Monica em

EM NOME DA HONRA”

Originalmente publicado em 8 de janeiro de 2010.

Inspirado na fábula da Chapeuzinho Vermelho

Cabelos loiros, lisos e que mal chegavam aos ombros. Nariz afilado e empinado. Lábios finos e rosas. Uma flor delicada. Monica tinha dezesseis anos e começava a ser uma preocupação para os pais. Filha de um poderoso industrial da Wolfstation – pequena vila inglesa – do século XIX, sua beleza aliada a sua riqueza a tornavam um objeto de intensa cobiça por parte dos homens da cidade. Galanteios de meninotes, rapazolas e mesmo dos amigos do pai nunca foram surpresa na vida da colegial. Porém a atenta Sra. Williams percebeu que a filha não mais recusava as investidas de imediato com um firme: “Não desejo um faz-de-conta burguês e ambas as nossas infelicidades”. Na sala de visitas, dava a entender que não cederia, mas já não era tão resoluta como antes. Se não se tratasse de uma moça rica, poder-se-ia pensar que Monica gostaria de prolongar os casos, quem sabe forjar um noivado, unicamente em busca de dinheiro. A Sra. Williams, como qualquer mulher madura, conhecia muito bem aquelas transformações no corpo e mente da adolescente, da menina-adulta. No entanto, sentia-se constrangida diante dos arroubos de sensualidade da criatura fervilhante que se exibia pela primeira vez debaixo de seu teto e diante dos seus olhos. Cantarolava ao espelho, perfumava-se toda. Nunca havia visto sua filha assim. Resolvera esperar até o dia do baile escolar para dar um passo além da simples observação: chamou Monica a um canto, na cozinha, enquanto assava alguns bolinhos, e pediu que não comprometesse a posição da família na alta sociedade com burlas namoradeiras. Monica sabia o que a palavra burla queria dizer.

Manteve-se afastada de bons partidos na escola; reprimiu seus sentimentos até aquela idade, em que já não era possível ocultar os batimentos acelerados e a maçã rubra das faces quando o assunto das garotas adentrava o sexo oposto. Julgava usufruir de uma vida muito mais confinada do que a das amigas, e mais recatada do que o necessário. Mas não ousava afrontar o pai. Não se sabe ao certo se planejava algo, se nutria rancor pela educação severa que recebia, porém tudo indica que o respeito que demonstrava pelo Sr. Williams não devia ser dissimulação. Acontece que toda santa alma um dia se cansa…

Há meses Monica observava, de longe e sem ser notada por nenhum dos colegas, um bando de alunos da série superior. Populares entre a juventude e malvistos pelos professores, constituíam seis ou sete bolsistas da região pobre da cidade. Não provinham de família abastada, mas freqüentavam a mesma escola da filha de Henry Williams. Este, dono de tecelagens por todo o país e bem-informado pelas amizades e pelos jornais, sabia da política acolhedora da instituição de ensino, e espumava de raiva a cada lembrete do tipo de gente que podia sentar-se às carteiras adjacentes à de seu tesourinho.

Talvez se inclinasse a lutar no parlamento por mudanças na aceitação de estudantes pobres, mas adiava a iniciativa, combinando com o advogado os argumentos perfeitos para a sessão plenária (onde pisava quando bem entendesse), além de aguardar que um célebre comerciante, conhecido seu, assumisse a cátedra de diretor, no rodízio previsto pelo regimento da escola, em apenas dois meses. Poder-se-ia dizer que o inconveniente de misturar a rebenta com uns pobretões da zona operária de Wolfstation não era de trato urgente. Enquanto isso, fazia vistas grossas até mesmo às filhotas dos outros industriais, a inculcar em Monica a idéia de comprar novos vestidinhos, tomara-que-caias, que deixavam as rapariguinhas de ombros escandalosamente desnudos, ou saiões com cortes indecentes.¹ Considerava as filhas dos outros capitalistas putas de luxo, sem exceção.

¹ A tomara-que-caia é “invenção” do século XX, mas esse conto se dispensa da obrigatoriedade de fugir de anacronismos.

Monica decidiu que se aproximaria dos bolsistas na festa do baile. Sabia que, quando muito, um ou dois valeriam a pena; os outros seriam grosseiros por saberem quem ela era – se tem uma coisa por que os sem-dinheiro zelam é o velho orgulho de classe. Não disfarçar antipatias. Não alimentar falsas esperanças de “subir na vida se casando com uma princesa ao invés de uma plebéia”. Não quando seria de cortar o coração de tão humilhante, e aquele Sr. Henry não era o tipo de pai que deixaria barato em uma entrevista eliminatória. Quando se estuda em escolas assim, além do mais, seria muito mais gratificante descontar essa frustração de berço cuspindo no chão e apontando o dedo para ricaças insinuantes.

A princesa penetra da história já desconfiava do gênio desses rapazes. Mas é provável que a cólera direcionada aos burgueses não fosse uniforme. Um ou dois poderiam pensar diferente, no íntimo. E estava cada vez mais complicado para uma loira vistosa e enfeitada de jóias hipnotizantes ao longo do pescoço, dos pulsos, das orelhas e dos dedos, quando não incrustadas nos vestidos, enfim, para uma baronesa com corpo de sereia, lidar com esses novos impulsos: a necessidade de amigos descolados das tradições, o instinto de buscar o diferente, o exótico, o rebelde. Todos têm a idade desse despertar. Ao mesmo tempo, continuar fiel às amigas. E, para isso, deveria ter alguma proeza para contar. Era a mais inexperiente do grupo, e já gerava risitos incontidos nos falatórios no departamento “homens”. Não tinha opinião formada sobre casamento, sobre o melhor estágio da vida para descobrir o marido ou o grau de liberdade que deve ser tolerado entre casais não-reconhecidos pela Igreja. Tudo veio rápido demais para essa moça. Monica quis apenas se auto-afirmar em seu grupo de amigas, não que isso implicasse em ser uma Williams maculada.

Foi no baile que, surpreendentemente, Monica, sem tomar nenhuma iniciativa, foi cortejada pelos famosos bolsistas da Wolfstation Noble School. Do mesmo jeito que costumava ser, debaixo das vistas da própria mãe, só que agora num amplo salão sem obrigações de sangue a interferir. Sorriu muito com o mais alto, aparentemente o “líder”. Respondeu todas as perguntas com inocência e temeu fazer alguma. Confirmou que era filha de Henry Williams, o famoso cidadão freqüentador número 1 do único banco da cidadezinha. Sabe-se lá o que vai fazer duas vezes por dia, religiosamente, às catorze e às dezoito horas, sempre demorando quinze minutos do lado de dentro. Assentiu também às suspeitas de que o pai era dono inclusive de termelétricas e exploradoras de carvão em Northsville, a cidade mais próxima de Wolfstation. E que aqui ele ainda era dono de uma companhia de bondes, mas adorava seus passeios de charrete. Possuía um cocheiro, três cavalos de elite e um carro pintado de ouro. Se era a tinta ou se era ouro de verdade, sobre isso não especulou. Dúvidas tão tolas as daqueles rapazes. E eles aparentavam segurança e auto-domínio quando conversavam longe de seus ouvidos, no gramado. Pessoalmente, não passavam de molecotes. Havia entre eles uma mulher, que Monica não tardou em julgar ser uma prostituta literal. Tinha aquela pinta perto dos lábios que rapidamente se associa à profissional mais antiga do mundo. E aquele sorriso de canto de boca, naquela noite de gala com um decote que fazia os gorilas do sexo oposto arfarem.

* * *

Dois dias depois de ter trajado aquele vestido vermelho de brilhantes e aquela tiara da mesma cor, com sapatos pontiagudos e de salto, além de uma pesada maquiagem, Monica e Edward, o rapaz alto do bando, já trocavam juras intensas de amor. Um amor infantil, diga-se. Nem mesmo se beijavam, só davam-se as mãos, cruzavam os braços ao caminhar, mal se tocavam. Ela já se sentia à vontade entre os bolsistas, no horário das classes. Ou melhor, nos intervalos, uma vez que as regras da distinta instituição eram rígidas e Monica tinha medo de que as fofocas viajassem alguns quilômetros até o escritório do pai.

A Sra. Williams, dotada daquele clássico sexto sentido feminino e materno, esperava a melhor ocasião para abordar a filha. Não perguntaria: “Está se encontrando com um homem às escondidas?”, mas “Qual o nome dele?”. Justo numa tardinha, quando ambas silenciavam na sala e a mãe tricotava ensaiando o discurso na cabeça, uma carruagem deu sinal à janela. Segundo consta, era o criado de Henry, dizendo que Monica devia seguir com ele até onde estava o pai. “Uma conversa no meio do expediente?”, pensou a madame. Mas se tranqüilizou ao se dar conta de que o pai também notava os pormenores da agitada vida da filha: “Vá, vá conversar com ele!”.

Era de fato o criado, mas no banco de trás estava Edward. Ele havia pagado duas libras para que o condutor enganasse a dona da mansão. Capataz muito confiável, sucumbiu à pomposa gorjeta. É um valor que um bolsista duvidosamente poderia desperdiçar pelos cantos. Monica se sentiu divina com este regalo apaixonado. Ambos foram deixados a sós em um parque, o mais espesso da região. Brincaram, rolaram pelo gramado, se enroscaram pelos troncos. E aí Monica percebeu que toda a sua etiqueta não seria suficiente contra pulsões tão selvagens. Pediu, quase tremendo, de excitação, não de pavor, que só continuasse enquanto ela consentisse. O rapaz balançou a cabeça verticalmente. Ambos se embrenharam nas matas mais altas e no canto mais afastado daquele passeio verde, e Monica tentou fazer silêncio. Quando a afoiteza de Edward já era evidente, aliás, o único que se podia notar nele, ela pediu para seu namorado parar. O garotão não podia se conter diante daquela beleza loira tão frágil e agora corrompida. O sangue, o suor, a água da garoa que caía, tudo se juntou com outro fluido. Como nas garras de alguém com quem não se pode comunicar, Monica apenas rangia os dentes, paralisada pela dor do arrependimento e da genitália azarada. Tudo estava turvo demais para reações precisas como aquelas da polida sala-de-estar de antigamente, e ela sequer soube em qual segundo as coisas tinham passado de uma brincadeira entre dois inconseqüentes para uma outra coisa, uma violação; em que momento ela própria se converteu de aventureira intrépida em vítima de estupro.

Edward a largou de bruços, esgotada, e se retirou, como se nada tivesse acontecido. Depois daquele encontro voraz, Monica regressou a pé para casa, de saltos quebrados nas mãos, trancou-se no quarto durante três dias e só aceitou duas visitas: a mãe e a criada que trazia a comida, ainda que quase não a tocasse. A par do que talvez tivesse ocorrido, desconhecendo contudo os detalhes mais ásperos, a Sra. Williams apenas consolava a filha: “Há homens que não revelam sua natureza lupina logo ao segundo encontro”. O senhor e a senhora da casa julgavam ser uma fatalidade natural, o primeiro desengano amoroso de uma garotinha, e se aliviaram por saber que a preocupação com os desordeiros do colégio e as precipitações de Monica não iriam se repetir, resolvidas ambas de uma cajadada.

O que os amigos de papai iriam dizer?”, foi a frase fixa, o fluxo neurótico que latejava na má-consciência daquela adolescente em prantos e frangalhos. Mas a experiência não fôra tão traumática, a ponto de no quarto dia o bom humor ter instantaneamente se restabelecido. Na escola, pôs as conversas com as antigas amigas, com quem rompera brevemente, em dia, chegando a uma concordata. Não contou nada a ninguém sobre “o bosque”. Na saída, Edward apareceu. Monica se limitou a fitá-lo com uma extraordinária repulsa, curvando-se em meia-circunferência, ainda abalada. Foi agarrada pelo braço esquerdo. Mas quando virou o oleoso pescoço, banhado em suor frio, não era o rosto do rapagote canalha, aquele arquétipo de Don Juan com requintes de maníaco, aquele que enxergou. Era um de seus comparsas, que defendeu o parceiro Eward: “Olha, ele achava que você era um tipo mais arrojado de garota. Ele chorou no meu ombro, disse que confundiu tudo, pensou que sua aflição fazia parte daquele momento de quebra de regras, da nova vida aflorando, de não ser mais uma menininha do papai…”. Uma bofetada na cara seria a reação mais natural, mas Monica apenas baixou ainda mais o rosto, constrangida.

* * *

Passaram-se mais duas semanas sem que ela dirigisse palavra àquela turma. Um dia antes do recesso de fim de ano, decidiu finalmente endereçar uma mensagem a Edward, ao vê-lo desacompanhado. Entregou-lhe um bilhete: “Encaminhe-se ao mesmo local do nosso primeiro encontro. Eu, Monica Williams, por ter sido manchada em meu sangue azul, dou-lhe uma segunda chance, com o ônus de que seja meu pelo resto da eternidade. Contei a meu pai sobre você.” As extremidades do corpo de Edward gelaram. Pensava vertiginosamente em todo o conteúdo do bilhete. Queria saber o que era contar ao pai sobre si, a que nível de profundidade o relato chegara. E conjeturava – se aquilo era mesmo uma proposta de casamento, quão rude não havia sido! Porém, como se esperasse por um acontecimento não muito diferente desse, pôs-se mais uma vez sereno, ajeitou a gola da camisa, pigarreou, socou uma mão na outra, suspirou, relaxou as costas e começou a andar em velocidade até uma casa, de propriedade anônima. Telefonou para a mansão Williams e disse: “Banco Wolfstation. Por favor, transmita o recado. O Sr. Williams precisa falar com o gerente de saldos, ele estará presente apenas às dezoito horas”. Era meio-dia e ele teria tempo para agir.

No reencontro, nenhum movimento suspeito, ainda que num certo breu das árvores. Pelo contrário, rumaram para a casa de Edward, onde a mãe os recebeu com pães de queijo e tagarelices amistosas. No correr da modesta reunião, mudança de planos: “Vamos nos reunir todos, os bolsistas do décimo ano, na casa de Mike”. Lá, um sobrado cinzento, a campainha tocou três vezes até que um risonho Mike desse as caras. Um teto a quatro metros de altura dos convivas, escadas em espiral, sofás fedendo a mofo. Um sítio suntuoso, embora semi-abandonado.

Onde estão os outros? – perguntou Monica.

Não haverá outros. Você está em cativeiro.

Alguém veio por trás e abafou-lhe o grito agudo com um saco grosso de algodão, que agora encobria toda sua cabeça. Monica foi levada para o sótão.

Enquanto isso, a garota soube que seu pai seria conduzido a uma cilada. O mais velho do grupo, ainda um rapaz, entretanto mais robusto e barbudo o suficiente para se passar por um respeitável representante bancário, interceptou o Sr. Williams antes que ele pisasse no banco, pelo fim da tarde. Passeavam pela cidade a quatro rodas enquanto conversavam, mas Henry percebia o tom abstrato do “sermão matemático”.

Conte-me de uma vez, furtaram o meu cofre? E onde está o Sr. Phillips?

Não, mas iremos… – respondeu o adolescente parrudo, ignorando por completo a segunda pergunta, sobre o real gerente do banco.

Henry Williams nunca havia levado um tiro. Ao ler romances e estórias de detetive sempre se indagava como seria a dor da bala perfurando a pele e a carne após disparo à queima-roupa. Era um ardor ou trauma semelhante a uma mordida brutal. A mordida de um urso, por exemplo. Foi na tíbia direita, pouco acima do osso do tornozelo. A perna inteira parecia ter sido tragada por uma fogueira. Mas fogueiras não fazem sangrar. O vermelho que grassava e se espalhava agora pelo chão da carroça mudou também o tom da dor, agora um repuxar insuportável dos músculos. O atirador puxou o homem pela camisa, imperativo: “Estamos com sua filha; se quiser que os jornais de amanhã contem o que está acontecendo na casa onde ela está, senhor industrial, não faça nada, e nos mande pra cadeia, inclusive. Não vai nos matar porque somos muitos”. “Tu…do bem.” E prosseguiu: “Nós queremos que na sua próxima visita ao banco peça ao gerente, o gerente de verdade, que aumente seu limite de transferências e deposite o lucro do ano anterior da sua tecelagem Wearing Co., que eu conheço pelas notas da imprensa, nestas quinze contas. Vai dizer que essa bala partiu de um ex-cliente furioso que não pôde identificar e que está fazendo isso para sua segurança legítima, pela integridade de seus bens e de seus familiares”. Depositou então um papelote no bolso do sobretudo daquele grisalho outrora imponente. “Não vai perguntar sobre sua filhinha, não é mesmo?… O que importa é… Bem, ela lhe será entregue assim que confirmarmos as transferências; esteja neste mesmo lugar.” Chutou-o para fora da charrete de ouro: “Esteja aqui, não chame a polícia! Nós temos tudo que a força da guarda desta cidade não tem!”. E não era mero blefe. O Sr. Williams mal se mexeu por duas horas, reclinado sobre um tronco, recusando até mesmo a assistência vespertina de uns andrajosos que passavam por perto. Até que percebeu que, pelos dizeres do malfeitor, deveria caminhar de contínuo até o banco, não longe dali, ferido como estava, para realizar o protocolo. Estava atrasado, atrasaria ao todo em mais de meia hora em relação ao combinado. Os cuidados médicos poderiam esperar.

Em torno de oito e meia da noite, com a conta da Wearing esvaziada e o referendo da matriz do banco em Londres (a soma era vultosa), chegava àquela clareira do parque público o reluzente carro do próprio Henry Williams em que um tiro havia soado, dessa vez com três capangas e Monica, toda encolhida. A filha parecia feliz e aliviada ao ver seu progenitor. Abraçaram-se, e ele perguntou:

Aconteceu alguma coisa?

Nada, papai… Claro que não houve nada!…

O ALIENISTA – Machado de Assis

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.”

Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência,—explicável, mas inqualificável,—devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.

Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de ‘louros imarcescíveis’, — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.

A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.

Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.

A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.

Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.

D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe ‘que estava com desejos’, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não tivesse medo.”

A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.”

Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.

A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. (…) D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores. § Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.”¹

¹ Casa em que “se poderia falar com deus”.

De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de 4 meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais 37. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, 3 meses antes, jogando peteca na rua!”

Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.”

Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos.”

Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões:

Quem diria que meia dúzia de lunáticos…

D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:

Deus sabe o que faz!”

Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo.”

A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”

Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:

A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.”

Naquele tempo, Itaguaí, que, como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;—ou por meio de matraca.

Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.”

De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam,—um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde,—desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema.”

Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde.

Impossível!

Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.

Mas, na verdade, ele não merecia… Ainda em cima! depois de tanto que

ele fez…

Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí, Herdara 400 mil cruzados em boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver ‘até o fim do mundo’. Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, 2 mil a outro, 300 a este, 800 àquele, a tal ponto que, no fim de 5 anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente.”

Um dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: —Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga.

Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a divida.

Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu.”

Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz.”

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

Há coisa, pensavam os mais desconfiados.”

A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí,—a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas,—duas ou três de consideração,—foram recolhidas à Casa Verde.

Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.”

O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito,—balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte—de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha.”

Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. (…) Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de 25 anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista.”

Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta idéia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso.”

D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.”

Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a 200 passos da vila. Era um rapaz de 30 anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de 10 a 20 braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora.” “Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.”

note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava:—é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.”

É falso! interrompeu o presidente.

Falso?

Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.

Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—‘Bastilha da razão humana’—achou-a tão elegante que mudou de parecer.”

Já não eram 30 mas 300 pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica—e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas.” Ora, se o Professor José não faz uma equivalência muito falsa ao chamar os bolsolóides de canjicas…

e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde,—dada a diferença de Paris a Itaguaí,—podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.” Incendiaram alguma carruagem, pelo menos?

Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado.

Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e…

Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.

D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao reto e baixavam do reto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais.”

Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranqüilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.”

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais.”

Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí.”

Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes.” Também absolutamente incompatível com qualquer paralelo que se faça com os neofascistas amarelos.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível.” Outra situação sem qualquer paralelo político contemporâneo.

A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões,—qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram,—passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desanimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a um foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente contra uma massa compacta que o ameaçava de morre. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.”

Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas 7 ou 8 pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um dos homens aparentado com o Protetor.” Agora sim: o verdadeiro rapace-marajá que hipnotiza gado nas horas vagas (e ele tem horas vagas!) bem-caracterizado!

Machado não faz boas transições em sua estória um tanto corrida, e seu estilo é cru, conjugando mal os verbos, como aqui: “O barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.” Incensado além da conta, não era o melhor de sua geração.

a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance:—a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples noticia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final.”

Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto—por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.

A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência.”

Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.—Dois lindos casos!

Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo…

Viva o ilustre Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.

Dois lindos casos! murmurou o alienista.”

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de 50 aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava ‘vendido ao ouro de Simão Bacamarte’, frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila.”

Duas horas depois caía Porfírio ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo!”

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns 50 e tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais 19 sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.”

O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro aro seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.”

Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.”

Um dia de manhã—dia em que a Câmara devia dar um grande baile,—a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.

Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas côrtes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras.”

Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe—menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência. § Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.”

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.

Todos?

Todos.

É impossível; alguns sim, mas todos…

Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara.

De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: — § 1º: que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que 4/5 da população estavam aposentados naquele estabelecimento; § 2º que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; § 3º que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; § 4º que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; § 5º que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; § 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.”

Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas. E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.”

O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo ‘provado tudo’, como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calam idades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio:—ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão;—adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.”

Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera idéia de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão de amigo velho.”

O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico—‘cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra’.”

O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porem, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem-organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou 0 pedido do alienista e votou unanimemente a entrega.”

O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado 30 dias depois da postura, a mulher do boticário 40 dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.”

E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.”

Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila. Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.

Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.”

O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.”

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.”

Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas,—graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente poeta que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a idéia de mandar correr matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.”

Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos, estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o faz sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.”

Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.”

No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e eqüidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza.”

Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.”

…a moderação e a singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.”

Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim,—ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade:—não havia loucos em Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí. não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão.”

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.

Nenhum defeito?

Nenhum, disse em coro a assembléia.

Nenhum vício?

Nada.

Tudo perfeito?

Tudo.

Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa

superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.”

Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras:—a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.”

Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a 17 meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato”

Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.”

DICIONÁRIO:

almotacé: atual almotacel: “Oficial municipal encarregado da fiscalização das medidas e dos pesos e da taxação dos preços dos alimentos e de distribuir ou regular a distribuição dos mesmos em tempos de maior escassez”

almude: “é o nome de uma antiga medida de capacidade, correspondente à 12 canadas (VIDE CANADA), ou cerca de 32 litros.” O presidente da Câmara havia pedido 30 almudes de sangue dos Canjicas, o que resultaria em 960L!

HENFIL NA CHINA (antes da Coca-Cola): releitura, 14 anos depois.

Postado originalmente em 10 de agosto de 2009 no extinto xtudotudo6.zip.net sob o título “TRANSCENDER-15”. Adaptado e atualizado.

18ª edição, 1987.

P. 13: “Eu ia me perguntando: qual é o objetivo da Europa? Revolucionar o mundo? Não mais. A busca da felicidade? Nenhum traço. Justiça social? Não me consta. L’amour? Nenhum indício. Então, para que vive a Europa? Para consumir até perder o sabor e aí precisar experimentar as próprias fezes como forma de excitar os sentidos anestesiados? Parti de Paris numa terça-feira, 19 de julho, sentindo cheiro de cocô. Tudo limpo. Sem mosquito. Mas tava lá o cheiro de cocô espiritual. Mas que fazem palácios, jardins e igrejas lindos, fazem.”

Ao contrário do governo brasileiro, o chinês preserva cada um dos traços culturais das etnias minoritárias.

P. 47: “Saio da França, chego na China e vejo o cocô adubando grande parte da agricultura chinesa. O cocô aqui trabalha duro em vez de ficar em orgias alienadas como na Europa.”

Notas engraçadas (ok, quase todas): o vaso chinês e o ato “de cócoras e sem encostar”: não é para o Henfil!

A China não se afigurava então como eminente poluidora!

Há sempre a briga pela maior produtividade – ainda que travestida ou “infantilizada”. Criam-se a tristeza e a fadiga típicas de sociedades industriais terceirizadas – não há escape, tudo integra a religião do progresso!

Henfil apareceu em um momento marcante para 900 milhões de pessoas: o relaxamento do regime, a Revolução Cultural.¹ Aspectos inflexíveis começavam a se liquefazer. 1977: faz um ano que Mao morreu. Quer-se escapar do revisionismo (ortodoxia à la Stalin) do Bando dos Quatro,² de dentro do qual a viúva de Tsé-tung³ exala seu fel.

¹ “Mao declared the Revolution over in 1969, but the Revolution’s active phase would last until at least 1971, when Lin Biao,a accused of a botched coup against Mao, fled and died in a plane crash. In 1972, the Gang of Four [vide ²] rose to power and the Cultural Revolution continued until Mao’s death and the arrest of the Gang of Four in 1976.” https://en.wikipedia.org/wiki/Cultural_Revolution

aLin Biao (Chinese: 林彪; 5 December 1907 – 13 September 1971) was a Chinese politician and Marshal of the People’s Republic of China who was pivotal in the Communist victory during the Chinese Civil War, especially in Northeast China from 1946 to 1949. Lin was the general who commanded the decisive Liaoshen and Pingjin Campaigns, in which he co-led the Manchurian Field Army to victory and led the People’s Liberation Army into Beijing. He crossed the Yangtze River in 1949, decisively defeated the Kuomintang and took control of the coastal provinces in Southeast China. He ranked 3rd among the Ten Marshals. Zhu De and Peng Dehuai were considered senior to Lin, and Lin ranked directly ahead of He Long and Liu Bocheng.” “Lin became more active in politics when named one of the co-serving Vice Chairmen of the Chinese Communist Party in 1958. He held the 3 responsibilities of Vice Premier, Vice Chairman and Minister of National Defense from 1959 onwards. To date, Lin is the longest serving Minister of National Defense of the People’s Republic of China. Lin became instrumental in creating the foundations for Mao Zedong’s cult of personality in the early 1960s, and was rewarded for his service in the Cultural Revolution by being named Mao’s designated successor as the sole Vice Chairman of the Chinese Communist Party, from 1966 until his death. § Lin died on 13 September 1971, when a Hawker Siddeley Trident he was aboard crashed in Öndörkhaan in Mongolia. The exact events of this incident have been a source of speculation ever since.” “Since the late 1970s, Lin and the wife of Mao, Jiang Qing, [vide ³] (along with the other members of the Gang of Four) have been labeled the 2 major ‘counter-revolutionary forces’ of the Cultural Revolution, receiving official blame from the Chinese government for the worst excesses of that period.” “The findings of Lin’s attempt to contact the Kuomintang supported earlier rumors from inside China that Lin was secretly negotiating with Chiang’s government in order to restore the Kuomintang government in mainland China in return for a high position in the new government. The claims of Lin’s contact with the Kuomintang have never been formally confirmed nor denied by either the governments in Beijing or Taipei.”

² “The Gang of Four (simplified Chinese: 四人帮; traditional Chinese: 四人幫; pinyin: Sì rén bāng) was a Maoist political faction composed of 4 Chinese Communist Party (CCP) officials. They came to prominence during the Cultural Revolution (1966–1976) and were later charged with a series of treasonous crimes. The gang’s leading figure was Jiang Qing (Mao Zedong’s last wife). The other members were Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan, and Wang Hongwen.”

³ Jiang Qing (19 March 1914 – 14 May 1991), also known as Madame Mao, was a Chinese communist revolutionary, actress, and major political figure during the Cultural Revolution (1966–1976). She was the 4th wife of Mao Zedong, the Chairman of the Communist Party and Paramount leader of China. She used the stage name Lan Ping (藍蘋) during her acting career (which ended in 1938), and was known by many other names. Jiang was best known for playing a major role in the Cultural Revolution and for forming the radical political alliance known as the ‘Gang of Four’.” “At the height of the Cultural Revolution, Jiang held significant influence in the affairs of state, particularly in the realm of culture and the arts, and was idolized in propaganda posters as the ‘Great Flagbearer of the Proletarian Revolution’. In 1969, Jiang gained a seat on the Politburo. Before Mao’s death, the Gang of Four controlled many of China’s political institutions, including the media and propaganda. However, Jiang, deriving most of her political legitimacy from Mao, often found herself at odds with other top leaders. § Mao’s death in 1976 dealt a significant blow to Jiang’s political fortunes. She was arrested in October 1976 by Hua Guofengb and his allies, and was subsequently condemned by party authorities. Since then, Jiang has been officially branded as having been part of the ‘Lin Biao and Jiang Qing Counter-Revolutionary Cliques’ (林彪江青反革命集), to which most of the blame for the damage and devastation caused by the Cultural Revolution was assigned. Though she was initially sentenced to death, her sentence was commuted to life imprisonment in 1983. After being released for medical treatment, Jiang died by suicide in May 1991.”

b “In the struggle between Hua Guofeng’s and Deng Xiaoping’s followers, a new term emerged, pointing to Hua’s 4 closest collaborators, Wang Dongxing, Wu De, Ji Dengkui and Chen Xilian. In 1980, they were charged with ‘grave errors’ in the struggle against the Gang of Four and demoted from the Political Bureau to mere Central Committee membership.”

Jiang Qing

Quotations from Chairman Mao Tse-tung, 1964. “The most popular versions were printed in small sizes that could be easily carried and were bound in bright red covers, thus commonly becoming known internationally as the ‘Little Red Book’.”

Resolution on Certain Questions in the History of Our Party since the Founding of the People’s Republic of China, 1981. Vd. em

https://digitalarchive.wilsoncenter.org/document/resolution-certain-questions-history-our-party-founding-peoples-republic-china

(*) “The Five Black Categories (Chinese: 黑五; pinyin: Hēiwǔlèi) were classifications of political identity defined during the period of the Chinese Cultural Revolution (1966–1976) in the People’s Republic of China by Mao Zedong, who ordained that people in these groups should be considered enemies of the Revolution. The groups were:

Landlords (地主; dìzhǔ)

Rich farmers (; fùnóng)

Counter-revolutionaries (反革命; fǎngémìng)

Bad influencers (‘bad elements’) (坏分子; huàifènzǐ)

Right-wingers (右派; yòupài)” https://en.wikipedia.org/wiki/Five_Black_Categories

(*) “During the Cultural Revolution the Nine Black Categories were landlords, rich farmers, anti-revolutionaries, bad influences, right-wingers, traitors, spies, capitalist roaders and intellectuals. While often attributed to Mao Zedong, in 1977 Deng Xiaoping argued that it was the Gang of Four who came up with the phrase and that Mao himself saw intellectuals as having some value in society.” https://en.wikipedia.org/wiki/Stinking_Old_Ninth

* * *

P. 88: a excelente idéia dos feriados rotativos!

P. 92: “A China jamais, é o que sinto aqui, partirá para uma invasão no exterior. O perigo amarelo não existe.” Brilhante vislumbre à la dialética de Arrighi. Associação geo-econômica onde a expansão política é desprezada (anti-imperialismo): o que importa é a consolidação interna. Mais: “Nenhum outro povo é citado em nada, a não ser os russos que deverão (eles repetem isso toda hora) invadir a China mais dia menos dia”. A União Soviética é um gêmeo americano (para os líderes chineses de então). Os japoneses, outros. “Mas o que são 20, 30, 100 anos de comunismo para um homem de 20 mil anos? Minutos, talvez.”

Picles, capítulo das pp. 91-4: reflexões interessantíssimas e contraste com o american way. Gostaria de saber se todos lá, hoje (2009), ainda lêem o discutem saborosamente Marx…

P. 93: “Não há advogados na China.”

P. 94: os chineses tentavam a reforma urbana de Dahl, esvaziando as cidades e dispersando seu povo.

Corroborando Simmel (p. 100): “não há prostituição de forma alguma. Não fique em dúvidas. Há prostituição entre os índios?”. Para Henfil, o “problema sexual” chinês não é nenhum problema! Nós, os ocidentais, é que somos peritos em fundar dilemas insolúveis por meio de contrastes anti-naturais.

P. 113, sobre a punição ideológica: “O crime na China, realmente, não compensa.”

Como estão hoje os abrigos subterrâneos, as réplicas impecáveis de Pequim a 4, 8, 15m do piso das cidades? R (já em 2009): Esvaziados, mas conservados para o turismo.

Júlio Verne, As Atribulações de um Chinês na China

https://www.amazon.com.br/Atribula%C3%A7%C3%B5es-Chin%C3%AAs-China-Viagens-Maravilhosas-ebook/dp/B00H8CD1OU

Dazibaos, os fanzines chineses. “Longas seqüências de discussão eram postadas e apreciadas nos muros, como ocorre nas comunidades virtuais de hoje. (…) Em 1978, um dos mais importantes documentos da história chinesa, chamado A quinta modernização, foi um Dazibao. Ele proclamava a democracia como o último dos elementos necessários ao completo sucesso da revolução chinesa. Foi copiado e distribuído por todo o país, sob os auspícios do governo.” Em http://sinografia.blogspot.com/2011/04/o-que-e-dazibao.html#:~:text=Traduzindo%20literalmente%20do%20chin%C3%AAs%2C%20%C3%A9,feito%20artesanalmente%20ou%20a%20m%C3%A3o.

Inflação e impostos congelados. Como a China mudaria em três (duas) [2009] décadas!

A China de Mao é o lugar (extinto) onde a auto-suficiência está acima de tudo.

P. 156: “Sincera, cândida, ingênua, simples e comovente. As 5 palavras que mais usei para definir tudo na China.”

P. 163: “É bom saber que, ao contrário da Rússia e do Ocidente cristão, não se usa o choque elétrico na China.”

P. 164: “Nunca vi nada mais ‘católico’ que a China Comunista”

Quem É. U. A.nti-Cristo?

A diferença entre Stalin e Mao, ou entre a União Soviética e a China, era que o chinês era camponês, e o russo, burocrata alienado do povo e imerso nas relações de poder.

Cabelos longos na China: remetem à época imperial.

P. 204: “Talvez, na hora do pau, os camponeses resistam à tão temida ocupação estrangeira, mas os operários de fábricas como a de relógios vão é se identificar com os invasores estrangeiros. Eles já se identificam no comportamento. Dois autômatos, sejam eles chineses ou suíços, se beijam, sim senhor.”

P. 213: a “universidade parlamento”.

O pouco contato que eles têm pode ter ajudado a construção de um socialismo puro, mas poderá, no futuro, criar grandes danos quando o ‘civilizado’ chegar com suas gripes. Esta pureza chinesa não preocupa?” Terrível prenúncio da Covid!

A propaganda (não falo aqui da mídia – aliás, também da mídia!) ideológica – desde Pequim – é terrível, asfixiante [como tem de ser. P.S. 2023]. Talvez fosse, mas Henfil a sublinha na reta final do livro, quando está em Shangai. À página 225 explica o porquê: são seus anticorpos burgueses e a saudade da pátria entrando em ação!

P. 229: premonição sobre a poluição e a capacidade produtiva crescentes – competitividade e burocracia são males necessários na guerra do Capital.

P. 235: os camponeses cozinham com “biogás”: o próprio cocô vaporizado!

P. 247: fica evidente como está enraizada a noção de progresso, mesmo em culturas tão diferentes… A vontade para se atingir um fim, qualquer que ele seja…

P. 254: não pode haver arte medíocre.

Pp. 268-0: famílias que viviam em barcos e eram proibidas de aportar nas margens do rio! Os “favelados aquáticos”.

A terceira idade na China é uma fase digna da vida.

Cantão (Guangzhou), um bolsão de miséria: ainda que estejam extintos os tais “favelados aquosos”…

Atualização: “…the capital and largest city of Guangdong province in southern China. Located on the Pearl River about 120 km north-northwest of Hong Kong and 145 km north of Macau, Guangzhou has a history of over 2,200 years and was a major terminus of the maritime Silk Road; it continues to serve as a major port and transportation hub as well as being one of China’s 3 largest cities. … For a long time, the only Chinese port accessible to most foreign traders, Guangzhou was captured by the British during the First Opium War. No longer enjoying a monopoly after the war, it lost trade to other ports such as Hong Kong and Shanghai, but continued to serve as a major trans-shipment port. Due to a high urban population and large volumes of port traffic, Guangzhou is classified as a Large-Port Megacity, the largest type of port-city in the world. … Guangzhou is at the heart of the Guangdong–Hong Kong–Macau Greater Bay Area, the most-populous built-up metropolitan area in the world, which extends into the neighboring cities of Foshan, Dongguan, Zhongshan, Shenzhen and part of Jiangmen, Huizhou, Zhuhai and Macau, forming the largest urban agglomeration on Earth with approximately 65 million residents and part of the Pearl River Delta Economic Zone. … In the late 1990s and early 2000s, nationals of sub-Saharan Africa who had initially settled in the Middle East and Southeast Asia moved in unprecedented numbers to Guangzhou in response to the 1997/98 Asian financial crisis. The domestic migrant population from other provinces of China in Guangzhou was 40% of the city’s total population in 2008. Guangzhou has one of the most expensive real estate markets in China. … For 3 consecutive years (2013–2015), Forbes ranked Guangzhou as the best commercial city in mainland China. Guangzhou is highly ranked as an Alpha- (global first-tier) city together with San Francisco and Stockholm. It is a leading financial centre in the Asia-Pacific region and ranks 21st globally in the 2020 Global Financial Centres Index. As an important international city, Guangzhou has hosted numerous international and national sporting events, the most notable being the 2010 Asian Games, the 2010 Asian Para Games, and the 2019 FIBA Basketball World Cup. The city hosts 65 foreign representatives, making it the 3rd major city to host more foreign representatives than any other city in China after Beijing and Shanghai. As of 2020, Guangzhou ranks 10th in the world and 5th in China (after Beijing, Shanghai, Hong Kong and Shenzhen) for the number of billionaire residents by the Hurun Global Rich List. … and is home to many of China’s most prestigious universities, including Sun Yat-sen University, South China University of Technology, Jinan University, South China Normal University, South China Agricultural University, Guangzhou University, Southern Medical University, Guangdong University of Technology, Guangzhou Medical University, Guangzhou University of Chinese Medicine. … The English name ‘Canton’ derived from Portuguese Cantão or Cidade de Cantão, a blend of dialectical pronunciations of Guangdong (e.g., Cantonese Gwong2-dung1). Although it originally and chiefly applied to the walled city, it was occasionally conflated with Guangdong by some authors.” “Amid the closing months before total Communist victory, Guangzhou briefly served as the capital of the Republican government. Guangzhou was captured on 14 October 1949. Amid a massive exodus to Hong Kong and Macau, defeated Nationalist forces blew up the Haizhu Bridge across the Pearl River in retreat. The Cultural Revolution had a large effect on the city, with much of its temples, churches and other monuments destroyed during this chaotic period. § The People’s Republic of China initiated building projects including new housing on the banks of the Pearl River to adjust the city’s boat people to life on land. Since the 1980s, the city’s close proximity to Hong Kong and Shenzhen and its ties to overseas Chinese made it one of the first beneficiaries of China’s opening up under Deng Xiaoping. Beneficial tax reforms in the 1990s also helped the city’s industrialization and economic development.” https://en.wikipedia.org/wiki/Guangzhou

O banco que não é banco: vigia para que não ocorra o ciclo D-M-D’ (lucro).

Gostaria de saber em que pé anda a autonomia das comunas e lavouras camponesas na China das Olimpíadas! (2009)

P. 301: “É impossível utilizar a Rússia”

QUINCAS BORBA

Quincas Borba está muito impaciente? perguntou Rubião bebendo o último golo de café, e lançando um último olhar à bandeja.

– Me parece que sí.

– Lá vou soltá-lo.”

ESTE QUINCAS BORBA, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena. Logo que chegou, enamorou-se de uma viúva, senhora de condição mediana e parcos meios de vida, mas, tão acanhada que os suspiros no namorado ficavam sem eco. Chamava-se Maria da Piedade. Um irmão dela, que é o presente Rubião, fez todo o possível para casá-los. Piedade resistiu, um pleuris a levou.”

filosofia é uma cousa, e morrer de verdade é outra”

RUBIÃO achou um rival no coração de Quincas Borba, – um cão, um bonito cão, meio tamanho, pêlo cor de chumbo, malhado de preto. Quincas Borba levava-o para toda parte, dormiam no mesmo quarto. De manhã, era o cão que acordava o senhor, trepando ao leito, onde trocavam as primeiras saudações. Uma das extravagâncias do dono foi dar-lhe o seu próprio nome; mas, explicava-o por dous motivos, um doutrinário, outro particular.

– Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda a parte, existe também no cão, e este pode assim receber um nome de gente, seja cristão ou muçulmano. . .

– Bem, mas por que não lhe deu antes o nome de Bernardo? disse Rubião com o pensamento em um rival político da localidade.

– Esse agora é o motivo particular. Se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro. Ris-te, não?”

“ – (…) Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler, charlarão Quincas Borba ao cachorro, e…

O cão, ouvindo o nome, correu à cama. Quincas Borba, comovido, olhou para Quincas Borba.”

agora os olhos metidos para dentro viam pensar o cérebro.”

O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro”

Crê-me, o Humanitismo é o remate das cousas; e eu que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não é ele, é Humanitas…”

– Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra.

– Mas a opinião do exterminado?

– Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água?

Moléstia e saúde eram dous caroços do mesmo fruto, dous estados de Humanitas.”

Quincas Borba chorava pelo outro Quincas Borba. Não quis vê-lo à saída. Chorava deveras; lágrimas de loucura ou de afeição, quaisquer que fossem, ele as ia deixando pela boa terra mineira, como o derradeiro suor de uma alma obscura, prestes a cair no abismo.”

Algumas pessoas começaram a mofar do Rubião e da singular incumbência de guardar um cão em vez de ser o cão que o guardasse a ele. Vinha a risota, choviam as alcunhas. Em que havia de dar o professor! sentinela de cachorro! Rubião tinha medo da opinião pública. Com efeito, parecia-lhe ridículo; fugia aos olhos estranhos, olhava com fastio para o animal, dava-se ao diabo, arrenegava da vida.”

SETE SEMANAS depois, chegou a Barbacena esta carta, datada do Rio de Janeiro, toda do punho do Quincas Borba.”

Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra mais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é a última. Ignaro!”

O santo e eu passamos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas; ambos furtamos, ele, em pequeno, umas pêras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio do meu amigo Brás Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava, como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro VII das Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da vontade, ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo existe, e só a primeira afirmação é verdadeira; todas as cousas são boas, omnia bona, e adeus.”

Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento, e perdidas as deixas? Rubião teve uma vertigem. Estava ainda com a carta aberta nas mãos, quando viu aparecer o doutor, que vinha por notícias do enfermo; o agente do correio dissera-lhe haver chegado uma carta.”

– Não quero nada, disse ao escravo. E outra vez pensou no legado. Calculou o algarismo. Menos de dez contos, não. Compraria um pedaço de terra, uma casa, cultivaria isto ou aquilo, ou lavraria ouro. O pior é se era menos, cinco contos… Cinco? Era pouco; mas, enfim, talvez não passasse disso. Cinco que fossem, era um arranjo menor, e antes menor que nada.

QUANDO o testamento foi aberto, Rubião quase caiu para trás. Adivinhais por quê. Era nomeado herdeiro universal do testador. Não cinco, nem dez, nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, especificados os bens, casas na Côrte, uma em Barbacena, escravos, apólices, ações do Banco do Brasil e de outras instituições, jóias, dinheiro amoedado, livros – tudo finalmente passava às mãos do Rubião, sem desvios, sem deixas a nenhuma pessoa, nem esmolas, nem dívidas. Uma só condição havia no testamento, a de guardar o herdeiro consigo o seu pobre cachorro Quincas Borba, nome que lhe deu por motivo da grande afeição que lhe tinha. Exigia do dito Rubião que o tratasse como se fosse a ele próprio testador, nada poupando em seu benefício, resguardando-o de moléstias, de fugas, de roubo ou de morte que lhe quisessem dar por maldade; cuidar finalmente como se cão não fosse, mas pessoa humana. Item, impunha-lhe a condição, quando morresse o cachorro, de lhe dar sepultura decente em terreno próprio, que cobriria de flores e plantas cheirosas; e mais desenterraria os ossos do dito cachorro, quando fosse tempo idôneo, e os recolheria a uma urna de madeira preciosa para depositá-los no lugar mais honrado da casa.”

E quanto seria tudo? ia ele pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que ele teria na Corte, porque era homem de muito gosto, tratava de cousas de arte com grande saber. E livros? devia ter muitos livros, citava muitos deles. Mas em quanto andaria tudo? Cem contos? Talvez duzentos. Era possível; trezentos mesmo não havia que admirar. Trezentos contos! trezentos!”

De repente, surgiu-lhe este grave problema – se iria viver no Rio de Janeiro, ou se ficaria em Barbacena. Sentia cócegas de ficar, de brilhar onde escurecia, de quebrar a castanha na boca aos que antes faziam pouco caso dele, e principalmente aos que se riram da amizade do Quincas Borba. Mas logo depois, vinha a imagem do Rio de Janeiro, que ele conhecia, com os seus feitiços, movimento, teatros em toda a parte, moças bonitas, ‘vestidas à francesa’. Resolveu que era melhor, podia subir muitas e muitas vezes à cidade natal.”

Aqui a testa e as costas das mãos do nosso amigo ficaram em água. Outra nuvem pelos olhos. E o coração batia-lhe rápido, rápido. A cláusula começava a parecer-lhe extravagante. Rubião pegava-se com os santos, prometia missas, dez missas. . . Mas lá estava a casa da comadre. Rubião picou o passo; viu alguém; era ela? era, era ela, encostada à porta e rindo.”

Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão.”

Diz-se de uma paisagem que é melancólica, mas não se diz igual cousa de um cão. A razão não pode ser outra senão que a melancolia da paisagem está em nós mesmos, enquanto que atribuí-la ao cão é deixá-la fora de nós. Seja o que for é alguma cousa que não a alegria de há pouco; mas venha um ,assobio do cozinheiro, ou um gesto do senhor, e lá vai tudo embora, os olhos brilham, o prazer arregaça-lhe o focinho, e as pernas voam que parecem asas.”

O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado. Eu, se fosse legislador propunha que se queimassem todos os homens convencidos de indiscrição nestas matérias”

As senhoras casadas eram bonitas; a mesma solteira não devia ter sido feia, aos vinte e cinco anos”

Sofia rastejava os vinte e oito anos; estava mais bela que aos vinte e sete; era de supor que só aos trinta desse o escultor os últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda o trabalho, por dous ou três anos.”

Tinha essa vaidade singular, decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. Era assim um rei Candaules, mais restrito por um lado, e, por outro, mais público. E aqui façamos justiça à nossa dama. A princípio, cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas tais foram as admirações colhidas, e a tal ponto o uso acomoda a gente às circunstâncias, que ela acabou gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estímulo dos outros. Não a façamos mais santa do que é, nem menos. Para as despesas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos”

Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escândalo!”

Os seus pobres olhos de 39 anos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas. Volvê-los uma e muitas vezes requebrando-os, era o longo ofício dela. Não lhe custou nada armá-los contra o capitalista.”

Era o velho formulário em ação; nada lhe rendera até ali, mas a loteria é assim mesmo: lá vem um bilhete que resgata os perdidos.” “D.Tonica sentiu o grasnar do velho corvo da desesperança. Quoth the Raven NEVER MORE.”

Rubião lembrou-se de uma comparação velha, mui velha, apanhada em não sei que décima de 1850, ou de qualquer outra página em prosa de todos os tempos. Chamou aos olhos de Sofia as estrelas da terra, e às estrelas os olhos do céu. Tudo isso baixinho e trêmulo. Sofia ficou pasmada. De súbito endireitou o corpo, que até ali viera pesando no braço do Rubião. Estava tão acostumada à timidez do homem… Estrelas? olhos? Quis dizer que não caçoasse com ela, mas não achou como dar forma à resposta, sem rejeitar uma convicção que também era sua, ou então sem animá-lo a ir adiante. Daí um longo silêncio.”

Depois, a lua é solitária. A solidão faz a pessoa séria. As estrelas em chusma, são como as moças entre quinze e vinte anos, alegres, palreiras, rindo e falando a um tempo de tudo e de todos.”

Castas estrelas! é assim que lhes chama Otelo, o terrível, e Tristram Shandy, o jovial. Esses extremos do coração e do espírito estão de acordo num pontoas estrelas são castas.”

O convite era poético, mas só o convite. Rubião ia devorando a moça com olhos de fogo e segurava-lhe uma das mãos para que ela não fugisse. Nem os olhos nem o gesto tinham poesia nenhuma. (…) pediu-lhe pela alma da mãe dele, que devia estar no céu… Rubião não sabia do céu nem da mãe, nem de nada. Que era mãe? que era céu? parecia dizer a cara dele.”

A Côrte é o diabo; apanha-se uma paixão como se apanha uma constipação; basta uma fresta de ar, fica-se perdido.”

Durou muito tempo essa explosão de raiva interior,-perto de vinte minutos; mas a alma cansou, e tornou a si. A imaginação não podia mais, e a realidade próxima atraiu-lhe a vista.”

Onde li eu que uma tradição antiga fazia esperar a uma virgem de Israel, durante certa noite do ano, a concepção divina? Seja onde for, comparemo-la à desta outra, que só difere daquela em não ter noite fixa, mas todas, todas, todas…”

Crede-me: há tiranos de intenção. Quem sabe? Na alma desta senhora passou agora um tênue fio de Calígula…”

Sei que é honrado, que trabalha muito; o diabo da mulher é que fez mal em meter-se de permeio, com os lindos olhos e a figura… Que admirável figura, meu pai do céu! Hoje então estava divina.”

morava em casa de um amigo, que começava a tratá-lo como hóspede de três dias, e ele já o era de quatro semanas. Dizem que os de três dias cheiram mal; muito antes disso cheiram mal os defuntos, ao menos nestes climas quentes… Certo é que o nosso Rubião, singelo como um bom mineiro, mas desconfiado como um paulista, ia cheio de cuidados, pensando em retirar-se quanto antes.”

Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em vinte minutos está tudo findo! – Senhor, vamos tratar de outros negócios! E o nosso homem fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso.”

Vai senão quando, ocorreu-lhe que os dous Quincas Borba podiam ser a mesma criatura, por efeito da entrada da alma do defunto no corpo do cachorro, menos a purgar os seus pecados que a vigiar o dono. Foi uma preta de São João d’EI-Rei que lhe meteu, em criança, essa idéia de transmigração. Dizia ela que a alma cheia de pecados ia para o corpo de um bruto; chegou a jurar que conhecera um escrivão que acabou feito gambá…”

Nunca, entretanto, lhe passou pela cabeça que o amigo chegasse a declarar amor a alguém, menos ainda a Sofia, se é que era amor deveras; podia ser gracejo de intimidade. Rubião olhava para ela muita vez, é certo; parece também que Sofia, em algumas ocasiões, pagava os olhares com outros… Concessões de moça bonita! Mas, enfim, contanto que lhe ficassem os olhos, podiam ir alguns raios deles. Não havia de ter ciúmes do nervo óptico, ia pensando o marido.”

É assim que as moças falam aos quinze anos; é assim que falam os tolos em todos os tempos, e os poetas também; mas ele nem é moça nem poeta.”

Os deuses de Homero – e mais eram deuses – debatiam uma vez no Olimpo, gravemente, e até furiosamente. A orgulhosa Juno, ciosa dos colóquios de Tétis e Júpiter em favor de Aquiles, interrompe o filho de Saturno. Júpiter troveja e ameaça; a esposa treme de cólera. Os outros gemem e suspiram. Mas quando Vulcano pega da urna de néctar e vai coxeando servir a todos, rompe no Olimpo uma enorme gargalhada inextinguível. Por quê? Senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro.

Às vezes, nem é preciso que ele caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio da paixão mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara, leve que seja – um nada.”

Pôs o caso à sorte. Se o primeiro carro que passasse viesse da direita, iria; se viesse da esquerda, não. E deixou-se estar na sala, no pouf central, olhando. Veio logo um tílburi da esquerda. Estava dito; não ia a Santa Teresa. Mas aqui a consciência reagiu; queria os próprios termos da proposta: um carro. Tílburi não era carro. Devia ser o que vulgarmente se chama carro, uma caleça inteira ou meia, ou ainda uma vitória. Daí a pouco vieram chegando da direita muitas caleças, que voltavam de um enterro. Foi.”

Nunca a intimidade do casal lhe excitara os ódios contra o legítimo senhor. E lá iam meses e meses, sem alteração do sentimento, nem morte da esperança. Mas a possibilidade de um rival de fora veio atordoá-lo; aqui é que o ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue.”

reconheceu que a emenda era pior que o soneto, e que há bonitos sonetos mentirosos.”

como o espectador que se regala das paixões de Otelo, e sai do teatro com as mãos limpas da morte de Desdêmona.”

Seria singular que esta mulher, que não tinha amor àquele homem, não quisesse dá-lo de noivo à prima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo e senhor. Inventou o ciúme de Otelo e o do cavaleiro Desgrieux, podia inventar este outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir.”

Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre. O gato, que nunca leu Kant, talvez um animal metafísico.”

Aquelas cenas da corte de França, inventadas pelo maravilhoso. Dumas, e os seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, metidos em estufas ricas, todos eles com palavras mui compostas, polidas, altivas ou graciosas, faziam-lhe passar o tempo às carreiras. Quase sempre, acabava com o livro caído e os olhos no ar, pensando.”

Que misterioso Próspero transformava assim uma ilha banal em mascarada sublime? (…) As palavras seriam as mesmas da comédia; a ilha é que era outra, a ilha e a mascarada.”

Desde uma semana que não ia à Praia do Flamengo, por haver Sofia entrado em um dos seus períodos de sequidão.”

MAS NÃO HÁ SERENIDADE moral que corte uma polegada sequer às abas do tempo, quando a pessoa não tem maneira de o fazer mais curto. Ao contrário, a ânsia de ir ao Flamengo, à noite, vinha tornar as horas mais arrastadas.”

Oh! precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigas mortas, para compensá-las. Essa reflexão é do leitor. Do Rubião não pode ser.”

Ela, para não estar vadia, ia cosendo uns folhos; e, quando a conversação fazia pausa, Rubião era pouco para comer-lhe as mãos ágeis, que pareciam brincar com a agulha.”

-Não leu a notícia daquela epidemia numa cidade das Alagoas?

Contou-lhe haver ficado tão penalizada, que resolveu logo organizar uma comissão de senhoras, para pedir esmolas. A morte da tia interrompeu os primeiros passos; mas ia continuar, passada a missa do sétimo dia. E perguntou que lhe parecia.

– Parece-me bem. Não há homens na comissão?

-Há só senhoras. Os homens apenas dão dinheiro, concluiu rindo.”

juro-lhe que estou disposto a gastar trezentos, oitocentos, mil contos, dous mil, trinta mil contos, se tanto for preciso para estrangular o infame…”

Em geral, não podia suportar as refeições solitárias, estava tão afeito à linguagem dos amigos, às observações, às graças, não menos que aos respeitos e considerações, que comer só era o mesmo que não comer nada. Agora, porém, era como um Saul que precisasse de algum Davi, para expelir o espírito maligno que se metera nele. Já queria mal ao portador da carta, porque a deixara cair”

Davi apareceu enfim, entre o queijo e o café, na pessoa do Dr. Camacho, que voltara de Vassouras, na véspera, à noite.”

“ – (…) Demais, o senhor é a melhor solução da divergência.

– Divergência?

– Sim, o Dr. Hermenegildo, de Catas-Altas, e o Coronel Romualdo; dizem que ambos, em caso de vaga, querem apresentar-se; é dividir os votos…”

Uns biltres! Ah! meu caro Rubião, isto de política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das idéias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão. . .”

Em política, não se perdoa nem se esquece nada. Quem fez uma, paga; creia que a vingança é um prazer”

Os anátemas brotavam-lhe como da boca de Isaías, as palmas do triunfo verdejavam-lhe nas mãos. Cada gesto parecia um princípio. Quando abria os braços, ferindo o ar, era como se desdobrasse um programa inteiro.”

CAPÍTULO CVI

…OU, MAIS PROPRIAMENTE, capítulo em que o leitor, desorientado, não pode combinar as tristezas de Sofia com a anedota do cocheiro.”

Sim, desgraçado; adverte bem que era inverossímil que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi diante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia, – ruas transversais, onde o tílburi podia ficar esperando.”

Nem todos os cocheiros são imaginativos. Já é muito concertar farrapos da realidade.”

DURANTE alguns meses, Rubião deixou de ir ao Flamengo. Não foi resolução fácil de cumprir. Custou-lhe muita hesitação, muito arrependimento; mais de uma vez chegou a sair com o propósito de visitar Sofia e pedir-lhe perdão. De quê? Não sabia; mas queria ser perdoado. Em todas as tentativas desse gênero, a lembrança de Carlos Maria fazia-o recuar. De certo ponto em diante, foi o próprio lapso de tempo que o tolheu; era esquisito aparecer lá um dia. como um triste filho pródigo, unicamente para suplicar o calor dos belos olhos da dona da casa. Ia ao armazém, visitar o Palha; este, ao fim de cinco semanas, reprochou-lhe a ausência; e, passados dous meses, perguntou-lhe se era formal propósito.

– Tenho tido muito que fazer, acudiu Rubião; esses negócios políticos tomam todo o tempo a uma pessoa. Vou lá domingo.”

Palha era agora o depositário dos títulos de Rubião (ações, apólices, escrituras) que estavam fechados na burra do armazém. Cobrava-lhe os juros, os dividendos e os aluguéis de três casas, que lhe fizera comprar algum tempo antes, a vil preço, e que lhe rendiam muito.”

CAPÍTULO CXII

AQUI É QUE EU QUISERA ter dado a este livro o método de tantos outros – velhos todos –em que a matéria do capítulo era posta no sumário: ‘De como aconteceu isto assim, e mais assim.’ Aí está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros gloriosos. Das línguas estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, cap. I, lede este título ‘Contendo cinco folhas de papel’. É claro, é simples, não engana a ninguém; são 5 folhas, mais nada, quem não quer não lê, e quem quer lê, para os últimos é que o autor concluiu obsequiosamente: ‘E agora, sem mais prefácio, vamos ao seguinte capítulo’.”

CAPÍTULO CXIV

AO CONTRÁRIO, não sei se o capítulo que se segue poderia estar todo no título.”

Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe produziu impressão, nem o ar cerimonioso, nem o luxo da mesa; nada disso o deslumbrou. O mesmo cuidado particular de Sofia, embora lhe fosse agradável, não o tonteava, como outrora. E da parte dela era mais apurada a atenção, e os olhos excepcionalmente meigos e serviçais.”

A HISTÓRIA do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias.”

Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, um triste molambo de mulher, chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.

– É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.

– Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?

O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! – Chamava-se Chagas.”

Conheço uma moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Côrte.”

Carlos Maria amava a conversação das mulheres, tanto quanto, em geral, aborrecia a dos homens. Achava os homens declamadores, grosseiros, cansativos, pesados, frívolos, chulos, triviais. As mulheres, ao contrário, não eram grosseiras, nem declamadoras, nem pesadas. A vaidade nelas ficava bem, e alguns defeitos não lhes iam mal”

Não, queridinha, isto de adorar a um homem que não faz caso da gente, é poesia. Deixe-se de poesia. Olhe que só você perde no negócio, porque ele casa com outra, os anos passam, a paixão monta na garupa deles, e um dia, quando você menos pensar, acorda sem amor nem marido. E quem é esse bárbaro?”

Duas blasfêmias, menina; a primeira é que não se deve amar a ninguém como a Deus, a segunda é que um marido, ainda sendo mau, sempre é melhor que o melhor dos sonhos.”

Ninguém finge as mãos frias; devia padecer deveras.”

São assim os homens; as águas que passam, e os ventos que rugem não são outra cousa.”

Há delitos virtuais, que dormem. Há óperas remissas na cabeça de um maestro, que só esperam os primeiros compassos da inspiração.”

Carlos Maria aborrecia o papagaio, como aborrecia o macaco, duas contrafações da pessoa humana, dizia ele.”

A carreira daquele homem era cada vez mais próspera e vistosa. O negócio corria-lhe largo; um dos motivos da separação era justamente não ter que dividir com outros os lucros futuros. Palha, além do mais, possuía ações de toda a parte, apólices de ouro do empréstimo Itaboraí, e fizera uns dous fornecimentos para a guerra, de sociedade com um poderoso, nos quais ganhou muito. Já trazia apalavrado um arquiteto para lhe construir um palacete. Vagamente pensava em baronia.”

Ah! vaidades deste mundo! Pois não vi outro dia a mulher dele, num coupé, com outra? A Sofia de coupé! Fingiu que me não via, mas arranjou os olhos de modo que percebesse se eu a via, se a admirava. Vaidades desta vida! Quem nunca comeu azeite, quando come se lambuza.”

Tinham-lhe feito uma lenda. Diziam-no discípulo de um grande filósofo, que lhe legara imensos bens – um, três, cinco mil contos. Estranhavam alguns que ele não tratasse nunca de filosofia, mas a lenda explicava esse silêncio pelo próprio método filosófico do mestre, que consistia em ensinar somente aos homens de boa vontade. Onde estavam esses discípulos? Iam à casa dele, todos os dias, alguns duas vezes, de manhã e de tarde; e assim ficavam definidos os comensais. Não seriam discípulos, mas eram de boa vontade Roíam fome, à espera, e ouviam calados e risonhos os discursos do anfitrião. Entre os antigos e os novos, houve tal ou qual rivalidade que os primeiros acentuaram bem, mostrando maior intimidade dando ordens aos criados, pedindo charutos, indo ao interior, assobiando, etc. Mas o costume os fez suportáveis entre si, e todos acabaram na doce e comum confissão das qualidades do dono da casa. Ao cabo de algum tempo, também os novos lhe deviam dinheiro, ou em espécie, ou em fiança no alfaiate, ou endosso de letras, que ele pagava às escondidas, para não vexar os devedores.”

FAZER UM CAPÍTULO só para dizer que, a princípio, os convivas, ausente o Rubião, fumavam os próprios charutos, depois do jantar, parecerá frívolo aos frívolos; mas os considerados dirão que algum interesse haverá nesta circunstância em aparência mínima.”

RUBIÃO protegia largamente as letras. Livros que lhe eram dedicados, entravam para o prelo com a garantia de duzentos e trezentos exemplares. Tinha diplomas e diplomas de sociedades literárias. coreografias, pias, e era juntamente sócio de uma Congregação Católica e de um Grêmio Protestante, não se tendo lembrado de um quando lhe falaram do outro; o que fazia era pagar regularmente as mensalidades de ambos. Assinava jornais sem os ler. Um dia, ao pagar o semestre de um, que lhe haviam mandado, é que soube, pelo cobrador, que era do partido do governo; mandou o cobrador ao diabo.”

Palha era então as duas cousas; casmurro, a princípio frio, quase desdenhoso; mas, ou a reflexão, ou o impulso inconsciente restituía ao nosso homem a animação habitual, e com ela, segundo o momento, a demasia e o estrépito. Sofia é que, em verdade, corrigia tudo. Observava, imitava. Necessidade e vocação fizeram-lhe adquirir, aos poucos, o que não trouxera do nascimento nem da fortuna. Ao demais, estava naquela idade média em que as mulheres inspiram igual confiança às sinhazinhas de vinte e às sinhás de quarenta”

Para as rosas, escreveu alguém, o jardineiro é eterno. E que melhor maneira de ferir o eterno que mofar das suas iras? Eu passo, tu ficas; mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e a donzelas, fui letra de amor, ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio arbusto, e todas as mãos, e todos os olhos me trataram e me viram com admiração e afeto. Tu não, ó eterno; tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu afliges-te! a tua eternidade não vale um só dos meus minutos.”

Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de idéias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as cousas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra. A expressão ‘Conversar com os seus botões’, parecendo simples metáfora, é frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre as nossas moções.”

FICANDO SÓ, Rubião atirou-se a uma poltrona, e viu passar muitas cousas suntuosas. Estava em Biarritz ou Compiègne, não se sabe bem; Compiègne, parece. Governou um grande Estado, ouviu ministros e embaixadores, dançou, jantou, e assim outras ações narradas em correspondências de jornais, que ele lera e lhe ficaram de memória. Nem os ganidos de Quincas Borba logravam espertá-lo. Estava longe e alto. Compiègne era no caminho da lua. Em marcha para a lua!”

Para que há de haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, a gente falava à vontade, e iria ao fim da Terra.”

ESPALHOU-SE a nova da mania de Rubião. Alguns, não o encontrando nas horas do delírio, faziam experiências, a ver se era verdadeiro o boato; encaminhavam a conversação para os negócios de França do imperador. Rubião resvalava ao abismo, e convencia-os.”

A queda de Napoleão III foi para ele a captura do rei Guilherme, a revolução de 4 de setembro, um banquete de bonapartistas.

Em casa, os amigos do jantar não se metiam a dissuadi-lo. Também não confirmavam nada, por vergonha uns dos outros; sorriam e desconversavam. Todos, entretanto, tinham as suas patentes militares, o Marechal Torres, o Marechal Pio, o Marechal Ribeiro, e acudiam pelo título. Rubião via-os fardados; ordenava um reconhecimento, um ataque, e não era necessário que eles saíssem a obedecer; o cérebro do anfitrião cumpria tudo. Quando Rubião deixava o campo de batalha para tornar à mesa, esta era outra. Já sem prataria, quase sem porcelana nem cristais, ainda assim aparecia aos olhos de Rubião regiamente esplêndida.”

Toda a mais casa, gasta pelo tempo e pela incúria, tapetes desbotados, mobílias truncadas e descompostas, cortinas enxovalhadas, nada tinha o seu atual aspecto, mas outro, lustroso e magnífico. E a linguagem era também diversa, rotunda e copiosa, e assim os pensamentos, alguns extraordinários, como os do finado amigo Quincas Borba, teorias que ele não entendera, quando lhas ouvira outrora, em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma, às vezes, empregando as mesmas frases do filósofo. Como explicar essa repetição do obscuro, esse conhecimento do inextricável, quando os pensamentos e as palavras pareciam ter ido com os ventos de outros dias?”

a doença, dando-lhe audácia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normais. Não sorria, como o Palha, quando Rubião subia ao trono ou comandava um exército. Crendo-se autora do mal, perdoava-lho; a idéia de ter sido amada até à loucura, sagrava-lhe o homem.”

Mas, não há riqueza inesgotável, quando se entra pelo capital; foi o que ele fez. Hoje creio que tenha pouco…”

O sol nem sempre é oficial de boas idéias; mas, ao menos, permite sair, e a troca do espetáculo muda as sensações”

um triste bacilo destrói o mais robusto organismo.”

Rubião precisava de um pedaço de corda que o atasse à realidade porque o espírito sentia-se outra vez presa da vertigem. Entretanto, falou com tal acerto e propriedade, que o major o achou em pleno juízo, e disse-lhe:

– Sabe que tenho uma grande notícia que lhe dar?

– Vamos a ela.

– Há de ser quando chegarmos.

Chegaram. Era uma casa assobradada; D. Tonica veio abrir-lhes a cancela. Trazia um vestido novo e brincos.

– Olhe bem para ela, disse o major pegando na filha pelo queixo.

D. Tonica recuou envergonhada.

– Estou olhando, respondeu Rubião.

– Não se vê logo que é uma pessoa que vai casar?

– Ah! parabéns!

– É verdade, vai casar. Custou, mas acertou. Achou por aí um noivo, que a adora, como todos eles”

Todas as noivas têm quinze anos.”

RUBIÃO foi recolhido a uma casa de saúde. Palha esquecera a obrigação que Sofia lhe impôs, e Sofia não se lembrou mais da promessa feita à rio-grandense. Cuidavam ambos de outra casa, um palacete em Botafogo, cuja reconstrução estava prestes a acabar, e que eles queriam inaugurar, no inverno, quando as câmaras trabalhassem, e toda a gente houvesse descido de Petrópolis. Mas agora a promessa foi cumprida; Rubião deu entrada no estabelecimento, onde ficou ocupando uma sala e um quarto especiais, recomendado pelo Dr. Falcão e pelo Palha.”

LÁ FICOU O HOMEM. Quincas Borba tentara entrar na carruagem que levou o amigo, e porfiou em acompanhá-la, correndo; foi necessária toda a força do criado para agarrá-lo, contê-lo e trancá-lo em casa. Era a mesma situação de Barbacena; mas a vida, meu rico senhor, compõe-se rigorosamente de quatro ou cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos. Rubião pediu instante mente que lhe mandassem o cão. D. Fernanda, alcançado o consentimento do diretor, cuidou de satisfazer o desejo do doente. Quis escrever a Sofia, mas foi ela própria ao Flamengo.”

– Ele foi muito rico? perguntou D. Fernanda a Sofia.

– Tinha alguma cousa, respondeu esta, quando chegou de Minas; mas parece que estragou tudo. Olhe, levante o vestido que o chão parece que não se varre há um século.”

A trivialidade daquilo tudo não lhe dizia nada ao espírito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a suportar o tempo. De si para si achava a companheira singularmente romântica ou afetada. ‘Que bobagem!’ ia pensando, sem desconcertar o sorriso aprovador com que acudia a todas as observações de D. Fernanda.”

Quincas Borba, respondeu o criado, rindo com a voz arrastada. Tem nome de gente. Eh! Quincas Borba! vai lá! a senhora está chamando.”

<CONTO RESTITUÍ-LO à razão no fim de seis ou oito meses. Vai muito bem.>

D. Fernanda mandou a Sofia esta resposta do diretor da casa de saúde, e convidou-a a irem ver o enfermo, se achasse que não lhe ficava mal. <Que mal pode haver?> respondeu Sofia em um bilhete. <Mas eu é que não teria ânimo de vê-lo; foi tão nosso amigo, que não sei se poderia suportar a vista e a conversação do pobre homem. Mostrei a carta a Cristiano, que me declarou ter liquidado os bens do Sr. Rubião: apurou 3 contos e 200.>”

…a morte do noivo de D. Tonica, três dias antes de casar. D. Tonica espremeu as últimas lágrimas, umas de amizade, outras de desesperança, e ficou com os olhos tão vermelhos, que pareciam doentes.”

D. Fernanda leu-a; era do diretor da casa de saúde; noticiava que Rubião, desde 3 dias, desaparecera, não tendo podido ser encontrado por mais esforços que houvessem empregado a polícia e ele. Tanto mais me espanta esta fuga, concluía a carta, quanto que as melhoras eram grandes, e podia contar que, em dous meses, o poria inteiramente bom.”

COMO ACHAR, porém, o nosso Rubião nem o cachorro, se ambos haviam partido para Barbacena? Oito dias antes, Rubião escrevera ao Palha que o procurasse; este acudiu à casa de saúde, viu que ele raciocinava claramente, sem a menor sombra de delírio.”

VAGARAM sem destino. O estômago de Rubião interrogava, exclamava, intimava; por fortuna, o delírio vinha enganar a necessidade com os seus banquetes das Tulherias. Quincas Borba é que não tinha igual recurso. E toca a andar acima e abaixo. Rubião, de quando em quando, sentava-se no lajedo, e o cão trepava-lhe às pernas, para dormir a fome; achava as calcas molhadas, e descia; mas tornava logo a subir, tão frio era o ar da noite, já noite alta, já noite morta. Rubião passava-lhe as mãos por cima, resmungando algumas palavras magras.”

– Ao vencedor, as batatas! – bradava Rubião aos curiosos. Aqui estou imperador! Ao vencedor, as batatas!

Esta palavra obscura e incompleta era repetida na rua, examinada, sem que lhe dessem com o sentido. Alguns antigos desafetos do Rubião iam entrando, sem cerimônia, para gozá-lo melhor; e diziam à comadre que não lhe convinha ficar com um doudo em casa, era perigoso; devia mandá-lo para a cadeia, até que a autoridade o remetesse para outra parte. Pessoa mais compassiva lembrou a conveniência de chamar o doutor.”

Capturara o rei da Prússia, não sabendo ainda se o mandaria fuzilar ou não; era certo, porém, que exigiria uma indenização pecuniária enorme – 5 bilhões de francos.”

CAPÍTULO CCI

QUERIA DIZER aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro, e por que antes um que outro – questão prenhe de questões, que nos levariam longe… Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.”

O CORTIÇO – Aluísio de Azevedo

26/07/16 a 16/09/16

Quando deram fé estavam amigados.

Ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português [João Romão], porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.”

tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a Caixa Econômica e daí então para o banco.”

E o fato é que aquelas 3 casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de <São Romão>.”

português rico que já não tem pátria na Europa.”

Miranda, Estela e Zulmirinha. // Miolo do pão duro e velho

P. 6: “Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia 13 anos e durante esse tempo dera ao marido toda a sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o 2º ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério.”

“Uma bela noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus 35 anos, sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. Era tarde já e não havia em casa alguma criada que lhe pudesse valer. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta idéia com escrupulosa repugnância. Continuava a odiá-la. Entretanto este mesmo fato de obrigação em que ele se colocou de não servir-se dela, a responsabilidade de desprezá-la, como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fruto proibido. Afinal, coisa singular, posto que moralmente nada diminuísse a sua repugnância pela perjura, foi ter ao quarto dela.

A mulher dormia a sono solto. Miranda entrou de pé ante pé e aproximou-se da cama. <Devia voltar!… pensou. Não lhe ficava bem aquilo!…> Mas o sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a contemplá-la no seu desejo.

Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda repuxando com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga nudez estofada e branca. O Miranda não pôde resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se, tonando [trovejando] logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins [?], de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo.

Ah! ela contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao desejo.

Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e arrependimento. Não teve ânimo de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado. (…) Jurou mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca mais, praticar semelhante loucura.

Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto da mulher.

Estela recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo que não acordava; na ocasião, porém, em que ele se apoderava dela febrilmente, a leviana, sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo sopeava. O pobre-diabo desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se, brusco, num estremunhamento de sonâmbulo acordado com violência.

A mulher percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir; passou-lhe rápido as pernas por cima e, grudando-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos.

Não se falaram.

Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada; descobriu nela o capitoso [cabeçudo, irresistível] encanto com que nos embebedam as cortesãs amestradas na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro hálito; outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio.

E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa. Depois, um arranco de corpo inteiro, com um soluço, gutural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono abandono de pernas e braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.”

O que for soará!”

A senhora está moça, está na força dos anos; seu marido não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah! isto é o mundo, e, se é torto, não fomos nós que o fizemos torto!… Até certa idade todos temos dentro um bichinho-carpinteiro, que é preciso matar, antes que ele nos mate!”

Meu rico amiguinho, quando uma mulher já passou dos 30 e pilha a jeito um rapazito da sua idade, é como se descobrisse ouro em pó! (…) quanto mais escovar-lhe você a mulher, melhor ela ficará de gênio, e por conseguinte melhor será para o pobre homem, coitado! (…) escove-a, escove-a! que a porá macia que nem veludo! (…) Vá passando! menos as de casa aberta, que isso é perigoso por causa das moléstias; nem tampouco donzelas! Não se meta com a Zulmira! E creia que lhe falo assim, porque sou seu amigo, porque o acho simpático, porque o acho bonito!

E acarinhou-o tão vivamente desta vez, que o estudante, fugindo-lhe das mãos, afastou-se com um gesto de repugnância e desprezo”

o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.”

escapando como enguia por entre os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar.”

E que deixassem lá falar o doutor, entendia que não era decente, nem tinha jeito, dar homem a uma moça que ainda não fôra visitada pelas regras!”

Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado!”

a respiração forte e tranqüila de animal sadio num feliz e pletórico resfolegar de besta cansada.”

Quem sabe se o pobre homem não levou a breca” = bateu as botas

o que lhe digo é que aquele n. 35 tem mau agouro!”

Paixões da Rita! Um por ano!”

Era mau insultar, porque palavra puxa palavra”

surgiu do seu buraco, que nem jabuti quando vê chuva.”

O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar.”

Outras raparigas dançaram, mas o português só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fôra cair nos braços do amigo.”

notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois de 7 horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé.”

Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma friagem. Vou-lhe fazer uma xícara de café bem forte pra você beber com um gole de parati e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto pra outra!”

inquieta, que nem um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções.”

Vocês também, seus portugueses, por qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora!”

Vá à pata que o pôs!”

Leocádia era uma excelente rapariga, incapaz de tamanha safadagem!”

Quem parira Mateus que o embalasse!”

Jerônimo abrasileirou-se.”

Não te queria falar, mas… sabes? deves tomar banho todos dos dias e… mudar de roupa… Isto aqui não é como lá. Isto aqui sua-se muito! É preciso trazer o corpo sempre lavado, que senão cheira-se mal!… Tem paciência.”

Ora, o quê! O mundo é largo! Há lugar pro gordo e há lugar pro magro! Bem tolo é quem se mata!”

Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite… Agora estão pagando muito bem às amas! A Augusta Carne-Mole, nesta última barriga, tomou conta de um pequeno aí na casa de uma família de tratamento, que lhe dava 70 mil-réis por mês!… E muito bom passadio!… Sua garrafa de vinho todos os dias!… Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho!”

E, quando a pilhava sozinha, fazia-lhe sinais brejeiros, piscava-lhe o olho, batendo com a mão direita aberta sobre a mão esquerda fechada.”

Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos para sempre!”

arrulhar choroso de pomba no cio”

se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!”

Jerônimo era a força tranqüila, o pulso de chumbo. O outro, agilidade de maracajá [jaguatirica]: era a força nervosa; Um, sólido e resistente; o outro, ligeiro e destemido, mas ambos corajosos.”

tinha levado um troca-queixos do marido”

Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher”

A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores aclamavam-no já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira mergulhou, num relance, até às canelas do adversário e surgiu-lhe rente dos pés, grudado nele, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada.”

Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou-os.” “A polícia era o grande terror daquela gente, porque sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.”

João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros.” “De que tinha certeza de que as praças lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquilo lá fosse roupa de francês!” “Como de costume, o espírito de coletividade, que unia aquela gente em círculo de ferro impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia.” “Lá no cortiço de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, nenhum deles e muito menos a vítima, seria capaz de apontar o criminoso”

Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa, a princípio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, até formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde largos tinhorões rubros se agitavam lentamente. (…) mal se adiantava, [o pássaro de fogo] fugia logo, irrequiet[o], desvairad[o] de volúpia. (…) E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente. (…) Um sino, ao longe, batia alegre as 12 badaladas do meio-dia.”

É mais doida do que ruim!”

Mais confuso que analfabetos se correspondendo por escrito.

Águas passadas não movem moinho!”

Porque, só depois que o Sol lhe abençoou o ventre, depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrocharia inesperadamente, atingindo de súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Como que naquele instante o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos de suas paixões.” “Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e ludibrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?…” “Uma aluvião (sic) de cenas, que ela jamais tentaria explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes.”

Mais vale um gosto do que 4 vinténs!”

Aos primeiros passos que dera sobre o tapete, onde seus grandes pés, afeitos por toda a vida à independência do chinelo e do tamanco, se destacavam como um par de tartarugas, sentiu logo o suor dos grandes apuros inundar-lhe o corpo e correr-lhe em bagada pela fronte e pelo pescoço, nem que se o desgraçado acabasse de vencer naquele instante uma légua de carreira ao sol.” “A cerveja fê-lo suar ainda mais e quando apareceram na sala dona Estela e a filha, o pobre-diabo chegava a causar dó de tão atrapalhado que se via. Por duas vezes escorregou, e numa delas foi apoiar-se a uma cadeira que tinha rodízios; a cadeira afastou-se e ele quase foi ao chão.”

E tinha de estirar-se ali, ao lado daquela preta fedorenta à cozinha e bodum de peixe! Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera à Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que modo se veria livre daquele trambolho?”

É mesmo vício de Portugal: comendo e dizendo mal!”

Confio nos meus dentes, e esses mesmos me mordem a língua!”

seus olhos o acarinhavam, cintilantes de impaciência do antegozo daquele primeiro enlace.” “uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno.” “como a criança que, já dormindo, afaga ainda as tetas em que matou ao mesmo tempo a fome e a sede com que veio ao mundo.”

um diabo de uma mulata assanhada, que tão depressa era de Pedro como de Paulo!”

E as palavras <galego> e <cabra> cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas.”

As melancolias do crepúsculo, que é a saudade da terra quando o Sol se ausenta”

15 contos, 400 e tantos mil-réis!…”

O vendeiro, com efeito, impressionado com a primeira tentativa de incêndio, tratara de segurar todas as suas propriedades; e, com tamanha inspiração o fez que, agora, em vez de lhe trazer o fogo prejuízo, até lhe deixara lucros.”

Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente!…”

João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, de calças brancas, colete e corrente de relógio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na folga das ocupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hotéis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos cafés do comércio.”

Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem tão importante e tão digno.”

Matilda maltida maldita

Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara.” “E, no entanto, adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizavam, dessas que morrem de ciúmes, mas que também são capazes de matar-se para poupar ao seu ídolo a vergonha do seu amor.”

Todo o dono, nos momentos de bom humor, afaga o seu cão…”

Como sempre, era a primeira a erguer-se e a última a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo; sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz.”

Estava completamente mudado. Rita apagara-lhe a última réstia das recordações da pátria; secou o calor dos seus lábios grossos e vermelhos a derradeira lágrima de saudade, que o desterrado lançou do coração com o extremo arpejo que a sua guitarra suspirou!

A guitarra! substituiu-a ela pelo violão baiano, e deu-lhe a ele uma rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com as suas cantigas do Norte, tristes, deleitosas, em que há caboclinhos curupiras, que no sertão vêm pitar à beira das estradas em noites de lua clara, e querem que todo o viajante que vai passando lhes ceda fumo e cachaça, sem o que, ai deles! o curupira transforma-os em bicho do mato.”

O português abrasileirou-se para sempre, fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fôra-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir e ser possuído só por ela, e mais ninguém.”

A princípio, ainda a pobre de Cristo tentou resistir com coragem àquela viuvez pior que essa outra, em que há, para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa amada nunca mais terá olhos para cobiçar mulheres, nem boca para pedir amores.” “e continuando a viver somente porque a vida era teimosa e não queria deixá-la ir apodrecer lá embaixo, por sua vez.”

Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada nos ouvidos e o estômago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati. Ela aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetiu a dose; deu-se bem com a perturbação em que a punha o álcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares.”

Ora adeus, só se perdia quem mesmo já nascera para a perdição!”

Ele, receoso de contrariá-la e quebrar o ovo da sua paz, até aí tão completo com respeito à baiana, subordinava-se calado e afetando até satisfação; no íntimo, o infeliz sofria deveras. A lembrança constante da filha e da mulher apoquentava-o com pontas de remorso, que dia a dia alastravam na sua consciência, à proporção que esta ia acordando daquela cegueira.”

tanto que ultimamente, depois que a criatura pediu a um padre um pouco de água benta e benzeu-se com esta em certos lugares, o fogo desaparecera logo, e ela vivia direita e séria que não dava que falar a ninguém!”

começavam a vir estudantes pobres, com os seus chapéus desabados, o paletó fouveiro, uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do buço, e as algibeiras muito cheias, mas só de versos e jornais.”

O mundo é grande! Para um pé doente há sempre um chinelo velho!”

e a mobília toda era já de casados, porque o esperto não estava para comprar móveis duas vezes.”

era ela a sua cúmplice e era todo seu mal – devia, pois, extinguir-se!”

aquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.

Mas e Bertoleza?…”

Ora já se viu como arranjei semelhante entalação?… Isso contado não se acredita!”

Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos!”

Pombinha, que se atirara ao mundo e vivia agora em companhia de Léonie[, a prostituta].”

um belo dia o desgraçado teve a dura certeza de que era traído pela esposa, não mais com o poeta libertino, mas com um artista dramático que muitas vezes lhe arrancara, a ele, sinceras lágrimas de comoção, declamando no teatro em honra da moral triunfante e estigmatizando o adultério com a retórica mais veemente e indignada.”

Por cima delas duas passara uma geração inteira de devassos. Pombinha, só com 3 meses de cama franca, fizera-se tão perfeita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue”

A cadeia continuava e continuará interminavelmente, o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.”

o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma cama”


GLOSSÁRIO

a trouxe-mouxe: pronuncia-se trouche-mouche. Em confusão, a esmo, caòticamente.

ama-seca (auto-explicativo)

azoinar: atordoar

cacaréu: cacareco

calaçaria: preguiça

caloji: quarto escuro para entrevistas amorosas

capadócio: charlatão; vadio.

capilé: xarope vegetal

cocada: doce; cabeçada.

cocote: meretriz

comezaina: refeição abundante

dobadoura: fazimento de intrigas

embigada: porrada com o umbigo

enfrenesiar/enfrenisar: colocar em frenesi

entrudo: festa; 3 dias que precedem a Quaresma; folia carnavalesca; pessoa vestida como bufão; momo/obeso [só em Portugal].

escopro: cinzel; cortador de ossos.

espojar: esparramar; deitar-se e rolar-se no chão.

frege: aderna; briga; “estabelecimento modesto, popular e geralmente pouco asseado, que vende bebidas e refeições.”

gira: passear; maluco; gíria.

iroso: irado

jirau: “1. Espécie de grade de varas, sobre esteios fixados no chão, que serve de cama nas casas pobres e também de grelha para expor ao sol quaisquer objetos; 2. Esteira suspensa do teto a certa altura, para nela se guardarem queijos e outros gêneros ao abrigo dos ratos; 3. Estrado onde se sentam os passageiros que vão numa jangada.” Significados antitéticos!

mossa: mal; dano.

minhoto: peça de pau que segura a madeira rachada para que não se fenda mais; milhafre (o “quase-abutre” do livro de Freud sobre Leonardo da Vinci).

parati: cachaça; peixe.

pernóstico: prepotente

podengo: cachorro de caçar coelhos

refle: bacamarte

safardana/bigorrilhas: indivíduo banal

sarilho: movimento rotativo; briga; confusão; roda-viva; engenho para tirar água.

serrazinar: ser maçante; insistir em monotema.

urbano: [Brasil, Informal] Agente de polícia

ESCRAVA ISAURA – Guimarães, B.

18/05/16 a 25/06/16


Ela é branca!

Parnasiano autor: “O colo donoso do mais puro lavor sustenta com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos”

És formosa, e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano.”

A senzala nem por isso deixa de ser o que é.”

As velhas damas dão para rezar, outras para ralhar desde a manhã até à noite; outras para lavar cachorrinhos ou para criar pintos; esta deu para criar mulatinhas princesas.”

já bastante velho, enfermo e cansado, queria passar tranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações, para o que bastavam-lhe com sobejidão as rendas que para si reservara.”

Sua esposa, porém, preferiu ficar em companhia do filho, o que foi muito do gosto e aprovação do marido.”

não tenho ânimo de soltar esse passarinho que o céu me deu para me consolar e tornar mais suportáveis as pesadas e compridas horas da velhice. § E também libertá-la para quê? Ela aqui é livre, mais livre do que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e se ela transviar-se por aí, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?…”

Henrique, o cunhado de Leôncio. Era ele um elegante e bonito rapaz de 20 anos, frívolo, estouvado e vaidoso, como são quase sempre todos os jovens, mormente quando lhes coube a ventura de terem nascido de um pai rico.”

Casara-se por especulação, e como sua mulher era moça e bonita, sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos prazeres sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão.”

Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava-lhe o emprego da violência. Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador.”

Se minha mãe teve o capricho de criá-la com todo o mimo e de dar-lhe uma primorosa educação, não foi decerto para abandoná-la ao mundo, não achas?…”

para a idade que tens, já estás um moralista de polpa!…”

Isaura é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão.”

Estás hoje muito alegre, minha querida –, retorquiu-lhe sorrindo o marido; – viste algum passarinho verde de bico dourado?…”

Faça-se de esquerdo!… pensa que não sei tudo?…”

Se não queres o meu amor, evita ao menos de incorrer no meu ódio.”

Vinha trazer-lhe estas froles, se bem que a senhora mesma é uma frol…” “soverana cá deste coração, e eu, menina, dou-me por feliz se puder beijar-te os pés.” “Quando vou molhar as minhas froles, estou a lembrar-me de ti com uma soidade!… ora viu-se que amor!…”

Oh! meu coração, pois querias que durasse eternamente a lua-de-mel?… isso seria horrivelmente monótono e prosaico.”

Miguel era filho de uma nobre e honrada família de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus pais, vítimas de perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar ao filho, que deixaram na cidade de 18 a 20 anos.”

Teu pai já não existe; sucumbiu anteontem subitamente, vítima de uma congestão cerebral…”

Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe tremiam nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos [inchados] e ofegantes seios que como dois trêfegos [inquietos] cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente camisa, tomá-la-íeis por um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era esta criança, que tinha o bonito nome de Rosa.”

Vocês bem sabem, que sinhô velho não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado – atrás de mim virá quem bom me fará. – Este sinhô moço Leôncio… hum!… Deus queira que me engane… quer-me parecer que vai-nos fazer ficar com saudade do tempo do sinhô velho…” “e o piraí [chicote] do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro.” “ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo, Deus te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leôncio a coisa vai tomando o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor desta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita…” “Que mal te fez a pobre Isaura, aquela pomba sem fel, que com ser o que é, bonita e civilizada como qualquer moça branca, não é capaz de fazer pouco caso de ninguém?…”

Anda lá; olha que isto não é piano, não; é acabar depressa com a tarefa pra pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar…”

Rosa havia sido de há muito amásia [concubina] de Leôncio, para quem fôra fácil conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que, porém, inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida.”

Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! – Estas e outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios. Abominado mais que o senhor cruel, que o muniu do azorrague desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença, para revoltar-se contra o algoz, que a executa.

dói-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco.” “Então a senhora quer só ouvir as finezas das moças bonitas lá na sala!… pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado”

Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação de senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só momento! Como não devia viver aflito e atribulado aquele coração! Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: três amantes, Leôncio, Belchior, e André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa. Fácil lhe fôra repelir as insinuações e insolências dos escravos e criados; mas que seria dela, quando viesse o senhor?!…”

isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem proveito algum, em contínuas palestras. Não faltam por aí tecidos de algodão para se comprar.”

Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.”

contra as cóleras e caprichos femininos não há arma mais poderosa que muito sangue-frio e pouco-caso”

Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos como a tua condição; para te satisfazer far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo de meus negros.” “Já chegaste a tão subido grau de exaltação e romantismo… isto em uma escrava não deixa de ser curioso. Eis o proveito que se tira de dar educação a tais criaturas! Bem mostras que és uma escrava, que vives de tocar piano e ler romances. Ainda bem que me prevenistes; eu saberei gelar a ebulição desse cérebro escaldado.” “Talvez ainda um dia me serás grata por ter-te impedido de matar-te a ti mesma.”

não há naquele ente nem sombra de coquetterie

Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair-se às pesquisas da polícia?”

sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários [hipocondríacos, suscetíveis], que desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra.” “Estou ardendo de impaciência por lhe ser apresentado; desejo admirá-la mais de espaço.”

Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais suportável.” “não parece uma mosca, mas sim um besouro”

Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista. §  Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos. Como porém Álvaro tinha um espírito nìmiamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador.” “Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker.” “não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado

Juno e Palas não ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da formosura.”

onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo.”

Elvira [Isaura transposta em senhora], que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade, achava-se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e cortesania, e em cada olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.”

a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras.”

desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus pés, e me sumisse em seu seio.”

a indiscrição, filha do entusiasmo”

“– Ai! triste de mim! – suspirou dentro da alma D. Elvira: – aqueles mesmos que mais me amam, tornam-se, sem o saber, os meus algozes!…”

cantar naquela ocasião era para ela o mais penoso dos sacrifícios.”

o pavão da fábula, queixando-se a Juno que, o tendo formado a mais bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e desagradável.”

seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne que se apresta a desprender os divinais gorjeios.”

Das próprias inquietações e angústias da alma soube ela tirar alento e inspiração para vencer as dificuldades da árdua situação em que se achava empenhada.”

mais de uma lágrima viu-se rolar pelas faces dos freqüentadores daquele templo dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!”

A fada de Álvaro é também uma sereia; – dizia o Dr. Geraldo a um dos cavalheiros” “É uma consumada artista… no teatro faria esquecer a Malibran, e conquistaria reputação européia.” “o terrível abatimento, que ao deixar o piano de novo se apoderara de seu espírito.”

Acham-se aí uma meia dúzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estróinas [dissipadores] e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de charuto ou um copo de champanha pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do ceticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie, alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e frivolidade da vida.”

Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que, na opinião de Lavater, é indício de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez.”


– A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?…

– Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão-do-mato?


Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância do ouro, que faz-te andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile.” “este rapaz além de ser um vil traficante, sempre foi um maníaco de primeira força.”

Isto é impagável! e vale mais que quantos bailes há no mundo. – Se todos eles tivessem um episódio assim, eu não perdia nem um. – Assim clamavam os moços entre estrondosas gargalhadas.

– Vocês zombam? – olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.”


– …esta obra imortal, que vale mais que a Ilíada de Camões…

– E que os Lusíadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa-te de preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.


– Com efeito! acrescentou outro – uma escrava assim vale a pena apreendê-la, mais pelo que vale em si, do que pelos 5 contos. Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregá-la ao seu senhor.”

Tão vil criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para expeli-lo da Academia. Cinco contos daria eu para ser escravo daquela rara formosura.”

Funesta ou propícia, a senhora será sempre a minha estrela nos caminhos da vida.”

um hino do céu ouvido entre as torturas do inferno.”

E o sangue todo lhe refluía ao coração que lhe tremia como o da pomba que sente estendida sobre o colo a garra desapiedada do gavião.”

esses excessos e abusos devem ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar doméstico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão?”

O patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e por ela abandonou Sara, sua mulher.”

A justiça é uma deusa muito volúvel e fértil em patranhas. Hoje desmanchará o que fez ontem.”

enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.”

O leitor provavelmente não terá ficado menos atônito do que ficou Álvaro, com o imprevisto aparecimento de Leôncio no Recife, e indo bater certo na casa em que se achava refugiada a sua escrava.” “A notícia de que Isaura se achava em poder de um belo e rico mancebo, que a amava loucamente, era para ele um suplício insuportável, um cancro, que lhe corroía as entranhas, e o fazia estrebuchar em ânsias de desespero, avivando-lhe cada vez mais a paixão furiosa que concebera por sua escrava.”

anexim popular – quem quer vai, quem não quer manda.”

O ciúme e a vingança não gostam de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seus desígnios.”

por uma estranha aberração, vemos a lei armando o vício, e decepando os braços à virtude.”


– Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque não quero vendê-la.

– Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade…


– Está louco, homem! – disse Leôncio amedrontado. – As leis do nosso país não permitem o duelo.

– Que me importam as leis!… para o homem de brio a honra é superior às leis, e se não és um covarde, como penso…


Adeus surrados bancos de Academia!… adeus, livros sebosos, que tanto tempo andei folheando à toa!… vou atirar-vos pela janela afora; não preciso mais de vós: meu futuro está feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, comendador, barão, e verão para quanto presto!…”

O cão faminto, iludido pela sombra, largou a carne que tinha entre os dentes, e ficou sem uma nem outra.”

Miguel, espírito acanhado e rasteiro, coração bom e sensível, mas inteiramente estranho às grandes paixões, não podia compreender todo o alcance do sacrifício que impunha à sua filha.”

Era um homem bem-apessoado, espirituoso serviçal, cheio de cortesia e amabilidade, condições indispensáveis a um bom parasita. Jorge não vivia da seiva e da sombra de uma só árvore”

Conhecia e entretinha relações de amizade com todos os fazendeiros das margens do Paraíba desde S. João da Barra até São Fidélis.”

Esse Dom Quixote de nova espécie, amparo da liberdade das escravas alheias, quando são bonitas, não achará senão moinhos de vento a combater.”

era a aurora da esperança, cujo primeiro e tímido arrebol assomava nas faces daquela”

Era ele dez vezes mais rico do que o seu adversário”

Leôncio tinha-se rebentado o crânio com um tiro de pistola.”


GLOSSÁRIO:

ai-jesus: 1. dileto ou preferido (Ex: o ai-jesus do professor);

2. designativo de dor ou pena.

comenos: instante

ditério: motejo

valdevinos: 1. indivíduo que gosta da vida boêmia, estróina;

2. indivíduo que não gosta de trabalhar, tunante, vadio;

3. doidivanas;

4. indivíduo que não tem dinheiro;

5. que vive de atividades ilícitas, traficante.

etimologia: alteração de balduíno.

A BAGACEIRA

José Américo de Almeida 

DICIONÁRIO DE (81) TERMOS ESDRÚXULOS E TUPINIQUINS, afora aquelas definições encontradas entre [ ]’s no decorrer das próprias citações (contrastar com José de Alencar e Rachel de Queiroz):

aça: albino // ver fuá e sarará

alapardar: esconder

aluir: abater, abalar

aquilotar: habituar-se

araponga: pássaro cujo canto ressoa ao metal; pessoa que grita.

áscua: brasa, chama

assuada: motim, algazarra

azucrim: diabo


bagaceira: cachaça;

depósito dos resíduos da cana;

bando de palavras desconexas;

ralé;

entulho (coletivo)


banga: cambada de vagabundos; indicativo de mofa com o interlocutor, quando no final da frase; casa mal-construída.

bangalafumenga: zé-ninguém, imprestável // ver leguelhé

batoré: porco, imundo

bouba: ferida

cabroeira: coletivo de cabras (homens)

cafundó: ermo

cambiteiro: profissional rural

cambonja ou cambonje: ave peralta

camumbembe: vagabundo

caninguento: rabugento

capulho: broto ou botão da flor

Cariri: tribo indígena – mais detalhado em https://seclusao.art.blog/2017/06/29/o-quinze-rachel-de-queiroz/ 

chuchurrear: bebericar com estardalhaço

coco: dança popular de Alagoas

cruviana: grande frio

delerência: delícia (pessoa)

dríade ou dríada: planta que dá flor; divindade.

empacho: estorvo; vergonha.

encalacrar: entalar, endividar, comprometer-se (no mau sentido)

encalistrar: ficar vexado

enxuí: maribondo pequeno porém doloroso como qualquer espécie maior

espia-caminho: flor

espoleta: capataz de fazenda

essa: monumento sepulcral

estreme: puro

fichu: lenço para se proteger do sol forte

figa: várias acepções; dando figa: pouco me fodendo.

fiota: janota

fouveiro: ruivo, de fisionomia europeizada

fuá: arisco (cavalo, p. ex.); caspa.

guenzo: doente

hamadríada ou hamadríade: macaco pequeno e feioso

homizio: desterro, exílio, fuga

hemoptise: hemorragia do pulmão

ledice: ar contente

leguelhé: imprestável // ver bangalafumenga

macaíba ou macaúba: palmeira

maldar (sentido peculiar): dar motivos para suspeitas

mangará: pé-de-bananeira

maracanã: periquito

maracatu: dança folclórica

marouço: maré grossa

matula: corja

moçame: coletivo de “moça”

multípara: parideira, mulher de ativo e fértil ovário, mãe de muitos

niquice: impertinência // também usado por Graciliano Ramos

paleio: lábia; carícias interesseiras.

pantim: boato

patacão: moeda de cobre, do tempo de D. João III; também usada no Brasil e no Uruguai (não a mesma, mas o nome); patela; idiota; cebolão (relógio grande de bolso).

patativa: pássaro do canto doce; sujeito falaz.

peitica: despeito; ave tropical.

perequeté: emperiquitado

piaba: peixe fluvial de pequeno porte

pileca: magro e fraco (cavalo ou homem)

pinóia: puta; pechincha.

pirambeba: mesmo peixe que o cambucu

pulveroso: cheio de pó

punaré: “mamífero roedor, da família dos Echimydeos, gênero Thrichomys, presente no bioma da caatinga, mas também no Paraguai e na Bolívia. Se adapta facilmente a zonas secas e pedregosas. É de pequeno porte, tem pêlos macios, cauda longa e peluda, como de castor, apesar de no mais parecer um rato comum. Também é conhecido, vulgarmente, como rato-boiadeiro e rabudo.” dicionarioinformal.com.br, com adaptações.

punare

rebentina: acesso de cólera

rosetar: divertir-se demasiadamente

sainete: consolo, graça

salmoura: água salgada que conserva alimentos

sarará: mulato arruivado ou com albinismo // ver fuá

sessar: peneirar

sobrosso: medo

sostra: mulher feia

soverter: subverter (regionalismo)

teiró: teima, birra, antipatia

tinhoso: de má índole; repelente.

truaca: bebedeira

trupizupe: desmiolado

zunzum: atoarda, boataria

* * *

nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só passará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.”

Um romance brasileiro sem paisagem seria como Eva expulsa do paraíso. O ponto é suprimir os lugares-comuns da natureza.

A língua nacional tem rr e ss finais… Deve ser utilizada sem os plebeísmos que lhe afeiam a formação. (…) A plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir…”

* * *

Dagoberto Marçau vivia desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o homem-máquina destas terras que ou se agita resistentemente ou, quando pára, pára mesmo, como um motor parado.

Como que cobrara medo ao vazio interior. Não há deserto maior que uma casa deserta.”

Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos – esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.” “Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.” “Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais.”

Lúcio responsabilizava a fisiografia paraibana por esses choques rivais.”


Eu não vou na sua casa,

Você não venha na minha,

Porque tem a boca grande,

Vem comer minha farinha…”


A história das secas era uma história de passividades. Limitavam-se a fitar os olhos terríveis nos seus ofensores. Outros ronronavam, como se estivessem engolindo golfadas de ódio.”

A seca representava a valorização da safra. Os senhores de engenho, de uma avidez vã, refaziam-se da depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica.”

Chorando de quê?! Ninguém é olho-d’água pra viver revendo…”

– O que está na terra é da terra!

Era essa a fórmula de espoliação sumaríssima.”

Não amasse assim a roupa que tanto ódio causou

E meteu-se na rede que, parada, é feita para se dormir; mas, aos embalos, a voar, é feita para se sonhar.

Lembrou-lhe o martírio infligido a Seu-bem, um cãozito amarelo com a cauda enroscada como um imbuá [espécie de centopéia ou caracol sem casa e horrendo!], que estivera preso, ali dentro, uma semana, sem comer.

Pungia-o esse remorso.

(…)

Ocorriam-lhe outros malfeitos de menino arteiro: deitava sal no dorso leitoso dos cururus; mudava de ninho os passarinhos nuelos [ainda sem penas]

Convocava, nessa superexcitação, todos os episódios da infância indócil.

Acudiam-lhe as reminiscências, como um enxame assanhado.

Órfão de mãe, ao nascer, a natureza criara-o vivaz e livre, como um selvagenzinho folgazão.

Não sentira a soledade de unigênito. Crescera de cambulhada com os moleques da bagaceira, garotos de uma malícia descarada.

E recordava-se da violenta transição desses hábitos de liberdade.”

Os longos silêncios regulamentares incutiram-lhe o vezo das meditações intranqüilas.

E fôra, ao mesmo passo, amolecendo a inteligência com leituras secretas. Noitadas de romances angustiados, debaixo dos cobertores, à luz dos lampiões vigilantes.

A liberdade acadêmica agravara-lhe essa sensibilidade. Duas cadeiras de… réu para ser julgado no fim do ano. A filosofia impérvia como a mata de Marzagão com o cipoal de todos os sistemas enredado no fenomenismo catedrático. O Direito Romano (católico, apostólico, romano…) do professor Neto. (Em Roma só havia o Papa…)”

Não gostava de ser menino. Minha vontade era ser homem feito. E agora, este buço parece o luto de minha infância que morreu.

Eu sofria na minha inocência com pena dos bichos que se amavam. Amor de arranhaduras, de coices e de dentadas. E, enfim, creio que os beijos doem muito mais.”

Mal sabia ele que o espelho nos familiariza com a imagem física, mas nenhum homem se identificaria, se se encontrasse em pessoa.”

Recolher-se é voltar-se contra si próprio. E sobrevinha-lhe o remorso que é o narcisismo dos pessimistas.”

E ele, a curtir essa crise moral, rebolando o espírito atormentado, por um revide parecido com a greve da fome…”

De uma rebeldia inativa retraía-se da luta pela vida, como quem estaciona à margem do caminho para dar passagem a um desconhecido.”

Costumava dizer que suas ações não tinham equilíbrio porque o coração lhe pesava mais do que a cabeça. Parecia-lhe o contrapeso da hereditariedade promíscua.”

Essa assistência distraía-o, às vezes, do conflito secreto. Era a satisfação de tirar do sofrimento alheio um motivo de alegria íntima, a consciência de ser bom. Um meio de esquecer a própria dor para sofrer a dor dos outros.”


Eu já ia levantando a cabeça, me endireitando, quando apertou 88. Alguma neblina era só pra apagar a poeira. Chuvas salteadas.

Fiquei, outra vez, no ora-veja, sem semente de gado. Voou o derradeiro patacão do pé-de-meia.

Acabo disso, essa é que foi a seca grande.”


Sobreveio a seca de 1898. Só se vendo. Como que o céu se conflagrara e pegara fogo no sertão funesto.

Os raios de sol pareciam labaredas soltas ateando a combustão total. Um painel infernal. Um incêndio estranho que ardia de cima para baixo. Nuvens vermelhas como chamas que voassem. Uma ironia de ouro sobre azul.

O sol que é para dar o beijo de fecundidade dava um beijo de morte longo, cáustico, como um cautério monstruoso.

A poeira levantava e parecia ouro em pó.

(…)

Durante um ano a fio, uma gota d’água que fosse não refrescara a queimadura dos campos.

Depois, não se via um pássaro: só voavam muito alto as folhas secas.

Bem. Um passarinho estava sob a última folha da umburana, como debaixo de um guarda-sol. Caiu a folha e o passarinho abriu o bico e também caiu, com as asas abertas.

O panasco pulverizara-se: girava com a poeirada chamejante.”

Eu nunca que deixasse a minha terra. A gente teimava em ficar e o sol também teimava, como quem diz: <Aqui estou grimpando de cima>. Emperrado de dia e de noite, porque nunca se viu lua mais parecida com o sol.”

– Você comeu fogo! – disse o feitor.

Ele achou a expressão usual ajustada ao seu martírio.

– Diz bem. Comi fogo em vida. Mas um homem é um homem.”

O Acre é como o outro mundo: pode ser muito bom, mas quem vai não volta mais. E diz que dinheiro de borracha encurta quando ela estira”

Baldara-se-lhe todo o heroísmo sertanejo. Ainda bem não se refazia de um cataclismo, sobrevinha-lhe outro. Horrendos desastres desorganizando a economia renascente. O sertão vitimado: todo o seu esforço aniquilado pelo clima arrítmico, perturbador dos valores, regulador inconstante dos destinos da região.

E Valentim saiu, ao desbarato, pela soalheira estendida nas estradas que iam desaparecendo nas várzeas nuas.”

O papagaio vinha arrepiado, com medo de ficar só.

Soledade quisera soltá-lo à ventura; mas, ele não sabia mais voar e, perdendo o vôo, ganhava esse peco [acanhado] destino humano…

O louro tinha aprendido, como todos os outros papagaios domésticos, o aviso inconsciente, qual uma previsão do seu fim:

– Papa-gai’ não co-meu mo-rreu.

Era o estribilho da fome.

E finou-se, encorajado, escondendo-se sob as asas, numa súplica aflitiva:

– Sol’dade! Sol’dade!…

– A gente sai por este mundão sem saber pra onde vai. Quanto mais anda, menos quer chegar. Porque, se fica, está de muda e tem pena de ficar. E, enquanto anda, pensa que vai voltar.

Lúcio interrompeu:

– Não interrompendo… Como é que se tem saudade dessa terra infernal?

– Moço, sertanejo não se adorna no brejo. O sertão é pra nós como homem malvado pra mulher: quanto mais maltrata, mais se quer bem.”

Então, havia um cajueiro curiosíssimo. Bipartia-se em galhos desiguais: um, hierático, linheiro, parecia querer escorar o céu; o outro, de uma humilde horizontalidade, deitava-se, literalmente, no chão.

Era nesse poiso natural que Lúcio ia, às matinadas, repassar seus romances convulsivos. Em vez de interpretar o clássico <livro da natureza>, desdenhava essas folhas verdes ilustradas por todos os matizes e que só têm sido lidas pela rama, para, em tão ledo e fragrante retiro, afundar-se na degenerescência romântica, exaspero da sensibilidade como sal em ferida braba.

Mas, acertara de se enamorar da figurinha fictícia de Sibil, no tablado abominável do empresário judeu. [?]

A mulher era um anjo… depois da queda. Queda, de verdade, que produz mártires e não demônios… (O pobre do anjo mau!…).

Seria capaz de pedir-lhe a mão… para levantá-la desse inferno.

O amor era um consolo. Função de enfermeiro ou de esmoler. [mecenas dos mundanos] A beleza <o longo e obediente sofrimento> da Circe…

E evocava as famosas paixões plebéias. Não excluía dessa baixa do coração nem a humildade da cor. Salomão, o padroeiro das senzalas.

Nigra sum, sed formosa.

E nosso poeta Gonçalves Crespo ganhara esse lirismo pixaim em Portugal:

És negra, sim, mas que formosos dentes, Que pérolas sem par!

Lafcádio Hearn querendo casar com uma pretinha; Baudelaire…

Esteve em levantar-se e gritar: <Viva o amor cruzado que curou nostalgia africana e coloriu o meu Brasil!>

Há confidências que aliviam como um vômito, mas repugnam também como um vômito.

Lúcio acolheu-a com um sorriso só nos lábios e continuou a ler.

Então, ela sentou-se no cajueiro ao seu lado. E ele começou a ficar como os cajus, amarelo e encarnado, mudando de cor. Todo contrafeito, parecia recear ser surpreendido nesse convívio suspeito.

(…)

Ela desconversou:

– O senhor quer bem a seu pai?

O estudante pendeu a cabeça humilhado. Acudiram-lhe as cenas de aspereza desse homem brutificado pelo trato semibárbaro do engenho. Já segredavam os moradores. <Aquele dá coice no vento.>

E, intentando confortá-la:

– Não ligue, Soledade: meu pai é pancada pra todo o mundo.

Alguns avatares se recusam a evoluir, sr. Hegel… Não venha me dizer que era o estágio final!

Já não era a retirante desbotada e acabadinha, mas a moça capitosa, [obstinada; sedutora] de graças desabrochantes.

Refeita e mimosa, semelhava certas flores que decaem ao anoitecer, para, às primeiras orvalhadas, madrugarem com mais frescor.”

Os galhos do cajueiro comprovavam as desigualdades acidentais – filhos do mesmo tronco com destinos díspares.

Só, então, Lúcio notou esse contraste.

E Soledade fremia num alvoroço incompreendido.

Sentia o primeiro toque da puberdade que ensaia adivinhar os mistérios interiores. Uma inquietude de virgem na insciência do amor feito de curiosidade e de medo.

Cortejada por toda parte, desassossegada, receosa, refugiava-se na complacência honesta do estudante; discernida com o instinto divinatório com que as mulheres mais ingênuas interpretam os sentimentos que as requestam.”

Espia-caminho – um nome que era uma advertência, como quem diz <Por onde quer que passes, por toda parte, estão armados os laços da sedução.>

Exasperavam-se os cajueiros confidentes.

Não eram mais as árvores acolhedoras dos solilóquios matinais.

Expulsavam os intrusos de sua casta intimidade. E sacudiam neles folhas, cajus, castanhas, maturis [a castanha imatura]… Até galhos secos sacudiam.

Molhavam-nos com o orvalho restante.

Era uma pateada em regra. E rangiam, balançando-se, gingando, em meneios de capoeiras. Contorciam-se, como se quisessem, outra vez, saltar das raízes, cair em cima desse par bêbedo de perfumes que profanava o pudor da alameda aromal.

E o vento ajudava assobiando.

Lúcio saiu desconfiado com o sentido nos bosques sagrados. Mas, não eram dríadas nem hamadríadas despeitadas” Em tradução livre, não eram espíritos nem bichos travessos, mas puro fenômeno natural.

– Patrão, faz toda vida que não se entrosa um forró – intercedeu o feitor, com fingida indiferença de quem pleiteia um desejo próprio em nome de outrem.

O senhor de engenho pusera termo a essas funções. Costumava dizer que a alegria do pobre era um mau agouro. De feito, não se dava um samba que não acabasse em sangueira.

Mas Manuel Broca segredou-lhe um plano que ele acolheu entre malicioso e desconfiado. E, vendo outros moradores que se acercavam, acedeu com uma praga:

– Pois levem os 600 mil diabos!…

(Os diabos tinham sempre conta certa: eram trezentos ou seiscentos mil…)”

Os negros giravam como sombras alucinadas.

Parecia um inferno orgíaco.

De chofre, todas as mulheres deram as costas para a porta. Era a superstição de que, estando alguém, do lado de fora, a rezar às avessas, via despidos os que se achavam dançando.”

Despercebido de todos os vexames do servilismo remanescente, o povoléu rural desmandava-se na animação barulhenta.

Parecia que o problema da felicidade se resolvia nessa diversão agreste.

Era um júbilo integral. Uma alegria unânime que cantava como a melhor música do samba.

Sem os fermentos da ambição que atormentam a natureza humana; sem os cuidados da previdência, numa vida de cada dia; sem imaginação que elaborasse pressentimentos mofinos; sobretudo, sem tempo para pensar em ser triste – essa gente tinha a fortuna de não se conhecer. As próprias dores físicas eram discretas, sem choro alto.

Lúcio corria-se de sua tristeza inveterada perante tanta explosão de prazer que dissimulava a penúria permanente. Chegava a saber que os sofrimentos morais eram uma ilusão dos sentidos. Só havia uma condição de felicidade: não saber sofrer. Feliz era o animal que se encolhia à chicotada e a esquecia, quando deixava de doer. Feliz era a sensibilidade que não ia além da casca grossa. E bendizia a ignorância que ignorava até a dor. Invejava essa vivacidade inconsciente. Acostumado a cultivar as sentimentalidades malsãs, como um mendigo que vive de sua ferida aberta, ouvia casquinadas cavas, oriundas, talvez, das cavernas do estômago, e não sabia rir de estômago cheio.

Entrou na onda pulverosa. E testemunhava os idílios brejeiros, cuja amostra mais doce era uma injúria: – <Feia!…> – <Essa safada!…> Ou, um derrame lírico: – <Bichinha…> E, quando passava da palavra ao gesto, era um beliscão, uma pisadura, um puxavão de orelha, uma dentada… Só uma carícia não doía: o cafuné. Mas, às vezes, as unhas penetravam com mais bem-querer.”


<Cabra danado,

Se não tem corage, eu tenho

De pegar nessa pistola

E atirar no senhor de engenho…

Minha senhora,

De que chora este menino?

Chora de barriga cheia

Com vontade de apanhar…>


O estudante observou: <Musa mentirosa!Atirar no senhor de engenho neste estado de subordinação crônica… Chorar de barriga cheia, como se não chorasse senão de fome…>

Estudante é uma raça de gente que só vive de cabeça virada…”

revelam-se excelências plásticas nessa desordem de músculos de alguns tiparrões excepcionais. Donzelas equívocas da redondeza acudiam ao estalo dos dedos, como se chama aos cães.

Mas, ali não se brigava por mulher: o amor não valia uma facada.

– Olhe que eu te dou uns croques! [cascudos]

– Quando chegar em casa, você chia no relho [cinto]!…”

A polícia debandara, aturdida.

– Fez sangue?

– Foi a força do governo, patrão.

Para eles o governo era, apenas, essa noção de violência: o espaldeiramento, a prisão ilegal, o despique partidário… Não o conheciam por nenhuma manifestação tutelar.

E explicavam:

– Chegou e foi metendo o fandango. [festival de sapatadas] Só pra empatar o samba. Passou o refe [arma, rifle] em tudo.”

Sabia que a fotografia não era sua e alvoroçou-a a curiosidade – a única forma de impaciência da mulher, esse apetite do desconhecido que constitui, as mais das vezes, o móvel de sua perdição – a curiosidade de verificar quem era aquela figura feminina que tanto se parecia consigo.

Instava:

– Lúcio, não é meu?

Suspeitou que interessava ao estudante porque se assemelhava a alguém que ele amava. Era a condição mais humilhante de ser amada.

Como quem ama de olhos fechados, com o sentido em outro amor.”

Soledade estava acostumada a ver bichos esfolados e esquartejados, o choro dos bezerros na ferra, os rebanhos carpindo-se [chorando] no sangue fraterno, a rês levantando-se náfega [torta, cambaleante] das mucicas [puxão pela cauda para derrubar] da vaquejada, as ossadas da seca… Mas, não havia termo de comparação com esse suplício dos mártires da almanjarra. [roda hidráulica que o gado é forçado a mover]

Era a sorte dos bois sertanejos na bagaceira…”

A almanjarra ronceira, [indolente] à pachorra [lerdeza] das juntas fatigadas, era o símbolo diuturno da rotina empeciva. [estorvada] Traçava, inalteravelmente, a mesma circunferência na bosta de boi.

Era a norma automática que distingue a mesmice do instinto das variações da inteligência.

A moagem ia, por assim dizer, de meia-noite a meia-noite. Os eixos frouxos vomitavam o bagaço maior do que a cana engolida e mijavam um fio de caldo no parol [recipiente onde cai o caldo]…”

Ninguém queria. Dava por menos: 8$000, 6$000… E, com o papagaio no dedo, beijando-o, cheirando-lhe as asas. Afinal, vendeu-o e entristeceu, porque não tinha mais, em casa, quem lhe chamasse pelo nome…

– Por esse preço, volto com ele.”

Vendiam a faca de ponta e cachaça, para que a polícia e a justiça cumprissem, depois, o seu dever.

A feira de cocos era um tintim por tintim… Comprava-se pelo som, batendo com uma moeda.

Moeda corrente: pelega, [cédula] bagarote, [dindim] selo, cruzado, pataca, [moeda de prata, igual a 320 réis] xenxém [xem-xem, moeda de prata, 10 réis]…”

– ‘Stá aí! ‘Stá vendo? Ticaca!… [gambá nordestino]

Assim o chamava em seus arrufos. No sertão ia pegando. Não que ele fosse catingoso. Efebo sadio, se tinha algum pituim, era o bodum do chiqueiro.

Vinha-lhe o apelido de um episódio da infância. Fôra o caso que, quando menino, dera com uma maritacaca detrás do serrote da acauã. [ave de rapina que se alimenta de cobras]

E, como não tivesse olfato, de nascença, procurou alcançá-la. A bicha defendeu-se, o quanto pôde, com a micção fétida. Ele nem se dava disso. Que gentil e mimoso animalzinho!

Trouxe-o nos braços, como um achado curioso.

Misericórdia! Tudo se impregnou do mau odor.

E, depois de muitas esfregações, ficou sendo Ticaca.

Aspirando o cheiro que se evolava de Soledade, o estudante apiedou-se de Pirunga a quem faltava um sentido tão precioso. E imaginou com que fúria ele a amaria, se lhe sentisse o bálsamo do corpo virgem.

Essa vigilância era um incitamento.”

– Ainda estou por ver uma moça mais foguete!… Solta de corda e canga e o branco sem respeito na batida dela…

– Mais hoje, mais amanhã, esse negócio acaba em choro de menino…

– Minha negra, não é por falar, mas já caiu na boca do mundo.”

Bonita, nada! É só engraçadinha…”

Se os homens se comportavam assim, como os bichos de sua convivência, nas cenas de fecundidade da fazenda, por que Lúcio, que a seguia por toda parte, como o marruá [touro selvagem] acompanha as vacas solteiras, não lhe dera ainda um sinal dessa animalidade?”

tanto mais triste e sofredora, mais a queria, como a figura magrinha e dolente da estrebaria.”

A palpitação das narinas dava-lhe um ar mais picante.

Emboscava-se nas moitas arremedando os anuns. [aves que se enroscam nas árvores]

Assanhava os maribondos. E desferia a rir, perante as piruetas de Lúcio, que punha as mãos na cabeça, aperreado.”

Nisto, surdiu o feitor. Esfregou a mão na axila e tirou a caixa de maribondos, todos quietos, inofensivos, como abelhas brasileiras.

– Como é isso, Manuel? – inquiriu o estudante.

Manuel Broca passou, de novo, a mão no sovaco e apanhou, impunemente, outra caixa.”

Nesse ambiente afrodisíaco, nutria um amor sem carnalidades, um idílio naturista, com o sabor acre de fruta de vez, junto aos abandonos e aos modos de indiferença ou de entrega dessa mulher perturbadora que alvoroçava todo o Marzagão.

A semelhança evocativa amortecia-lhe os apetites indiscretos que a natureza velhaca lhe destilava no sangue tropical.

E governava as venetas de gozo. Chegava a ter remorsos dos sonhos ruins.”

E ela ficou olhando outros passarinhos acasalados – o macho, de ordinário, mais bonito que a fêmea. E era também o que cantava.

Então, voltou-se para Lúcio, esquecendo-lhe o nome:

– Esse menino, você é tão capiongo, [soturno] nem abre o bico. Faz toda a vida que não me conta uma história.

Um ventozinho madrigalesco mexia-lhe as madeixas curtas, ora alargando-lhe a testa, ora cobrindo-lhe os olhos.

(…)

– Era uma vez uma fada. Como não havia tão bela entre os anjos e as 11 mil virgens, o céu vivia a mirá-la, todo o dia que Deus dava, com o seu olho de sol, muito aceso e namorado. O sol crescia e se enchia de luz pra ver melhor. Nenhuma nuvem passava por essa visão de fogo. E o céu era tão feliz que não chorava mais. Nem uma gota d’água! Por causa desse namoro, as fontes foram secando, as árvores esfolhando-se, a terra estorricando…

– Deixa de enjôo, enjoado!… – interrompeu Soledade, atinando com a alusão piegas.

Enjoava-se dessas fantasias.

(…)

– Não é o cacho que vem saindo?… A bananeira está parindo.”

Encalmava-se o dia.

Desvãos de verdura, moitas de uma confidência exemplar com que guardavam as sombras doces, ofereciam-se a esse enleio amoroso e confiado.

Eram gasalhados convidativos, recessos nupciais. O bambual com o refrigério dos seus leques. O dossel de maracujá com flores e frutos.

O melão bravo, envolvendo um arbusto, todo salpicado de ouro, formava um ninho acintoso.”

Havia troncos crespos de cigarras cantadeiras. (Quem duvidar é só ver na serra.)

As macaíbas prediletas tinham cigarras como espinhos.”

Já teria o pudor deteriorado pela contaminação da bagaceira?”

Vendo que o casaca-de-couro [curutié, adora trepar em árvores e tem cor de canela] compunha o ninho com espinhos e gravetos, Lúcio censurava:

– Passarinho chabouqueiro [tosco]!…

Só compreendia o amor conchegado em plumas.

E Soledade lembrava o beija-flor que nidifica, de preferência, nos pés de urtiga. Comparava:

– Veja como o coração é bem guardado! A gente não pega, não vê…

E, levando a mão ao peito:

– …mas é o que se sente mais: bate sem parar e bate, dentro, com mais força, quando já não nos pertence…

Uma tardinha, ela estacou perto de casa e pediu a Lúcio que lhe abotoasse o casaco aberto atrás.

Com os dedos desastrados, ele aflorava-lhe as espáduas capitosas.

Sentia-lhe na penugem da nuca um cheiro extraordinário de bogari [jasmim] machucado.

Ela encolhia, aos toques casuais.

– Olhe, direitinho!…

E virou a cabeça. Estavam as casas desencontradas. Com uma só mão fechou o casaco prontamente – sinal de que o havia desabotoado por gosto.”

Lúcio repôs-se a custo:

– A gente não pode nem…

– …nem o quê, branco sem respeito!

– …abotoar.

Pirunga tomou o verbo no sentido brasileiro [agarrar com segundas intenções] e apresentou-lhe o peito forte:

– Abotoe! Abotoe! Abotoa nada!…

E teria investido, se Soledade não o houvesse chumbado ao solo com o olhar agridoce.”

– Você conhece a história de Carlota? [gênero de azeitonas; forte, livre; mulher do povo]

– Tenho uma idéia…

– Era uma mulher do sertão do Pajeú. [<planta pontuda>] Descera na seca de 45 e ia arrasando o Brejo…

Torceu o nariz e retificou:

– Ia arrasando, uma história: arrasou, bem arrasado!

Procurou colher a primeira impressão nos olhos do filho e prosseguiu:

– Sertaneja, quando é boa, é boa; mas, também, quando desencabeça!…

E, tendenciosamente:

– Então, se é bonita…

Continuou:

– Carlota chegou aqui na tira; mas, com pouco, estava feita uma senhora dona. Vivia como uma princesa na roda das famílias. Bastava ser espingarda do chefe, um homem de poder e dinheiro que mandava em toda esta redondeza.

E, usando de uma familiaridade a que Lúcio estava desafeito:

– Mas, meu filho, a mulher parecia que tinha trazido todo o cangaço do sertão e o fogaréu da seca debaixo da saia. O fim foi aquela derrota! Ela mandou matar um deputado geral – o dr. Trajano Chacon. A política virou. E nem lhe conto: morreu Beiju enforcado; foi gente pra Fernando. Os maiorais da terra… Ela também. (…) Areia nunca mais se levantou! Vá por todo este distrito e, se encontrar um ente de Deus com o nome de Carlota, eu dou o pescoço à forca…

Lúcio explodiu:

– Então, o senhor conheceu Carlota?! Era bonita mesmo? Sim, devia ser muito bonita!

Dagoberto deu de costas.

E, sob a impressão romanesca desse episódio amoroso, ele correu à casa de Soledade.

Não a encontrou.

Nesse comenos, seria capaz de exumá-la, se ela tivesse morrido, tamanha era a ânsia de vê-la.”

Pressentia-lhe as fatalidades de Helena e Carlota, destruidoras de cidades.”

Sentia-se predestinado a participar dos seus maus fados.

Então, fora de si:

– Soledade, dá-me o beijo de morte! Comunica-me num beijo o teu destino de tragédia! Liga-me aos teus maus augúrios!…”

anfisbena

E ele baixou-se e passou a examinar o corpo cilíndrico da anfisbena [cobra de duas cabeças], sem distinguir-lhe os olhos minúsculos:

– Duas cabeças e cega! Não admira, pois, que, com uma cabeça só, eu viva nesta cegueira… E dizer que foi a própria luz da inteligência que me cegou!…

Depois, ficou a considerar que não havia termo de comparação entre Carlota e Soledade – uma conspurcada na mancebia adulterosa, a outra um <anjo de inocência>.”

Santo Deus! os guris lázaros, embastidos de perebas, coçando as sarnas eternas. Sambudos, [desnutridos, esquálidos, anões, caveiras de barriga de verme, etc.] com as pernas de taquari, como uma laranja enfiada em dois palitos.

As cabecinhas grisalhas do lendeaço fediam a ovo podre.

Mas não choravam, não sabiam chorar.”

A natureza caridosa procurava encobrir essa miséria. A jitirana [planta] encostava-se na baiúca [pocilga] infeta, marinava pela parede rota e ia desabrochar, toda espalhada, na coberta de palha, formando o que nenhuma casa rica ostentava: um teto de flores.”

Não havia choça paupérrima que não tivesse um cachorro gafo. [leproso, faminto]

Era o sócio da fome.

Os pobres gozos herbívoros! Comiam capim, pastavam como carneiros.”

Havia música de graça nos coretos do arvoredo. Perfume de graça em cada floração.

E o sol fazia-lhes visitas médicas entrando pelos rasgões dos tugúrios.

Afinal, valia a pena viver, porque ninguém se matava. Não se dava o caso de um suicídio.”

O patrão toca da terra, sem se fazer por onde… De uma hora pra outra, se está no oco do mundo.

Amanhece aqui, anoitece acolá.”

Passavam as lavadeiras vistas de longe como monstros macrocéfalos – com uma trouxa na cabeça e outra trouxa na barriga. Enchiam as panças, já que não podiam encher os estômagos.

Mulheres extraordinárias! Filhavam uma e, não raro, duas vezes por ano.

Engendravam-se em prazeres fugazes eternidades de sofrimento.”

A água, tão boa para purificar, lameirava o sítio. Tudo se fundia em lama.

A enxurrada revolucionária transpunha as represas, inchando, espumando, blaterando…

Os córregos mais humildes rompiam o álveo, espalhando-se, esborrotando as levadas, cacheando pelos baixios.

Mananciais aos gorgolhões, como vômitos incoercíveis.”

De primeiro, Soledade gostava do cheiro quente da terra molhada pelo chuvisco. Lembrava-lhe os campos lavados do Bondó.

Mas a chuvarada agressiva deu para enfastiá-la.

Era a flor de estufa transportada para o atoleiro. Tinha saudade da quentura das estiagens fatais, dos dias mormacentos do sertão soalheiro.

O que mais a amofinava era não poder vaguear pelos lúbricos [escorregadios, deslizantes] lamarentos. O aguaceiro, como uma sentinela à porta, sonegava-lhe as recreações bucólicas.”

E ela dizia para Lúcio:

– Tudo quanto é bicho cria asa no inverno: é formiga, é cupim.

Só a gente não cria.

– Pra voar pra muito longe…”

A saparia começava a toada de sete fôlegos. O comum era um reco-reco rascante. Depois, concertava-se toda a variedade instrumental – carrilhões, castanholas, flautins (um flautim gritante) e, afinal, a pancadaria da jia: bum! bum! bum!”

Chuviscava. Uma chuvinha miúda, conta-gota, antipática, como toda impertinência pequenina. O xixi intolerável.”

E o céu encarvoava-se. Ficava baixo, frisava pelo copado, pesava nas cabeças. Reatavam-se os dias lutuosos.

Outro chuvão hostil. A luz do relâmpago molhava-se nas cordas d’água.

E as árvores cavadas ficavam dançando nas raízes, numa dança macabra, até tombarem, pingando, como num suor de agonia ***

O amor de Soledade era uma sinfonia de chuva com sol. Um idílio de venetas – ora de meiguice inesgotável, ora de maus modos. Tão depressa se conchegava rendido, como se esquivava enjoado.”

Como?… Começaria pelos dedos ou, melhor, pelas unhas. Se não relutasse, subiria pelo braço; e, se gostasse, na testa, um na testa; e, se anuísse, nos olhos – sim, fechar-lhe-ia os olhos com muitos beijos, para, então, de surpresa, beijá-la, bem beijada, na boca. Um beijo que lhe deixasse uma cicatriz n’alma. Queria sorver-lhe o aroma carnal que se bebe em beijos.”

No caso que andasse enamorada, seria uma determinação natural; mas parecia-lhe que ela propendia para um amor criminoso.

Que, desde a partida de Lúcio, tinha outras maneiras, tinha e a ninguém passava despercebido. E esses modos acusavam certa transformação interior.”

No sertão tudo era livre: não se prendiam nem os caudais nas barragens. Mas só as águas não voltavam…

Aviventava a nostalgia incurável, o mal de uma instabilidade que não condizia com a vida sedentária de seu natural.”

– Hum! A menina está um moção!…

E, perdendo o antigo respeito nesse nivelamento da seca:

– Eu, sendo comigo, não deixava brejeiro tomar chegada…

Ela palidejava e enrubescia.

Continuou, sem saber que estava remexendo uma ferida aberta:

– Moça triste é sinal de…

Pirunga levou o indicador aos lábios, pedindo silêncio.”

– Menina, você tem pena do sertão?

Ter pena – como se ajusta essa sinonímia, quando a saudade se aplica ao sertanejo! É a sua única sentimentalidade.”

Mas, daí a pouco, tornou o silêncio de quem não ouve nada porque só se ouve a si próprio. O silêncio fecundo que é o ritmo de quem se escuta.”


Instado, Pirunga improvisou:

Não se vê um olho-d’água,

Quando há seca no sertão.

E enchem-se os olhos d’água,

Quando seca o coração…

O xexéu de minha terra

Que me ensinou a cantar

Antes me tirasse o canto

E me ensinasse a voar…

Um dos tropeiros responde:

Quem deu pena ao passarinho

O canto tinha que dar:

Quem voa sofre saudade,

Quem sofre deve cantar…

Pirunga confiou-se à veia repentista:

No quente do coração

Eu criei um passarinho

E, foi ter asas, voou,

Não quis mais saber do ninho…

Um bacurau, [ave noturna] o gago notívago – baco… baco… bacurau – lembrava no vôo curto e na gaguez os poetas da bagaceira.

E a natureza abafou-se, novamente, em cochichos. Sussurros anônimos. Pios assustados. Murmuravam os sons humildes que tinham estado à espera do silêncio.”


Chocavam-se os dois sentimentos fundamentais do sertanejo – dignidade da família e o apego à gleba. Ele sabia que o crime lhe acarretaria a prisão no meio adverso. A nostalgia quebrantava-lhe o pensamento de vingança.”

Pirunga estivera, cedinho, a coscuvilhar a bruaca e sumira-se, como encanto.

Valentim ficara em casa para não dar de cara com o feitor. Afastava de si qualquer incidente que pudesse embaraçar-lhe o regresso premeditado ao sertão.

Queria combinar tudo com Pirunga e nada dele aparecer.

Dera uma volta pelo engenho, daí se passara à casa de farinha, espiara o canavial de longe e nem sombra dele.

Recrudesciam-lhe os pressentimentos. Teria fugido com raiva de Soledade? Teria seguido o comboio?

E, descoroçoado por mil apreensões, sentiu-se, desenganadamente, abandonado no exílio adverso, quando mais carecia desse bordão da velhice decadente.

Aquele que fazia as vezes dos seus filhos não o acompanhara por uma dedicação desinteressada, mas por causa de Soledade. Porque, desfeita a última esperança, se safara, como os outros.”

Pirunga relutava. Desobedecia pela primeira vez.

Um vem-vem provocativo começou a cantar.

Era a voz do sertão que os invocava num apelo instante.

Valentim rogava, humilhado:

– Meu filho, vamos s’embora! Lá a gente não se lembra de nada.”

Qual a onça acuada por uma matilha de gozos, o criminoso detinha com uma imobilidade faiscante a cabroeira poltrona – para mais de 20 sujeitos que o cercavam, à distância, com as enxadas erguidas.” “E Valentim fazia frente a 20, 30, a quantos acudiam ao clamor de perseguição e cobardia.”

– Mas padrinho!…

Alheio às circunstâncias da luta, examinou-o, de revés, atento nos seus perseguidores. Vendo-o ileso, exprimiu uma alegria selvagem, com o ar de desafio ou de escárnio.

– Eu venho punir por ele, brejeirada de mucufa! [bando de covardes]

E atravessou-se para que ninguém lhe pusesse a mão.

Estranhou ainda:

– Mas, padrinho!…

(…)

Dagoberto saiu-lhe à frente. Encorajou os capangas:

– Brejeiro, quando dá pra valentão, não há sertanejo que pegue!

Valentim entesou também com o senhor de engenho”

Entregando-se, ele preservava a fuga para o sertão.”

– Eu não sei quando me livro. Se você deixasse a bagaceira e voltasse com ela – você sabe… – eu não fazia caso: morria satisfeito na cadeia. Você podia…

E embatucou. [paralisou]

Sobrevinha-lhe uma curiosidade involuntária, quando ela se mexia no lençol. Como estaria deitada? De borco? De borco não seria…

(…)

Lembrava a inocência com que ela lhe saltava nos joelhos, o tempo em que a tomava nos braços, nuinha e tenra como um querubim-menina, desses que não saem do céu, nem para as estampas bentas.”

correu transtornado, com muito mais medo dela, do corpo branco, como uma mancha de luar na treva absoluta, do que do bicho imaginário.”

Enfarado das mulheres superfinas que civilizavam o sexo, Lúcio não se esquecera de sua beldade matuta, corada pelo sol e cheirando a si mesma.”

Seu bucolismo fôra uma criação lírica. A paisagem perdera aquele sentido solidário. Escravizara-se às formas exteriores refletidas em sua sensibilidade; mas das árvores só lhe restavam n’alma as sombras úmidas.

O que lhe parecera o sentimento da natureza fôra uma subordinação vulgar.

O espírito moderno enfastiava-se da mesmice do campo, do eterno espetáculo de flores e cantos. Amofinava-se dentro dessa alegria natural como um doente de indigestão que sofre da felicidade do estômago cheio.

Não distinguia as variedades da estação: as mangueiras e os cajueiros sujos de sangue, sangrando na folhagem nupcial; abacateiros floridos cobertos de insetos, com as copas musicais, como violinos em surdina; o jatobá carregado, batendo num barulho de castanholas…”

A noite nua, sem o maillot das nuvens, nas negligências da solidão, tomava um banho de leite. E a brancura tangível escorria molhando as coisas adormecidas. (…) Um ruidoso meio-dia à meia-noite.”

Mulher é como fruita: quando cai, apodrece…”

Falava baixo, com a fadiga da voz. Batia os dedos em tudo, como num teclado.

Não se sentava que não enterrasse a cara nas mãos. E deu-lhe voltar aos antigos hábitos – à solidão voluntária do quarto de dormir.

Refugiava-se nos livros de uma invenção fantástica que lhe haviam desorganizado a sensibilidade.

Tendo presentes os conselhos de Milonga, tornou, um dia, a rabiscar na parede com o veneno pessimista:

O amor é o caixeiro-viajante da propagação da espécie.

Nós compramos as mulheres perdidas e as mulheres honestas nos compram. É o regime instituído pelos interesses sexuais.

Há uma generosidade egoísta: a de quem ama sem ser amado.”

A mulher só sabe guardar o seu segredo. O amor é a única força capaz de a descobrir; e, quando a descobre toda, nas denúncias de certos abandonos, ela está perdida para o próprio amor que a descobriu.

Não! a mulher que ama é a que diz menos, porque é a que mente mais.

Só a mulher que sofre diz tudo num grito de dor.”

A maior das saudades é a do bem presente que já não se alcança.”

Indo ao pomar, só distinguia nos frutos sazonados as manchas pretas.

Dir-se-ia que a alma se lhe tinha apodrecido dentro, como um feto morto.

Sentia que a sua piedade para com os outros não era mais do que uma forma da piedade devida a si mesmo.

Trazia a cabeça inclinada, como quem leva o peso de uma idéia fixa.”

Tinha a ânsia de retomá-la; só se corre para o que foge.”

Se sei? Até gato e cachorro sabem que o senhor vai me defender aquele bandido no júri. Foi pra isso que o botei no estudo – pra ser contra mim, pra me derrotar!…”

– É!… Beija as mãos de um criminoso e nunca beijou as de seu pai!

– Nesta casa nunca se ouviu um beijo!”

Lúcio aproveitou-se desse silêncio perturbador e disse, deliberadamente, com um insólito poder de resolução:

– Meu pai, eu serei advogado de Valentim. Mas não era isto o que eu vinha dizer-lhe. Eu queria dizer-lhe…

– Que ajudará a matar-me! Não é isso? Não sei onde estou que…

– Não, senhor! Não perca a calma. Eu vinha dar-lhe parte – e já pouco me importa que saiba – que…

Aí, empalideceu de certo modo e acabou numa fraqueza doida, como o criminoso com a perversidade da confissão:

– …vou casar-me com a filha do assassino.

– O quê?! Então, você!…

Dagoberto ficou da cor da parede. Ficou branquinho!”

Quer que lhe diga? É de sua vontade? Pois não me faz nada que case ou não case. É senhor de suas ações…”

Para que foi que eu gastei tantos e quantos? Dinheiro que dava pra levantar a cabeça de muita gente… Pra que foi que o tirei da bagaceira? (…) Mas isso não tem tramenha. [cilada] Se estudo dá é pra desmantelar a bola, você me vai é pro cabo do freijó. (…) Então, seu corno, você pensa que me bota o pé no pescoço?! Que me desmoraliza a raça?

Esteve, vai-não-vai, a saltar-lhe ao gasnete. [garganta] Chegou a fazer menção de aberturá-lo. [agarrá-lo pela gola]

– É coragem muita!… E não lhe digo mais nada…

Mas, de pancada, voltou-se, imperativamente, num vozeirão, como se tivesse a alma a trovejar.

– Não! não casará com a retirante! Corto a mesada, boto pra fora de casa!… Tinha que ver!…

– Por ser retirante, não. O senhor não casou com minha mãe?

– E a que vem isso? Sua mãe não era essa mundiça! [imunda]

– Não diga isso, meu pai!

– Não diga o quê?!

– Se minha mãe não era retirante, Soledade também não é… (…) O pai de Soledade não é irmão do pai de minha mãe? Pois, então?

Dagoberto desconcertou-se:

– É a pura mentira!”

– Não, meu filho, ela não pode ser tua esposa porque… Eu profanei a memória de tua mãe, mas foi tua mãe, que amei nela…

Lúcio sentiu que lhe refluíam todas as taras atávicas, os impulsos da raça vingadora, o sentimento de família dos seus antepassados sertanejos.

– Que é que o senhor está dizendo?

Dagoberto deu um passo atrás corrido de vergonha dessas dissonâncias da honra. Bem que o feitor lhe dissera que com aquele calibre passaria a perna em seu Lúcio.

E o estudante não lhe temia a veemência, embora lhe evitasse olhar.

– Meu pai, o senhor está mentindo para me dissuadir!…

– Ah, meu filho, antes fosse mentira! Mas a gente tem duas idades de perder a cabeça…

– Eu logo vi! É por isso que o senhor tem medo do assassino… Porque sabe que minha gente não perdoa essas afrontas!

E, como se falasse ao retrato:

– Meu pai desonrou minha família, prostituiu minha prima, tomou minha noiva!…

Ele sabia que o coração não é capaz de renúncias; mas também devia saber que o pai pode disputar tudo ao filho, menos o seu amor, que é um direito da idade.

Caiu o quadro espatifado.

Ambos se assustaram diante desse mistério.

Fôra Milonga que o derrubara por trás com o cabo da vassoura.

E, com a ascendência ganha pela humildade das criadas velhas:

– Minha gente! isso é um fim de mundo…

Saiu carregando tudo:

– Enquanto eles virem a morta não se esquecem da viva. É a mesma coisa…

Lúcio recuou:

– Eu queria resgatar aquele destino. Meu amor encarnava todo o sofrimento da seca.

Dirigiu-se ao pai:

– Tome-a para o senhor. Já é sua…

E, como lhe percebesse um gesto de renúncia:

– Eu matei, nascendo, minha mãe. Foi por minha causa que o senhor perdeu sua mulher; agora, não seja também por mim que perca sua amante. Não diga mais que nem bonita é… É bonita e é sua.”

Não sabia que ele tinha caído na vida? Estava tudo de língua passada… Eu vi o esternegue! Babau!…”

– Agora, já sei por que querias ser minha mãe! É impossível: eu já não tenho mais pai!

Despediu-se, ao dobrar a estrada:

– Até dia de juízo!”

(As saúvas solidárias – as mesmas formigas sacrílegas que haviam derruído a igreja de Santa Rita – carcomiam, impunemente, a cadeia fedorenta que empestava todo o quarteirão.)”

Valentim voltou-se, afinal, para Pirunga:

– Homem, que é isso?! Parece que você viu alma do outro mundo…

– Padrinho, Soledade não tinha nada com o feitor…

– De verdade, Pirunga?! Que é que você está dizendo? Eu logo vi! Minha filha…

Recuou para os presos:

– Vocês querem cigarro? Tomem cigarro!

E não encontrou mais o maço que havia escondido no reboco aberto.

(…)

– O feitor era só leva-e-traz…

– O quê, Pirunga?! O feitor…

– Era só espoleta… Andava aos mandaretes… Foi tudo obra do senhor de engenho… A derrota está feita!…

A cadeia estava vai-não-vai. Rangeram as traves com o pé-de-vento num longo gemido do teto desengonçado.

Valentim fez menção de sair:

– ‘Spera aí! Eu vou já-já!…”

Eu atirei no que vi… Nunca que eu pensasse!…”

E, beijando os dedos em cruz:

(…)

– Eu quero é que você prometa que não mata o senhor de engenho.

(…)

– Pois, padrinho, desde que eu sube, só dava tempo era vir pedir licença ao senhor… A pistola já está escorvada. [com a pólvora carregada]

– Ninguém me tira o meu direito. Um dia, cedo ou tarde, eu hei de me livrar, porque Deus não é servido que eu morra desonrado! – blaterou Valentim.

E acalmando-se:

– Jure que não mata e que irá com eles pra onde eles forem. Feche os olhos a tudo. Faça de conta que não vê. Vá sempre na batida. Dê aqui, dê acolá, não deixe o rabo da saia dela!

Era horrendo esse pacto.

Ficaram nisso. Pirunga beijou, silenciosamente, os dedos em cruz.”

O sertão tinha um cheiro de milagre. A natureza imperecível ostentava, de extremo a extremo, uma beleza moça. Tinha morrido só pelo gosto de renascer mais bela.

Reflorescia o deserto arrelvado nesse surto miraculoso da seiva explosiva. Revivia a flora, frondeava a catinga, de supetão, na paisagem nova em folha. Cada árvore tinha um vestido novo para a festa da ressurreição.

Como que as pedras rebentavam em folhagem. As trepadeiras subiam, enroscavam-se pelos anfractos [ cf. definição em https://seclusao.art.blog/2017/06/29/o-quinze-rachel-de-queiroz/ ] e faziam com que a rocha nua florisse.”

O sertão pagava-se dos anos estéreis com essa largueza.

Todos queriam desfrutar a felicidade bandoleira do paraíso pastoril.

Só havia de triste o balar das ovelhas – bicho triste! – cabisbaixas e unidas, como meninos medrosos, tão junto o rebanho, que parecia um algodoal aberto.

Não: havia em tudo isso, nessa revivência estuante, uma tristeza maior.”

Dagoberto afeiçoava-se, o melhor que podia, à vida pastoril.

Não era raro que saísse também a campear.

Corisco revigorado, com o brio dos árabes ancestrais, era a sua montada predileta.

Pirunga advertia:

– Olhe que o cavalo mete de cabeça! Não vá desembestar…

E, um dia, desembestou: picado nas ilhargas, sem precisão, arremessou-se aos trancos, voando por cima de todos os precipícios.

(…)

Desequilibrando-se pela violência do salto, Dagoberto agarrou-se a um galho atravessado. E ficou bem meia hora dependurado, a oscilar, como um enforcado, servindo de espantalho.

A qualquer esforço para subir, o ramo frágil ameaçava partir-se. E embaixo o cacto agressivo esperava-o com os braços erguidos arrepiados de espinhos longos como estiletes.”

Se cair, fica uma renda, fura até a alma!”

Dagoberto, no último alento, expediu um grito fúnebre, como se já estivesse sofrendo a dor dos espinhos. E Pirunga avançou para Corisco, montou, fez carreira, saltou e, tomando o rival nos braços, alcançou o outro lado, são e salvo.”

Pirunga procurava afazer-se à missão que Valentim lhe cometera; mas recobrava nesse sistema de vida o gênio selvagem. Revertido à liberdade do sertão, que lhe restituía o brio congenial, sentia todo o pejo da transigência imposta por uma vingança aprazada.

Via os animais jucundos [joviais e prazenteiros] nos escândalos da reprodução. As novilhas núbeis dando-se aos touros patrícios; o pai-de-chiqueiro em libidinagens olfativas; o carneiro gemebundo com o pescoço alongado no lombo da marra pudica…

Só ele representava a renúncia do amor incendiário.

Zoava no mato um jazz-band de chocalhos. Tilintavam rosetas.”

Ia sentar-se na ribanceira para ver a nova enchente do rio que engrossava borbulhando em maretas barrentas. Despejando-se um jato intumescido, numa escapada de poucos dias, na vertigem do curso impaciente, a correnteza brutal deixava o leito seco e, no arremesso erosivo, levava de presente para terras estranhas tudo o que podia levar.”

– Eu vi a onça que você criou. Até inda tem coleira – disse Pirunga a Soledade.

– Mimosa?! Pois eu jurava que ela tinha morrido. Soltei com tanta pena! É capaz de me conhecer.

– Conhece o quê! Conhece nada! A bicha parece que nunca saiu da furna. [caverna]

– Pirunga, vamos pegá-la?

– Olhe que, quando ela me avistou, levantou a mão, parecia que estava dando adeus; mas, o diabo que receba a unhada!

Soledade tanto fez, que Pirunga resolveu pôr peito a essa aventura. Foram juntos. E Dagoberto, que desaprovava tamanha temeridade, foi atrás…”

Soledade agitou um lenço, correspondendo ao cumprimento feito.

E a fera correu para ela com unhas e dentes. Correu e abraçou-se com Dagoberto que de mais perto procurou defender a amante.

Estrangulou-se um grito de extrema angústia:

E Pirunga não vacilou: salvou, mais uma vez, seu maior inimigo de um perigo mortal.”

Dagoberto deitava-lhe a cabeça grisalha nos joelhos e ela passava a extrair-lhe, entre mimalhices e cafunés amorosos, os impertinentes cabelos brancos.

Pirunga sabia que o que se afigurava muito apego nas paixões serôdias [extemporâneas] não passava de zelo assustadiço. Era um amor feito de medos – de não ser amado e de não poder amar.

E ela descaiu a fronte. Evocava, numa crise de remorso, a cena de sua perdição.

Como estivesse a banhar-se na cachoeira, pressentira que alguém a espreitava por trás das cajazeiras entrelaçadas de jitirana.

Era o senhor de engenho que, descoberto, avançou e lhe colheu a camisa, toda impregnada do cheiro virgem.

Batendo-lhe nos contornos firmes, a água, que parecia aljofrá-la, acachoava, mudava de ritmo, num jato macio, escapava-se mais devagar, formava poças maliciosas, onde o olho do sol ficava a espiar, de baixo para cima, essa nudez sensacional.

(…)

Ela pôs-se a gritar, quase a chorar. Atordoada, procurava encobrir com as mãos tiritantes, numa atitude curva de pudicícia, as pomas eretas. Tentava embrulhar-se no jorro branco como num lençol. Vestia-se de espumas diáfanas.

Enfim, deitou a correr. Refugiu pelo capão adentro, quebrando os gravetos entrançados com os peitos virginais.

Os mamilos desabrochavam numa floração sangüínea em rosas bravas. Ela sangrava, através dos calumbis [juremas-pretas] e de espinheiros novos, como se lhe rebentassem rosas por todo o corpo.

Deviam ser os anuns: ui! ui!

E floriu uma rosa mais rubra na sombra – o amor purpúreo na sua glória inaugural.

O pudor de energia selvagem só se renderia pela volúpia da submissão. Só cederia à investida bestial, à posse, às carreiras, dos instintos animais.

Não fôra nada de ninfas nem de faunos; mas um primitivismo pudico – o Brasil brasileiro com mulheres nuas no mato…

Dagoberto tomava gosto aos riscos do pastoreio, às grandes corridas temerárias pelos tabuleiros e chavascais [atoleiro, mata cerrada] da fazenda.”

Pirunga sumia-se na vertigem das velocidades fatais, como o vaqueiro voador que leva o cavalo nas pernas.

Embaralhavam-se os dois, de onde em onde, formando com as véstias vermelhas uma visão de demônios alucinados.

(…)

Dagoberto gritava para Pirunga, forcejando por deter o seu corcel infrene:

– Está sonhando?! Correndo atrás de quê?…

Praguejava ameaças e fazia menção de puxar a pistola; mas, o receio de largar as rédeas privava-o desse gesto de salvação.

Era a inversão das hostilidades: a vítima corria atrás do perseguidor.

Quando ia afrouxando o ímpeto, reboava outro grito estimulante: ê-cô-ô!

E disparavam com maior destreza.

(…)

Varavam as sebas; voavam por cima das touceiras de cactos; afundavam-se nos socavões afogados; repontavam, além, num socalco; abeiravam-se dos boqueirões escancarados.

Desapareciam. Só se distinguia a ondulação da catinga. Só se ouvia um chiado de mato flexível.

Os vaqueiros erguiam-se nos estribos, procurando ver a parelha tresloucada.

Atalhavam-na; rodeavam-na. E ela desagarrava dessa direção: desandava, acelerada, ziguezagueando, na fuga mais desordenada.

Seguiam o estrupido de demônios à solta. Rastejavam na esteira de sangue e de suor.

Cessou a estropeada.

Os cavaleiros mais destros riscavam à borda do precipício.

Pirunga tinha a véstia repregada de espinhos, todo ouriçado.

Não premeditara esse desfecho.

– Foi Corisco. Mordeu o freio nos dentes…

O cavalo parecia desforrado, nesse assomo de liberdade, das humilhações da bagaceira.

E ele denunciou na roda dos companheiros a vertigem de suicídio e de vingança:

– Eu jurei que não matava e não matei…

Sobrevinham-lhe dúvidas sobre a quebra do juramento, olhando para os dedos:

– Eu matei?!… Hein?!…

Depois levantou a mão do defunto:

– Patrão, eu matei?!

Soledade afogou o choro, chamou um dos vaqueiros à parte e entreteve com ele uma longa confidência.

Quando trouxeram o morto, bifurcado na sela, com as pernas atadas por baixo, os braços pendentes quase com as mãos por terra, bamboleando, a cabeça espedaçada lambendo as crinas assanhadas, quando apareceu no pátio essa visão ridícula, ela muda estava, muda ficou.

– Foi você! Se é homem, não negue! – desafiou-o Soledade.

E sacou a pistola do corpete.

Numa agilidade de bote de onça, Pirunga lançou-se sobre ela.

Arrebatou-lhe a arma e jogou-a por cima da parede.

Soledade atirou-se, então, com unhas e dentes.

Era a revivescência de uma raça de heróis bandidos em que os homens defendem a honra e as mulheres o amor.

Pegaram-se em luta corpo a corpo.”

Ouvindo as imprecações, o cachorro cainçava do lado de fora e esfregava as patas na porta.

Violentada com mais força pelas garras brutais, Soledade fraquejava. Esboçou um sorriso conciliador.

E Pirunga foi-lhe à gorja outra vez. Aplicou-lhe os dedos férreos numa hercúlea constrição.

Com os olhos enormes e a face violácea, meio desfalecida, ela asfixiava.

Retomando a posse de si mesmo, ele soltou-lhe a goela arroxeada.

E achou-lhe graça, vendo-lhe a língua pendente, como um gesto insultuoso.

Mas Soledade inclinava-se sobre o seu peito hirsuto. Parecia-lhe que ela ia caindo morta.

Ficou linda, toda viçosa e reflorindo na beleza fecundada.”

Maltratada, rendida, a mulher forte sofria a vertigem da submissão. Sorria-se com um sorriso triste, mas convidativo, como agradecendo a insólita revelação de força que a reconciliava com o passado.

Era a oferta do sonho perdido – o amor retrátil que se voltava.

Acabando-se, a vela levantou a chama e iluminou-a.

Ao desalinho da luta, soltara-se-lhe o peito cheio, no amojo [lactância] dos sete meses.

(…)

Ao espetáculo dessa nudez, Pirunga estremeceu no frenesi impuro.

Seu primeiro movimento foi deitar a correr, mas faltavam-lhe as pernas.

E, para vencer-se, procurou vencê-la. Tinha medo de si mesmo.

Aferrou-a, de novo, aí com um furor de morte; voltou a esganá-la, enterrando-lhe os dedos possantes na garganta magnífica.

E arremessou-a contra a parede.

Depois, procurou chamá-la a si. Tentou soerguê-la com o braço por baixo da cabeça, dizendo-lhe o nome. Revirou-lhe, supersticiosamente, o sapato emborcado, porque chamava a morte…

Saiu nas pontas dos pés…

Não piou nenhuma ave agoureira, mas o chocalho soou como um dobre. [sino]

O arranque dos tetéus [quero-queros] parecia uma denúncia.

A caligem [nevoeiro pesado] pavorosa tinha uma impregnação de mistérios. A noite protetora prometia-lhe guardar segredo e oferecia-se para homiziá-lo.

Um vento alto como que queria apagar as últimas estrelas para que ele fugisse no escuro.

Mas, abriu-se um relâmpago ruivo, como se a treva procurasse reconhecê-lo. E o pico da serra parecia erguer-se mais para vê-lo.

Doendo-lhe o remorso de a ter deixado insepulta, tornou, às apalpadelas, escorregou pelas sombras, eis que ouviu uma praga estrangulada…

E largou a correr.

Poderia bandolear-se com os quadrilheiros que infestavam o sertão. Encontraria os poderosos redutos de impunidade. Mas, uma força estranha [Caetano Veloso!] empuxava-o, com o sacrifício da liberdade, para um rumo certo.

O dr. Lúcio Marçau viera arrecadar a herança paterna.

Assediava-o a roda da inquisitiva bisbilhotice urbana. E, em troca, contavam-lhe frioleiras [bagatelas] íntimas, os podres dos amigos, os nadinhas domésticos da pasmaceira inaturável.

Ele refugia a esse meio social intermediário, à vida sem sabor e mexeriqueira das pequenas cidades, onde a gente se enerva, sem a doçura do campo nem a sedução das capitais, como na intimidade de uma grande família desunida.

Nem Areia, a eugênica, se subtraía a esse espírito miúdo.

– Então, seu pai correu atrás da morte até encontrá-la?… – perguntou-lhe um antigo condiscípulo.

Avizinhava-se, de vez em quando, um sujeitinho ressentido:

– Não conhece mais os pobres…

E ele já tinha a cabeça fora do lugar de cortejar a torto e a direito…”

Lúcio observava o caráter de Areia, [hoje com pouco mais de 20 mil hab.] sua feição original, diferente dos outros povoados do interior que, maiores ou menores, eram todos iguais. O ar antigo dos sobrados de azulejo dominava as habitações mais novas com uma orgulhosa decadência.

O ambiente preguiçoso não se lhe comunicava ao temperamento árdego e cioso de ação.”

Era um homem que se entregava à prisão. Confessava ter estrangulado uma mulher, mas não lhe dizia o nome, nem mencionava nenhuma circunstância do crime.

Ele reconheceu Pirunga.

– Foi Soledade, não foi?

– Matei para não morrer. Porque morrer como ela queria me matar era pior do que morrer de verdade!…

Viera fazer companhia a Valentim.

Temendo ser capturado em outro ponto, palmilhara serras brutas e matas fechadas, numa escapula de muitos meses, como o pior facínora amoitado.

Lúcio promoveu o primeiro encontro, a salvo da curiosidade dos presos, na sala livre.

(…)

De quando em quando, percebia cochichos, a esmo:

– Mas, padrinho, eu jurei sem dizer nada: foi só beijando os dedos! Não jurei que ele não morria! Eu jurei que ele não morria?…

Chegavam outras frases avulsas:

– Eu via a hora de me esbagaçar nas pedras e ele ficar de seu, olhando pra minha derrota!… O vento zoava que nem cachorro na boca da furna…

Transfigurou-se a face encarquilhada [enrugada] do velho, repuxada por um sorriso infernal.

Lúcio apurou o ouvido:

– Eu todo dia pedia a Deus que se quebrasse a jura! Não tinha mais fé de me soltar…

Pirunga desoprimia-se do perjúrio:

– Eu não quebrei… Eu quebrei?! Não foi por gosto…

– Mas é a mesma coisa… Estou de peito lavado!…

E olhavam desconfiados para Lúcio.

Reatou-se o mistério. Falavam-se mais à puridade. [em códigos]

Enfarruscou-se, a súbitas, o rosto de Valentim num esgar intraduzível.”

Era véspera de São João.

A cidade chispava na chuva de limalhas. Jatos de fogo queimavam a bruma do anoitecer. Uma visão de relâmpagos e trovões.

Os rapazes não tinham medo do perigo festivo; o tédio aldeão pesava-lhes nas pernas. Brincavam com as queimaduras. E, se corria algum covarde, a chama corria atrás.”

– Coitadinha de minha filha! Mas, felizmente, está morta, bem morta… Ela não podia viver assim!…

Deitou a cabeça no ombro do afilhado com uma tristeza satisfeita:

– O que passou passou.

A centelha sinistra do olhar secava-lhe as lágrimas.

Culpava a seca desse desfecho.

– Foi a bagaceira!”

Em sua natureza primitiva o instinto de honra e o preconceito da vingança privada suplantavam o próprio amor paterno.

Lúcio estivera todo esse tempo sentado, sereno, blindado da calma reavida. Apenas, batia, de vez em vez, com o pé no ladrilho.”

A gente sai contente da cadeia quando tem o que é seu. O que a seca não levou e perdeu na bagaceira!…”

Dispersou-se o povo sedentário e esfacelou-se a família…

– O advogado não pode continuar a atacar os poderes públicos! – advertiu o presidente do tribunal do júri, com a ajuda da campainha enérgica.

Lúcio abreviou a eloqüência forense.

– Eu dou por terminada esta função teatral que avilta a dignidade dos réus, cara a cara, para formar a consciência dos julgamentos espontâneos… Justiça de nulidades (…) Não sabe que cada processo é uma palpitação da natureza humana. Atende menos a esse problema moral que a meia-língua das testemunhas. Justiça falível, és a balança de dois pesos que só não pesam nas consciências! Como eu quisera que fosses cega, de verdade, não pela tua ignorância, mas pela imparcialidade! O mau juiz é o pior dos homens. (…) Peque pelo amor que é a liberdade e não pelo ódio que é a injustiça mais grosseira… Vingue em cada absolvição de um miserável a impunidade dos grandes criminosos!…

(Valentim foi absolvido por perturbação de sentidos e de inteligência… dos jurados.)


Os proprietários decadentes explicavam esses valores ativos na área do ramerrão, esfregando os dedos:

– Faz tudo isso porque casou com a filha de usineiro…

A obra de um homem era maior que toda a obra de um povo. O fator espiritual que o vitalizava tinha aparelhado essa transformação.

Lúcio achava o sentido da vida, amando-a; a vida só premiava a quem a amava.

De um pessimismo de quem fecha os olhos para ver tudo escuro, ele, dantes, sofria não ter nenhum sofrimento. O pessimismo que se enrodilha nos corações vazios, como a cobra no pau oco, era uma idéia fixa que supurava. Quisera curar os males d’alma pela dor sem saber que esse processo agia como a medicina dos sinapismos, abrindo feridas maiores. Sem saber que a dor só é fecunda como uma advertência à cura. E, se purificava, era a purificação do medo.

(…)

Agora sacudia de si essa sensibilidade irrefletida, o espírito artificial das ânsias vagas. Reorganizava a vontade. Arrenegava todas as teorias da dor e do pessimismo.

Só desejava do passado a vida que não vivera.

Nesse esforço de retificação moral, já não queria matar o tempo; quisera, antes, restaurá-lo, criá-lo, desdobrá-lo.

(…)

Seu segredo de otimismo era viver dentro de sua esfera. Situava o ideal da vida no Marzagão. Era o homem mais feliz da terra, sem indagar se além desses limites havia uma ventura maior. Dizia com o orgulho de um pequeno deus: eu criei o meu mundo.

Não procurava os grandes prazeres que solicitam prazeres maiores até chegarem às desilusões arrependidas.

(…)

Saneava o grau de moralidade de um povo que chegara a ter cachaça no sangue e estopim nos instintos.

Perdoava sem malbaratar o perdão. Tinha a experiência de que o mau humor se ralava a si próprio antes de ralar aos outros.

Os moradores gabavam-lhe a gravidade acolhedora:

– É um patrão dado; dá as horas a gente.

Reconheciam a simplicidade de suas maneiras:

– É um homem sem bondade…

Já não pareciam condenados a trabalhos forçados: assimilavam o interesse da produção. E o senhor de engenho premiava-lhes as iniciativas adquirindo-lhes os produtos a bom preço.

Lúcio tinha sobretudo a intuição das utilidades; uma inteligência das necessidades positivas, a disciplina da ação. Bases objetivas que não sacrificavam os estímulos d’alma. Era, ao invés, essa espiritualidade bem dirigida que fecundava as suas melhores soluções. (…) Ele modificava o antigo panteísmo. Criava a beleza útil. (…) A natureza bruta era infecunda e inestética.”

Um romance com tantas boas idéias morrer nesse pragmatismo de S. Mill! Moinho de mixórdia…

Beijos ou risos. Era a mesma coisa.

Ela acercou-se da grande touça amável. E mulher vê tudo. A inscrição estava meio desfeita pelo atrito das hastes: EDADE CIO.

Tinham desaparecido as primeiras sílabas. Só as últimas permaneciam, com um sentido diverso, indiscretamente, numa denúncia significativa: EDADE CIO…

Era o passado que revivia na expressão mais suspeita desses 2 nomes próprios comidos pelo tempo que, ironicamente, deixara de preservar as letras iniciais: SOL LU.”

Bendisse o lance emocional do seu desencanto. Fôra preciso sofrer uma grande dor para curar todas as dores menores. Tinha sido imunizado por uma mortal decepção: o ridículo, quando não mata, cura. Sentia ainda o ressaibo dessa abençoada desilusão.

E evocava a crise de afetividade, essa hipertrofia romanesca, enojado do amor que transfigurava a mulher em anjos ou demônios que não podem ser amados…”

Acaba de contradizer o que disse acima sobre o amadurecimento de Lúcio…

Quando o Marzagão começou a ser feliz, passou a ser triste.

A alegria civilizava-se. Já não era o povo risão dos sambas bárbaros. Tinham sido abolidos os cocos. E as valsas arrastavam-se, lerdamente, como danças de elefantíases.

Lúcio notava que havia gerado a felicidade, mas suprimira a alegria. (…) A inspiração dos brios humanos convertia-se na indisciplina do trabalho. A personalidade restaurada era um assomo de rebeldia.

Um dia tocou o búzio. Lavrava incêndio no canavial. O fogo ainda se ocultava na fumarada para que ninguém o descobrisse. Mas o partido estalava como um foguetório.

Urgia extingui-lo ou impedir-lhe a marcha com aceiros. E cada qual que se retraísse: todos tinham a impressão do perigo; ninguém queria expor-se.

Só Pirunga e Xinane se arrojaram à empresa.

Lúcio lembrou-se, então, da temerária passividade dos moradores na noite em que o açude ameaçava arrombar.

Os que aprendiam a ler na escola rural achavam indigna a labuta agrícola e derivavam para o urbanismo estéril.

A geografia era uma noção de vagabundagem.

O ano de 1915 reproduzia os quadros lastimosos da seca.

Eram os mesmos azares do êxodo. A mesma debandada patética.

Lares desmantelados; os sertanejos desarraigados do seu sedentarismo.

(…)

Lúcio sentia gritar-lhe no sangue a solidariedade instintiva das raças.

E organizou a assistência aos mais necessitados.

Abeirou-se, certa vez, uma retirante com o ar de mistério. Trazia um rapazinho pela mão.”

– Eu fazia ela morta porque não dava acordo de si…

Ocorreu-lhe a circunstância da praga ouvida à última hora.”

A lembrança do amor ou é saudade ou remorso. Nesse caso, era vergonha.

Arrepender-se é punir-se a si mesmo.

Ele chamou o rapazinho a si e tomou-lhe o rosto entre as mãos.

Beijou-lhe a testa suja e requeimada.

Depois, apresentou-o à esposa:

– Essa é… minha prima.

E, a custo, com um grande esforço sobre si:

– É a mãe de meu irmão…”

Vinham protestar contra a admissão dos novos retirantes: Soledade e o filho.”

Só a terra era dócil e fiel. Só ela se afeiçoara ao seu sonho de bem-estar e de beleza. (…)

– Eu criei o meu mundo; mas nem Deus pôde fazer o homem à sua imagem e semelhança…”