Monica em

EM NOME DA HONRA”

Originalmente publicado em 8 de janeiro de 2010.

Inspirado na fábula da Chapeuzinho Vermelho

Cabelos loiros, lisos e que mal chegavam aos ombros. Nariz afilado e empinado. Lábios finos e rosas. Uma flor delicada. Monica tinha dezesseis anos e começava a ser uma preocupação para os pais. Filha de um poderoso industrial da Wolfstation – pequena vila inglesa – do século XIX, sua beleza aliada a sua riqueza a tornavam um objeto de intensa cobiça por parte dos homens da cidade. Galanteios de meninotes, rapazolas e mesmo dos amigos do pai nunca foram surpresa na vida da colegial. Porém a atenta Sra. Williams percebeu que a filha não mais recusava as investidas de imediato com um firme: “Não desejo um faz-de-conta burguês e ambas as nossas infelicidades”. Na sala de visitas, dava a entender que não cederia, mas já não era tão resoluta como antes. Se não se tratasse de uma moça rica, poder-se-ia pensar que Monica gostaria de prolongar os casos, quem sabe forjar um noivado, unicamente em busca de dinheiro. A Sra. Williams, como qualquer mulher madura, conhecia muito bem aquelas transformações no corpo e mente da adolescente, da menina-adulta. No entanto, sentia-se constrangida diante dos arroubos de sensualidade da criatura fervilhante que se exibia pela primeira vez debaixo de seu teto e diante dos seus olhos. Cantarolava ao espelho, perfumava-se toda. Nunca havia visto sua filha assim. Resolvera esperar até o dia do baile escolar para dar um passo além da simples observação: chamou Monica a um canto, na cozinha, enquanto assava alguns bolinhos, e pediu que não comprometesse a posição da família na alta sociedade com burlas namoradeiras. Monica sabia o que a palavra burla queria dizer.

Manteve-se afastada de bons partidos na escola; reprimiu seus sentimentos até aquela idade, em que já não era possível ocultar os batimentos acelerados e a maçã rubra das faces quando o assunto das garotas adentrava o sexo oposto. Julgava usufruir de uma vida muito mais confinada do que a das amigas, e mais recatada do que o necessário. Mas não ousava afrontar o pai. Não se sabe ao certo se planejava algo, se nutria rancor pela educação severa que recebia, porém tudo indica que o respeito que demonstrava pelo Sr. Williams não devia ser dissimulação. Acontece que toda santa alma um dia se cansa…

Há meses Monica observava, de longe e sem ser notada por nenhum dos colegas, um bando de alunos da série superior. Populares entre a juventude e malvistos pelos professores, constituíam seis ou sete bolsistas da região pobre da cidade. Não provinham de família abastada, mas freqüentavam a mesma escola da filha de Henry Williams. Este, dono de tecelagens por todo o país e bem-informado pelas amizades e pelos jornais, sabia da política acolhedora da instituição de ensino, e espumava de raiva a cada lembrete do tipo de gente que podia sentar-se às carteiras adjacentes à de seu tesourinho.

Talvez se inclinasse a lutar no parlamento por mudanças na aceitação de estudantes pobres, mas adiava a iniciativa, combinando com o advogado os argumentos perfeitos para a sessão plenária (onde pisava quando bem entendesse), além de aguardar que um célebre comerciante, conhecido seu, assumisse a cátedra de diretor, no rodízio previsto pelo regimento da escola, em apenas dois meses. Poder-se-ia dizer que o inconveniente de misturar a rebenta com uns pobretões da zona operária de Wolfstation não era de trato urgente. Enquanto isso, fazia vistas grossas até mesmo às filhotas dos outros industriais, a inculcar em Monica a idéia de comprar novos vestidinhos, tomara-que-caias, que deixavam as rapariguinhas de ombros escandalosamente desnudos, ou saiões com cortes indecentes.¹ Considerava as filhas dos outros capitalistas putas de luxo, sem exceção.

¹ A tomara-que-caia é “invenção” do século XX, mas esse conto se dispensa da obrigatoriedade de fugir de anacronismos.

Monica decidiu que se aproximaria dos bolsistas na festa do baile. Sabia que, quando muito, um ou dois valeriam a pena; os outros seriam grosseiros por saberem quem ela era – se tem uma coisa por que os sem-dinheiro zelam é o velho orgulho de classe. Não disfarçar antipatias. Não alimentar falsas esperanças de “subir na vida se casando com uma princesa ao invés de uma plebéia”. Não quando seria de cortar o coração de tão humilhante, e aquele Sr. Henry não era o tipo de pai que deixaria barato em uma entrevista eliminatória. Quando se estuda em escolas assim, além do mais, seria muito mais gratificante descontar essa frustração de berço cuspindo no chão e apontando o dedo para ricaças insinuantes.

A princesa penetra da história já desconfiava do gênio desses rapazes. Mas é provável que a cólera direcionada aos burgueses não fosse uniforme. Um ou dois poderiam pensar diferente, no íntimo. E estava cada vez mais complicado para uma loira vistosa e enfeitada de jóias hipnotizantes ao longo do pescoço, dos pulsos, das orelhas e dos dedos, quando não incrustadas nos vestidos, enfim, para uma baronesa com corpo de sereia, lidar com esses novos impulsos: a necessidade de amigos descolados das tradições, o instinto de buscar o diferente, o exótico, o rebelde. Todos têm a idade desse despertar. Ao mesmo tempo, continuar fiel às amigas. E, para isso, deveria ter alguma proeza para contar. Era a mais inexperiente do grupo, e já gerava risitos incontidos nos falatórios no departamento “homens”. Não tinha opinião formada sobre casamento, sobre o melhor estágio da vida para descobrir o marido ou o grau de liberdade que deve ser tolerado entre casais não-reconhecidos pela Igreja. Tudo veio rápido demais para essa moça. Monica quis apenas se auto-afirmar em seu grupo de amigas, não que isso implicasse em ser uma Williams maculada.

Foi no baile que, surpreendentemente, Monica, sem tomar nenhuma iniciativa, foi cortejada pelos famosos bolsistas da Wolfstation Noble School. Do mesmo jeito que costumava ser, debaixo das vistas da própria mãe, só que agora num amplo salão sem obrigações de sangue a interferir. Sorriu muito com o mais alto, aparentemente o “líder”. Respondeu todas as perguntas com inocência e temeu fazer alguma. Confirmou que era filha de Henry Williams, o famoso cidadão freqüentador número 1 do único banco da cidadezinha. Sabe-se lá o que vai fazer duas vezes por dia, religiosamente, às catorze e às dezoito horas, sempre demorando quinze minutos do lado de dentro. Assentiu também às suspeitas de que o pai era dono inclusive de termelétricas e exploradoras de carvão em Northsville, a cidade mais próxima de Wolfstation. E que aqui ele ainda era dono de uma companhia de bondes, mas adorava seus passeios de charrete. Possuía um cocheiro, três cavalos de elite e um carro pintado de ouro. Se era a tinta ou se era ouro de verdade, sobre isso não especulou. Dúvidas tão tolas as daqueles rapazes. E eles aparentavam segurança e auto-domínio quando conversavam longe de seus ouvidos, no gramado. Pessoalmente, não passavam de molecotes. Havia entre eles uma mulher, que Monica não tardou em julgar ser uma prostituta literal. Tinha aquela pinta perto dos lábios que rapidamente se associa à profissional mais antiga do mundo. E aquele sorriso de canto de boca, naquela noite de gala com um decote que fazia os gorilas do sexo oposto arfarem.

* * *

Dois dias depois de ter trajado aquele vestido vermelho de brilhantes e aquela tiara da mesma cor, com sapatos pontiagudos e de salto, além de uma pesada maquiagem, Monica e Edward, o rapaz alto do bando, já trocavam juras intensas de amor. Um amor infantil, diga-se. Nem mesmo se beijavam, só davam-se as mãos, cruzavam os braços ao caminhar, mal se tocavam. Ela já se sentia à vontade entre os bolsistas, no horário das classes. Ou melhor, nos intervalos, uma vez que as regras da distinta instituição eram rígidas e Monica tinha medo de que as fofocas viajassem alguns quilômetros até o escritório do pai.

A Sra. Williams, dotada daquele clássico sexto sentido feminino e materno, esperava a melhor ocasião para abordar a filha. Não perguntaria: “Está se encontrando com um homem às escondidas?”, mas “Qual o nome dele?”. Justo numa tardinha, quando ambas silenciavam na sala e a mãe tricotava ensaiando o discurso na cabeça, uma carruagem deu sinal à janela. Segundo consta, era o criado de Henry, dizendo que Monica devia seguir com ele até onde estava o pai. “Uma conversa no meio do expediente?”, pensou a madame. Mas se tranqüilizou ao se dar conta de que o pai também notava os pormenores da agitada vida da filha: “Vá, vá conversar com ele!”.

Era de fato o criado, mas no banco de trás estava Edward. Ele havia pagado duas libras para que o condutor enganasse a dona da mansão. Capataz muito confiável, sucumbiu à pomposa gorjeta. É um valor que um bolsista duvidosamente poderia desperdiçar pelos cantos. Monica se sentiu divina com este regalo apaixonado. Ambos foram deixados a sós em um parque, o mais espesso da região. Brincaram, rolaram pelo gramado, se enroscaram pelos troncos. E aí Monica percebeu que toda a sua etiqueta não seria suficiente contra pulsões tão selvagens. Pediu, quase tremendo, de excitação, não de pavor, que só continuasse enquanto ela consentisse. O rapaz balançou a cabeça verticalmente. Ambos se embrenharam nas matas mais altas e no canto mais afastado daquele passeio verde, e Monica tentou fazer silêncio. Quando a afoiteza de Edward já era evidente, aliás, o único que se podia notar nele, ela pediu para seu namorado parar. O garotão não podia se conter diante daquela beleza loira tão frágil e agora corrompida. O sangue, o suor, a água da garoa que caía, tudo se juntou com outro fluido. Como nas garras de alguém com quem não se pode comunicar, Monica apenas rangia os dentes, paralisada pela dor do arrependimento e da genitália azarada. Tudo estava turvo demais para reações precisas como aquelas da polida sala-de-estar de antigamente, e ela sequer soube em qual segundo as coisas tinham passado de uma brincadeira entre dois inconseqüentes para uma outra coisa, uma violação; em que momento ela própria se converteu de aventureira intrépida em vítima de estupro.

Edward a largou de bruços, esgotada, e se retirou, como se nada tivesse acontecido. Depois daquele encontro voraz, Monica regressou a pé para casa, de saltos quebrados nas mãos, trancou-se no quarto durante três dias e só aceitou duas visitas: a mãe e a criada que trazia a comida, ainda que quase não a tocasse. A par do que talvez tivesse ocorrido, desconhecendo contudo os detalhes mais ásperos, a Sra. Williams apenas consolava a filha: “Há homens que não revelam sua natureza lupina logo ao segundo encontro”. O senhor e a senhora da casa julgavam ser uma fatalidade natural, o primeiro desengano amoroso de uma garotinha, e se aliviaram por saber que a preocupação com os desordeiros do colégio e as precipitações de Monica não iriam se repetir, resolvidas ambas de uma cajadada.

O que os amigos de papai iriam dizer?”, foi a frase fixa, o fluxo neurótico que latejava na má-consciência daquela adolescente em prantos e frangalhos. Mas a experiência não fôra tão traumática, a ponto de no quarto dia o bom humor ter instantaneamente se restabelecido. Na escola, pôs as conversas com as antigas amigas, com quem rompera brevemente, em dia, chegando a uma concordata. Não contou nada a ninguém sobre “o bosque”. Na saída, Edward apareceu. Monica se limitou a fitá-lo com uma extraordinária repulsa, curvando-se em meia-circunferência, ainda abalada. Foi agarrada pelo braço esquerdo. Mas quando virou o oleoso pescoço, banhado em suor frio, não era o rosto do rapagote canalha, aquele arquétipo de Don Juan com requintes de maníaco, aquele que enxergou. Era um de seus comparsas, que defendeu o parceiro Eward: “Olha, ele achava que você era um tipo mais arrojado de garota. Ele chorou no meu ombro, disse que confundiu tudo, pensou que sua aflição fazia parte daquele momento de quebra de regras, da nova vida aflorando, de não ser mais uma menininha do papai…”. Uma bofetada na cara seria a reação mais natural, mas Monica apenas baixou ainda mais o rosto, constrangida.

* * *

Passaram-se mais duas semanas sem que ela dirigisse palavra àquela turma. Um dia antes do recesso de fim de ano, decidiu finalmente endereçar uma mensagem a Edward, ao vê-lo desacompanhado. Entregou-lhe um bilhete: “Encaminhe-se ao mesmo local do nosso primeiro encontro. Eu, Monica Williams, por ter sido manchada em meu sangue azul, dou-lhe uma segunda chance, com o ônus de que seja meu pelo resto da eternidade. Contei a meu pai sobre você.” As extremidades do corpo de Edward gelaram. Pensava vertiginosamente em todo o conteúdo do bilhete. Queria saber o que era contar ao pai sobre si, a que nível de profundidade o relato chegara. E conjeturava – se aquilo era mesmo uma proposta de casamento, quão rude não havia sido! Porém, como se esperasse por um acontecimento não muito diferente desse, pôs-se mais uma vez sereno, ajeitou a gola da camisa, pigarreou, socou uma mão na outra, suspirou, relaxou as costas e começou a andar em velocidade até uma casa, de propriedade anônima. Telefonou para a mansão Williams e disse: “Banco Wolfstation. Por favor, transmita o recado. O Sr. Williams precisa falar com o gerente de saldos, ele estará presente apenas às dezoito horas”. Era meio-dia e ele teria tempo para agir.

No reencontro, nenhum movimento suspeito, ainda que num certo breu das árvores. Pelo contrário, rumaram para a casa de Edward, onde a mãe os recebeu com pães de queijo e tagarelices amistosas. No correr da modesta reunião, mudança de planos: “Vamos nos reunir todos, os bolsistas do décimo ano, na casa de Mike”. Lá, um sobrado cinzento, a campainha tocou três vezes até que um risonho Mike desse as caras. Um teto a quatro metros de altura dos convivas, escadas em espiral, sofás fedendo a mofo. Um sítio suntuoso, embora semi-abandonado.

Onde estão os outros? – perguntou Monica.

Não haverá outros. Você está em cativeiro.

Alguém veio por trás e abafou-lhe o grito agudo com um saco grosso de algodão, que agora encobria toda sua cabeça. Monica foi levada para o sótão.

Enquanto isso, a garota soube que seu pai seria conduzido a uma cilada. O mais velho do grupo, ainda um rapaz, entretanto mais robusto e barbudo o suficiente para se passar por um respeitável representante bancário, interceptou o Sr. Williams antes que ele pisasse no banco, pelo fim da tarde. Passeavam pela cidade a quatro rodas enquanto conversavam, mas Henry percebia o tom abstrato do “sermão matemático”.

Conte-me de uma vez, furtaram o meu cofre? E onde está o Sr. Phillips?

Não, mas iremos… – respondeu o adolescente parrudo, ignorando por completo a segunda pergunta, sobre o real gerente do banco.

Henry Williams nunca havia levado um tiro. Ao ler romances e estórias de detetive sempre se indagava como seria a dor da bala perfurando a pele e a carne após disparo à queima-roupa. Era um ardor ou trauma semelhante a uma mordida brutal. A mordida de um urso, por exemplo. Foi na tíbia direita, pouco acima do osso do tornozelo. A perna inteira parecia ter sido tragada por uma fogueira. Mas fogueiras não fazem sangrar. O vermelho que grassava e se espalhava agora pelo chão da carroça mudou também o tom da dor, agora um repuxar insuportável dos músculos. O atirador puxou o homem pela camisa, imperativo: “Estamos com sua filha; se quiser que os jornais de amanhã contem o que está acontecendo na casa onde ela está, senhor industrial, não faça nada, e nos mande pra cadeia, inclusive. Não vai nos matar porque somos muitos”. “Tu…do bem.” E prosseguiu: “Nós queremos que na sua próxima visita ao banco peça ao gerente, o gerente de verdade, que aumente seu limite de transferências e deposite o lucro do ano anterior da sua tecelagem Wearing Co., que eu conheço pelas notas da imprensa, nestas quinze contas. Vai dizer que essa bala partiu de um ex-cliente furioso que não pôde identificar e que está fazendo isso para sua segurança legítima, pela integridade de seus bens e de seus familiares”. Depositou então um papelote no bolso do sobretudo daquele grisalho outrora imponente. “Não vai perguntar sobre sua filhinha, não é mesmo?… O que importa é… Bem, ela lhe será entregue assim que confirmarmos as transferências; esteja neste mesmo lugar.” Chutou-o para fora da charrete de ouro: “Esteja aqui, não chame a polícia! Nós temos tudo que a força da guarda desta cidade não tem!”. E não era mero blefe. O Sr. Williams mal se mexeu por duas horas, reclinado sobre um tronco, recusando até mesmo a assistência vespertina de uns andrajosos que passavam por perto. Até que percebeu que, pelos dizeres do malfeitor, deveria caminhar de contínuo até o banco, não longe dali, ferido como estava, para realizar o protocolo. Estava atrasado, atrasaria ao todo em mais de meia hora em relação ao combinado. Os cuidados médicos poderiam esperar.

Em torno de oito e meia da noite, com a conta da Wearing esvaziada e o referendo da matriz do banco em Londres (a soma era vultosa), chegava àquela clareira do parque público o reluzente carro do próprio Henry Williams em que um tiro havia soado, dessa vez com três capangas e Monica, toda encolhida. A filha parecia feliz e aliviada ao ver seu progenitor. Abraçaram-se, e ele perguntou:

Aconteceu alguma coisa?

Nada, papai… Claro que não houve nada!…

DATA NO REAL

Aconteceu a primeira vez quando eu tinha 32 anos, em 27 de fevereiro de 2021. Não recebo muitas visitas. Moro só. Estamos há quase um ano vivendo a pandemia do corona. Às 20h19 recebi uma visita insólita: alguém que bateu à minha porta, sem muito estardalhaço. Não tenho campainha. Fiquei alarmado, pois é preciso ter uma chave para ter acesso às escadas que conduzem ao meu apartamento. Pensei imediatamente: “O que um vizinho quer comigo agora?”. Vivo em paz e isolamento, mal sei-lhes os rostos. Decidi usar o olho mágico, e num átimo fiquei lívido. “Eu disse para ele não vir aqui! Nós não nos falamos há anos! O que ele quer com isso?!?” Disse em voz alta que não iria abrir, que era para a visita ir embora. Mas a resposta veio num tom e numa voz que me desconcertaram. Não pode ser ele – pode? Olhei de novo. Bem, se parece muito, mas a verdade é que nem se veste como ele. Uma barba média, acho que, pensando melhor, deve ser uns 10, 20 anos mais jovem. Calça comprida, camisa social, bem-abotoada, manga longa. Chove quase sem intercursos há vários dias, coisa que eu nunca havia presenciado no Distrito Federal. Decidi abrir a porta. Voltei a ficar confuso, dei três passos para trás – antes que pudesse pronunciar qualquer sílaba, o homem ergueu o braço em sinal de que eu me tranquilizasse e de que iria esclarecer toda a situação sem que eu devera ficar nervoso. Ele deu alguns passos dentro do apartamento sem pedir licença.

– Oi, eu lembro alguém para você?

– Sim. (Ele é a cara do meu pai, porra, só pode tá de sacanagem!)

– Meu nome é Rafael…

Essas 4 palavras pareceram me dar um choque. Meu cérebro girava com mil conclusões em intensa velocidade. Emiti uma risada sarcástica involuntariamente, afinal essa era a resposta que “tudo isso” parecia pedir de qualquer mortal sensível…

– …de Araújo Aguiar. Por isso eu o lembro. Como vê, você cortou seu cabelo.

– Impossível, que porra é essa?!

– 27/02/2021, dia que recebi a visita de um cavalheiro que me disse: “Meu nome é Rafael – de Araújo Aguiar, por isso eu lembro seu pai, não tenha medo!” Como calcula, pela minha idade, “ele já morreu”, isto é, para mim. Você um dia vai usar o cabelo curto de novo, e etc., etc.

Meu sorriso amarelo de deboche continuava na cara. Mas eu tinha que me mexer e respirar, então acabei por forcejar que ele, uma vez que já tinha entrado, se pusesse à vontade, que se sentasse onde quisesse… Não havia mais hostilidade em meu ser.

– E, por fim, aos 50 anos você fará a mesma coisa, com você mesmo. É inútil explicar. Eu sempre tive um forte senso de destino, desde criança, e isso não vai mudar em tempo algum!

– Que me resta – devo acreditar em você! Se não quiser revelar muita coisa, bem. Mas então por que veio? – não vou perguntar como…

– Eu vim salvar sua vida. Não vá trabalhar amanhã! Você iria morrer nas ferragens do metrô. Assim de chofre é tudo quanto posso dizer. Ah!… Os livros! – ele vira minha estante na sala e correu para esse setor da casa de que tanto gosto. – Revelações chocantes sobre você, eu direi duas: um dia essa não será mais a sua casa. Você morará num espaço um pouco maior. E morará com algumas pessoas… – Ele continuou desfilando os olhos pelas prateleiras próximas da entrada da varanda, parecendo se agitar e querer mexer em tudo ao mesmo tempo, sem conseguir se decidir.

– Ah, é tanto tempo! Vou dizer a você, em caráter confirmatório, anedotas relacionadas a alguns desses exemplares.

Eu fiz uma cara de “Não tema, apenas continue o que você está fazendo”, sem precisar emitir sons.

Comos, Carl Sagan. O livro de que não gostamos, de que você não gosta mais. O outro dele aqui, O mundo assombrado… Ó, alguns dos nossos próprios livros! E David Harvey, Condição pós-moderna… Não se preocupe em separá-los dos outros… Dimitri acabará não os comprando…

– Eu já esperava!…

– Já tem livros em latim e italiano? Vou te dizer: eu sei 6 línguas. Leio nas seis. Tirando o português, é claro. Você aprenderá mais essas duas e enjoará de aprender outros idiomas. Assim se dará.

Ele falou isso porque viu uma folha com uma conjugação de verbos em Latim.

– Schur… Haha! Você já se desiludiu com a psicanálise, não é verdade? Roazen, já quase sem lombada… É, é pra essa época que eu vim!

– Caralho!…

– Os exemplares de jornal da Escala, a obra completa de Nietzsche que eu comprei no curso de sociologia!

Ele parecia estar mais falando consigo mesmo do que… Quero dizer, parecia estar sozinho na sala! Passou a mão por mais algumas lombadas de livros

Foi há pouco que você os meteu em ordem alfabética de novo, não foi? Você vai ler todos estes que ainda não leu e tem dúvida se vai viver o suficiente para ler de fato… José Lins do Rego, Pedra BonitaO apanhador no banco de centeio… campo de centeio Solha, Israel Rêmora ou o Sacrifício das Fêmeas… Aquele It ali em cima… E este computador…

Ele apontou para meu PC ligado.

-…Ele tem uns 2 tera de HD, não é isso mesmo?

– É.

Ele parecia rir de uma coisa nostálgica e bem antiga, como um tamagotchi para mim.

– Em qual tomo do Sítio do Pica-Pau Amarelo você está?

– O quinto. Você deve lembrar que eu lia sempre no banheiro… O exemplar está ao lado da pia…

– É mesmo!!

E continuou o exame…

O Capital… Sabe, Rafa… As revoluções mentais e de caráter que mudaram sua vida até aqui… Houve várias, não houve? O contato com Nietzsche, a conversão desabrida ao marxismo, depois a virada em 180 graus quanto a Platão… A descoberta dos reais méritos da “Pseudanálise” de “Fraude”… Você ainda viverá duas revoluções nessa mesma escala de valores… Continuará perfeiçoando sua ética, lixando sua estátua moral, melhorando e ficando mais e mais conformado consigo mesmo…

– Interessante. Só que eu não consigo imaginar…

– Se pensa que vou contar essa parte em detalhes, ou o que acontece lá fora, está muito enganado!

– Muito bem – talvez seja melhor assim!

– Ah, os CDs… O que você anda escutando na last.fm?

Agora nós dois sorríamos, cúmplices de um crime perfeito incomunicado.

– Eu estou no meu “mês de fevereiro de Overkill”… Se tornou minha terceira banda, só atrás de Metallica e Black Sabbath. Nós montamos umas listas bem fodas, divididas em “gêneros” que “enxergamos” nas canções…

– É, é isso mesmo! Uau!

– Você se surpreende com o próprio passado! E eu que recebo um “viajante no tempo” estou aqui, com sangue frio…

Eu queria terminar a frase para ele não me crer tão pedante ou não aproveitar qualquer brecha, mas ele deu de ombros. Nós não iríamos conversar sobre nosso pai, é claro que não.

– Então… eu só vim reiterar: não vá trabalhar amanhã, e um dia você estará contando isso a você mesmo também… Era o objetivo total da minha visita, o resto foi bônus!

– Não imaginava coisa diferente, até porque hoje…

– Mas vou quebrar sua expectativa…

Ele retirou do bolso da calça um cartão que eu nunca vira. Disse que era para eu usar em 2030, ou assim que a tecnologia o permitisse. Que todos os dados necessários estavam no próprio cartão, não havia uma senha, meu corpo bastaria para ser reconhecido como dono legítimo do objeto e daquilo que eu possuiria através dele… E ele me disse:

– Você encontrará algum dinheiro. Ele é seu. Eu vou embora agora… Você queria ter me perguntado no início… É, aconteceu dessa mesma maneira, e eu lembrava algumas reações que você forçosamente teria… Eu mesmo me embananei e esqueci de dizer que tinha a chave, mas que importância tinha, quando você percebeu que era eu! Agora vejo que o homem que me visitou também havia se embananado! Por isso abri lá embaixo, mas não queria ser mal-educado e deixar de bater, aqui em cima… É verdade, não me esforcei para cumprir um script ou atuar… Não é que, como antes ele tinha batido, eu bati também… É que realmente não me parecia idéia boa… Queria também que coincidisse de você estar em casa, não tinha certeza mais se o horário estava correto, se essa primeira visita daria certo… Mas pode deixar, eu vou te trancar aqui.

E riu.

– Até sempre!

– Até sempre!

Eu manuseei aquele cartão de crédito do futuro, e deplorei a tragédia da condição humana: então é sempre assim mesmo! quando finalmente conseguimos dinheiro, é quando já nos tornamos indiferentes a ele…