vez mais a paixão furiosa que concebera por sua escrava.”

anexim popular – quem quer vai, quem não quer manda.”

O ciúme e a vingança não gostam de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seus desígnios.”

por uma estranha aberração, vemos a lei armando o vício, e decepando os braços à virtude.”


– Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque não quero vendê-la.

– Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade…


– Está louco, homem! – disse Leôncio amedrontado. – As leis do nosso país não permitem o duelo.

– Que me importam as leis!… para o homem de brio a honra é superior às leis, e se não és um covarde, como penso…


Adeus surrados bancos de Academia!… adeus, livros sebosos, que tanto tempo andei folheando à toa!… vou atirar-vos pela janela afora; não preciso mais de vós: meu futuro está feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, comendador, barão, e verão para quanto presto!…”

O cão faminto, iludido pela sombra, largou a carne que tinha entre os dentes, e ficou sem uma nem outra.”

Miguel, espírito acanhado e rasteiro, coração bom e sensível, mas inteiramente estranho às grandes paixões, não podia compreender todo o alcance do sacrifício que impunha à sua filha.”

Era um homem bem-apessoado, espirituoso serviçal, cheio de cortesia e amabilidade, condições indispensáveis a um bom parasita. Jorge não vivia da seiva e da sombra de uma só árvore”

Conhecia e entretinha relações de amizade com todos os fazendeiros das margens do Paraíba desde S. João da Barra até São Fidélis.”

Esse Dom Quixote de nova espécie, amparo da liberdade das escravas alheias, quando são bonitas, não achará senão moinhos de vento a combater.”

era a aurora da esperança, cujo primeiro e tímido arrebol assomava nas faces daquela”

Era ele dez vezes mais rico do que o seu adversário”

Leôncio tinha-se rebentado o crânio com um tiro de pistola.”


GLOSSÁRIO:

ai-jesus: 1. dileto ou preferido (Ex: o ai-jesus do professor);

2. designativo de dor ou pena.

comenos: instante

ditério: motejo

valdevinos: 1. indivíduo que gosta da vida boêmia, estróina;

2. indivíduo que não gosta de trabalhar, tunante, vadio;

3. doidivanas;

4. indivíduo que não tem dinheiro;

5. que vive de atividades ilícitas, traficante.

etimologia: alteração de balduíno.