“polímata
(po·lí·ma·ta)
adjetivo de dois gêneros e substantivo de dois gêneros
Que ou quem estudou e sabe muitas coisas ou muitas ciências (ex.: Santa Hildegarda era uma freira polímata; os polímatas são peritos em muitas áreas do conhecimento). = POLÍMATE, POLÍMATO
<polímata>, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/pol%C3%ADmata.”
RESUMÉ
Herbert Spencer (27 de abril de 1820 – 8 de dezembro de 1903) foi um polímata britânico com alguma proeminência nos seguintes campos: filosofia, psicologia, biologia evolucionista, sociologia e antropologia. É de Spencer a expressão, extremamente popularizada, “sobrevivência do mais forte”, contida em Princípios da Biologia (2 vols., 1864). É sempre necessário observar que Spencer extrapola o trabalho de Charles Darwin, autocontido na esfera da história natural, para aplicá-lo, segundo seus próprios critérios, a sociedades humanas (o que gera implicações antropológicas, políticas, sociológicas, históricas e sobretudo éticas, com as quais NÃO ESTOU DE ACORDO – por isso mesmo, devemos estudar nosso inimigo teórico, a fim de ultrapassá-lo em seus erros). Em suma, trata-se de um polímata polêmico, que deve ser sempre lembrado pelo que fez artificialmente mesclando seleção natural com eugenia (seleção organizada, crime contra a humanidade na atualidade). Spencer era o mais célebre intelectual anglófono no fim do século XIX.
BIOGRAFIA GERAL
Spencer é filho de William George Spencer, matemático. George foi um educador entusiasta das reformas pedagógicas de Johann Heinrich Pestalozzi e conheceu e trabalhou com Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, contemporâneo de Herbert ou Spencer filho. Sua educação se deu diretamente pelo pai e por um tio, com escassa instrução formal. Esse dado terá importância quando discutirmos as obras spencerianas.
Iniciou sua carreira como engenheiro civil durante o boom das estradas de ferro de 1830 na Grã-Bretanha, mas tinha dificuldade de se fixar em alguma atividade ou disciplina do conhecimento definidas. Desde muito jovem contribuía para jornais ditos “liberais”: intervencionistas na política e profunda e militantemente ateístas. Nisso não foi vanguardista, mas essencialmente um homem de seu tempo.
Em Social Statics, seu primeiro livro, 1851, previu que os indivíduos adaptar-se-iam “por osmose” à civilização e a sociedade caminharia para a abolição do Estado numa transição pacífica. Chocante se pensarmos que um grande adversário ideológico seu, Marx, proporia a mesma teleologia para a humanidade, mas por uma via completamente distinta. Passou a participar dos círculos dos homens mais “radicais” do período (o que hoje nos soa risível): Mill, Martineau, Henry Lewes, Huxley e George Eliot (esta última um interesse amoroso efêmero de Spencer), dentre outros. Defendendo Stuart Mill e combatendo o comtismo, elaborou sua principal obra, que o habilita hoje para determinadas fontes como cientista social, embora isso seja formalmente incorreto e anti-sociológico mesmo.
Seu segundo livro (1855) foi no campo da psicologia, em que advogava uma disciplina da alma humana (seu significado, afinal) baseada na fisiologia. Foi assim que, aproximando-se mais e mais da biologia, Spencer começou a pensar no indivíduo como mera peça da engrenagem de uma raça ou espécie (o que é contraditório com o liberalismo econômico e poderia até ser alinhado às principais crenças do positivismo de sua nêmese Auguste Comte, porém demonstra como a história da epistemologia não é coerente, e nem precisa ser; aliás, antes, se precisa ser algo, deve ser necessariamente contraditória a cada momento). Sua falta de fixação em fundamentos de um conhecimento genuíno levou-o a ser um dos homens mais “tendenciosos”, seguindo as modas intelectuais da época: aliando a frenologia (pseudociência, então em voga como ciência) à crença no progresso constante da humanidade, elaboraria vários silogismos centrais para sua visão de mundo. Como Darwin veio a publicar seus renomados trabalhos somente mais tarde, nessa época o “parcialmente biólogo” Spencer usou muito dos postulados do lamarckismo, a principal escola “rival” do darwinismo. Spencer tinha a ingênua ambição de ser “o Isaac Newton das ciências humanas”, pelo menos durante algum período de sua “eclética” vida.
Como definir rapidamente seu “sistema de filosofia sintética”? É simplesmente a aplicação da teoria biológica da evolução do século XIX a todos os campos humanos de maneira irrestrita, atrás de uma fórmula ou equação que simplificasse e esgotasse todo o conhecimento sobre a mente e o comportamento humanos (Spencer não apresenta literalmente uma equação ou lei, mas é o que ele mais gostaria de haver realizado): a psicologia, a sociologia e a moral seriam em breve apenas “ciências acessórias” da única ciência, esta filosofia sintética. Esse Sistema possui 10 volumes e levou 40 anos para ser escrito!
Apesar de tardio (suas primeiras obras venderam mal), seu reconhecimento se estabeleceu na década de 70. Até para o japonês e o mandarim traduziram seus livros da fase “intermediária”. Herbert Spencer basicamente resume o “homem diletante de ciência da era vitoriana”.
No fim de sua vida, sentiu que não criou uma trajetória intelectual em bases sólidas, entretanto, e queixou-se de uma extrema solidão. Nunca se casou nem deixou descendência e tinha um quadro hipocondríaco que a medicina não conseguia tratar. Era um homem que não aceitava, tampouco, ser contradito. Mesmo um jogo de baralho em que as coisas saíssem mal era-lhe suficiente para acabar com o resto do dia, talvez da noite, provocando-lhe insônia, como confidenciou-nos Huxley.
Na década de 1890 sua popularidade começou a fenecer no público, e maioria de seus melhores amigos já havia morto. A Europa imperialista caminhava cada vez mais para o reacionarismo e o “indivíduo livre”, sonho dos apologistas do mercado, teve sua esfera severamente encolhida. Em seu primeiro livro, Spencer advogava o sufrágio universal para as mulheres e a inclusão de votantes até mais abrangente que nossos sistema democráticos hordiernos: as crianças e os adolescentes deveriam participar desse dever cívico. (!) No fim de sua vida, tornou-se basicamente um oligarca irreconhecível. E é infelizmente desse último período que vem seu livro mais lido ou célebre, O Homem contra o Estado.
POLIMATIA
Spencer foi um dos últimos sistematizadores na filosofia/epistemologia, no auge das tendências atéias, da fé no progresso ilimitado e gradual e no poder explicativo exaustivo da ciência. Seu sistema é quase um dogma ou religião cientificista, o que novamente o aproxima, malgrado seu, de Auguste Comte!
“Desconheço se Spencer realmente chegou a entender as implicações da segunda lei da termodinâmica. Se sim, ele deve ter ficado bem decepcionado. Decorre desta lei que tudo tende à uniformidade no nível inorgânico, diminuindo (e não aumentando) a heterogeneidade do sistema, que para ele ganharia em valor ao se complexificar cada vez mais..”
Bertrand Russell
DARWINISMO SOCIAL
Era questão arbitrária onde encaixar o subtítulo “darwinismo social” (se em sociologia, ciência política, economia ou ética) ou se simplesmente ele comporia um título independente deste artigo, como foi minha escolha. Mas as maiores implicações da eugenia proposta por Spencer se deram, como verificamos, na II Guerra, na Alemanha nazista, de modo que podemos isolar sua idéia-chave como a mais importante (e nefasta) que ele nos legou.
SOCIOLOGIA
Mais por acidente e por pertencer ao tempo e lugar a que pertenceu é que podemos falar de Spencer como “sociólogo”. Foi imediatamente precedido por Comte e muito influenciado pelo autor francês, de forma, como já se viu, um tanto ambígua. O que Spencer rejeita em Comte, p.ex., é seu postulado dos “três estágios” da evolução social. Segundo algumas referências, Spencer teria sido o primeiro a cunhar o binômio hiper-utilizado e hoje até saturado “estrutura social”. No seu lugar, Spencer cunhou uma antinomia chamada de estágio da sociedade militante (antiga) e estágio da sociedade industrial (moderna). Devemos nos perguntar, no entanto, no que isso enriquece qualquer debate sociológico para além de sua época. Não que tenham faltado críticas a seu olhar epistemológico mesmo durante sua vida e em seu próprio “círculo científico de colaboradores” (não precisamos citar, p.ex., Nietzsche, que foi um grande detrator seu, sendo-lhe contemporâneo – porém ambos nunca interagiram): Dilthey (embora alemão; e embora também muito espezinhado por Nietzsche) foi veemente na necessidade da separação entre ciências naturais e sociais, mirando atingir os escritos de Spencer proponentes de uma unificação do saber. Frank Ward, expoente da sociologia norte-americana, atacou Spencer virulentamente pelo flanco esquerdo (não falo de posicionamento político, mas da América em relação à Inglaterra no mapa). Mesmo o liberalismo montesquieusiano e a teoria da possibilidade de uma “decodificação e absolutização da ética” patrocinados por Spencer foram ambos tratados com desdém pelos cientistas sociais do último terço do séc. XIX. Para encerrar o assunto, Durkheim, em 1890, praticamente definiu a disciplina científica da sociologia, sem que o nome voltasse a ser impunemente usado por autores distintos empregando métodos basicamente idiossincráticos, como até então. O que restou das opiniões de Spencer resvalou para os campos da economia e da ciência política (ler mais abaixo).
“ÉTICA” LIBERAL
Absurdamente, uma das conseqüências do “libertarianismo precoce” de Spencer, acoplado a sua crença teleológica no surgimento gradual do homem perfeito na sociedade perfeita e no fim dos conflitos sociais, era que as sociedades do presente deveriam experimentar punições por más condutas, a fim de que aprendessem por iniciativa própria “o poder soberano da natureza”. Segundo Spencer, portanto, o Estado não deveria se imiscuir na vida da pessoa, ainda que fosse para protegê-la ou melhorá-la: não obrigar vacinas, não promover assistência social (pensamento meritocrático ainda em voga pelas piores correntes ideológicas!) ou mesmo, ilustrativamente, proibir-se ou abandonar o ensino gratuito!
INVENÇÃO DO CLIPE DE PAPEL
Uma curiosidade menor é que os clips que usamos hoje para prender e agrupar papéis foram inventados, ou pelo menos seu precursor imediato, por Spencer. Sua autobiografia possui os desenhos do protótipo que depois foi patenteado e comercializado.
LEGADO
Curiosamente, Spencer foi muito mais difundido em vida do que morto (ao contrário da maioria dos grandes pensadores, por exemplo, Shakespeare ou Nietzsche) – sua decadência e ostracismo foram ligeiros. Herbert Spencer parece ter sido até hoje o único “filósofo” na História que conseguiu vender mais de 1 milhão de exemplares de livros ainda no decorrer de sua vida. Isso fez dele uma espécie de Carl Sagan do Liberalismo Econômico, um difusor de idéias próximo do que seria uma vedete hollywoodiana misturada com um comunicador jornalístico de 100 anos depois. Conteúdo mais viral de filósofos menores da História da filosofia nós só podemos conceber hoje, p.ex., na era do YouTube (com figuras deploráveis como Jordan Peterson, etc.). Porém, já em 1937, o sociólogo estruturalista Talcott Parsons podia perguntar zombeteiramente: “Quem ainda lê Spencer?”. William James, Bergson e Durkheim já haviam se ocupado de Spencer nesse ínterim entre sua ascensão e queda meteóricas (a fim de criticá-lo). Talvez boa parte de se sua debandada de leitores, além da percepção generalizada de que suas idéias não eram originais ou de tanta qualidade como de início se propugnava, tenha vindo em virtude de seu “liberalismo à la Europa do séc. XIX” ter resultado na catástrofe nazifascista que assolou o Velho Continente no mesmo período em que foi formulado esse juízo de Parsons (os anos 1930), ainda antes do conflito bélico principiar, mas com Adolf Hitler e Benito Mussolini já no poder. Uma ironia que complementa a anterior (um advogado da liberdade plena do indivíduo contribuir indiretamente para o Holocausto, dentre outros crimes) é que sua lápide está frente a frente com a de Karl Marx num cemitério londrino.
Seu legado ainda vivo – e preocupante – é o do campo anarco-capitalista e da medonha Escola Austríaca de economia. O mais engraçado é que na época de Spencer suas crenças anti-estatistas significavam uma completa rejeição do sentimento patriota, hoje usado por todos os grupos extremistas como tática de chegada ao e manutenção no poder. Além disso, Spencer, para sermos justos, era integralmente um pacifista, dizendo que se um soldado vai à guerra deve se conformar com o pior dos destinos e a sociedade de seu próprio país não tem o direito de lamentar sua perda, pois assim funcionam as conseqüências de quem opta pelo caminho da guerra.
“Não há outra alternativa”, frase favorita de Margaret Thatcher, parece decorrer de um dos livros de Spencer. Em sua própria época, Spencer, apesar de ter todas as características de um tory, ou ser impossível imaginá-lo como um whig, pelo menos após o desenvolvimento de suas idéias em seguida ao primeiro livro (em que até defendia as cooperativas proletárias!), um tanto “juvenil e utópico”, reprovou as gestões Gladstone e Disraeli, atacando os conservadores britânicos, que ele chamava de “reformistas sociais”! Ao mesmo tempo, Spencer era refratário à independência da Irlanda, que efetuou já então sua reforma agrária, e nunca perdoou a gratuidade da escola, ou como o Estado obrigava seus cidadãos a ingressarem no ensino formal (Spencer é outro que se sentiria muito contente em defender iniciativas como o homeschooling no mundo atual).
Também era contra o sustento de bibliotecas com dinheiro dos impostos e leis contra o álcool, o tabaco e outras drogas. Para ele, o sujeito tinha o direito de se intoxicar, mas não de se instruir. Por outro lado, fascinante como pode ser uma figura autocontraditória como Herbert Spencer, ele era anticolonialista e anti-imperialista em seu próprio tempo (as colônias estariam sendo atrasadas pela “sociedade industrial”, de modo a ficarem em estado de dependência perpétua ou prolongada, o que ele chamava de sociedade militante, eufemismo para primitiva; ao mesmo tempo, Spencer cria genuinamente que o imperialismo anterior a sua própria geração tinha cumprido sua missão ao eliminando sociedades atrasadas e pavimentar o caminho da civilização branca e européia…)!
No fim, portanto, concedo: estamos falando mais de um pseudo-polímata do que um verdadeiro polímata, que está no limite do que esta série de artigos poderia comportar (ninguém inferior a ele será aqui “biografado”). Dada sua fama pregressa, achei inevitável tratar deste personagem, contudo.
“Em qualquer contexto a migração é ruinosa, seja ela pequena ou vasta, para o país que recebe o imigrante. O caos social decorrerá necessariamente desta tolerância para com pessoas de outras nacionalidades. O mesmo se dará caso se permita a mistura e o casamento de europeus e americanos [norte-americanos, britânicos de ‘raça pura’] com japoneses.”
Trecho racista e xenófobo de Spencer
QUERO SABER MAIS! (MESMO NOSSOS ADVERSÁRIOS PRECISAM SER ESTUDADOS)
O autor já se encontra livre de copyrights:
https://www.gutenberg.org/ebooks/author/1887
Recomendo, além de sua apreciação crítica direta, as objeções de Plekhanov ao spencerismo contidas em Anarchism and Socialism, 1909.