José Américo de Almeida
DICIONÁRIO DE (81) TERMOS ESDRÚXULOS E TUPINIQUINS, afora aquelas definições encontradas entre [ ]’s no decorrer das próprias citações (contrastar com José de Alencar e Rachel de Queiroz):
aça: albino // ver fuá e sarará
alapardar: esconder
aluir: abater, abalar
aquilotar: habituar-se
araponga: pássaro cujo canto ressoa ao metal; pessoa que grita.
áscua: brasa, chama
assuada: motim, algazarra
azucrim: diabo
bagaceira: cachaça;
depósito dos resíduos da cana;
bando de palavras desconexas;
ralé;
entulho (coletivo)
banga: cambada de vagabundos; indicativo de mofa com o interlocutor, quando no final da frase; casa mal-construída.
bangalafumenga: zé-ninguém, imprestável // ver leguelhé
batoré: porco, imundo
bouba: ferida
cabroeira: coletivo de cabras (homens)
cafundó: ermo
cambiteiro: profissional rural
cambonja ou cambonje: ave peralta
camumbembe: vagabundo
caninguento: rabugento
capulho: broto ou botão da flor
Cariri: tribo indígena – mais detalhado em https://seclusao.art.blog/2017/06/29/o-quinze-rachel-de-queiroz/
chuchurrear: bebericar com estardalhaço
coco: dança popular de Alagoas
cruviana: grande frio
delerência: delícia (pessoa)
dríade ou dríada: planta que dá flor; divindade.
empacho: estorvo; vergonha.
encalacrar: entalar, endividar, comprometer-se (no mau sentido)
encalistrar: ficar vexado
enxuí: maribondo pequeno porém doloroso como qualquer espécie maior
espia-caminho: flor
espoleta: capataz de fazenda
essa: monumento sepulcral
estreme: puro
fichu: lenço para se proteger do sol forte
figa: várias acepções; dando figa: pouco me fodendo.
fiota: janota
fouveiro: ruivo, de fisionomia europeizada
fuá: arisco (cavalo, p. ex.); caspa.
guenzo: doente
hamadríada ou hamadríade: macaco pequeno e feioso
homizio: desterro, exílio, fuga
hemoptise: hemorragia do pulmão
ledice: ar contente
leguelhé: imprestável // ver bangalafumenga
macaíba ou macaúba: palmeira
maldar (sentido peculiar): dar motivos para suspeitas
mangará: pé-de-bananeira
maracanã: periquito
maracatu: dança folclórica
marouço: maré grossa
matula: corja
moçame: coletivo de “moça”
multípara: parideira, mulher de ativo e fértil ovário, mãe de muitos
niquice: impertinência // também usado por Graciliano Ramos
paleio: lábia; carícias interesseiras.
pantim: boato
patacão: moeda de cobre, do tempo de D. João III; também usada no Brasil e no Uruguai (não a mesma, mas o nome); patela; idiota; cebolão (relógio grande de bolso).
patativa: pássaro do canto doce; sujeito falaz.
peitica: despeito; ave tropical.
perequeté: emperiquitado
piaba: peixe fluvial de pequeno porte
pileca: magro e fraco (cavalo ou homem)
pinóia: puta; pechincha.
pirambeba: mesmo peixe que o cambucu
pulveroso: cheio de pó
punaré: “mamífero roedor, da família dos Echimydeos, gênero Thrichomys, presente no bioma da caatinga, mas também no Paraguai e na Bolívia. Se adapta facilmente a zonas secas e pedregosas. É de pequeno porte, tem pêlos macios, cauda longa e peluda, como de castor, apesar de no mais parecer um rato comum. Também é conhecido, vulgarmente, como rato-boiadeiro e rabudo.” dicionarioinformal.com.br, com adaptações.
rebentina: acesso de cólera
rosetar: divertir-se demasiadamente
sainete: consolo, graça
salmoura: água salgada que conserva alimentos
sarará: mulato arruivado ou com albinismo // ver fuá
sessar: peneirar
sobrosso: medo
sostra: mulher feia
soverter: subverter (regionalismo)
teiró: teima, birra, antipatia
tinhoso: de má índole; repelente.
truaca: bebedeira
trupizupe: desmiolado
zunzum: atoarda, boataria
* * *
“nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só passará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.”
“Um romance brasileiro sem paisagem seria como Eva expulsa do paraíso. O ponto é suprimir os lugares-comuns da natureza.
A língua nacional tem rr e ss finais… Deve ser utilizada sem os plebeísmos que lhe afeiam a formação. (…) A plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir…”
* * *
“Dagoberto Marçau vivia desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o homem-máquina destas terras que ou se agita resistentemente ou, quando pára, pára mesmo, como um motor parado.
Como que cobrara medo ao vazio interior. Não há deserto maior que uma casa deserta.”
“Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos – esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.” “Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.” “Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais.”
“Lúcio responsabilizava a fisiografia paraibana por esses choques rivais.”
“Eu não vou na sua casa,
Você não venha na minha,
Porque tem a boca grande,
Vem comer minha farinha…”
“A história das secas era uma história de passividades. Limitavam-se a fitar os olhos terríveis nos seus ofensores. Outros ronronavam, como se estivessem engolindo golfadas de ódio.”
“A seca representava a valorização da safra. Os senhores de engenho, de uma avidez vã, refaziam-se da depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica.”
“Chorando de quê?! Ninguém é olho-d’água pra viver revendo…”
“– O que está na terra é da terra!
Era essa a fórmula de espoliação sumaríssima.”
Não amasse assim a roupa que tanto ódio causou
“E meteu-se na rede que, parada, é feita para se dormir; mas, aos embalos, a voar, é feita para se sonhar.
Lembrou-lhe o martírio infligido a Seu-bem, um cãozito amarelo com a cauda enroscada como um imbuá [espécie de centopéia ou caracol sem casa e horrendo!], que estivera preso, ali dentro, uma semana, sem comer.
Pungia-o esse remorso.
(…)
Ocorriam-lhe outros malfeitos de menino arteiro: deitava sal no dorso leitoso dos cururus; mudava de ninho os passarinhos nuelos [ainda sem penas]…
Convocava, nessa superexcitação, todos os episódios da infância indócil.
Acudiam-lhe as reminiscências, como um enxame assanhado.
Órfão de mãe, ao nascer, a natureza criara-o vivaz e livre, como um selvagenzinho folgazão.
Não sentira a soledade de unigênito. Crescera de cambulhada com os moleques da bagaceira, garotos de uma malícia descarada.
E recordava-se da violenta transição desses hábitos de liberdade.”
“Os longos silêncios regulamentares incutiram-lhe o vezo das meditações intranqüilas.
E fôra, ao mesmo passo, amolecendo a inteligência com leituras secretas. Noitadas de romances angustiados, debaixo dos cobertores, à luz dos lampiões vigilantes.
A liberdade acadêmica agravara-lhe essa sensibilidade. Duas cadeiras de… réu para ser julgado no fim do ano. A filosofia impérvia como a mata de Marzagão com o cipoal de todos os sistemas enredado no fenomenismo catedrático. O Direito Romano (católico, apostólico, romano…) do professor Neto. (Em Roma só havia o Papa…)”
“Não gostava de ser menino. Minha vontade era ser homem feito. E agora, este buço parece o luto de minha infância que morreu.
Eu sofria na minha inocência com pena dos bichos que se amavam. Amor de arranhaduras, de coices e de dentadas. E, enfim, creio que os beijos doem muito mais.”
“Mal sabia ele que o espelho nos familiariza com a imagem física, mas nenhum homem se identificaria, se se encontrasse em pessoa.”
“Recolher-se é voltar-se contra si próprio. E sobrevinha-lhe o remorso que é o narcisismo dos pessimistas.”
“E ele, a curtir essa crise moral, rebolando o espírito atormentado, por um revide parecido com a greve da fome…”
“De uma rebeldia inativa retraía-se da luta pela vida, como quem estaciona à margem do caminho para dar passagem a um desconhecido.”
“Costumava dizer que suas ações não tinham equilíbrio porque o coração lhe pesava mais do que a cabeça. Parecia-lhe o contrapeso da hereditariedade promíscua.”
“Essa assistência distraía-o, às vezes, do conflito secreto. Era a satisfação de tirar do sofrimento alheio um motivo de alegria íntima, a consciência de ser bom. Um meio de esquecer a própria dor para sofrer a dor dos outros.”
“Eu já ia levantando a cabeça, me endireitando, quando apertou 88. Alguma neblina era só pra apagar a poeira. Chuvas salteadas.
Fiquei, outra vez, no ora-veja, sem semente de gado. Voou o derradeiro patacão do pé-de-meia.
Acabo disso, essa é que foi a seca grande.”
“Sobreveio a seca de 1898. Só se vendo. Como que o céu se conflagrara e pegara fogo no sertão funesto.
Os raios de sol pareciam labaredas soltas ateando a combustão total. Um painel infernal. Um incêndio estranho que ardia de cima para baixo. Nuvens vermelhas como chamas que voassem. Uma ironia de ouro sobre azul.
O sol que é para dar o beijo de fecundidade dava um beijo de morte longo, cáustico, como um cautério monstruoso.
A poeira levantava e parecia ouro em pó.
(…)
Durante um ano a fio, uma gota d’água que fosse não refrescara a queimadura dos campos.
Depois, não se via um pássaro: só voavam muito alto as folhas secas.
Bem. Um passarinho estava sob a última folha da umburana, como debaixo de um guarda-sol. Caiu a folha e o passarinho abriu o bico e também caiu, com as asas abertas.
O panasco pulverizara-se: girava com a poeirada chamejante.”
“Eu nunca que deixasse a minha terra. A gente teimava em ficar e o sol também teimava, como quem diz: <Aqui estou grimpando de cima>. Emperrado de dia e de noite, porque nunca se viu lua mais parecida com o sol.”
“– Você comeu fogo! – disse o feitor.
Ele achou a expressão usual ajustada ao seu martírio.
– Diz bem. Comi fogo em vida. Mas um homem é um homem.”
“O Acre é como o outro mundo: pode ser muito bom, mas quem vai não volta mais. E diz que dinheiro de borracha encurta quando ela estira”
“Baldara-se-lhe todo o heroísmo sertanejo. Ainda bem não se refazia de um cataclismo, sobrevinha-lhe outro. Horrendos desastres desorganizando a economia renascente. O sertão vitimado: todo o seu esforço aniquilado pelo clima arrítmico, perturbador dos valores, regulador inconstante dos destinos da região.
E Valentim saiu, ao desbarato, pela soalheira estendida nas estradas que iam desaparecendo nas várzeas nuas.”
“O papagaio vinha arrepiado, com medo de ficar só.
Soledade quisera soltá-lo à ventura; mas, ele não sabia mais voar e, perdendo o vôo, ganhava esse peco [acanhado] destino humano…
O louro tinha aprendido, como todos os outros papagaios domésticos, o aviso inconsciente, qual uma previsão do seu fim:
– Papa-gai’ não co-meu mo-rreu.
Era o estribilho da fome.
E finou-se, encorajado, escondendo-se sob as asas, numa súplica aflitiva:
– Sol’dade! Sol’dade!…
“– A gente sai por este mundão sem saber pra onde vai. Quanto mais anda, menos quer chegar. Porque, se fica, está de muda e tem pena de ficar. E, enquanto anda, pensa que vai voltar.
Lúcio interrompeu:
– Não interrompendo… Como é que se tem saudade dessa terra infernal?
– Moço, sertanejo não se adorna no brejo. O sertão é pra nós como homem malvado pra mulher: quanto mais maltrata, mais se quer bem.”
“Então, havia um cajueiro curiosíssimo. Bipartia-se em galhos desiguais: um, hierático, linheiro, parecia querer escorar o céu; o outro, de uma humilde horizontalidade, deitava-se, literalmente, no chão.
Era nesse poiso natural que Lúcio ia, às matinadas, repassar seus romances convulsivos. Em vez de interpretar o clássico <livro da natureza>, desdenhava essas folhas verdes ilustradas por todos os matizes e que só têm sido lidas pela rama, para, em tão ledo e fragrante retiro, afundar-se na degenerescência romântica, exaspero da sensibilidade como sal em ferida braba.
Mas, acertara de se enamorar da figurinha fictícia de Sibil, no tablado abominável do empresário judeu. [?]
A mulher era um anjo… depois da queda. Queda, de verdade, que produz mártires e não demônios… (O pobre do anjo mau!…).
Seria capaz de pedir-lhe a mão… para levantá-la desse inferno.
O amor era um consolo. Função de enfermeiro ou de esmoler. [mecenas dos mundanos] A beleza <o longo e obediente sofrimento> da Circe…
E evocava as famosas paixões plebéias. Não excluía dessa baixa do coração nem a humildade da cor. Salomão, o padroeiro das senzalas.
Nigra sum, sed formosa.
E nosso poeta Gonçalves Crespo ganhara esse lirismo pixaim em Portugal:
És negra, sim, mas que formosos dentes, Que pérolas sem par!
Lafcádio Hearn querendo casar com uma pretinha; Baudelaire…
Esteve em levantar-se e gritar: <Viva o amor cruzado que curou nostalgia africana e coloriu o meu Brasil!>”
“Há confidências que aliviam como um vômito, mas repugnam também como um vômito.
Lúcio acolheu-a com um sorriso só nos lábios e continuou a ler.
Então, ela sentou-se no cajueiro ao seu lado. E ele começou a ficar como os cajus, amarelo e encarnado, mudando de cor. Todo contrafeito, parecia recear ser surpreendido nesse convívio suspeito.
(…)
Ela desconversou:
– O senhor quer bem a seu pai?
O estudante pendeu a cabeça humilhado. Acudiram-lhe as cenas de aspereza desse homem brutificado pelo trato semibárbaro do engenho. Já segredavam os moradores. <Aquele dá coice no vento.>
E, intentando confortá-la:
– Não ligue, Soledade: meu pai é pancada pra todo o mundo.”
Alguns avatares se recusam a evoluir, sr. Hegel… Não venha me dizer que era o estágio final!
“Já não era a retirante desbotada e acabadinha, mas a moça capitosa, [obstinada; sedutora] de graças desabrochantes.
Refeita e mimosa, semelhava certas flores que decaem ao anoitecer, para, às primeiras orvalhadas, madrugarem com mais frescor.”
“Os galhos do cajueiro comprovavam as desigualdades acidentais – filhos do mesmo tronco com destinos díspares.
Só, então, Lúcio notou esse contraste.
E Soledade fremia num alvoroço incompreendido.
Sentia o primeiro toque da puberdade que ensaia adivinhar os mistérios interiores. Uma inquietude de virgem na insciência do amor feito de curiosidade e de medo.
Cortejada por toda parte, desassossegada, receosa, refugiava-se na complacência honesta do estudante; discernida com o instinto divinatório com que as mulheres mais ingênuas interpretam os sentimentos que as requestam.”
“Espia-caminho – um nome que era uma advertência, como quem diz <Por onde quer que passes, por toda parte, estão armados os laços da sedução.>”
“Exasperavam-se os cajueiros confidentes.
Não eram mais as árvores acolhedoras dos solilóquios matinais.
Expulsavam os intrusos de sua casta intimidade. E sacudiam neles folhas, cajus, castanhas, maturis [a castanha imatura]… Até galhos secos sacudiam.
Molhavam-nos com o orvalho restante.
Era uma pateada em regra. E rangiam, balançando-se, gingando, em meneios de capoeiras. Contorciam-se, como se quisessem, outra vez, saltar das raízes, cair em cima desse par bêbedo de perfumes que profanava o pudor da alameda aromal.
E o vento ajudava assobiando.
Lúcio saiu desconfiado com o sentido nos bosques sagrados. Mas, não eram dríadas nem hamadríadas despeitadas” Em tradução livre, não eram espíritos nem bichos travessos, mas puro fenômeno natural.
“– Patrão, faz toda vida que não se entrosa um forró – intercedeu o feitor, com fingida indiferença de quem pleiteia um desejo próprio em nome de outrem.
O senhor de engenho pusera termo a essas funções. Costumava dizer que a alegria do pobre era um mau agouro. De feito, não se dava um samba que não acabasse em sangueira.
Mas Manuel Broca segredou-lhe um plano que ele acolheu entre malicioso e desconfiado. E, vendo outros moradores que se acercavam, acedeu com uma praga:
– Pois levem os 600 mil diabos!…
(Os diabos tinham sempre conta certa: eram trezentos ou seiscentos mil…)”
“Os negros giravam como sombras alucinadas.
Parecia um inferno orgíaco.
De chofre, todas as mulheres deram as costas para a porta. Era a superstição de que, estando alguém, do lado de fora, a rezar às avessas, via despidos os que se achavam dançando.”
“Despercebido de todos os vexames do servilismo remanescente, o povoléu rural desmandava-se na animação barulhenta.
Parecia que o problema da felicidade se resolvia nessa diversão agreste.
Era um júbilo integral. Uma alegria unânime que cantava como a melhor música do samba.
Sem os fermentos da ambição que atormentam a natureza humana; sem os cuidados da previdência, numa vida de cada dia; sem imaginação que elaborasse pressentimentos mofinos; sobretudo, sem tempo para pensar em ser triste – essa gente tinha a fortuna de não se conhecer. As próprias dores físicas eram discretas, sem choro alto.
Lúcio corria-se de sua tristeza inveterada perante tanta explosão de prazer que dissimulava a penúria permanente. Chegava a saber que os sofrimentos morais eram uma ilusão dos sentidos. Só havia uma condição de felicidade: não saber sofrer. Feliz era o animal que se encolhia à chicotada e a esquecia, quando deixava de doer. Feliz era a sensibilidade que não ia além da casca grossa. E bendizia a ignorância que ignorava até a dor. Invejava essa vivacidade inconsciente. Acostumado a cultivar as sentimentalidades malsãs, como um mendigo que vive de sua ferida aberta, ouvia casquinadas cavas, oriundas, talvez, das cavernas do estômago, e não sabia rir de estômago cheio.
Entrou na onda pulverosa. E testemunhava os idílios brejeiros, cuja amostra mais doce era uma injúria: – <Feia!…> – <Essa safada!…> Ou, um derrame lírico: – <Bichinha…> E, quando passava da palavra ao gesto, era um beliscão, uma pisadura, um puxavão de orelha, uma dentada… Só uma carícia não doía: o cafuné. Mas, às vezes, as unhas penetravam com mais bem-querer.”
“<Cabra danado,
Se não tem corage, eu tenho
De pegar nessa pistola
E atirar no senhor de engenho…
Minha senhora,
De que chora este menino?
Chora de barriga cheia
Com vontade de apanhar…>
O estudante observou: <Musa mentirosa!… Atirar no senhor de engenho neste estado de subordinação crônica… Chorar de barriga cheia, como se não chorasse senão de fome…>”
“Estudante é uma raça de gente que só vive de cabeça virada…”
“revelam-se excelências plásticas nessa desordem de músculos de alguns tiparrões excepcionais. Donzelas equívocas da redondeza acudiam ao estalo dos dedos, como se chama aos cães.
Mas, ali não se brigava por mulher: o amor não valia uma facada.
– Olhe que eu te dou uns croques! [cascudos]
– Quando chegar em casa, você chia no relho [cinto]!…”
“A polícia debandara, aturdida.
– Fez sangue?
– Foi a força do governo, patrão.
Para eles o governo era, apenas, essa noção de violência: o espaldeiramento, a prisão ilegal, o despique partidário… Não o conheciam por nenhuma manifestação tutelar.
E explicavam:
– Chegou e foi metendo o fandango. [festival de sapatadas] Só pra empatar o samba. Passou o refe [arma, rifle] em tudo.”
“Sabia que a fotografia não era sua e alvoroçou-a a curiosidade – a única forma de impaciência da mulher, esse apetite do desconhecido que constitui, as mais das vezes, o móvel de sua perdição – a curiosidade de verificar quem era aquela figura feminina que tanto se parecia consigo.
Instava:
– Lúcio, não é meu?
Suspeitou que interessava ao estudante porque se assemelhava a alguém que ele amava. Era a condição mais humilhante de ser amada.
Como quem ama de olhos fechados, com o sentido em outro amor.”
“Soledade estava acostumada a ver bichos esfolados e esquartejados, o choro dos bezerros na ferra, os rebanhos carpindo-se [chorando] no sangue fraterno, a rês levantando-se náfega [torta, cambaleante] das mucicas [puxão pela cauda para derrubar] da vaquejada, as ossadas da seca… Mas, não havia termo de comparação com esse suplício dos mártires da almanjarra. [roda hidráulica que o gado é forçado a mover]
Era a sorte dos bois sertanejos na bagaceira…”
“A almanjarra ronceira, [indolente] à pachorra [lerdeza] das juntas fatigadas, era o símbolo diuturno da rotina empeciva. [estorvada] Traçava, inalteravelmente, a mesma circunferência na bosta de boi.
Era a norma automática que distingue a mesmice do instinto das variações da inteligência.
A moagem ia, por assim dizer, de meia-noite a meia-noite. Os eixos frouxos vomitavam o bagaço maior do que a cana engolida e mijavam um fio de caldo no parol [recipiente onde cai o caldo]…”
“Ninguém queria. Dava por menos: 8$000, 6$000… E, com o papagaio no dedo, beijando-o, cheirando-lhe as asas. Afinal, vendeu-o e entristeceu, porque não tinha mais, em casa, quem lhe chamasse pelo nome…
– Por esse preço, volto com ele.”
“Vendiam a faca de ponta e cachaça, para que a polícia e a justiça cumprissem, depois, o seu dever.
A feira de cocos era um tintim por tintim… Comprava-se pelo som, batendo com uma moeda.
Moeda corrente: pelega, [cédula] bagarote, [dindim] selo, cruzado, pataca, [moeda de prata, igual a 320 réis] xenxém [xem-xem, moeda de prata, 10 réis]…”
“– ‘Stá aí! ‘Stá vendo? Ticaca!… [gambá nordestino]
Assim o chamava em seus arrufos. No sertão ia pegando. Não que ele fosse catingoso. Efebo sadio, se tinha algum pituim, era o bodum do chiqueiro.
Vinha-lhe o apelido de um episódio da infância. Fôra o caso que, quando menino, dera com uma maritacaca detrás do serrote da acauã. [ave de rapina que se alimenta de cobras]
E, como não tivesse olfato, de nascença, procurou alcançá-la. A bicha defendeu-se, o quanto pôde, com a micção fétida. Ele nem se dava disso. Que gentil e mimoso animalzinho!
Trouxe-o nos braços, como um achado curioso.
Misericórdia! Tudo se impregnou do mau odor.
E, depois de muitas esfregações, ficou sendo Ticaca.
Aspirando o cheiro que se evolava de Soledade, o estudante apiedou-se de Pirunga a quem faltava um sentido tão precioso. E imaginou com que fúria ele a amaria, se lhe sentisse o bálsamo do corpo virgem.
Essa vigilância era um incitamento.”
“– Ainda estou por ver uma moça mais foguete!… Solta de corda e canga e o branco sem respeito na batida dela…
– Mais hoje, mais amanhã, esse negócio acaba em choro de menino…
– Minha negra, não é por falar, mas já caiu na boca do mundo.”
“Bonita, nada! É só engraçadinha…”
“Se os homens se comportavam assim, como os bichos de sua convivência, nas cenas de fecundidade da fazenda, por que Lúcio, que a seguia por toda parte, como o marruá [touro selvagem] acompanha as vacas solteiras, não lhe dera ainda um sinal dessa animalidade?”
“tanto mais triste e sofredora, mais a queria, como a figura magrinha e dolente da estrebaria.”
“A palpitação das narinas dava-lhe um ar mais picante.
Emboscava-se nas moitas arremedando os anuns. [aves que se enroscam nas árvores]
Assanhava os maribondos. E desferia a rir, perante as piruetas de Lúcio, que punha as mãos na cabeça, aperreado.”
“Nisto, surdiu o feitor. Esfregou a mão na axila e tirou a caixa de maribondos, todos quietos, inofensivos, como abelhas brasileiras.
– Como é isso, Manuel? – inquiriu o estudante.
Manuel Broca passou, de novo, a mão no sovaco e apanhou, impunemente, outra caixa.”
“Nesse ambiente afrodisíaco, nutria um amor sem carnalidades, um idílio naturista, com o sabor acre de fruta de vez, junto aos abandonos e aos modos de indiferença ou de entrega dessa mulher perturbadora que alvoroçava todo o Marzagão.
A semelhança evocativa amortecia-lhe os apetites indiscretos que a natureza velhaca lhe destilava no sangue tropical.
E governava as venetas de gozo. Chegava a ter remorsos dos sonhos ruins.”
“E ela ficou olhando outros passarinhos acasalados – o macho, de ordinário, mais bonito que a fêmea. E era também o que cantava.
Então, voltou-se para Lúcio, esquecendo-lhe o nome:
– Esse menino, você é tão capiongo, [soturno] nem abre o bico. Faz toda a vida que não me conta uma história.
Um ventozinho madrigalesco mexia-lhe as madeixas curtas, ora alargando-lhe a testa, ora cobrindo-lhe os olhos.
(…)
– Era uma vez uma fada. Como não havia tão bela entre os anjos e as 11 mil virgens, o céu vivia a mirá-la, todo o dia que Deus dava, com o seu olho de sol, muito aceso e namorado. O sol crescia e se enchia de luz pra ver melhor. Nenhuma nuvem passava por essa visão de fogo. E o céu era tão feliz que não chorava mais. Nem uma gota d’água! Por causa desse namoro, as fontes foram secando, as árvores esfolhando-se, a terra estorricando…
– Deixa de enjôo, enjoado!… – interrompeu Soledade, atinando com a alusão piegas.
Enjoava-se dessas fantasias.
(…)
– Não é o cacho que vem saindo?… A bananeira está parindo.”
“Encalmava-se o dia.
Desvãos de verdura, moitas de uma confidência exemplar com que guardavam as sombras doces, ofereciam-se a esse enleio amoroso e confiado.
Eram gasalhados convidativos, recessos nupciais. O bambual com o refrigério dos seus leques. O dossel de maracujá com flores e frutos.
O melão bravo, envolvendo um arbusto, todo salpicado de ouro, formava um ninho acintoso.”
“Havia troncos crespos de cigarras cantadeiras. (Quem duvidar é só ver na serra.)
As macaíbas prediletas tinham cigarras como espinhos.”
“Já teria o pudor deteriorado pela contaminação da bagaceira?”
“Vendo que o casaca-de-couro [curutié, adora trepar em árvores e tem cor de canela] compunha o ninho com espinhos e gravetos, Lúcio censurava:
– Passarinho chabouqueiro [tosco]!…
Só compreendia o amor conchegado em plumas.
E Soledade lembrava o beija-flor que nidifica, de preferência, nos pés de urtiga. Comparava:
– Veja como o coração é bem guardado! A gente não pega, não vê…
E, levando a mão ao peito:
– …mas é o que se sente mais: bate sem parar e bate, dentro, com mais força, quando já não nos pertence…
Uma tardinha, ela estacou perto de casa e pediu a Lúcio que lhe abotoasse o casaco aberto atrás.
Com os dedos desastrados, ele aflorava-lhe as espáduas capitosas.
Sentia-lhe na penugem da nuca um cheiro extraordinário de bogari [jasmim] machucado.
Ela encolhia, aos toques casuais.
– Olhe, direitinho!…
E virou a cabeça. Estavam as casas desencontradas. Com uma só mão fechou o casaco prontamente – sinal de que o havia desabotoado por gosto.”
“Lúcio repôs-se a custo:
– A gente não pode nem…
– …nem o quê, branco sem respeito!
– …abotoar.
Pirunga tomou o verbo no sentido brasileiro [agarrar com segundas intenções] e apresentou-lhe o peito forte:
– Abotoe! Abotoe! Abotoa nada!…
E teria investido, se Soledade não o houvesse chumbado ao solo com o olhar agridoce.”
“– Você conhece a história de Carlota? [gênero de azeitonas; forte, livre; mulher do povo]
– Tenho uma idéia…
– Era uma mulher do sertão do Pajeú. [<planta pontuda>] Descera na seca de 45 e ia arrasando o Brejo…
Torceu o nariz e retificou:
– Ia arrasando, uma história: arrasou, bem arrasado!
Procurou colher a primeira impressão nos olhos do filho e prosseguiu:
– Sertaneja, quando é boa, é boa; mas, também, quando desencabeça!…
E, tendenciosamente:
– Então, se é bonita…
Continuou:
– Carlota chegou aqui na tira; mas, com pouco, estava feita uma senhora dona. Vivia como uma princesa na roda das famílias. Bastava ser espingarda do chefe, um homem de poder e dinheiro que mandava em toda esta redondeza.
E, usando de uma familiaridade a que Lúcio estava desafeito:
– Mas, meu filho, a mulher parecia que tinha trazido todo o cangaço do sertão e o fogaréu da seca debaixo da saia. O fim foi aquela derrota! Ela mandou matar um deputado geral – o dr. Trajano Chacon. A política virou. E nem lhe conto: morreu Beiju enforcado; foi gente pra Fernando. Os maiorais da terra… Ela também. (…) Areia nunca mais se levantou! Vá por todo este distrito e, se encontrar um ente de Deus com o nome de Carlota, eu dou o pescoço à forca…
Lúcio explodiu:
– Então, o senhor conheceu Carlota?! Era bonita mesmo? Sim, devia ser muito bonita!
Dagoberto deu de costas.
E, sob a impressão romanesca desse episódio amoroso, ele correu à casa de Soledade.
Não a encontrou.
Nesse comenos, seria capaz de exumá-la, se ela tivesse morrido, tamanha era a ânsia de vê-la.”
“Pressentia-lhe as fatalidades de Helena e Carlota, destruidoras de cidades.”
“Sentia-se predestinado a participar dos seus maus fados.
Então, fora de si:
– Soledade, dá-me o beijo de morte! Comunica-me num beijo o teu destino de tragédia! Liga-me aos teus maus augúrios!…”
“E ele baixou-se e passou a examinar o corpo cilíndrico da anfisbena [cobra de duas cabeças], sem distinguir-lhe os olhos minúsculos:
– Duas cabeças e cega! Não admira, pois, que, com uma cabeça só, eu viva nesta cegueira… E dizer que foi a própria luz da inteligência que me cegou!…
Depois, ficou a considerar que não havia termo de comparação entre Carlota e Soledade – uma conspurcada na mancebia adulterosa, a outra um <anjo de inocência>.”
“Santo Deus! os guris lázaros, embastidos de perebas, coçando as sarnas eternas. Sambudos, [desnutridos, esquálidos, anões, caveiras de barriga de verme, etc.] com as pernas de taquari, como uma laranja enfiada em dois palitos.
As cabecinhas grisalhas do lendeaço fediam a ovo podre.
Mas não choravam, não sabiam chorar.”
“A natureza caridosa procurava encobrir essa miséria. A jitirana [planta] encostava-se na baiúca [pocilga] infeta, marinava pela parede rota e ia desabrochar, toda espalhada, na coberta de palha, formando o que nenhuma casa rica ostentava: um teto de flores.”
“Não havia choça paupérrima que não tivesse um cachorro gafo. [leproso, faminto]
Era o sócio da fome.
Os pobres gozos herbívoros! Comiam capim, pastavam como carneiros.”
“Havia música de graça nos coretos do arvoredo. Perfume de graça em cada floração.
E o sol fazia-lhes visitas médicas entrando pelos rasgões dos tugúrios.
Afinal, valia a pena viver, porque ninguém se matava. Não se dava o caso de um suicídio.”
“O patrão toca da terra, sem se fazer por onde… De uma hora pra outra, se está no oco do mundo.
Amanhece aqui, anoitece acolá.”
“Passavam as lavadeiras vistas de longe como monstros macrocéfalos – com uma trouxa na cabeça e outra trouxa na barriga. Enchiam as panças, já que não podiam encher os estômagos.
Mulheres extraordinárias! Filhavam uma e, não raro, duas vezes por ano.
Engendravam-se em prazeres fugazes eternidades de sofrimento.”
“A água, tão boa para purificar, lameirava o sítio. Tudo se fundia em lama.
A enxurrada revolucionária transpunha as represas, inchando, espumando, blaterando…
Os córregos mais humildes rompiam o álveo, espalhando-se, esborrotando as levadas, cacheando pelos baixios.
Mananciais aos gorgolhões, como vômitos incoercíveis.”
“De primeiro, Soledade gostava do cheiro quente da terra molhada pelo chuvisco. Lembrava-lhe os campos lavados do Bondó.
Mas a chuvarada agressiva deu para enfastiá-la.
Era a flor de estufa transportada para o atoleiro. Tinha saudade da quentura das estiagens fatais, dos dias mormacentos do sertão soalheiro.
O que mais a amofinava era não poder vaguear pelos lúbricos [escorregadios, deslizantes] lamarentos. O aguaceiro, como uma sentinela à porta, sonegava-lhe as recreações bucólicas.”
“E ela dizia para Lúcio:
– Tudo quanto é bicho cria asa no inverno: é formiga, é cupim.
Só a gente não cria.
– Pra voar pra muito longe…”
“A saparia começava a toada de sete fôlegos. O comum era um reco-reco rascante. Depois, concertava-se toda a variedade instrumental – carrilhões, castanholas, flautins (um flautim gritante) e, afinal, a pancadaria da jia: bum! bum! bum!”
“Chuviscava. Uma chuvinha miúda, conta-gota, antipática, como toda impertinência pequenina. O xixi intolerável.”
“E o céu encarvoava-se. Ficava baixo, frisava pelo copado, pesava nas cabeças. Reatavam-se os dias lutuosos.
Outro chuvão hostil. A luz do relâmpago molhava-se nas cordas d’água.
E as árvores cavadas ficavam dançando nas raízes, numa dança macabra, até tombarem, pingando, como num suor de agonia ***
O amor de Soledade era uma sinfonia de chuva com sol. Um idílio de venetas – ora de meiguice inesgotável, ora de maus modos. Tão depressa se conchegava rendido, como se esquivava enjoado.”
“Como?… Começaria pelos dedos ou, melhor, pelas unhas. Se não relutasse, subiria pelo braço; e, se gostasse, na testa, um na testa; e, se anuísse, nos olhos – sim, fechar-lhe-ia os olhos com muitos beijos, para, então, de surpresa, beijá-la, bem beijada, na boca. Um beijo que lhe deixasse uma cicatriz n’alma. Queria sorver-lhe o aroma carnal que se bebe em beijos.”
“No caso que andasse enamorada, seria uma determinação natural; mas parecia-lhe que ela propendia para um amor criminoso.
Que, desde a partida de Lúcio, tinha outras maneiras, tinha e a ninguém passava despercebido. E esses modos acusavam certa transformação interior.”
“No sertão tudo era livre: não se prendiam nem os caudais nas barragens. Mas só as águas não voltavam…
Aviventava a nostalgia incurável, o mal de uma instabilidade que não condizia com a vida sedentária de seu natural.”
“– Hum! A menina está um moção!…
E, perdendo o antigo respeito nesse nivelamento da seca:
– Eu, sendo comigo, não deixava brejeiro tomar chegada…
Ela palidejava e enrubescia.
Continuou, sem saber que estava remexendo uma ferida aberta:
– Moça triste é sinal de…
Pirunga levou o indicador aos lábios, pedindo silêncio.”
“– Menina, você tem pena do sertão?
Ter pena – como se ajusta essa sinonímia, quando a saudade se aplica ao sertanejo! É a sua única sentimentalidade.”
“Mas, daí a pouco, tornou o silêncio de quem não ouve nada porque só se ouve a si próprio. O silêncio fecundo que é o ritmo de quem se escuta.”
“Instado, Pirunga improvisou:
Não se vê um olho-d’água,
Quando há seca no sertão.
E enchem-se os olhos d’água,
Quando seca o coração…
O xexéu de minha terra
Que me ensinou a cantar
Antes me tirasse o canto
E me ensinasse a voar…
Um dos tropeiros responde:
Quem deu pena ao passarinho
O canto tinha que dar:
Quem voa sofre saudade,
Quem sofre deve cantar…
Pirunga confiou-se à veia repentista:
No quente do coração
Eu criei um passarinho
E, foi ter asas, voou,
Não quis mais saber do ninho…
Um bacurau, [ave noturna] o gago notívago – baco… baco… bacurau – lembrava no vôo curto e na gaguez os poetas da bagaceira.
E a natureza abafou-se, novamente, em cochichos. Sussurros anônimos. Pios assustados. Murmuravam os sons humildes que tinham estado à espera do silêncio.”
“Chocavam-se os dois sentimentos fundamentais do sertanejo – dignidade da família e o apego à gleba. Ele sabia que o crime lhe acarretaria a prisão no meio adverso. A nostalgia quebrantava-lhe o pensamento de vingança.”
“Pirunga estivera, cedinho, a coscuvilhar a bruaca e sumira-se, como encanto.
Valentim ficara em casa para não dar de cara com o feitor. Afastava de si qualquer incidente que pudesse embaraçar-lhe o regresso premeditado ao sertão.
Queria combinar tudo com Pirunga e nada dele aparecer.
Dera uma volta pelo engenho, daí se passara à casa de farinha, espiara o canavial de longe e nem sombra dele.
Recrudesciam-lhe os pressentimentos. Teria fugido com raiva de Soledade? Teria seguido o comboio?
E, descoroçoado por mil apreensões, sentiu-se, desenganadamente, abandonado no exílio adverso, quando mais carecia desse bordão da velhice decadente.
Aquele que fazia as vezes dos seus filhos não o acompanhara por uma dedicação desinteressada, mas por causa de Soledade. Porque, desfeita a última esperança, se safara, como os outros.”
“Pirunga relutava. Desobedecia pela primeira vez.
Um vem-vem provocativo começou a cantar.
Era a voz do sertão que os invocava num apelo instante.
Valentim rogava, humilhado:
– Meu filho, vamos s’embora! Lá a gente não se lembra de nada.”
“Qual a onça acuada por uma matilha de gozos, o criminoso detinha com uma imobilidade faiscante a cabroeira poltrona – para mais de 20 sujeitos que o cercavam, à distância, com as enxadas erguidas.” “E Valentim fazia frente a 20, 30, a quantos acudiam ao clamor de perseguição e cobardia.”
“– Mas padrinho!…
Alheio às circunstâncias da luta, examinou-o, de revés, atento nos seus perseguidores. Vendo-o ileso, exprimiu uma alegria selvagem, com o ar de desafio ou de escárnio.
– Eu venho punir por ele, brejeirada de mucufa! [bando de covardes]
E atravessou-se para que ninguém lhe pusesse a mão.
Estranhou ainda:
– Mas, padrinho!…
(…)
Dagoberto saiu-lhe à frente. Encorajou os capangas:
– Brejeiro, quando dá pra valentão, não há sertanejo que pegue!
Valentim entesou também com o senhor de engenho”
“Entregando-se, ele preservava a fuga para o sertão.”
“– Eu não sei quando me livro. Se você deixasse a bagaceira e voltasse com ela – você sabe… – eu não fazia caso: morria satisfeito na cadeia. Você podia…
E embatucou. [paralisou]”
“Sobrevinha-lhe uma curiosidade involuntária, quando ela se mexia no lençol. Como estaria deitada? De borco? De borco não seria…
(…)
Lembrava a inocência com que ela lhe saltava nos joelhos, o tempo em que a tomava nos braços, nuinha e tenra como um querubim-menina, desses que não saem do céu, nem para as estampas bentas.”
“correu transtornado, com muito mais medo dela, do corpo branco, como uma mancha de luar na treva absoluta, do que do bicho imaginário.”
“Enfarado das mulheres superfinas que civilizavam o sexo, Lúcio não se esquecera de sua beldade matuta, corada pelo sol e cheirando a si mesma.”
“Seu bucolismo fôra uma criação lírica. A paisagem perdera aquele sentido solidário. Escravizara-se às formas exteriores refletidas em sua sensibilidade; mas das árvores só lhe restavam n’alma as sombras úmidas.
O que lhe parecera o sentimento da natureza fôra uma subordinação vulgar.
O espírito moderno enfastiava-se da mesmice do campo, do eterno espetáculo de flores e cantos. Amofinava-se dentro dessa alegria natural como um doente de indigestão que sofre da felicidade do estômago cheio.
Não distinguia as variedades da estação: as mangueiras e os cajueiros sujos de sangue, sangrando na folhagem nupcial; abacateiros floridos cobertos de insetos, com as copas musicais, como violinos em surdina; o jatobá carregado, batendo num barulho de castanholas…”
“A noite nua, sem o maillot das nuvens, nas negligências da solidão, tomava um banho de leite. E a brancura tangível escorria molhando as coisas adormecidas. (…) Um ruidoso meio-dia à meia-noite.”
“Mulher é como fruita: quando cai, apodrece…”
“Falava baixo, com a fadiga da voz. Batia os dedos em tudo, como num teclado.
Não se sentava que não enterrasse a cara nas mãos. E deu-lhe voltar aos antigos hábitos – à solidão voluntária do quarto de dormir.
Refugiava-se nos livros de uma invenção fantástica que lhe haviam desorganizado a sensibilidade.
Tendo presentes os conselhos de Milonga, tornou, um dia, a rabiscar na parede com o veneno pessimista:
O amor é o caixeiro-viajante da propagação da espécie.”
“Nós compramos as mulheres perdidas e as mulheres honestas nos compram. É o regime instituído pelos interesses sexuais.
Há uma generosidade egoísta: a de quem ama sem ser amado.”
“A mulher só sabe guardar o seu segredo. O amor é a única força capaz de a descobrir; e, quando a descobre toda, nas denúncias de certos abandonos, ela está perdida para o próprio amor que a descobriu.
Não! a mulher que ama é a que diz menos, porque é a que mente mais.
Só a mulher que sofre diz tudo num grito de dor.”
“A maior das saudades é a do bem presente que já não se alcança.”
“Indo ao pomar, só distinguia nos frutos sazonados as manchas pretas.
Dir-se-ia que a alma se lhe tinha apodrecido dentro, como um feto morto.
Sentia que a sua piedade para com os outros não era mais do que uma forma da piedade devida a si mesmo.
Trazia a cabeça inclinada, como quem leva o peso de uma idéia fixa.”
“Tinha a ânsia de retomá-la; só se corre para o que foge.”
“Se sei? Até gato e cachorro sabem que o senhor vai me defender aquele bandido no júri. Foi pra isso que o botei no estudo – pra ser contra mim, pra me derrotar!…”
“– É!… Beija as mãos de um criminoso e nunca beijou as de seu pai!
– Nesta casa nunca se ouviu um beijo!”
“Lúcio aproveitou-se desse silêncio perturbador e disse, deliberadamente, com um insólito poder de resolução:
– Meu pai, eu serei advogado de Valentim. Mas não era isto o que eu vinha dizer-lhe. Eu queria dizer-lhe…
– Que ajudará a matar-me! Não é isso? Não sei onde estou que…
– Não, senhor! Não perca a calma. Eu vinha dar-lhe parte – e já pouco me importa que saiba – que…
Aí, empalideceu de certo modo e acabou numa fraqueza doida, como o criminoso com a perversidade da confissão:
– …vou casar-me com a filha do assassino.
– O quê?! Então, você!…
Dagoberto ficou da cor da parede. Ficou branquinho!”
“Quer que lhe diga? É de sua vontade? Pois não me faz nada que case ou não case. É senhor de suas ações…”
“Para que foi que eu gastei tantos e quantos? Dinheiro que dava pra levantar a cabeça de muita gente… Pra que foi que o tirei da bagaceira? (…) Mas isso não tem tramenha. [cilada] Se estudo dá é pra desmantelar a bola, você me vai é pro cabo do freijó. (…) Então, seu corno, você pensa que me bota o pé no pescoço?! Que me desmoraliza a raça?
Esteve, vai-não-vai, a saltar-lhe ao gasnete. [garganta] Chegou a fazer menção de aberturá-lo. [agarrá-lo pela gola]”
“– É coragem muita!… E não lhe digo mais nada…
Mas, de pancada, voltou-se, imperativamente, num vozeirão, como se tivesse a alma a trovejar.
– Não! não casará com a retirante! Corto a mesada, boto pra fora de casa!… Tinha que ver!…
– Por ser retirante, não. O senhor não casou com minha mãe?
– E a que vem isso? Sua mãe não era essa mundiça! [imunda]
– Não diga isso, meu pai!
– Não diga o quê?!
– Se minha mãe não era retirante, Soledade também não é… (…) O pai de Soledade não é irmão do pai de minha mãe? Pois, então?
Dagoberto desconcertou-se:
– É a pura mentira!”
“– Não, meu filho, ela não pode ser tua esposa porque… Eu profanei a memória de tua mãe, mas foi tua mãe, que amei nela…
Lúcio sentiu que lhe refluíam todas as taras atávicas, os impulsos da raça vingadora, o sentimento de família dos seus antepassados sertanejos.
– Que é que o senhor está dizendo?
Dagoberto deu um passo atrás corrido de vergonha dessas dissonâncias da honra. Bem que o feitor lhe dissera que com aquele calibre passaria a perna em seu Lúcio.
E o estudante não lhe temia a veemência, embora lhe evitasse olhar.
– Meu pai, o senhor está mentindo para me dissuadir!…
– Ah, meu filho, antes fosse mentira! Mas a gente tem duas idades de perder a cabeça…
– Eu logo vi! É por isso que o senhor tem medo do assassino… Porque sabe que minha gente não perdoa essas afrontas!
E, como se falasse ao retrato:
– Meu pai desonrou minha família, prostituiu minha prima, tomou minha noiva!…
Ele sabia que o coração não é capaz de renúncias; mas também devia saber que o pai pode disputar tudo ao filho, menos o seu amor, que é um direito da idade.
Caiu o quadro espatifado.
Ambos se assustaram diante desse mistério.
Fôra Milonga que o derrubara por trás com o cabo da vassoura.
E, com a ascendência ganha pela humildade das criadas velhas:
– Minha gente! isso é um fim de mundo…
Saiu carregando tudo:
– Enquanto eles virem a morta não se esquecem da viva. É a mesma coisa…
Lúcio recuou:
– Eu queria resgatar aquele destino. Meu amor encarnava todo o sofrimento da seca.
Dirigiu-se ao pai:
– Tome-a para o senhor. Já é sua…
E, como lhe percebesse um gesto de renúncia:
– Eu matei, nascendo, minha mãe. Foi por minha causa que o senhor perdeu sua mulher; agora, não seja também por mim que perca sua amante. Não diga mais que nem bonita é… É bonita e é sua.”
“Não sabia que ele tinha caído na vida? Estava tudo de língua passada… Eu vi o esternegue! Babau!…”
“– Agora, já sei por que querias ser minha mãe! É impossível: eu já não tenho mais pai!
Despediu-se, ao dobrar a estrada:
– Até dia de juízo!”
“(As saúvas solidárias – as mesmas formigas sacrílegas que haviam derruído a igreja de Santa Rita – carcomiam, impunemente, a cadeia fedorenta que empestava todo o quarteirão.)”
“Valentim voltou-se, afinal, para Pirunga:
– Homem, que é isso?! Parece que você viu alma do outro mundo…
– Padrinho, Soledade não tinha nada com o feitor…
– De verdade, Pirunga?! Que é que você está dizendo? Eu logo vi! Minha filha…
Recuou para os presos:
– Vocês querem cigarro? Tomem cigarro!
E não encontrou mais o maço que havia escondido no reboco aberto.
(…)
– O feitor era só leva-e-traz…
– O quê, Pirunga?! O feitor…
– Era só espoleta… Andava aos mandaretes… Foi tudo obra do senhor de engenho… A derrota está feita!…
A cadeia estava vai-não-vai. Rangeram as traves com o pé-de-vento num longo gemido do teto desengonçado.
Valentim fez menção de sair:
– ‘Spera aí! Eu vou já-já!…”
“Eu atirei no que vi… Nunca que eu pensasse!…”
“E, beijando os dedos em cruz:
(…)
– Eu quero é que você prometa que não mata o senhor de engenho.
(…)
– Pois, padrinho, desde que eu sube, só dava tempo era vir pedir licença ao senhor… A pistola já está escorvada. [com a pólvora carregada]
– Ninguém me tira o meu direito. Um dia, cedo ou tarde, eu hei de me livrar, porque Deus não é servido que eu morra desonrado! – blaterou Valentim.
E acalmando-se:
– Jure que não mata e que irá com eles pra onde eles forem. Feche os olhos a tudo. Faça de conta que não vê. Vá sempre na batida. Dê aqui, dê acolá, não deixe o rabo da saia dela!
Era horrendo esse pacto.
Ficaram nisso. Pirunga beijou, silenciosamente, os dedos em cruz.”
“O sertão tinha um cheiro de milagre. A natureza imperecível ostentava, de extremo a extremo, uma beleza moça. Tinha morrido só pelo gosto de renascer mais bela.
Reflorescia o deserto arrelvado nesse surto miraculoso da seiva explosiva. Revivia a flora, frondeava a catinga, de supetão, na paisagem nova em folha. Cada árvore tinha um vestido novo para a festa da ressurreição.
Como que as pedras rebentavam em folhagem. As trepadeiras subiam, enroscavam-se pelos anfractos [ cf. definição em https://seclusao.art.blog/2017/06/29/o-quinze-rachel-de-queiroz/ ] e faziam com que a rocha nua florisse.”
“O sertão pagava-se dos anos estéreis com essa largueza.
Todos queriam desfrutar a felicidade bandoleira do paraíso pastoril.
Só havia de triste o balar das ovelhas – bicho triste! – cabisbaixas e unidas, como meninos medrosos, tão junto o rebanho, que parecia um algodoal aberto.
Não: havia em tudo isso, nessa revivência estuante, uma tristeza maior.”
“Dagoberto afeiçoava-se, o melhor que podia, à vida pastoril.
Não era raro que saísse também a campear.
Corisco revigorado, com o brio dos árabes ancestrais, era a sua montada predileta.
Pirunga advertia:
– Olhe que o cavalo mete de cabeça! Não vá desembestar…
E, um dia, desembestou: picado nas ilhargas, sem precisão, arremessou-se aos trancos, voando por cima de todos os precipícios.
(…)
Desequilibrando-se pela violência do salto, Dagoberto agarrou-se a um galho atravessado. E ficou bem meia hora dependurado, a oscilar, como um enforcado, servindo de espantalho.
A qualquer esforço para subir, o ramo frágil ameaçava partir-se. E embaixo o cacto agressivo esperava-o com os braços erguidos arrepiados de espinhos longos como estiletes.”
“Se cair, fica uma renda, fura até a alma!”
“Dagoberto, no último alento, expediu um grito fúnebre, como se já estivesse sofrendo a dor dos espinhos. E Pirunga avançou para Corisco, montou, fez carreira, saltou e, tomando o rival nos braços, alcançou o outro lado, são e salvo.”
“Pirunga procurava afazer-se à missão que Valentim lhe cometera; mas recobrava nesse sistema de vida o gênio selvagem. Revertido à liberdade do sertão, que lhe restituía o brio congenial, sentia todo o pejo da transigência imposta por uma vingança aprazada.
Via os animais jucundos [joviais e prazenteiros] nos escândalos da reprodução. As novilhas núbeis dando-se aos touros patrícios; o pai-de-chiqueiro em libidinagens olfativas; o carneiro gemebundo com o pescoço alongado no lombo da marra pudica…
Só ele representava a renúncia do amor incendiário.
Zoava no mato um jazz-band de chocalhos. Tilintavam rosetas.”
“Ia sentar-se na ribanceira para ver a nova enchente do rio que engrossava borbulhando em maretas barrentas. Despejando-se um jato intumescido, numa escapada de poucos dias, na vertigem do curso impaciente, a correnteza brutal deixava o leito seco e, no arremesso erosivo, levava de presente para terras estranhas tudo o que podia levar.”
“– Eu vi a onça que você criou. Até inda tem coleira – disse Pirunga a Soledade.
– Mimosa?! Pois eu jurava que ela tinha morrido. Soltei com tanta pena! É capaz de me conhecer.
– Conhece o quê! Conhece nada! A bicha parece que nunca saiu da furna. [caverna]
– Pirunga, vamos pegá-la?
– Olhe que, quando ela me avistou, levantou a mão, parecia que estava dando adeus; mas, o diabo que receba a unhada!
Soledade tanto fez, que Pirunga resolveu pôr peito a essa aventura. Foram juntos. E Dagoberto, que desaprovava tamanha temeridade, foi atrás…”
“Soledade agitou um lenço, correspondendo ao cumprimento feito.
E a fera correu para ela com unhas e dentes. Correu e abraçou-se com Dagoberto que de mais perto procurou defender a amante.
Estrangulou-se um grito de extrema angústia:
E Pirunga não vacilou: salvou, mais uma vez, seu maior inimigo de um perigo mortal.”
“Dagoberto deitava-lhe a cabeça grisalha nos joelhos e ela passava a extrair-lhe, entre mimalhices e cafunés amorosos, os impertinentes cabelos brancos.
Pirunga sabia que o que se afigurava muito apego nas paixões serôdias [extemporâneas] não passava de zelo assustadiço. Era um amor feito de medos – de não ser amado e de não poder amar.
E ela descaiu a fronte. Evocava, numa crise de remorso, a cena de sua perdição.
Como estivesse a banhar-se na cachoeira, pressentira que alguém a espreitava por trás das cajazeiras entrelaçadas de jitirana.
Era o senhor de engenho que, descoberto, avançou e lhe colheu a camisa, toda impregnada do cheiro virgem.
Batendo-lhe nos contornos firmes, a água, que parecia aljofrá-la, acachoava, mudava de ritmo, num jato macio, escapava-se mais devagar, formava poças maliciosas, onde o olho do sol ficava a espiar, de baixo para cima, essa nudez sensacional.
(…)
Ela pôs-se a gritar, quase a chorar. Atordoada, procurava encobrir com as mãos tiritantes, numa atitude curva de pudicícia, as pomas eretas. Tentava embrulhar-se no jorro branco como num lençol. Vestia-se de espumas diáfanas.
Enfim, deitou a correr. Refugiu pelo capão adentro, quebrando os gravetos entrançados com os peitos virginais.
Os mamilos desabrochavam numa floração sangüínea em rosas bravas. Ela sangrava, através dos calumbis [juremas-pretas] e de espinheiros novos, como se lhe rebentassem rosas por todo o corpo.
Deviam ser os anuns: ui! ui!
E floriu uma rosa mais rubra na sombra – o amor purpúreo na sua glória inaugural.
O pudor de energia selvagem só se renderia pela volúpia da submissão. Só cederia à investida bestial, à posse, às carreiras, dos instintos animais.
Não fôra nada de ninfas nem de faunos; mas um primitivismo pudico – o Brasil brasileiro com mulheres nuas no mato…”
“Dagoberto tomava gosto aos riscos do pastoreio, às grandes corridas temerárias pelos tabuleiros e chavascais [atoleiro, mata cerrada] da fazenda.”
“Pirunga sumia-se na vertigem das velocidades fatais, como o vaqueiro voador que leva o cavalo nas pernas.
Embaralhavam-se os dois, de onde em onde, formando com as véstias vermelhas uma visão de demônios alucinados.
(…)
Dagoberto gritava para Pirunga, forcejando por deter o seu corcel infrene:
– Está sonhando?! Correndo atrás de quê?…
Praguejava ameaças e fazia menção de puxar a pistola; mas, o receio de largar as rédeas privava-o desse gesto de salvação.
Era a inversão das hostilidades: a vítima corria atrás do perseguidor.
Quando ia afrouxando o ímpeto, reboava outro grito estimulante: ê-cô-ô!
E disparavam com maior destreza.
(…)
Varavam as sebas; voavam por cima das touceiras de cactos; afundavam-se nos socavões afogados; repontavam, além, num socalco; abeiravam-se dos boqueirões escancarados.
Desapareciam. Só se distinguia a ondulação da catinga. Só se ouvia um chiado de mato flexível.
Os vaqueiros erguiam-se nos estribos, procurando ver a parelha tresloucada.
Atalhavam-na; rodeavam-na. E ela desagarrava dessa direção: desandava, acelerada, ziguezagueando, na fuga mais desordenada.
Seguiam o estrupido de demônios à solta. Rastejavam na esteira de sangue e de suor.
Cessou a estropeada.
Os cavaleiros mais destros riscavam à borda do precipício.
Pirunga tinha a véstia repregada de espinhos, todo ouriçado.
Não premeditara esse desfecho.
– Foi Corisco. Mordeu o freio nos dentes…
O cavalo parecia desforrado, nesse assomo de liberdade, das humilhações da bagaceira.
E ele denunciou na roda dos companheiros a vertigem de suicídio e de vingança:
– Eu jurei que não matava e não matei…
Sobrevinham-lhe dúvidas sobre a quebra do juramento, olhando para os dedos:
– Eu matei?!… Hein?!…
Depois levantou a mão do defunto:
– Patrão, eu matei?!
Soledade afogou o choro, chamou um dos vaqueiros à parte e entreteve com ele uma longa confidência.
Quando trouxeram o morto, bifurcado na sela, com as pernas atadas por baixo, os braços pendentes quase com as mãos por terra, bamboleando, a cabeça espedaçada lambendo as crinas assanhadas, quando apareceu no pátio essa visão ridícula, ela muda estava, muda ficou.”
“– Foi você! Se é homem, não negue! – desafiou-o Soledade.
E sacou a pistola do corpete.
Numa agilidade de bote de onça, Pirunga lançou-se sobre ela.
Arrebatou-lhe a arma e jogou-a por cima da parede.
Soledade atirou-se, então, com unhas e dentes.
Era a revivescência de uma raça de heróis bandidos em que os homens defendem a honra e as mulheres o amor.
Pegaram-se em luta corpo a corpo.”
“Ouvindo as imprecações, o cachorro cainçava do lado de fora e esfregava as patas na porta.
Violentada com mais força pelas garras brutais, Soledade fraquejava. Esboçou um sorriso conciliador.
E Pirunga foi-lhe à gorja outra vez. Aplicou-lhe os dedos férreos numa hercúlea constrição.
Com os olhos enormes e a face violácea, meio desfalecida, ela asfixiava.
Retomando a posse de si mesmo, ele soltou-lhe a goela arroxeada.
E achou-lhe graça, vendo-lhe a língua pendente, como um gesto insultuoso.
Mas Soledade inclinava-se sobre o seu peito hirsuto. Parecia-lhe que ela ia caindo morta.
Ficou linda, toda viçosa e reflorindo na beleza fecundada.”
“Maltratada, rendida, a mulher forte sofria a vertigem da submissão. Sorria-se com um sorriso triste, mas convidativo, como agradecendo a insólita revelação de força que a reconciliava com o passado.
Era a oferta do sonho perdido – o amor retrátil que se voltava.
Acabando-se, a vela levantou a chama e iluminou-a.
Ao desalinho da luta, soltara-se-lhe o peito cheio, no amojo [lactância] dos sete meses.
(…)
Ao espetáculo dessa nudez, Pirunga estremeceu no frenesi impuro.
Seu primeiro movimento foi deitar a correr, mas faltavam-lhe as pernas.
E, para vencer-se, procurou vencê-la. Tinha medo de si mesmo.
Aferrou-a, de novo, aí com um furor de morte; voltou a esganá-la, enterrando-lhe os dedos possantes na garganta magnífica.
E arremessou-a contra a parede.
Depois, procurou chamá-la a si. Tentou soerguê-la com o braço por baixo da cabeça, dizendo-lhe o nome. Revirou-lhe, supersticiosamente, o sapato emborcado, porque chamava a morte…
Saiu nas pontas dos pés…
Não piou nenhuma ave agoureira, mas o chocalho soou como um dobre. [sino]
O arranque dos tetéus [quero-queros] parecia uma denúncia.
A caligem [nevoeiro pesado] pavorosa tinha uma impregnação de mistérios. A noite protetora prometia-lhe guardar segredo e oferecia-se para homiziá-lo.
Um vento alto como que queria apagar as últimas estrelas para que ele fugisse no escuro.
Mas, abriu-se um relâmpago ruivo, como se a treva procurasse reconhecê-lo. E o pico da serra parecia erguer-se mais para vê-lo.
Doendo-lhe o remorso de a ter deixado insepulta, tornou, às apalpadelas, escorregou pelas sombras, eis que ouviu uma praga estrangulada…
E largou a correr.
Poderia bandolear-se com os quadrilheiros que infestavam o sertão. Encontraria os poderosos redutos de impunidade. Mas, uma força estranha [Caetano Veloso!] empuxava-o, com o sacrifício da liberdade, para um rumo certo.”
“O dr. Lúcio Marçau viera arrecadar a herança paterna.
Assediava-o a roda da inquisitiva bisbilhotice urbana. E, em troca, contavam-lhe frioleiras [bagatelas] íntimas, os podres dos amigos, os nadinhas domésticos da pasmaceira inaturável.
Ele refugia a esse meio social intermediário, à vida sem sabor e mexeriqueira das pequenas cidades, onde a gente se enerva, sem a doçura do campo nem a sedução das capitais, como na intimidade de uma grande família desunida.
Nem Areia, a eugênica, se subtraía a esse espírito miúdo.
– Então, seu pai correu atrás da morte até encontrá-la?… – perguntou-lhe um antigo condiscípulo.
Avizinhava-se, de vez em quando, um sujeitinho ressentido:
– Não conhece mais os pobres…
E ele já tinha a cabeça fora do lugar de cortejar a torto e a direito…”
“Lúcio observava o caráter de Areia, [hoje com pouco mais de 20 mil hab.] sua feição original, diferente dos outros povoados do interior que, maiores ou menores, eram todos iguais. O ar antigo dos sobrados de azulejo dominava as habitações mais novas com uma orgulhosa decadência.
O ambiente preguiçoso não se lhe comunicava ao temperamento árdego e cioso de ação.”
“Era um homem que se entregava à prisão. Confessava ter estrangulado uma mulher, mas não lhe dizia o nome, nem mencionava nenhuma circunstância do crime.
Ele reconheceu Pirunga.
– Foi Soledade, não foi?
– Matei para não morrer. Porque morrer como ela queria me matar era pior do que morrer de verdade!…
Viera fazer companhia a Valentim.
Temendo ser capturado em outro ponto, palmilhara serras brutas e matas fechadas, numa escapula de muitos meses, como o pior facínora amoitado.
Lúcio promoveu o primeiro encontro, a salvo da curiosidade dos presos, na sala livre.
(…)
De quando em quando, percebia cochichos, a esmo:
– Mas, padrinho, eu jurei sem dizer nada: foi só beijando os dedos! Não jurei que ele não morria! Eu jurei que ele não morria?…
Chegavam outras frases avulsas:
– Eu via a hora de me esbagaçar nas pedras e ele ficar de seu, olhando pra minha derrota!… O vento zoava que nem cachorro na boca da furna…
Transfigurou-se a face encarquilhada [enrugada] do velho, repuxada por um sorriso infernal.
Lúcio apurou o ouvido:
– Eu todo dia pedia a Deus que se quebrasse a jura! Não tinha mais fé de me soltar…
Pirunga desoprimia-se do perjúrio:
– Eu não quebrei… Eu quebrei?! Não foi por gosto…
– Mas é a mesma coisa… Estou de peito lavado!…
E olhavam desconfiados para Lúcio.
Reatou-se o mistério. Falavam-se mais à puridade. [em códigos]
Enfarruscou-se, a súbitas, o rosto de Valentim num esgar intraduzível.”
“Era véspera de São João.
A cidade chispava na chuva de limalhas. Jatos de fogo queimavam a bruma do anoitecer. Uma visão de relâmpagos e trovões.
Os rapazes não tinham medo do perigo festivo; o tédio aldeão pesava-lhes nas pernas. Brincavam com as queimaduras. E, se corria algum covarde, a chama corria atrás.”
“– Coitadinha de minha filha! Mas, felizmente, está morta, bem morta… Ela não podia viver assim!…
Deitou a cabeça no ombro do afilhado com uma tristeza satisfeita:
– O que passou passou.
A centelha sinistra do olhar secava-lhe as lágrimas.
Culpava a seca desse desfecho.
– Foi a bagaceira!”
Em sua natureza primitiva o instinto de honra e o preconceito da vingança privada suplantavam o próprio amor paterno.
Lúcio estivera todo esse tempo sentado, sereno, blindado da calma reavida. Apenas, batia, de vez em vez, com o pé no ladrilho.”
“A gente sai contente da cadeia quando tem o que é seu. O que a seca não levou e perdeu na bagaceira!…”
“Dispersou-se o povo sedentário e esfacelou-se a família…
– O advogado não pode continuar a atacar os poderes públicos! – advertiu o presidente do tribunal do júri, com a ajuda da campainha enérgica.
Lúcio abreviou a eloqüência forense.
– Eu dou por terminada esta função teatral que avilta a dignidade dos réus, cara a cara, para formar a consciência dos julgamentos espontâneos… Justiça de nulidades (…) Não sabe que cada processo é uma palpitação da natureza humana. Atende menos a esse problema moral que a meia-língua das testemunhas. Justiça falível, és a balança de dois pesos que só não pesam nas consciências! Como eu quisera que fosses cega, de verdade, não pela tua ignorância, mas pela imparcialidade! O mau juiz é o pior dos homens. (…) Peque pelo amor que é a liberdade e não pelo ódio que é a injustiça mais grosseira… Vingue em cada absolvição de um miserável a impunidade dos grandes criminosos!…
(Valentim foi absolvido por perturbação de sentidos e de inteligência… dos jurados.)”
“Os proprietários decadentes explicavam esses valores ativos na área do ramerrão, esfregando os dedos:
– Faz tudo isso porque casou com a filha de usineiro…
A obra de um homem era maior que toda a obra de um povo. O fator espiritual que o vitalizava tinha aparelhado essa transformação.
Lúcio achava o sentido da vida, amando-a; a vida só premiava a quem a amava.
De um pessimismo de quem fecha os olhos para ver tudo escuro, ele, dantes, sofria não ter nenhum sofrimento. O pessimismo que se enrodilha nos corações vazios, como a cobra no pau oco, era uma idéia fixa que supurava. Quisera curar os males d’alma pela dor sem saber que esse processo agia como a medicina dos sinapismos, abrindo feridas maiores. Sem saber que a dor só é fecunda como uma advertência à cura. E, se purificava, era a purificação do medo.
(…)
Agora sacudia de si essa sensibilidade irrefletida, o espírito artificial das ânsias vagas. Reorganizava a vontade. Arrenegava todas as teorias da dor e do pessimismo.
Só desejava do passado a vida que não vivera.
Nesse esforço de retificação moral, já não queria matar o tempo; quisera, antes, restaurá-lo, criá-lo, desdobrá-lo.
(…)
Seu segredo de otimismo era viver dentro de sua esfera. Situava o ideal da vida no Marzagão. Era o homem mais feliz da terra, sem indagar se além desses limites havia uma ventura maior. Dizia com o orgulho de um pequeno deus: eu criei o meu mundo.
Não procurava os grandes prazeres que solicitam prazeres maiores até chegarem às desilusões arrependidas.
(…)
Saneava o grau de moralidade de um povo que chegara a ter cachaça no sangue e estopim nos instintos.
Perdoava sem malbaratar o perdão. Tinha a experiência de que o mau humor se ralava a si próprio antes de ralar aos outros.
Os moradores gabavam-lhe a gravidade acolhedora:
– É um patrão dado; dá as horas a gente.
Reconheciam a simplicidade de suas maneiras:
– É um homem sem bondade…
Já não pareciam condenados a trabalhos forçados: assimilavam o interesse da produção. E o senhor de engenho premiava-lhes as iniciativas adquirindo-lhes os produtos a bom preço.”
“Lúcio tinha sobretudo a intuição das utilidades; uma inteligência das necessidades positivas, a disciplina da ação. Bases objetivas que não sacrificavam os estímulos d’alma. Era, ao invés, essa espiritualidade bem dirigida que fecundava as suas melhores soluções. (…) Ele modificava o antigo panteísmo. Criava a beleza útil. (…) A natureza bruta era infecunda e inestética.”
Um romance com tantas boas idéias morrer nesse pragmatismo de S. Mill! Moinho de mixórdia…
“Beijos ou risos. Era a mesma coisa.
Ela acercou-se da grande touça amável. E mulher vê tudo. A inscrição estava meio desfeita pelo atrito das hastes: EDADE CIO.
Tinham desaparecido as primeiras sílabas. Só as últimas permaneciam, com um sentido diverso, indiscretamente, numa denúncia significativa: EDADE CIO…
Era o passado que revivia na expressão mais suspeita desses 2 nomes próprios comidos pelo tempo que, ironicamente, deixara de preservar as letras iniciais: SOL LU.”
“Bendisse o lance emocional do seu desencanto. Fôra preciso sofrer uma grande dor para curar todas as dores menores. Tinha sido imunizado por uma mortal decepção: o ridículo, quando não mata, cura. Sentia ainda o ressaibo dessa abençoada desilusão.
E evocava a crise de afetividade, essa hipertrofia romanesca, enojado do amor que transfigurava a mulher em anjos ou demônios que não podem ser amados…”
Acaba de contradizer o que disse acima sobre o amadurecimento de Lúcio…
“Quando o Marzagão começou a ser feliz, passou a ser triste.
A alegria civilizava-se. Já não era o povo risão dos sambas bárbaros. Tinham sido abolidos os cocos. E as valsas arrastavam-se, lerdamente, como danças de elefantíases.
Lúcio notava que havia gerado a felicidade, mas suprimira a alegria. (…) A inspiração dos brios humanos convertia-se na indisciplina do trabalho. A personalidade restaurada era um assomo de rebeldia.
Um dia tocou o búzio. Lavrava incêndio no canavial. O fogo ainda se ocultava na fumarada para que ninguém o descobrisse. Mas o partido estalava como um foguetório.
Urgia extingui-lo ou impedir-lhe a marcha com aceiros. E cada qual que se retraísse: todos tinham a impressão do perigo; ninguém queria expor-se.
Só Pirunga e Xinane se arrojaram à empresa.
Lúcio lembrou-se, então, da temerária passividade dos moradores na noite em que o açude ameaçava arrombar.
Os que aprendiam a ler na escola rural achavam indigna a labuta agrícola e derivavam para o urbanismo estéril.
A geografia era uma noção de vagabundagem.”
“O ano de 1915 reproduzia os quadros lastimosos da seca.
Eram os mesmos azares do êxodo. A mesma debandada patética.
Lares desmantelados; os sertanejos desarraigados do seu sedentarismo.
(…)
Lúcio sentia gritar-lhe no sangue a solidariedade instintiva das raças.
E organizou a assistência aos mais necessitados.
Abeirou-se, certa vez, uma retirante com o ar de mistério. Trazia um rapazinho pela mão.”
“– Eu fazia ela morta porque não dava acordo de si…
Ocorreu-lhe a circunstância da praga ouvida à última hora.”
“A lembrança do amor ou é saudade ou remorso. Nesse caso, era vergonha.
Arrepender-se é punir-se a si mesmo.
Ele chamou o rapazinho a si e tomou-lhe o rosto entre as mãos.
Beijou-lhe a testa suja e requeimada.
Depois, apresentou-o à esposa:
– Essa é… minha prima.
E, a custo, com um grande esforço sobre si:
– É a mãe de meu irmão…”
“Vinham protestar contra a admissão dos novos retirantes: Soledade e o filho.”
“Só a terra era dócil e fiel. Só ela se afeiçoara ao seu sonho de bem-estar e de beleza. (…)
– Eu criei o meu mundo; mas nem Deus pôde fazer o homem à sua imagem e semelhança…”