Monica em

EM NOME DA HONRA”

Originalmente publicado em 8 de janeiro de 2010.

Inspirado na fábula da Chapeuzinho Vermelho

Cabelos loiros, lisos e que mal chegavam aos ombros. Nariz afilado e empinado. Lábios finos e rosas. Uma flor delicada. Monica tinha dezesseis anos e começava a ser uma preocupação para os pais. Filha de um poderoso industrial da Wolfstation – pequena vila inglesa – do século XIX, sua beleza aliada a sua riqueza a tornavam um objeto de intensa cobiça por parte dos homens da cidade. Galanteios de meninotes, rapazolas e mesmo dos amigos do pai nunca foram surpresa na vida da colegial. Porém a atenta Sra. Williams percebeu que a filha não mais recusava as investidas de imediato com um firme: “Não desejo um faz-de-conta burguês e ambas as nossas infelicidades”. Na sala de visitas, dava a entender que não cederia, mas já não era tão resoluta como antes. Se não se tratasse de uma moça rica, poder-se-ia pensar que Monica gostaria de prolongar os casos, quem sabe forjar um noivado, unicamente em busca de dinheiro. A Sra. Williams, como qualquer mulher madura, conhecia muito bem aquelas transformações no corpo e mente da adolescente, da menina-adulta. No entanto, sentia-se constrangida diante dos arroubos de sensualidade da criatura fervilhante que se exibia pela primeira vez debaixo de seu teto e diante dos seus olhos. Cantarolava ao espelho, perfumava-se toda. Nunca havia visto sua filha assim. Resolvera esperar até o dia do baile escolar para dar um passo além da simples observação: chamou Monica a um canto, na cozinha, enquanto assava alguns bolinhos, e pediu que não comprometesse a posição da família na alta sociedade com burlas namoradeiras. Monica sabia o que a palavra burla queria dizer.

Manteve-se afastada de bons partidos na escola; reprimiu seus sentimentos até aquela idade, em que já não era possível ocultar os batimentos acelerados e a maçã rubra das faces quando o assunto das garotas adentrava o sexo oposto. Julgava usufruir de uma vida muito mais confinada do que a das amigas, e mais recatada do que o necessário. Mas não ousava afrontar o pai. Não se sabe ao certo se planejava algo, se nutria rancor pela educação severa que recebia, porém tudo indica que o respeito que demonstrava pelo Sr. Williams não devia ser dissimulação. Acontece que toda santa alma um dia se cansa…

Há meses Monica observava, de longe e sem ser notada por nenhum dos colegas, um bando de alunos da série superior. Populares entre a juventude e malvistos pelos professores, constituíam seis ou sete bolsistas da região pobre da cidade. Não provinham de família abastada, mas freqüentavam a mesma escola da filha de Henry Williams. Este, dono de tecelagens por todo o país e bem-informado pelas amizades e pelos jornais, sabia da política acolhedora da instituição de ensino, e espumava de raiva a cada lembrete do tipo de gente que podia sentar-se às carteiras adjacentes à de seu tesourinho.

Talvez se inclinasse a lutar no parlamento por mudanças na aceitação de estudantes pobres, mas adiava a iniciativa, combinando com o advogado os argumentos perfeitos para a sessão plenária (onde pisava quando bem entendesse), além de aguardar que um célebre comerciante, conhecido seu, assumisse a cátedra de diretor, no rodízio previsto pelo regimento da escola, em apenas dois meses. Poder-se-ia dizer que o inconveniente de misturar a rebenta com uns pobretões da zona operária de Wolfstation não era de trato urgente. Enquanto isso, fazia vistas grossas até mesmo às filhotas dos outros industriais, a inculcar em Monica a idéia de comprar novos vestidinhos, tomara-que-caias, que deixavam as rapariguinhas de ombros escandalosamente desnudos, ou saiões com cortes indecentes.¹ Considerava as filhas dos outros capitalistas putas de luxo, sem exceção.

¹ A tomara-que-caia é “invenção” do século XX, mas esse conto se dispensa da obrigatoriedade de fugir de anacronismos.

Monica decidiu que se aproximaria dos bolsistas na festa do baile. Sabia que, quando muito, um ou dois valeriam a pena; os outros seriam grosseiros por saberem quem ela era – se tem uma coisa por que os sem-dinheiro zelam é o velho orgulho de classe. Não disfarçar antipatias. Não alimentar falsas esperanças de “subir na vida se casando com uma princesa ao invés de uma plebéia”. Não quando seria de cortar o coração de tão humilhante, e aquele Sr. Henry não era o tipo de pai que deixaria barato em uma entrevista eliminatória. Quando se estuda em escolas assim, além do mais, seria muito mais gratificante descontar essa frustração de berço cuspindo no chão e apontando o dedo para ricaças insinuantes.

A princesa penetra da história já desconfiava do gênio desses rapazes. Mas é provável que a cólera direcionada aos burgueses não fosse uniforme. Um ou dois poderiam pensar diferente, no íntimo. E estava cada vez mais complicado para uma loira vistosa e enfeitada de jóias hipnotizantes ao longo do pescoço, dos pulsos, das orelhas e dos dedos, quando não incrustadas nos vestidos, enfim, para uma baronesa com corpo de sereia, lidar com esses novos impulsos: a necessidade de amigos descolados das tradições, o instinto de buscar o diferente, o exótico, o rebelde. Todos têm a idade desse despertar. Ao mesmo tempo, continuar fiel às amigas. E, para isso, deveria ter alguma proeza para contar. Era a mais inexperiente do grupo, e já gerava risitos incontidos nos falatórios no departamento “homens”. Não tinha opinião formada sobre casamento, sobre o melhor estágio da vida para descobrir o marido ou o grau de liberdade que deve ser tolerado entre casais não-reconhecidos pela Igreja. Tudo veio rápido demais para essa moça. Monica quis apenas se auto-afirmar em seu grupo de amigas, não que isso implicasse em ser uma Williams maculada.

Foi no baile que, surpreendentemente, Monica, sem tomar nenhuma iniciativa, foi cortejada pelos famosos bolsistas da Wolfstation Noble School. Do mesmo jeito que costumava ser, debaixo das vistas da própria mãe, só que agora num amplo salão sem obrigações de sangue a interferir. Sorriu muito com o mais alto, aparentemente o “líder”. Respondeu todas as perguntas com inocência e temeu fazer alguma. Confirmou que era filha de Henry Williams, o famoso cidadão freqüentador número 1 do único banco da cidadezinha. Sabe-se lá o que vai fazer duas vezes por dia, religiosamente, às catorze e às dezoito horas, sempre demorando quinze minutos do lado de dentro. Assentiu também às suspeitas de que o pai era dono inclusive de termelétricas e exploradoras de carvão em Northsville, a cidade mais próxima de Wolfstation. E que aqui ele ainda era dono de uma companhia de bondes, mas adorava seus passeios de charrete. Possuía um cocheiro, três cavalos de elite e um carro pintado de ouro. Se era a tinta ou se era ouro de verdade, sobre isso não especulou. Dúvidas tão tolas as daqueles rapazes. E eles aparentavam segurança e auto-domínio quando conversavam longe de seus ouvidos, no gramado. Pessoalmente, não passavam de molecotes. Havia entre eles uma mulher, que Monica não tardou em julgar ser uma prostituta literal. Tinha aquela pinta perto dos lábios que rapidamente se associa à profissional mais antiga do mundo. E aquele sorriso de canto de boca, naquela noite de gala com um decote que fazia os gorilas do sexo oposto arfarem.

* * *

Dois dias depois de ter trajado aquele vestido vermelho de brilhantes e aquela tiara da mesma cor, com sapatos pontiagudos e de salto, além de uma pesada maquiagem, Monica e Edward, o rapaz alto do bando, já trocavam juras intensas de amor. Um amor infantil, diga-se. Nem mesmo se beijavam, só davam-se as mãos, cruzavam os braços ao caminhar, mal se tocavam. Ela já se sentia à vontade entre os bolsistas, no horário das classes. Ou melhor, nos intervalos, uma vez que as regras da distinta instituição eram rígidas e Monica tinha medo de que as fofocas viajassem alguns quilômetros até o escritório do pai.

A Sra. Williams, dotada daquele clássico sexto sentido feminino e materno, esperava a melhor ocasião para abordar a filha. Não perguntaria: “Está se encontrando com um homem às escondidas?”, mas “Qual o nome dele?”. Justo numa tardinha, quando ambas silenciavam na sala e a mãe tricotava ensaiando o discurso na cabeça, uma carruagem deu sinal à janela. Segundo consta, era o criado de Henry, dizendo que Monica devia seguir com ele até onde estava o pai. “Uma conversa no meio do expediente?”, pensou a madame. Mas se tranqüilizou ao se dar conta de que o pai também notava os pormenores da agitada vida da filha: “Vá, vá conversar com ele!”.

Era de fato o criado, mas no banco de trás estava Edward. Ele havia pagado duas libras para que o condutor enganasse a dona da mansão. Capataz muito confiável, sucumbiu à pomposa gorjeta. É um valor que um bolsista duvidosamente poderia desperdiçar pelos cantos. Monica se sentiu divina com este regalo apaixonado. Ambos foram deixados a sós em um parque, o mais espesso da região. Brincaram, rolaram pelo gramado, se enroscaram pelos troncos. E aí Monica percebeu que toda a sua etiqueta não seria suficiente contra pulsões tão selvagens. Pediu, quase tremendo, de excitação, não de pavor, que só continuasse enquanto ela consentisse. O rapaz balançou a cabeça verticalmente. Ambos se embrenharam nas matas mais altas e no canto mais afastado daquele passeio verde, e Monica tentou fazer silêncio. Quando a afoiteza de Edward já era evidente, aliás, o único que se podia notar nele, ela pediu para seu namorado parar. O garotão não podia se conter diante daquela beleza loira tão frágil e agora corrompida. O sangue, o suor, a água da garoa que caía, tudo se juntou com outro fluido. Como nas garras de alguém com quem não se pode comunicar, Monica apenas rangia os dentes, paralisada pela dor do arrependimento e da genitália azarada. Tudo estava turvo demais para reações precisas como aquelas da polida sala-de-estar de antigamente, e ela sequer soube em qual segundo as coisas tinham passado de uma brincadeira entre dois inconseqüentes para uma outra coisa, uma violação; em que momento ela própria se converteu de aventureira intrépida em vítima de estupro.

Edward a largou de bruços, esgotada, e se retirou, como se nada tivesse acontecido. Depois daquele encontro voraz, Monica regressou a pé para casa, de saltos quebrados nas mãos, trancou-se no quarto durante três dias e só aceitou duas visitas: a mãe e a criada que trazia a comida, ainda que quase não a tocasse. A par do que talvez tivesse ocorrido, desconhecendo contudo os detalhes mais ásperos, a Sra. Williams apenas consolava a filha: “Há homens que não revelam sua natureza lupina logo ao segundo encontro”. O senhor e a senhora da casa julgavam ser uma fatalidade natural, o primeiro desengano amoroso de uma garotinha, e se aliviaram por saber que a preocupação com os desordeiros do colégio e as precipitações de Monica não iriam se repetir, resolvidas ambas de uma cajadada.

O que os amigos de papai iriam dizer?”, foi a frase fixa, o fluxo neurótico que latejava na má-consciência daquela adolescente em prantos e frangalhos. Mas a experiência não fôra tão traumática, a ponto de no quarto dia o bom humor ter instantaneamente se restabelecido. Na escola, pôs as conversas com as antigas amigas, com quem rompera brevemente, em dia, chegando a uma concordata. Não contou nada a ninguém sobre “o bosque”. Na saída, Edward apareceu. Monica se limitou a fitá-lo com uma extraordinária repulsa, curvando-se em meia-circunferência, ainda abalada. Foi agarrada pelo braço esquerdo. Mas quando virou o oleoso pescoço, banhado em suor frio, não era o rosto do rapagote canalha, aquele arquétipo de Don Juan com requintes de maníaco, aquele que enxergou. Era um de seus comparsas, que defendeu o parceiro Eward: “Olha, ele achava que você era um tipo mais arrojado de garota. Ele chorou no meu ombro, disse que confundiu tudo, pensou que sua aflição fazia parte daquele momento de quebra de regras, da nova vida aflorando, de não ser mais uma menininha do papai…”. Uma bofetada na cara seria a reação mais natural, mas Monica apenas baixou ainda mais o rosto, constrangida.

* * *

Passaram-se mais duas semanas sem que ela dirigisse palavra àquela turma. Um dia antes do recesso de fim de ano, decidiu finalmente endereçar uma mensagem a Edward, ao vê-lo desacompanhado. Entregou-lhe um bilhete: “Encaminhe-se ao mesmo local do nosso primeiro encontro. Eu, Monica Williams, por ter sido manchada em meu sangue azul, dou-lhe uma segunda chance, com o ônus de que seja meu pelo resto da eternidade. Contei a meu pai sobre você.” As extremidades do corpo de Edward gelaram. Pensava vertiginosamente em todo o conteúdo do bilhete. Queria saber o que era contar ao pai sobre si, a que nível de profundidade o relato chegara. E conjeturava – se aquilo era mesmo uma proposta de casamento, quão rude não havia sido! Porém, como se esperasse por um acontecimento não muito diferente desse, pôs-se mais uma vez sereno, ajeitou a gola da camisa, pigarreou, socou uma mão na outra, suspirou, relaxou as costas e começou a andar em velocidade até uma casa, de propriedade anônima. Telefonou para a mansão Williams e disse: “Banco Wolfstation. Por favor, transmita o recado. O Sr. Williams precisa falar com o gerente de saldos, ele estará presente apenas às dezoito horas”. Era meio-dia e ele teria tempo para agir.

No reencontro, nenhum movimento suspeito, ainda que num certo breu das árvores. Pelo contrário, rumaram para a casa de Edward, onde a mãe os recebeu com pães de queijo e tagarelices amistosas. No correr da modesta reunião, mudança de planos: “Vamos nos reunir todos, os bolsistas do décimo ano, na casa de Mike”. Lá, um sobrado cinzento, a campainha tocou três vezes até que um risonho Mike desse as caras. Um teto a quatro metros de altura dos convivas, escadas em espiral, sofás fedendo a mofo. Um sítio suntuoso, embora semi-abandonado.

Onde estão os outros? – perguntou Monica.

Não haverá outros. Você está em cativeiro.

Alguém veio por trás e abafou-lhe o grito agudo com um saco grosso de algodão, que agora encobria toda sua cabeça. Monica foi levada para o sótão.

Enquanto isso, a garota soube que seu pai seria conduzido a uma cilada. O mais velho do grupo, ainda um rapaz, entretanto mais robusto e barbudo o suficiente para se passar por um respeitável representante bancário, interceptou o Sr. Williams antes que ele pisasse no banco, pelo fim da tarde. Passeavam pela cidade a quatro rodas enquanto conversavam, mas Henry percebia o tom abstrato do “sermão matemático”.

Conte-me de uma vez, furtaram o meu cofre? E onde está o Sr. Phillips?

Não, mas iremos… – respondeu o adolescente parrudo, ignorando por completo a segunda pergunta, sobre o real gerente do banco.

Henry Williams nunca havia levado um tiro. Ao ler romances e estórias de detetive sempre se indagava como seria a dor da bala perfurando a pele e a carne após disparo à queima-roupa. Era um ardor ou trauma semelhante a uma mordida brutal. A mordida de um urso, por exemplo. Foi na tíbia direita, pouco acima do osso do tornozelo. A perna inteira parecia ter sido tragada por uma fogueira. Mas fogueiras não fazem sangrar. O vermelho que grassava e se espalhava agora pelo chão da carroça mudou também o tom da dor, agora um repuxar insuportável dos músculos. O atirador puxou o homem pela camisa, imperativo: “Estamos com sua filha; se quiser que os jornais de amanhã contem o que está acontecendo na casa onde ela está, senhor industrial, não faça nada, e nos mande pra cadeia, inclusive. Não vai nos matar porque somos muitos”. “Tu…do bem.” E prosseguiu: “Nós queremos que na sua próxima visita ao banco peça ao gerente, o gerente de verdade, que aumente seu limite de transferências e deposite o lucro do ano anterior da sua tecelagem Wearing Co., que eu conheço pelas notas da imprensa, nestas quinze contas. Vai dizer que essa bala partiu de um ex-cliente furioso que não pôde identificar e que está fazendo isso para sua segurança legítima, pela integridade de seus bens e de seus familiares”. Depositou então um papelote no bolso do sobretudo daquele grisalho outrora imponente. “Não vai perguntar sobre sua filhinha, não é mesmo?… O que importa é… Bem, ela lhe será entregue assim que confirmarmos as transferências; esteja neste mesmo lugar.” Chutou-o para fora da charrete de ouro: “Esteja aqui, não chame a polícia! Nós temos tudo que a força da guarda desta cidade não tem!”. E não era mero blefe. O Sr. Williams mal se mexeu por duas horas, reclinado sobre um tronco, recusando até mesmo a assistência vespertina de uns andrajosos que passavam por perto. Até que percebeu que, pelos dizeres do malfeitor, deveria caminhar de contínuo até o banco, não longe dali, ferido como estava, para realizar o protocolo. Estava atrasado, atrasaria ao todo em mais de meia hora em relação ao combinado. Os cuidados médicos poderiam esperar.

Em torno de oito e meia da noite, com a conta da Wearing esvaziada e o referendo da matriz do banco em Londres (a soma era vultosa), chegava àquela clareira do parque público o reluzente carro do próprio Henry Williams em que um tiro havia soado, dessa vez com três capangas e Monica, toda encolhida. A filha parecia feliz e aliviada ao ver seu progenitor. Abraçaram-se, e ele perguntou:

Aconteceu alguma coisa?

Nada, papai… Claro que não houve nada!…

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