[ARQUIVO] O PONTUAL

Originalmente publicado em 3 de março de 2010.

Mais uma vez esta reflexão – e reflexão não significa mastigação? – “cinematográfica”: a maioria de nossa vida, de nossos ofícios, é de enfado. Segundos, pílulas de atos incontestes. No grande homem da História ou simplesmente na vida daquele que não era nada, mas sabia ter seus mini-dias perfeitos, de zelo e beleza. Acabei de assistir à majestosa final da Copa do Mundo de 70, exibida na íntegra, em cores e renarrada. Talvez sem tanta realeza para moleques anos 2000, que não aprenderam ainda o gosto clássico. Partida, em geral, morosa, cheia, no entanto, de picos e flashes, de explosões de velocidade e de manobras divinas, tão breves quanto áureas. Linhas de passes dos sonhos… Esse não é um artigo sobre futebol, mas encontrei ao acaso a ilustração perfeita. E o jogador ideal para discorrer sobre minha “pontualidade”: o badalado Pelé. Não estava no seu jogo perfeito, na exibição maior deste mundial – só que suas figurações de luxo foram o bastante para eternizar a(s três) estrela(s). Talvez despontar demais, se outros também davam conta do recado, fosse falta de elegância! Normalmente o aniversariante não é o piadista da festa, o mais desenvolto (até porque não é quem bebe mais, tem obrigações protocolares), nem a pessoa que está mais bem-vestida, mantendo a discrição salutar. Simplicidade calha bem sob os holofotes, durante a tensão da decisão. Pois bem: cada um de nós é um Pelé renascido, inventivo a seu modo. Grande parte desse jogo de 90min ou 90 anos é uma passagem com falhas, impaciências, soros, feiúras, falta de harmonia, insegurança, enfim, aborrecimento, senão ansiedade (“vai, não vai”).

Eu sou pingos. Pingos de textos. Acontecem muitos mal-entendidos e angústias nesses intervalos entre um artigo e outro; sinto-me mortal! A tacada milimétrica vem na hora certa – e desaparece no mesmo instante, pulverizada pelo seu próprio sucesso: foi quase que uma neblina, uma picada de inseto, que não sentimos, não somos nós, éramos outros, focados, jogadores ancestrais e cascudos, não “pensamos”, só executamos aquilo para que viemos a esse mundo. Nosso ofício. Até a casta dos “favorecidos” sabe dessa crueldade da distribuição das apoteoses na natureza. Animais sublimes não perderiam tempo se lamentando! O consolo é o vizinho talentoso… O castelo dele também cai. O castelo de qualquer Napoleão ainda é só de areia. Podemos invocar nossos self olímpicos como uma tequila é entornada: um rasgo mal-sentido; o impacto deve ficar para os expectadores na sala, para o relato do avô – talvez Zeus agisse inconscientemente, castigasse sem temer, sem a pena, tão humana…

A confiança é tanta, em resumo, que o artista se dá ao luxo de desligar seu motor, a parte de seu organismo responsável pela eficácia máxima, hibernar mesmo, a fim de que a máquina não seja depreciada com o banal. É-se nobre o suficiente para aceitar uma magra coleção de vitórias, tal é a representatividade, a integridade, delas. Cobremos menos – e com isso mais! – de nós mesmos…

[ARQUIVO] DIMITRI E O BILHETE

Originalmente publicado em 17 de dezembro de 2009

                Dimitri,

Preciso despejar algumas coisas aqui. Tive um pesadelo, aliás, uma cadeia de pesadelos, horrível (Pleonasmo? Logo explico) na madrugada (nesta madrugada, porém não lhe poderei enviar hoje) de 7 para 8 de fevereiro [de 2008], mais precisamente cerca de 1h40, num quartinho de uma casa aconchegante na cidade de Sousa, na Paraíba, a 2 mil km de Brasília e a 500km de Fortaleza, onde escolhemos dormir porque é para onde se mudou um grande amigo dos meus pais, que vieram a ser padrinhos do primeiro filho deste homem. Deixando de lado as redundâncias, você sabe que sou um cara iconoclasta que jamais teria medo consciente de manifestações de seu inconsciente que tratassem de instituições perfeitamente repressivas como a Igreja ou a Ciência, ou de imagens míticas como o diabo ou um ET (se não deu para entender, só quis dizer que não sou de me assustar, estando de olhos abertos, e temer fechar os olhos outra vez, após um pesadelo, qualquer que seja seu conteúdo, uma vez já propriamente desperto, na cama, num exercício de recuperação do sonho que acabara de ter). Aliás, neste meu fluxo de consciência que agora tenho ao escrever-lhe esta não-convencional carta, por enquanto à mão, rebusco duas coisas ditas por você nos comentários daquele texto:

1) Você questionou meu niilismo (na cozinha do Landscape você afirmou literalmente “eu questionei SEU niilismo”), ou afirmou a existência de vários tipos de niilismo, não é? Fale mais sobre.

2) Havia esquecido de comentar acerca do ciclo. Não funcionamos para esta “bestagem de trabalhar”, em suma (mas vejo que você está melhor do que eu, porque não se envergonha de ser sustentado pelo resto da vida).¹

¹ (P.S. 2023: Isso tudo eram idéias, debates, monólogos até… Dimitri, a pessoa real, hoje é servidor do senado federal.)

Passada a idéia desses 1) e 2) do fluxo, prossigo: tive uma série de 4 ou 5 (já não me recordo) de um sonho conhecido como “espiral”; se não me falha a memória, o pesadelo de ânsia de acordar terrível que, segundo Freud, representa 4 de cada 10 de uma criança, que muito acorda durante as noites sem ser capaz de recapitular os conteúdos. Esse tipo de manifestação do inconsciente se mostra raro nas fases posteriores da vida. Pois bem: recordo, também, que, fora da infância, só durante mais uma noite, antes de hoje, vivi tal inconveniente. Foi no mesmo dia em que consultei The Interpretation of Dreams, do Freud, em PDF, para saber o que acabei de relatar. Ou seja: foi uma experiência de metalinguagem… Alguma expiação ou teste, traquinagem do eu reprimido. Dá calafrios só de pensar. Veja…

Hoje tive o sonho de ansiedade. (É sufocante. Você percebe que está no sonho e quer acordar… Por mais que leve segundos, a sensação momentânea e pavorosa é a de que você não irá conseguir) Agora são 3 da manhã. Eu parto às 4. Todos dormem e estou na cozinha. O pesadelo em que você estava e que me interessa analisar é o primeiro da série. Respeitando o que eu observei sobre o sonho em espiral – teste no dia em que li F. –, acho que o que ocorreu hoje e pode continuar ocorrendo é uma maquinação metalingüística. Tudo começa por razões tais quais:

A) Você comentou sobre F. no meu texto de Sartre e do vagão;¹

¹ [P.S. 2023: No primeiro volume de CILA OU CARIBDE. <link>]

B) Coincidentemente, após longo tempo desinteressado nesse curioso autor de um “irracionalismo determinista”, me cai nas mãos um livro de filosofia para ensino médio da Marilena Chauí, em plena viagem a Fortaleza. O livro veio antes de eu conversar com você aquele primeiro dia pela internet, alguns minutos. Encontramos aqui um primo do meu pai, também de Brasília, professor. Ele mo mostrou e eu demonstrei entusiasmo pelo capítulo de Metafísica. Ele sugeriu que eu ficasse logo com o livro, pois ele poderia pegar outro de graça assim que quisesse. Mas foi um dia depois que li seus comentários que, na minha leitura pré-sono linear, cheguei às páginas que explicam F. genericamente. (No capítulo Razão na idade contemporânea – 1 – como esta geladeira emite ruídos detestáveis; 2 – você teve F. na escola? Eu jamais.) Li aquela coisa previsível sobre o recalque do ego e etc. Poxa, até atos falhos e lapsos não passam de dribles da censura, mas e daí? 1 – essa geladeira vai desmontar… 2 – descubro que estou trêmulo de fome; 3 – sim, deixe-me completar o que principiei lá atrás: o pesadelo em que você figurava me deixa de pêlo eriçado até este preciso e abominável segundo (logo iremos a ele).

Desde que reli F. voltei a me reanimar a tentar dotar meus sonhos de sentido no que tange a qualquer desejo reprimido. Até aí, nada de mais. Estava tendo sonhos agradáveis, comendo umas minas adoidado (em sonhos, entenda)… Sempre era sexo, carinho… O que me anda faltando. Aliás, você conhece a parte da sublimação dos instintos de pulsão em F.? Eu só não enlouqueci ainda, edipianamente falando, porque escrevo muito.¹ Eis, agora, depois de EU E VOCÊ (explicação do CAPS LOCK depois) consentirmos que só um pedaço de F. é válido, um pesadelo capaz de me arrepiar já em estado de consciência, ao ser retrospectivo, uma vez que foi uma representação altamente filosófica, existencial, biográfica… Devo descrever com mais detalhes o possível o sonho. Apuro mais uma razão para que ele tenha vindo justo agora, 5 ou cerca disso dias depois da referida leitura: SEU comentário, do Orkut, despretensioso e banal, e MINHA resposta idem. Hoje o que acabo de receber é um ataque, uma reação totalitária, do meu ISSO (espero estar sublimando aqui para acalmá-lo, mas ele detesta ser importunado com reflexões exatamente sobre si) à minha concepção de inexistência de dogmas, da verdade e onipresença do FATOR SUBJETIVO. Engraçado, o ISSO se sentir ofendido, pois objetivo ele não é. Isso (não o ISSO, mas o sonho e minhas crenças) é muito importante para mim porque, e você verá, parece ser o meu modo de ser o problema de tudo…

¹ [P.S. 2023: Tudo babaquice. Hoje eu pisaria em cima dum livro do doutor Fraud que eu visse aberto, no meio da rua.]

[ida ao banheiro]

Você deve estar ansioso por saber logo como foi “sonhado por outrem”. Acho que estiquei tanto isso que vou acabar desapontando-o até porque não será algo TÃO preciso, mas o curioso é o EU E VOCÊ.

Encho-me de calafrios, droga… Aqui é quente, estou encharcado e não penso em dormir de novo.

NO SONHO…

Aparentemente estamos numa mesa batendo um papo. Sou EU e é VOCÊ, de algum modo eu tenho certeza. Mas se não me engano tudo é um breu filho da puta. Só que eu sinto que estamos numa espécie de quina, com pessoas sussurrando mais para frente e para a direita. Entre elas meus pais. Ocorre um momento… em que você encerra o diabo do papo, e é tudo que lembro, e não lembro direito, vai me desculpar, mas você passa um “segredo” (não quer que os outros o escutem, só que eu leia) por papel. É uma pergunta e afirmação ao mesmo tempo, não sei como explicar… SUSTO… Entraram na cozinha… Saltei da cadeira!

[bebo água – aqui é cheio de arte barroca nas paredes…]

Sei que tem um ponto de interrogação. Não lembro o conteúdo literal do bilhete, branco, dentro do breu, que você me passou. Porém, lembro a idéia que ele representa ou manifesta, o teor da mensagem, e que além de pergunta aquilo é uma resposta conclusiva, taxativa. Tem a ver com tudo o que vim procurando todos esses anos… Agora, antes de refletir mais sobre o bilhete, duas coisas que se fazem eminentes… DROGA, DAQUI A POUCO É HORA DO PESSOAL AQUI PARTIR PARA A ESTRADA.

1) Quando eu li seu bilhete… eu me senti um otário. E quando tentava articular qualquer coisa menos passiva que um bocejo eu escorregava… Meu corpo deslizava duro – TÁ CHOVENDO E A LUZ TÁ INTERMITENTE –, como pedra, da quina inferior esquerda onde estávamos até a quina oposta, avante à direita, como um tabuleiro no éter. Meu pai dizia algo como “Ih, olha ele aí… Tá perdido. Não vai falar nada? Ô Rafael!”. Nesse momento começava a espiral para acordar porque era insustentável permanecer no sadomasoquista inconsciente. A seguir, o porquê do “sadomaso-“ e do CAPS LOCK.

2) Eu sou você e você sou eu. É como um espelho nossa relação no sonho. Eu sinto que sei do que você fala no bilhete e sou eu mesmo me contando, me provocando, utilizando sua imagem, uma das únicas pessoas dotadas de bagagem tal que entende onde eu quero chegar quando exponho minhas idéias. É alguém tão inteligente quanto eu, se é que posso dizê-lo. Essa palavra está muito desgastada pela crise da razão. Não é estranho que “o conhecimento não levar a nada” seja uma sentença nascida da própria busca pelo conhecimento? Se a sentença é produto do CONHECIMENTO ACUMULADO aplicado a certa época… ???

* * *

Avise-me se estiver errado: na realidade eu entendo você ser diferente de mim. Até queria ser você, mas sociologicamente falando está fora das minhas possibilidades em virtude de minha criação. Eu diria que você é um EU desejável e impossível. Foda-se se Sartre acha que qualquer omissão ou conformismo é deliberado, pois outros homens na situação não cederiam. Só que VOCÊ também aspira a ser eu – interpreto – num aspecto daquele texto: acho que você esconde que aquilo teve até mais poder sobre você. (Paranóia minha? Me avise.) Que não é ESCOLHER MUDAR PARA FAZER VALER A PENA OU CONTINUAR ASSIM PORQUE ESTÁ VALENDO A PENA. Que é tudo como meu pessimismo incondicional. Empiricamente não posso saber, pois só vivi a minha vida. Mas suponho que todas as vidas sejam um lixo e é essa a sua tristeza. Como num pêndulo, simultaneamente eu digo que quereria ser você para provar desse DIONISO ATIVO, porque ao que parece o meu DIONISO É PASSIVO. Será que você floreia sua vida, fala de um sabor inexistente? Mas a voz mais alta diz: é como “procurar a felicidade”, “dar murro em ponta de faca”. Porque você é carne como eu e não deve ser melhor ser você do que ser eu. DIVAGUE BASTANTE SOBRE O QUE ACABEI DE DIZER. Isso termina de explicar o EU E VOCÊ. Quem é você? Você mora em mim e suas palavras me causam um impacto às vezes acre.

Prosseguindo…

O BILHETE (merece até subtítulo)

Ele me mata, ideologicamente. Denota e conota minha demolição. Na metáfora, petrifica. É uma coisa simples e profunda. Abaixo, potenciais transcrições da mensagem. Não deve ser nenhuma, não devia ter nada lá. Nos sonhos sempre leio mas ao acordar vejo que nada estava escrito… Então, às aproximações:

(Vou disseca-las, em grupo, mesmo)

(Lembre-se de que é um “segredo”, e esse fato talvez seja mais importante que qualquer transcrição – indica, talvez, que meus pais não poderiam sabê-lo sob nenhuma circunstância)

A) PARA QUE FILOSOFIA?

B) É A VERDADE, ENTENDE?

C) PRA QUE TUDO ISSO?

D) ESPERO QUE VOCÊ TENHA ENTENDIDO A IDÉIA TÁCITA NO LANCE SOBRE A VERDADE – essa é grande, engraçado, porque o espaço para caracteres no bilhete era absurdamente pequeno.

E) ENTENDEU?

F) ESSE TEMPO TODO… NOS ENGANARAM… Não. É “ME ENGANARAM”. Mas se você sou eu refletido… Essa 6ª possibilidade é a que mais me prende à idéia de “otário”. Acho que o pessoal à direita ri, ou eu sinto muito vexame, porque não tinha entendido o substrato da Filosofia. Não sei dizer se seria um dogma ou um utilitarismo… A mensagem continua… ? PRA QUE VOCÊ ACHA QUE SERVE? Acho que é esta! Tinha outro “?” no começo, era uma espécie de indagação de uma coisa já debatida, para ver se eu tinha entendido direito, se eu não era retardado e estava me fazendo de desentendido. Ou a pontuação era em espanhol. ¿PRA QUE VOCÊ ACHA QUE SERVE?

Já estou cansado, não sei se ainda posso continuar divagando em alto nível. A tensão se dissipou.

É complicado deixar isso claro. A idéia por trás da mensagem e minha fobia ou sensação de engodo posterior. Como se eu tivesse pensado ou estudado errado todos esses anos. Sei lá o que você, que dá pouco crédito a F.,¹ irá dizer. Não sei também se é possível compreender que não é só uma desilusão ou estresse com a filosofia. A frase A) é a menos condizente com o efeito provocado.

¹ [P.S. 2023: Boa, Dimitri!]

Creio que…

Você tenha escrito para ser cortês e não fazer da revelação um total embaraço, mais do que já foi. Era para me dizer uma coisa que todos que estudam filosofia entendem, apesar de tácito. Na verdade eu sinto que entendia e não conseguia falar. E escorregava. Deslizava. Se você era eu obviamente eu sabia. E estava sentindo prazer com a idéia de me afligir diante da possibilidade simultânea de não saber. (4º PRINCÍPIO DE ARISTÓTELES)

Outra chance é de que estivesse escrita uma palavra. Não sou capaz de lembrar. Ela utopicamente sintetizaria o “segredo”. É como se você (eu) me dissesse: É UMA COISA PATETICAMENTE ÓBVIA. E eu sabia mas era vexatório que QUALQUER UM não soubesse, e eu talvez ruborizasse só de pensá-lo.

                    Assinado — A Mosca Filosófica

[P.S. 2023: Hoje eu entendo este sonho como um enterro metafórico de meus pais; dali em diante, só nos afastaríamos cada vez mais, sendo impossível a compreensão.]